O princípio da felicidade e da infelicidade

No que tange ao nosso estado de Espírito, os sentimentos que mais nos afetam são aqueles de felicidade e infelicidade… Ou, pelo menos, assim acreditamos. Dessa forma, a sociedade em geral vivem em uma busca da felicidade, quase sempre sem resultados duradouros, felicidade esta que, quando não alcançada, remete aos estados gerais que frequentemente conduzem aos abismos da depressão ou da melancolia.

Começo dizendo, prezado leitor, que a quase total ausência de rumo e de entendimento atuais se devem ao esquecimento do Espiritualismo Racional. Tendo transformado o homem em máquina biológica, ausente de uma alma, o materialismo tirou, da moral, a sua essência primordial, que o Espírito em seu papel de causa primeira de tudo o que se passa na matéria.

Paulo Henrique de Figueiredo diz:

As doutrinas religiosas e também o pensamento materialista são heterônomos, pois partem do princípio de que a moral estaria fundamentada na dor e no prazer, que são impulsos inatos e ligadas ao instinto e à sobrevivência, são sensações que surgem de alterações fisiológicas, próprias do corpo biológico. A falsa ideia do castigo divino para a criatura culpada aponta dogmaticamente a existência da dor física após a morte, causada pelo ambiente do inferno, por toda a eternidade. Por outro lado, prazeres e eterna contemplação para os eleitos no Céu. Já o Espiritismo vai demonstrar, pela primeira vez, em sua moral autônoma, a existência de sensações íntimas próprias do espírito, que são a felicidade e a infelicidade, dando a esses termos definições específicas

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Editora FEAL, 2021. Nota do Editor.

O Espiritismo, que se desenvolveu do Espiritualismo Racional – “movimento” que formou os mais ilustres pensadores do século XIX, tinha, de forma muito resumida((recomendo, para melhor compreensão, o estudo da obra O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, pela editora FEAL, com comentários de Paulo Henrique de Figueiredo, e da obra “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, do mesmo autor. Outra sugestão é procurar os vídeos com participação do Paulo, no YouTube)), na moral, os conceitos de felicidade e infelicidade muito bem definidos como conquistas da alma, ao passo que, do corpo ou da matéria, fazem parte as emoções, sejam elas o medo, a tristeza, a alegria, a raiva, etc. Também, no aspecto da matéria, devemos citar as sensações, como o prazer e a dor, que são o resultado imediato da impressão física captada pelos nervos e conduzida ao cérebro.

Como Espíritos encarnados, estamos todos sujeitos às condições da matéria. Por mais evoluído que um Espírito possa ser, o fato de receber uma martelada na mão vai causar muita dor, talvez a mesma que para todos os outros, mas o detalhe é que o Espírito superior não vai se apegar àquela dor ou ao indivíduo que eventualmente a tenha provocado — o que é um muito importante.

Temos, assim, bem separados, o que é do Espírito e o que é da matéria. De forma muito simplória, e contando com a boa vontade do leitor em acreditar que isso que estou dizendo está baseado nos estudos das obras originais de Allan Kardec, pelo que ele pode conferir por si mesmo, concluímos que as emoções do corpo não tem nada a ver, a priori, com os sentimentos da alma ou do Espírito. A felicidade tem a ver com as conquistas do Espírito, ao passo que a infelicidade tem a ver com a inferioridade dele. Um Espírito, encarnado, pode ser muito infeliz, apesar de rico e com todos os recursos de prazeres e alegrias ao seu alcance, ao passo que outro pode ser muito feliz morando num casebre de barro. Um Espírito encarnado num corpo são pode ser muito depressivo ou raivoso, ao passo que outro, num corpo deformado ou doente, pode ser muito calmo, feliz e bondoso.

Para formar um entendimento melhor, vamos falar sobre a infelicidade. Ela é muitas vezes confundida com as emoções e as dores humanas, mas, como vimos, não reside nelas. A infelicidade, na verdade, é o quanto o Espírito está afastado da felicidade. Parece bem óbvio isso, mas deixe-me explicar: a felicidade é viver sob a lei de Deus, isto é, viver no bem. A ausência dela, a infelicidade, é viver afastado do bem, sob o império das imperfeições que nos conduzem ao erro e ao sofrimento, sendo este o resultado das ações realizadas, e não uma punição divina.

Eis aí a grande chave para o entendimento da moral e da busca necessária, do ser humano, pela felicidade: ela não reside nas coisas passageiras da matéria, nem nos prazeres, nem nas paixões. Ela reside na alma, como resultado de uma conquista interior, individual e intransferível.

Diz Paulo Henrique, na mesma obra:

Já na lei que rege o espírito humano, que tem no mundo espiritual sua vida principal, o aperfeiçoamento das faculdades por seu esforço é a sua meta, fazendo uso das reencarnações como meio de progresso. A felicidade não é como a sensação fisiológica do prazer; é um estado ou sensação íntima do espírito, inerente ao seu aperfeiçoamento intelecto-moral. A todo ato do bem corresponde uma sensação de felicidade, e o desenvolvimento de virtudes, conhecimento e habilidades torna essa condição progressiva, até a felicidade plena dos espíritos puros. Por outro lado, a condição de imperfeição é inerente ao sofrimento moral, que vai durar até que o espírito supere a imperfeição por seu esforço. Trata-se de estados e sentimentos íntimos do espírito, em nada dependentes de algo que lhes seja exterior. Essas são as leis da alma, que regem o mundo moral. Assim Kardec se expressou, no item 2o, do Capítulo VIII:

“Sendo todos os espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento. (p. 132)”

Os elementos da sua felicidade ou da sua infelicidade estão no próprio espírito; depende dele proporcionar-se um ou outro. Desse modo, a felicidade não é uma concessão ou uma graça divina, mas uma conquista do próprio ser. Tampouco a infelicidade é um castigo, mas uma condição criada quando o espírito desenvolve uma imperfeição que termina quando ele próprio a desfaz.

Ibidem

Podemos ficar muito alegres por vivenciar momentos descontraídos e divertidos com os amigos, mas, cessados esses momentos, o que permanece é o nosso estado de Espírito. Podemos ficar contentes comprando coisas para nos vestir bem ou comendo iguarias saborosas… Mas, cessadas essas ações, permanece, ainda, o mesmo estado de alma. E aqui chegamos a algo muito importante: essa constante perseguição pela felicidade nas coisas e nas ocasiões, ao invés de buscá-la na conquista interior, frequentemente nos conduz às imperfeições!

O homem, ao buscar a satisfação de seus desejos e instintos, confundindo essa busca com a busca pela felicidade, pode “exagerar na dose”. Tomemos o exemplo da compra de bens materiais: uma pessoa que vincule as posses à sensação da felicidade, quando não puder atender a essa vontade com seus próprios recursos, pode ser levada a cometer o crime do roubo ou do furto, a fim de satisfazê-la. Apenas nesse exemplo, temos a cobiça e o egoísmo sendo cultivados. Se repetidos, formando hábitos, poderão se instalar na alma, como imperfeições, que produzirão sofrimentos que, para serem superados, terão que ser compreendidos e enfrentados ativamente, pela vontade do Espírito, o que, comumente, leva mais de uma encarnação para ser alcançado.

Continua Paulo Henrique:

Toda imperfeição é fruto da livre escolha do espírito, que, por apego à matéria, usa as faculdades da alma para agir de forma a conquistar prazer (sensação) e alegria (emoção). Esse ato de abuso, transformado em hábito, é a imperfeição, que tem como consequência inerente o sofrimento moral, ou infelicidade (sensação do espírito). Essa condição é transitória, pois, superando as imperfeições, o espírito retorna ao caminho do bem e liberta-se da infelicidade

Ibidem

O contrário também é verdadeiro: o Espírito que confunde a infelicidade com as dores e as emoções negativas da matéria, para se ver longe delas, pode se lançar numa busca sem fim, que, frequentemente, também lhe coloca em contato com maus hábitos que poderão fazer surgir uma imperfeição.

Essa compreensão, que parece muito simples, em princípio, e que é de suma importância, não é muito fácil de ser internalizada. Como ela o será? Pelo estudo, que leva ao conhecimento, que fortalece a razão. O Espírito só se modifica, de verdade, quando entende suas imperfeições e seus erros e quando, ativamente, por vontade própria, passa a buscar vencê-los. Por isso, fica o convite aos estudos, sendo que aquele sendo realizado pelo Grupo de Estudos Espiritismo para Todos (EPT), sobre a obra O Céu e O Inferno (editora FEAL, baseado na 1.ª edição do original, não adulterado) é um dos melhores, nesse sentido.

Aqui, antes de terminar, temos mais uma reflexão. Falamos a respeito da formação das imperfeições surgindo dos maus hábitos… Por isso, não podemos deixar de falar da educação infantil. A criança, por força de um mau hábito, ensinado ou reforçado desde o berço, pode, também, adquirir uma imperfeição, da qual muito custará a se desvencilhar. Portanto, pais, é passada a hora de se debruçar sobre o estudo da moral e da educação, de modo a melhor educar os filhos, desde seus primeiros atos na vida material, auxiliando-os, pela caridade que nos compete, a auxiliar esses Espíritos a alcançarem, mais cedo, a felicidade, como nós desejaríamos ter alcançado.

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Primeiras lições de moral da infância

Foto de samer daboul: https://www.pexels.com/pt-br/foto/fotografia-de-criancas-felizes-1815257/

Quem já se aventurou a conhecer um pouquinho mais da história de Allan Kardec, sabe que ele foi educado pelo método de Pestalozzi, sendo um de seus mais exemplares discípulos. Para seu mestre, a educação deve ser pautada pelos princípios da fraternidade e do amor, afastada dos conceitos de pecado e castigo, o que moldou demais a forma de pensar de Kardec, que, depois, se fundamentou ainda mais plenamente pelo Espiritualismo Racional e, posteriormente, pelo Espiritismo. Sabemos também que o caráter investigativo e humilde do professor Rivail também foi formado basilarmente por essa educação, pautada pela exploração das ciências naturais através do método científico, e isso, é claro, explica muito a maneira pela qual ele agia frente ao Espiritismo.

Tudo isso – a fraternidade, o aprendizado pelos princípios morais do bem e das leis de Deus, a caridade desinteressada, que é fruto desse aprendizado, a humildade, que nasce do coração daquele que jamais toma por princípio que a sua palavra é a última, enfim, tudo aquilo que está encerrado na metodologia pestalozziana – dá base a uma educação de muito melhor qualidade, desde os primeiros passos do ser humano sobre a Terra. Ela é, não hesito em dizer, uma das maiores ferramentas para a (trans)formação da sociedade, complementada grandemente pelo entendimento das leis que o Espiritismo veio demonstrar. As duas, juntas, têm o maior poder de, desde a infância, impedir a instalação ou o desenvolvimento dos mais danosos hábitos para o indivíduo e para a sociedade – o egoísmo e o orgulho – mas, até hoje, nenhuma delas ganhou o espaço merecido, por conta do apego humano aos falsos conceitos que, de cara, parecem agradar, mas que, no fundo, causam apenas infelicidade e atraso.

Para exemplificar tudo isto, nada melhor do que reproduzir, na íntegra, o conteúdo do artigo homônimo de Allan Kardec, apresentado na Revista Espírita de fevereiro de 1864.

De todas as chagas morais da Sociedade, parece que o egoísmo é a mais difícil de desarraigar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais é alimentada pelos próprios hábitos da educação. Parece que se toma a tarefa de excitar, desde o berço, certas paixões que mais tarde tornam-se uma segunda natureza. E admiram-se dos vícios da Sociedade, quando as crianças o sugam com o leite. Eis um exemplo que, como cada um pode julgar, pertence mais à regra do que à exceção.

Numa família de nosso conhecimento há uma menina de quatro a cinco anos, de uma inteligência rara, mas que tem os pequenos defeitos das crianças mimadas, isto é, é um pouco caprichosa, chorona, teimosa, e nem sempre agradece quando lhe dão qualquer coisa, o que os pais cuidam bem de corrigir, porque fora esses defeitos,segundo eles, ela tem um coração de ouro, expressão consagrada. Vejamos como eles se conduzem para lhe tirar essas pequenas manchas e conservar o ouro em sua pureza.

Um dia trouxeram um doce à criança e, como de costume, lhe disseram: “Tu o comerás se fores boazinha”. Primeira lição de gulodice. Quantas vezes, à mesa, não dizem a uma criança que não comerá tal petisco se chorar. “Faze isto, ou faze aquilo”, dizem, “e terás creme” ou qualquer outra coisa que lhe apeteça, e a criança se constrange, não pela razão, mas em vista de satisfazer a um desejo sensual((Desejo dos sentidos)) que a aguilhoa.

É ainda muito pior quando lhe dizem, o que não é menos frequente, que darão o seu pedaço a uma outra. Aqui já não é só a gulodice que está em jogo, é a inveja. A criança fará o que lhe dizem, não só para ter, mas para que a outra não tenha. Querem dar-lhe uma lição de generosidade? Então lhe dizem: “Dá esta fruta ou este brinquedo a fulaninho”. Se ela recusa, não deixam de acrescentar, para nela estimular um bom sentimento: “Eu te darei um outro”, de modo que a criança não se decide a ser generosa senão quando está certa de nada perder.

Certo dia testemunhamos um fato bem característico neste gênero. Era uma criança de cerca de dois anos e meio, a quem tinham feito semelhante ameaça, acrescentando: “Nós o daremos ao teu irmãozinho, e tu ficarás sem nada.” Para tornar a lição mais sensível, puseram o pedaço no prato do irmãozinho, que levou a coisa a sério e comeu a porção. À vista disso, o outro ficou vermelho e não era preciso ser nem o pai nem a mãe para ver o relâmpago de cólera e de ódio que partiu de seus olhos. A semente estava lançada: poderia produzir bom grão?

Voltemos à menina, da qual falamos. Como ela não se deu conta da ameaça, sabendo por experiência que raramente a cumpriam, desta vez foram mais firmes, pois compreenderam que era necessário dominar esse pequeno caráter, e não esperar que com a idade ela adquirisse um mau hábito. Diziam que é preciso formar cedo as crianças, máxima muito sábia e, para a pôr em prática, eis o que fizeram: “Eu te prometo, disse a mãe, que se não obedeceres, amanhã cedo darei o teu bolo à primeira menina pobre que passar.” Dito e feito.

Desta vez queriam manter a promessa e dar-lhe uma boa lição. Assim, no dia seguinte, de manhã, tendo visto uma pequena mendiga na rua, fizeram-na entrar e obrigaram a filha a tomá-la pela mão e ela mesma lhe dar o seu bolo. Então elogiaram a sua docilidade. Moral da história: A filha disse: “Se eu soubesse disto teria me apressado em comer o bolo ontem.” E todos aplaudiram esta resposta espirituosa. Com efeito, a criança tinha recebido uma forte lição, mas de puro egoísmo, da qual não deixará de aproveitar-se uma outra vez, pois agora sabe quanto custa a generosidade forçada. Resta saber que frutos dará mais tarde esta semente quando, com mais idade, a criança fizer a aplicação dessa moral em coisas mais sérias que um bolo.

Sabe-se todos os pensamentos que este único fato pode ter feito germinar nessa cabecinha? Depois disto, como querem que uma criança não seja egoísta quando, em vez de nela despertar o prazer de dar e de lhe representar a felicidade de quem recebe, impõem-lhe um sacrifício como punição? Não é inspirar aversão ao ato de dar e àqueles que necessitam?

Outro hábito, igualmente frequente, é o de castigar a criança mandando-a comer na cozinha com os criados. A punição está menos na exclusão da mesa do que na humilhação de ir para a mesa dos serviçais. Assim se acha inoculado, desde a mais tenra idade, o vírus da sensualidade, do egoísmo, do orgulho, do desprezo aos inferiores, das paixões, numa palavra, que com razão são consideradas como as chagas da Humanidade.

É preciso ser dotado de uma natureza excepcionalmente boa para resistir a tais influências, produzidas na idade mais impressionável, na qual não podem encontrar o contrapeso nem da vontade, nem da experiência. Assim, por pouco que aí se ache o germe das más paixões, o que é o caso mais ordinário, dada a natureza da maioria dos Espíritos que se encarnam na Terra, ele não pode deixar de desenvolver-se sob tais influências, ao passo que seria preciso observar-lhe os menores traços para reprimi-los.

A falta, sem dúvida, é dos pais, mas é preciso dizer que muitas vezes estes pecam mais por ignorância do que por má vontade. Em muitos há, incontestavelmente, uma culposa despreocupação, mas em muitos outros a intenção é boa, no entanto, é o remédio que nada vale, ou que é mal aplicado.

Sendo os primeiros médicos da alma de seus filhos, os pais deveriam ser instruídos, não só de seus deveres, mas dos meios de cumpri-los. Não basta ao médico saber que deve procurar curar, é preciso saber como agir. Ora, para os pais, onde estão os meios de instruir-se nesta parte tão importante de sua tarefa? Hoje dá-se muita instrução à mulher; fazem-na passar por exames rigorosos, mas algum dia foi exigido da mãe que soubesse como fazer para formar o moral de seu filho?

Ensinam-lhe receitas caseiras, mas foi iniciada aos mil e um segredos de governar os jovens corações?

Os pais, portanto, são abandonados sem guia à sua iniciativa. É por isto que tantas vezes seguem caminhos errados. Assim recolhem, nos erros dos filhos já crescidos, o fruto amargo de sua inexperiência ou de uma ternura mal compreendida, e a Sociedade inteira lhes recebe o contragolpe.

Considerando-se que o egoísmo e o orgulho são reconhecidamente a fonte da maioria das misérias humanas; que enquanto eles reinarem na Terra não se pode esperar nem paz, nem caridade, nem fraternidade, então é preciso atacá-los no estado de embrião, sem esperar que fiquem vivazes.

Pode o Espiritismo remediar esse mal? Sem dúvida nenhuma, e não hesitamos em dizer que ele é o único suficientemente poderoso para fazê-lo cessar, pelo novo ponto de vista com o qual ele permite perceber a missão e a responsabilidade dos pais; dando a conhecer a fonte das qualidades inatas, boas ou más; mostrando a ação que se pode exercer sobre os Espíritos encarnados e desencarnados; dando a fé inquebrantável que sanciona os deveres; enfim, moralizando os próprios pais. Ele já prova sua eficácia pela maneira mais racional empregada na educação das crianças nas famílias verdadeiramente espíritas. Os novos horizontes que abre o Espiritismo fazem ver as coisas de outra maneira. Sendo o seu objetivo o progresso moral da Humanidade, ele forçosamente deverá iluminar o grave problema da educação moral, primeira fonte da moralização das massas. Um dia compreender-se-á que este ramo da educação tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual, numa palavra, que é uma verdadeira ciência. Talvez um dia, também, será imposta a toda mãe de família a obrigação de possuir esses conhecimentos, como se impõe ao advogado a de conhecer o Direito.

Kardec dá todo o peso à responsabilidade que temos perante as crianças e seus hábitos. O Espiritismo mostra a origem das tendências inatas infantis, mas demonstra, também, que o Espírito encarnado numa criança pode não ser forte, ainda, para resistir a um mau hábito que seus pais ou cuidadores lhes ensinem desde os primeiros passos. Criam-se, assim, imperfeições que muito poderão custar a serem vencidas…

Comumente, na carne, o fruto dessas imperfeições levará esses a perguntarem: “o que foi que eu fiz para merecer isso?”, ou então “onde foi que eu errei?”. Contudo, basta que a razão fale um pouquinho mais alto à consciência para que se joguem em pesadas lamentações, nascidas do fruto da constatação de que o sofrimento pelo qual o filho poderá ter passado não só por uma, mas por muitas vidas terrestres, se originou, senão em tudo, mas ao menos em parte, na primeira semente lançada e cultivada por aqueles que lhes deveriam auxiliar a se desenvolver sob a moral do bem, e não a dele se afastarem.

Portanto, pais e cuidadores, muito mais atenção para com os Espíritos que Deus lhes confiou como filhos. Serão as suas próprias consciências, e não Deus, quem vai lhes cobrar, amanhã…




Revisitando André Luiz: Ação e Reação

Depois da descoberta de que, de Espiritismo, eu não conhecia nada (o que se deu há quase um ano) e com a confirmação de que uma série de dúvidas que eu sempre mantive em minha mente, e que vieram se acentuando conforme passei a colocar a cabeça para funcionar, deixei de ler as obras realizadas através da mediunidade de Chico Xavier.

Recentemente, porém, instigado pela sugestão de uma moça, em um grupo, que recomendou estudar a obra Ação e Reação para entendermos o porque os animais sofrem dores, encontrei diversas incongruências, desde as várias já conhecidas, entre os “ensinamentos” transmitidos por André Luiz e os postulados doutrinários do Espiritismo, passados pelo duplo controle do crivo da razão e do ensinamento geral dos Espíritos.

Não mais posso deixar passar, cegamente, diversos conceitos que, antes, eram mais ou menos aceitos sem raciocinar. Não após passar a conhecer Allan Kardec em sua essência, através dos estudos da Revista Espírita, e também após começar a entender os conceitos de autonomia e moral, fundamentados pelo Espiritualismo Racional e desenvolvidos pelo Espiritismo.

Resgates coletivos? Ação e reação? Olha, se tem alguma forma de tirar algo de útil, dessa obra, é primeiro necessário conhecer o Espiritismo, profundamente, entendendo-o como desenvolvimento do Espiritualismo Racional e fazendo uso de seus conceitos, pois as mais absurdas ideias têm se espalhado, na Doutrina, por conta desse desconhecimento.

Veja só que complicado:

“Em nosso estudo, porém, analisamos a dor-expiação, que vem de dentro para fora, marcando a criatura no caminho dos séculos, detendo-a em complicados labirintos de aflição, para regenerá-la, perante a Justiça… É muito diferente… “

Ora, está estabelecido, pelo estudo do Espiritismo, que a expiação e a dor não andam inerentemente juntos. O trecho acima leva o leitor incauto a entender que, perante a “Justiça [divina]”, o ser se regenera pela dor, sendo que a dor é uma condição inerente ao Espírito encarnado, e difere de sofrimento moral. Da dor física, sofre o mau e o bom. A expiação pode passar bem longe da dor, mas contar apenas com dificuldades, muitas vezes moralmente sofridas, que visam, segundo o planejamento do Espírito, dar-lhe as oportunidades para o aprendizado.

Contudo, de posse dos novos (na verdade, antigos) conhecimentos, poderíamos dar todo um significado diferente para esse trecho, pela simples observação do termo “que vem de dentro para fora”, o que implica que essa dor está vindo da consciência para o exterior.

É preciso muito cuidado para se ater sobre essas obras — que, na verdade, são romances, e não fontes de estudos — pois sabemos das enormes reservas que Kardec sempre teve com relação às ideias espirituais não passadas pelo duplo controle da razão e do ensinamento geral dos Espíritos. Além disso, sem estar de posse dos conhecimentos mencionados, os romances, em geral, conduzem os leitores para um caminho totalmente adverso do que ensina o Espiritismo, em verdade, e podem causar (como têm causado) mais mal do que bem.

Portanto, aos estudos!




Um ultrage: o materialismo e o dogma religioso no seio do Movimento Espírita

Imagem de capa: foto de Asiama Junior no Pexels

Ontem mesmo, escrevia aqui, neste blog, o artigo “Espiritismo Raiz“, falando das subversões absurdas sendo realizados por pessoas que adotam o título de Espíritas, mas que, de Espiritismo, não falam nada. Falam, muito, de conceitos de certos Espíritos, o que, em definitivo, não constitui a Doutrina. Indivíduos, esses, que sob as falsas vestes do “evangelizador”, com dulcíferas palavras do Evangelho de Jesus (já vimos um caso desses na prática, apresentado por Kardec, no artigo Obsedados e Subjugados: os Perigos do Espiritismo), as tomam para, lenta e progressivamente, subvertê-lo às mais absurdas e escancaradas ideias, ainda anteriores ao próprio Cristo, dignas do tempo em que o ser humano tinha consciência escravizada pelas ideias religiosas da heteronomia, do pecado e do castigo.

Eis que, logo em seguida à conclusão desse artigo, indo aos grupos Espíritas para compartilhamento, me deparo, no maior deles, com centenas de milhares de seguidores, a seguinte postagem, de um dos administradores do grupo:

LIMPEZA DE DNA DE VÁRIAS GERAÇÕES

Eu, _____________ ( seu nome), quebro, destruo, desintegro e pulverizo toda a negatividade que trago instaurada da árvore genealógica de meu Pai e minha Mãe, desde a primeira geração que formou suas famílias até a herança que recebemos deles nesta vida((Essa ideia está diretamente subordinada ao dogma do pecado original, que, apesar de partir de uma figura de linguagem, em uma época muito afastada, foi instituído pela Igreja Católica Romana como tal, com a finalidade de aprisionar as consciências dos fiéis a seu bel-prazer)).

[…]

Estou tirando tudo isso do meu ADN((O ácido desoxirribonucleico é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e alguns vírus, e que transmitem as características hereditárias de cada ser vivo (ref: Wikipédia). Essa frase resume tudo: em contrário à demonstração, pelo Espiritismo, da alma e de suas relações com os Espíritos como o princípio de tudo o que concerne o ser encarnado, ela é totalmente materialista!))!
DECRETO E INSTAURO AQUI E AGORA:
Um sistema de saúde, amor, abundância, prosperidade, serenidade, confiança e felicidade guiado sob as leis universais.

Fiquei e continuo perplexo e estupefato! Consideraria válido encontrar uma mensagem desse teor em um grupo de religiosos ligados às ideias do pecado original e do materialismo, contrários ao Espiritismo e sua doutrina libertadora… Mas dentro de um grupo “Espírita“, que institui, como a primeira de suas regras, que “nosso principal objetivo é o ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA“, e pelas mãos de um administrador?! Jamais! Ora, chega a ser um desrespeito à própria Doutrina Espírita e ao empenho de Kardec em combater, à luz da razão e com grande esforço, justamente esses dois sistemas contrários ao Espiritismo e à libertação do homem: o materialismo e o dogmatismo religioso.

A intenção, aqui, não é descer ao nível do ataque pessoal. Cada um com a sua consciência e com os resultados de suas ações. O que desejo, de modo firme, é destacar os seguintes dois pontos, importantíssimos:

  1. Cuidado, prezado leitor, com a onda de moralismo evangélico espalhado no meio espírita! O Evangelho é, sim, muito importante, mas é preciso que o Espiritismo seja estudado para bem compreendê-lo. Existem muitos “lobos em pele de cordeiro” que se escondem sob as palavras do Evangelho, mas que, na verdade, disseminam ideias contrárias a ele.
  2. Estivemos por muito tempo absorvidos na inação e na ausência dos estudos. É por conta disso que as falsas ideias se disseminam a galope. É nossa responsabilidade, frente à doutrina e a nós mesmos, estudá-la, aplicar suas consequências morais em nossas próprias vidas e disseminá-la em sua essência! Não podemos mais aceitar que tais ideias continuem sendo disseminadas no meio espírita, minando a Doutrina de dentro para fora!

O espírita não estuda sequer o Evangelho Segundo o Espiritismo, pois, se estudasse, poderia estar em guarda. Não é à toa que São Luís assim se expressa, sobre os falsos profetas:

Se vos disserem: “O Cristo está aqui”, não vades; ao contrário, tende-vos em guarda, porquanto numerosos serão os falsos profetas. Não vedes que as folhas da figueira começam a branquear; não vedes os seus múltiplos rebentos aguardando a época da floração; e não vos disse o Cristo: Conhece-se a árvore pelo fruto? Se, pois, são amargos os frutos, já sabeis que má é a árvore; se, porém, são doces e saudáveis, direis: “Nada que seja puro pode provir de fonte má.”

É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar. Se os que se dizem investidos de poder divino revelam sinais de uma missão de natureza elevada, isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a caridade, o amor, a indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio das palavras, apresentam os atos, podereis então dizer: Estes são realmente enviados de Deus.

Desconfiai, porém, das palavras melífluas, desconfiai dos escribas e dos fariseus que oram nas praças públicas, vestidos de longas túnicas. Desconfiai dos que pretendem ter o monopólio da verdade!

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Grifos meus.

O Espírito de Erasto, na mesma obra, diz o seguinte:

Os falsos profetas não se encontram unicamente entre os encarnados. Há-os também, e em muito maior número, entre os Espíritos orgulhosos que, aparentando amor e caridade, semeiam a desunião e retardam a obra de emancipação da humanidade, lançando-lhe de través seus sistemas absurdos, depois de terem feito que seus médiuns os aceitem. E, para melhor fascinarem aqueles a quem desejam iludir, para darem mais peso às suas teorias, se apropriam sem escrúpulo de nomes que só com muito respeito os homens pronunciam.

Ibidem. Idem.

Essa exortação, porém, não carrega o significado de que não devemos estar a postos contra os lobos travestidos de cordeiro, pois são eles mesmos que semeiam a desuniam ao lançar, no meio das ideias consoladoras, o fruto espinhoso das velhas religiões. Kardec, aliás, destaca a necessidade de afastar de se afastar desses indivíduos, inclusive quando médiuns:

Deve-se observar que, quando os bons Espíritos veem que um médium deixa de ser bem assistido e se torna, pelas suas imperfeições, presa dos Espíritos enganadores, quase sempre fazem surgir circunstâncias que lhes desvendam os defeitos e o afastam das pessoas sérias e bem-intencionadas, cuja boa-fé poderia ser laqueada. Neste caso, quaisquer que sejam as faculdades que possua, seu afastamento não é de causar saudades.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1862. Grifo meu.

Nada disso significa que devemos combater com rudeza ou ódio, muito pelo contrário, pois estaríamos em erro também. Mas devemos combater as falsas ideias pela disseminação do verdadeiro Espiritismo, aquele que é verdadeiramente consolador. E como fazer isso? Entendendo o Espiritismo e seu contexto! É preciso compreender o Espiritualismo Racional((recomendamos estudar o livro Pequenos Elementos de Moral, de Paul Janet, além de estudar a obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, por Paulo Henrique de Figueiredo, ou acompanhar os vários vídeos tratando desse assunto, com esse autor, no Youtube)), é preciso estudar a essência Doutrinária em suas obras não adulteradas((como sempre, recomendamos estudar as obras O Céu e o Inferno e A Gênese conforme as edições da editora FEAL, traduzidas e comentadas, dentre outros, por Paulo Henrique de Figueiredo, bem como acompanhar também o estudo dessas obras no canal Espiritismo para Todos)) e é preciso estudar a Revista Espírita, como temos feito, de modo a entender o que realmente é o Espiritismo e como foi a formação dessa doutrina.

Enfim: é tempo de se movimentar. Não é somente o meio espírita que carece da recuperação das ideias da teoria moral desenvolvida pelo Espiritismo e fundamentadas pelo Espiritualismo Racional: é toda a humanidade.

Faça a sua parte.




Espiritismo Raiz e Eduardo Sabbag

Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. Não é, de maneira alguma, adotar ideias místicas nascidas de opiniões próprias e alheias, como infelizmente o Eduardo Sabbag, do cana Espiritismo Raiz, infelizmente tem feito. Mais um indivíduo com um potencial tão grande de auxiliar o progresso humano, mas que vê apenas a superfície do Espiritismo e favorece o atraso, pela divulgação de falsas ideias.

Tempos difíceis, esses que vivemos. Por toda a parte, mina-se a doutrina espírita dos mais variados absurdos. Por meio dos incautos, dos desavisados e da grande massa dos resistentes ao estudo necessário, o Espiritismo sofre tanto quanto a Física de Isaac Newton sofreria se não houvesse os estudiosos da Física para defendê-la de ideias como a não existência da Lei da Gravidade ou como sofreria a Astronomia se não houvessem que a defendesse contra as ideias persistentes do geocentrismo ou da Terra plana.

É claro que a base doutrinária será entendida de forma mais ou menos clara, a depender do progresso que o próprio Espírito tenha feito nesse sentido. É ao que Kardec se refere quando diz das ideias inatas, que encontram, em muitos, a plena aceitação racional, porque, para eles, elas são tão naturais quanto averiguar que o vapor da água é o fruto de sua evaporação. Contudo, o que se constata, largamente, é que a ausência do “instruí-vos”, deixa a nau à deriva, ao sabor do vento.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo. Todas as verdades são encontradas no Cristianismo; os erros que nele criaram raiz são de origem humana. E eis que, além do túmulo, em que acreditáveis o nada, vozes vêm clamar-vos: Irmãos! nada perece. Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade!” – (Espírito de Verdade. Paris, 1860.)

Allan Kardec – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. VI, item 5.

A exortação do Espírito de Verdade, ao recomendar o “instruí-vos”, deixa clara a necessidade de estudar a Doutrina Espírita, as vozes além do túmulo – o que requer metodologia científica. Mas os “espíritas” se esqueceram de quem foi Allan Kardec. Enterraram seu trabalho, junto ao seu corpo, e passaram a se limitar a conhecer o básico do essencial: a lei da reencarnação e as nossas relações com os Espíritos. Nem isso, porém, sobreviveu de forma ilesa às ideias absurdas, pois a reencarnação, de lei consoladora, se recheou de ideias de pecado e de castigo, e as nossas relações com os Espíritos perderam o objetivo de esclarecimento de outrora, convertendo-se, novamente, no mesmo tipo de relação que, pasmemos, tinha o homem com os Espíritos antes da vinda do Cristo.

932. Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?“

Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.”(O Livro dos Espíritos)

Sim, o cenário do Movimento Espírita é de entristecer. Com a morte de Allan Kardec, não voltamos apenas décadas, mas milênios, pois, sem a necessária instrução, nos deixamos uma vez mais subjugar pelas ideias aprisionantes das consciências e, por conseguinte, do progresso. Esvaziou-se a Doutrina do seu aspecto filosófico.

O “espírita” responde ao censo, dizendo, “essa é minha religião”, mas não sabe que o que diz abraçar é uma ciência, e não uma religião. Diz que a lê e estuda, mas nunca estudou Kardec a fundo: prefere ler romances, repletos das ideias de uns e outros, por mais absurdas que sejam. Aposentou o raciocínio e, com ele, a própria autonomia, num cenário que, para ele, parece muito mais cômodo – sem saber, porém, que também é dos mais sofridos. Abraça as ideias de carma, “lei do retorno”, “lei de ação e reação” e aceita profecias mediúnicas sem nem sequer questionar a própria consciência. E, enfim, quando é apresentado à razão, pelos poucos que tentam demonstrar o verdadeiro Espiritismo, aquele que Kardec estudou, dedicando vida, saúde e recursos, enfim, quando tem chamada a atenção, luta ferrenhamente por se manter agarrado ao cabresto que o conduz.

Desola-nos sair da caverna, atraídos pela luz, para verificar que, por toda a parte, essa luz está abafada pelo pó e pelas teias dos velhos conceitos religiosos. Dói ver as consciências inconscientes, presas aos conceitos materialistas e mesquinhos, sem a capacidade, por escolha própria, de ver o quanto sofrem pelo desconhecimento!

Vejam aquele! Ao seu lado, um Espírito bondoso, cheio de luz, sopra em seus ouvidos o bom conselho. O conduz, num momento de elevação mental, para a porta do conhecimento. Alguém lhe convida: “vamos estudar?”. Mas a luz se apaga de sua consciência: “quem é esse para me mandar estudar? Já li O Livro dos Espíritos e já passei por toda a a famosa coleção daquele Espírito que ensinou sobre o umbral e a vida espiritual – embora nem espiritualizado ele fosse. Além disso, sou médium e, nas minhas viagens astrais, vejo a verdade com meus próprios olhos!”.

Olhem aquele outro: é voluntário no centro espírita, mas não estuda. Uma mãe, em pleno sofrimento, veio buscá-lo: seu filho, nascido com deficiências físicas, lhe requer demais as energias. Está cansada. Seu filho se atormenta diariamente sob pesadas comoções: gritos, contorções. O voluntário tenta confortá-la com base no que conhece, e lhe diz que seu filho está sofrendo a lei de ação e reação, pois, provavelmente, foi um suicida na vida anterior. A mulher se horroriza e se afasta: “quem é esse para dizer tal coisa do meu amado filho? Esse Espiritismo não presta pra nada!”.

Ali vai mais uma. Está desesperada, pois disseram-lhe, em certo centro espírita, que o homem que ama é sua alma gêmea. Acontece, porém, que o homem desposou outra mulher. Que será dela, agora? Como poderá viver pela metade? Melhor acabar com seu próprio sofrimento, pensa ela. Num átimo de inspiração, vai ao centro espírita do caso anterior, onde conversa com o mesmo voluntário, que lhe diz que ela não deve jamais pensar em cometer o suicídio, pois, se assim fizer, ela ficará anos vagando no umbral ou no vale dos suicidas, e que ela deve suportar essa “prova”, pois deve ser consequência de um débito de vida passada. Ela houve, pesarosa, mas, saindo dali, pensa: não será melhor sofrer o castigo lá, do que ficar sofrendo aqui?

Eis um homem: está perseguido por pensamentos de autodestruição também. Ouve vozes: mate-se, chega de sofrer, dizem elas. Ele chega ao mesmo centro. O rapaz o diagnostica com obsessores, manda-o fazer uma famosa oração para afastar Espíritos e também lhe recomenda limpar a casa com anil. O cenário não muda e, depois de alguns meses, o homem acaba por tirar a própria vida.

Outro dia, outro cenário, busca o voluntário uma mulher. Está sofrendo abusos psicológicos e físicos de seu marido, que, viciado no álcool, volta ao lar com as piores companhias. Ela expõe todo o cenário. O voluntário lhe diz que ela está deve estar sofrendo a consequência da lei de ação e reação, pois deve ter feito um mal ao seu marido na vida passada. Por isso, deve suportar a tudo com coragem, de modo a “resgatar esse débito”.

Como dissemos, o cenário é, sim, um tanto desolador. Mas, se estamos conscientes disso, é porque precisamos fazer a nossa parte, começando por estudar, por conhecer, porque o Espírito só avança em moral pela própria vontade consciente. Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. É estudá-lo com cuidado, em suas páginas originais, longe das adulterações de O Céu e o Inferno e A Gênese. É entender e retomar os aspectos filosófico e moral do Espiritismo, para, vivendo em nossas próprias vidas, sermos peças atuantes, e não mais inoperantes, na transformação social.

Há muitos falando, escrevendo, atuando em nome de algo que se chama Espiritismo no cartaz, mas que é dogma na essência, porque ainda há poucos estudando e atuando, em nome da Doutrina, inspirados no modelo probo e consciencioso de Allan Kardec, um homem que, com seu esforço, ajudou a formar a Doutrina com a maior capacidade de alavancar a mudança do mundo.

Espíritas: instruí-vos!




Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões ((Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época)). Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 ((JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870))

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro ((Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.)); não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro ((Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral))), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência ((Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo)); mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral ((Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso)).

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno ((Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações)), falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição ((Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”)), assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.




Ninguém é professor de Espiritismo

Imagem de capa: Foto de Andrea Piacquadio no Pexels

Muito tem sofrido a Doutrina Espírita por conta dos indivíduos que acham que, porque leram Kardec — o que é bem diferente de estudar e compreender Kardec, o que requer conhecimentos outros, devidamente contextualizados, como é o caso do Espiritualismo Racional — creem que podem se colocar na posição de ensinar, à sua moda, o que é o Espiritismo e, pior, como são os conceitos e temas que sequer foram abordados ou desenvolvido no espaço de tempo em que o Espiritismo se desenvolveu como deve ser: como ciência.

Veja: O Espiritismo é uma lei natural. Como tal, sempre existiu e sempre existirá e, dessa lei, conhecemos apenas uma pequena parte, a doutrina nomeada como Espiritismo. Reconhecer, porém, que conhecemos muito pouco dessa lei da natureza não significa dizer que o que conhecemos é inválido e, em certos aspectos, conclusivo, desde que esteja muito bem fundamentado, com segurança, nos conceitos doutrinários. Significa apenas reconhecer que a ciência espírita não está concluída, mas, sim, que é a base, assim como os estudos de Isaac Newton deram base à Física.

Nosso papel primeiro deve ser o de estudante humilde, porque, na maioria das vezes, nem sequer entendemos todos os conceitos brilhantemente desenvolvidos por Allan Kardec em suas obras. Aliás, sabendo que as suas duas últimas obras, O Céu e o Inferno e A Gênese foram adulteradas e que o Espiritualismo Racional e o Magnetismo foram quase apagados pelo tempo, temos que reconhecer que aprendemos muita coisa errada e que outras tantas deixamos de aprender.

O que se tem, hoje, em geral, é um conhecimento muito parco e superficial, além de muitas vezes distorcido, do Espiritismo “contido” nas obras de Kardec. Não bastasse isso, colocando Kardec no esquecimento, passamos a admitir como doutrinários conceitos outros que, na maioria das vezes, não passaram pelo crivo da razão, nem pelo controle do método científico, tão bem desenvolvido pelo codificador. E, munidos de toda essa falta de conhecimento, muitos têm desejado ditar o Espiritismo, segundo suas visões e concepções. É por isso que, daquilo que não temos certeza, por não haver nada conclusivo no Espiritismo, não podemos nada afirmar, embora possamos afirmar, paradoxalmente, que muitas certezas, hoje persistentes no movimento espírita, não são exatas, como a existência do umbral.

Não vamos muito além. Nossos textos e estudos são fartos de apontamentos e de exemplos sobre tudo o que dissemos, acima. Terminamos reafirmando: não somos professores, mas estudantes, e jamais estaremos fechados a reavaliar qualquer ideia ou conteúdo que se mostre errado um incompleto, de acordo com uma irretorquível e irrecusável lógica dos fatos que, porventura, tenhamos vindo a não compreender ou conhecer completamente.

É a isso, pelo bem da humanidade, que convidamos a todos.




O tratado de filosofia social de Allan Kardec

Você sabia que Kardec tem um verdadeiro “tratado de filosofia social”? Pois é. Vamos demonstrá-lo a seguir, mas, antes, vamos falar um pouquinho sobre o atual estado da sociedade humana.

Muito se tem falado do momento que passamos: das transformações sociais, das comoções, do período de transição que atravessamos em rumo a um planeta de regeneração. Contudo, há uma enorme sombra pairando sobre o imaginário coletivo, acostumado às ideias materialistas ou emergencialistas. Parece que, para onde quer que olhemos, não existe mais que tristeza, dor e desprezo. Acostumamo-nos a olhar para o próximo como inimigo, como alguém disposto a nos fazer o mal ou, na melhor das hipóteses, a ignorar nossa mera existência. Acontece, porém, que somos uma sociedade afastada dos conceitos essenciais da espiritualidade e do bem. Dizemos ser espíritas, ou espiritualistas, para, contudo, por falta de estudar o Espiritismo, materializar o mundo dos Espíritos, que deveria ser o alvo da consolação, afastado das misérias da carne e, quando tratamos do ser humano, nos acostumamos a esquecer que, por dentro e por fora daquele corpo, existe um Espírito que a tudo comanda, e que é a origem de toda a sua ação.

Como veremos em Kardec, é uma falsa suposição acreditar que “a humanidade está perdida”, como muito se tem ouvido. Não: a humanidade está apenas distraída, porque deixou de conhecer aquilo que dá base ao desenvolvimento moral. Eis o que vamos recuperar, neste artigo.

Esquecemos, temos dito, de Kardec, mas também desconhecemos tudo aquilo que se chamou de elementos de moral, existentes no Espiritualismo Racional e tão bem definidos por Paul Janet ((JANET, Paul. PEQUENOS ELEMENTOS DE MORAL)) para, depois, servirem de base e serem desenvolvidos, na prática, pelo estudo do Espiritismo. Estava, com os espiritualistas racionais, a teoria, fundamentada na razão, de que o ser humano é um Espírito encarnado, respondendo às leis de Deus, mas foi com Kardec, principalmente, que essa teoria foi desenvolvida de forma prática, pelo estudo das manifestações espíritas, estudo esse que, pelas mãos de Allan Kardec, se estendeu por cerca de doze anos, e que culminou nos tratados de filosofia mais belos e elevados que a humanidade jamais conheceu, porque se baseiam em nós mesmos, Espíritos, em nossa jornada rumo à felicidade.

Contido nas páginas originais de A Gênese ((Utilizamos a obra da editora FEAL, baseada na 1.ª edição francesa, original)), antes da adulteração post-mortem de sua quinta edição, no encerramento dessa obra de teor científico e moral, estão as reflexões de Kardec sobre o tema social e da evolução da humanidade. Vamos a ele:

Sinais dos tempos

Sob esse título, Kardec inicia o capítulo XVIII da obra, o último, e talvez o mais belo de todos. Kardec, na data de lançamento dessa obra, estava a pouco mais de um ano de sua morte. Nele, ele demonstra que a humanidade segue o movimento do progresso de forma inevitável, posto que é uma Lei da Natureza, isto é, uma Lei de Deus, que nunca descansa. Segundo Kardec:

A humanidade realizou até o presente incontestáveis progressos. Os homens, por sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado em relação às Ciências, Artes e ao bem-estar material. Ainda lhes resta um imenso progresso a realizar: fazer reinar entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade para assegurar o bem-estar moral.

Saindo do estado da infância, a humanidade entrou numa nova era, onde o necessário desenvolvimento moral viria se realizar, destruindo, em si, todos as paixões, isto é, tudo aquilo que pudesse dar azo às imperfeições:

Não é mais somente o desenvolvimento da inteligência que é necessário aos homens, é a elevação dos sentimentos e, portanto, é preciso destruir tudo o que possa superexcitar em si o egoísmo e o orgulho.

Precisamos compreender que Kardec via a tudo isso com um otimismo enorme. Inserido no contexto do Espiritualismo Racional e das Ciências Morais e com o rápido desenvolvimento e a larga aceitação do Espiritismo pelos homens cultos, ele previa que, com a exceção de algumas dificuldades, a revolução moral pelo Espiritismo se daria a largos passos. Não poderia prever, contudo, que, após sua morte, tudo tomaria um rumo tão adverso, com a proibição do ensino das Ciências Morais na França, o desvio do Movimento Espírita, principalmente por Leymarie ((Para bem compreender esses fatos, é importante ler O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato)), e as guerras, enfim, que acabaram de lançar o mundo na necessária busca pelo cuidado na sobrevivência diária — em outras palavras, o homem teve que se preocupar muito mais com as questões da matéria, não tendo ensejo, por muito tempo, para cuidar das coisas do Espírito.

Kardec acreditava que esse período marcava, em definitivo, uma nova fase moral para o Espírito humano:

Esse é o período no qual entramos a partir de agora e marcará uma das fases principais da humanidade. Essa fase, que está em elaboração neste momento, é o complemento necessário do estado anterior, como a idade adulta é o complemento da juventude. Podia, pois, ser prevista e anunciada antecipadamente, por isso podemos dizer que os tempos marcados por Deus são chegados.

Neste tempo aqui não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Tende a se estabelecer uma nova ordem de coisas, e os homens que são os seus maiores opositores, sem saber, contribuem para isso.

E então, completa, como se estivesse falando exatamente dos momentos atuais, onde filósofos combatem a espiritualidade:

É nesse preciso momento, quando se encontra excessivamente oprimida em sua esfera material, onde a vida intelectual transborda e o sentimento de espiritualidade floresce, que homens se dizendo filósofos pretendem preencher o vazio com doutrinas do neantismo ((Doutrina do nada, niilismo)) e materialismo! Estranha aberração! Esses homens, que pretendem impulsionar a humanidade, esforçam-se em circunscrevê-la nos limites da matéria, da qual almeja escapar. Ocultam a perspectiva da vida infinita e lhe dizem, mostrando o túmulo: Nec plus ultra ((Expressão latina que significa “nada além!”))!

O Espírito social

Então, como dizíamos, olhando para o resultado de mais de cem anos de materialismo exacerbado e negação da espiritualidade humana, vemos, na sociedade, o mal das paixões instalado: a guerra, a violência, o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a avareza, enfim, tudo aquilo que é resultado do não conhecimento de algo melhor e mais importante, toma o meio social, onde não é possível identificar a máxima do Evangelho, “faz a outrem o que gostarias que fosse feito a ti mesmo. – Não faças a outrem o que não gostarias que te fizessem.”. Vivemos também sob um tratado de filosofia social, mas ele é materialista e niilista!

O homem, estacionado nas ideias materialistas, se esquece de que existe um futuro. Se esquece de que, além do corpo, existe a sua verdadeira vida, a vida eterna, que se estende desde muito ao infinito, e ignora, portanto, que cabe aos seus esforços em viver o bem, pelo cumprimento das leis divinas para consigo e para com todos os outros, alcançar mais cedo ou mais tarde a felicidade reservada aos bons. Diz Kardec:

Pela lei da pluralidade das existências, o homem se relaciona ao que fez e ao que fará com os homens do passado e os do futuro; já não pode dizer que nada tem em comum com os mortos, pois uns e outros se encontram constantemente, neste e no outro mundo, para ascender juntos a escala do progresso, prestando um mútuo apoio. A fraternidade não mais se restringe a alguns indivíduos unidos pelo acaso durante a curta duração efêmera de uma vida, mas é perpétua como a vida do Espírito, universal como a humanidade, a qual constitui uma grande família onde todos os membros são solidários uns com os outros, qualquer seja a época em que viveram.

Ora, como desejar uma humanidade fraterna se ela vive o hoje, desejando o amanhã, somente com o propósito de abastecer suas necessidades e seus prazeres materiais individuais, ignorando que, além de dores e gozos, inerentes à matéria, o Espírito continua, tão evoluído quanto tenha se esforçado por fazer? Veja: a ação do Espírito junto à sociedade não é uma imposição, mas uma consequência, pois aquele que compreende e passa a viver o bem em si, por obrigação moral estende aos outros a mão amiga:

A fraternidade será a pedra angular da nova ordem social, mas não há fraternidade real, sólida e efetiva sem estar apoiada sobre uma base inabalável. Essa base é a fé; não a fé em tais ou quais dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se apedrejam mutuamente, pois, ao se amaldiçoarem, mantêm o antagonismo. Mas a fé nos princípios fundamentais que todos podem aceitar: Deus, a alma, o futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL ILIMITADO, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES. Quando os homens estão convencidos de que Deus é o mesmo para todos; que Deus, soberanamente justo e bom, não pode querer nada que seja injusto; que o mal vem deles e não Dele, então todos serão considerados filhos do mesmo Pai e estenderão as mãos uns aos outros.

A respeito do materialismo de seu tempo, Kardec diz que “um sinal não menos característico do período no qual entramos é a reação evidente que se opera no sentido das ideias espiritualistas ((A reação pelas ideias espiritualistas ocorreu em oposição ao período materialista pós-Revolução Francesa, representado pelos ideólogos (Destutt de Tracy, Cabanis, Volney, etc.). Os espiritualistas racionais, depois de 1830, como Royer-Collard, Victor Cousin, Théodore Jouffroy, entre outros, estabeleceram na Universidade de Paris (e nos colégios) as Ciências Filosóficas, entre elas a Moral Teórica e Prática, a Psicologia Experimental, a Teodiceia, considerando o ser humano como “alma encarnada”. Segundo Kardec, o Espiritismo se encontra entre essas Ciências, dando desenvolvimento a elas. (N. do E.))); uma repulsão instintiva se manifesta contra as ideias materialistas“. Hoje, pelo contrário, vemos as ideias materialistas sendo defendidas por todos os lados. Contudo, vemos um outro movimento: a sociedade, a cada dia mais, repulsa as ideias dogmáticas das religiões, causando um esvaziamento massivo das fileiras das organizações religiosas – inclusive do Movimento Espírita Brasileiro, que se transformou numa religião, cheia de dogmas. Interessante notar que as religiões que ainda detém alguma atração sobre as pessoas são, justamente, aquelas que passam mais tempo cultivando as ideias materialistas do que o contrário.

Esse, na verdade, é um movimento positivo. Não podemos esquecer que o movimento espiritualista, que deu margem ao nascimento do Espiritualismo Racional e, depois, ao Espiritismo, nasceu em contraposição às ideias materialistas de seu tempo, que, por sua vez, também nasceram em contraposição aos dogmas das religiões. O homem se tornou materialista por não ter nada melhor em que acreditar, até que as filosofias espiritualistas e espírita se desenvolveram — razão pela qual, justamente, ganharam tantos adeptos em pouco tempo e entre as classes mais cultas da sociedade.

O movimento que se opera no presente, depois de um gigantesco tombo que se estendeu por mais de um século, conduz também a esse resultado, e já podemos ver sinais nascentes desse trabalho que se opera, sendo que a recuperação da filosofia espiritualista e da ciência espírita e do magnetismo são os primeiros passos a dar suporte a tudo isso:

A nova geração marchará para a realização de todas as ideias humanitárias compatíveis com o grau de adiantamento ao qual tenha chegado. O Espiritismo, avançando para o mesmo alvo e realizando seus objetivos, se reencontrará com ela no mesmo terreno. Os homens favoráveis ao progresso encontrarão nas ideias espíritas um poderoso recurso, e o Espiritismo encontrará, nos homens novos, Espíritos plenamente dispostos a aceitá-lo. Diante dessa combinação de circunstâncias, o que poderá fazer quem quiser se colocar em seu caminho?

O Espiritismo não criou a renovação social, pois a maturidade da humanidade faz dessa renovação uma necessidade. Por seu poder moralizador, por suas tendências progressivas, pela elevação de seus propósitos, pela generalidade das questões que ela abraça, o Espiritismo está, mais que todas as outras doutrinas, apto a secundar o movimento regenerador.

Curioso: em certos momentos, parece que Kardec esta escrevendo sobre o momento atual. É que o cenário se repete: a humanidade, não tendo conseguido aproveitar, antes, o desenvolvimento das ideias espiritualistas, apenas se atrasou. Mas, como sempre, tendo conhecido o ápice do mal, o homem passa a buscar novas respostas para sua desolação moral.

A idade da regeneração: o trecho que não conhecíamos

Na adulteração dessa obra conclusiva, as perdas foram enormes, sobretudo pelas inúmeras supressões realizadas. Se desejar, compare esse último capítulo e verá o quanto ele foi mutilado. Na versão original, existe um pensamento muito profundo, mas também duro, de Allan Kardec, a respeito da resistência encontrada, pelo Espiritismo, dentre aqueles que, em definitivo, ainda não estão prontos para essa ordem de ideias, porque sua idade espiritual ainda não alcançou tal desenvoltura. Acompanhe:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria ((Os indivíduos, em maioria, estão apenas distraídos. Não são necessariamente maus, nem empregam sua inteligência para o mal, mas apenas não a empregam para o bem. dêem-lhes coisas melhores, e eles rapidamente voltarão a raciocinar)).

Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal – ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas, e por isso dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí- lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

O número de retardatários é ainda grande, sem dúvida, mas o que podem eles contra a onda que sobe, senão lançar nela algumas pedras? Essa onda é a geração que se ergue, ao passo que eles desaparecem com a geração que se vai cada dia a largos passos. Até aí, defenderão o terreno passo a passo; há, pois, uma luta inevitável, mas uma luta desigual, porque é aquela do passado decrépito que cai em trapos contra o futuro jovem; da estagnação contra o progresso, da criatura contra a vontade de Deus, porque os tempos assinalados por Ele são chegados.

Infelizmente, por tudo o que ocorreu, os indivíduos inteligentes, mas refratários, encontraram espaço para fazerem proliferar suas ideias que, hoje, entravam o progresso da humanidade. Os retardatários, “nem cá, nem lá”, não tendo em que se inspirar, apenas permaneceram, em maioria, retardatários. São Espíritos que, muitas vezes, não querem o mal, mas não tem um entendimento qualquer do que seja o bem e da necessidade da própria transformação, razão pela qual caem no conto do materialismo, operando como massas a favor dos primeiros.

O planeta de regeneração

Muitos acreditam que o planeta de regeneração será alcançado por uma imposição divina, onde, num passe de mágica, os maus serão expulsos e os bons conquistarão seu merecido paraíso. Nada mais longe da verdade (e da razão). Kardec destaca que

Para que os homens sejam felizes sobre a Terra é preciso que ela seja povoada apenas por bons Espíritos, encarnados e desencarnados, que só queiram o bem. Esse tempo tendo chegado, uma grande emigração acontecerá nesse momento entre seus habitantes. Os que fazem o mal pelo mal e não são tocados pelo sentimento do bem, não sendo mais digno da Terra transformada, serão excluídos, porque trariam de novo a discórdia e a confusão e seriam um obstáculo ao progresso. Esses vão expiar seu endurecimento uns em mundos inferiores, outros entre raças terrestres atrasadas que serão o equivalente aos mundos inferiores, onde levarão seus conhecimentos adquiridos e que terão por missão fazê-los avançar. Serão substituídos por Espíritos melhores que farão reinar entre eles a justiça, a paz e a fraternidade.

O planeta Terra somente se transformará para melhor quando os Espíritos que nela encarnam tiverem se transformado para melhor. Essa transformação não se dará num átimo temporal, contudo: ela se faz no dia-a-dia, no processo de desencarnação e encarnação de Espíritos, pois uma parte dos Espíritos que antes encarnavam aqui, não mais encarnarão, por não estarem mais aptos a viverem aqui.

Isso, é claro, demonstra a lentidão desse processo. Contudo, esse processo pode ser alavancado por uma nova ordem de ideias, quais as do Espiritismo, que nasceu justamente para isso:

A nova geração, devendo fundar a era do progresso moral, distingue-se por uma inteligência e uma razão geralmente precoces, somadas ao sentimento inato do bem e das crenças espiritualistas. É o sinal incontestável de um certo grau de adiantamento anterior. Não será jamais composta exclusivamente de Espíritos eminentemente superiores, mas dos que, tendo já progredido, estão dispostos a assimilar todas as ideias progressivas e aptos a secundar o movimento regenerador.

Não devemos crer, porém, que todos os retardatários serão expulsos da Terra, embora essa ideia agrade a muitos de nós, por julgarmos que assim seria melhor, a fim de nos livrarmos daqueles que causam embaraço à felicidade geral. Precisamos reconhecer que é um pensamento bastante mesquinho e, também, ausente de razão. Explica o codificador:

Não se deve entender por essa emigração de Espíritos que todos aqueles retardatários serão expulsos da Terra e relegados a mundos inferiores. Pelo contrário, muitos voltarão, porque haviam cedido à influência das circunstâncias e do mal exemplo. Neles, a aparência era pior que a essência. Uma vez livres da influência da matéria e dos preconceitos do mundo corporal, a maior parte desses Espíritos verá as coisas de maneira completamente diferente de como as viam em vida, o que está de acordo com numerosos exemplos. Nesse caso, são ajudados pelos Espíritos benévolos, que se interessam por eles e se apressam a esclarecê-los e a mostrar o caminho equivocado que tinham seguido. Pelas nossas preces e exortações, podemos nós mesmos contribuir para sua melhora porque há uma solidariedade perpétua entre os mortos e os vivos.

Olhemos para esses que nos desagradam, por nos julgarmos superiores. Reconhecemos que, em muitos, realmente existem os maus hábitos e as imperfeições que chegam a causar incômodos gerais. Contudo, observêmo-los mais a fundo: que é que há de mal, neles? Muitas vezes, nada. São Espíritos que, na vida material observada, esquecidos dos propósitos maiores da evolução, apenas se encontram absortos em suas preocupações ou alegrias passageiras, como nós tantas vezes estivemos. Não são criaturas repugnantes, mas apenas Espíritos que, na vida presente, não puderam aprender e se desenvolver como os outros, mas que, ainda assim, têm a simpatia dos bons Espíritos e deveriam ter também a nossa, para que, saindo de nosso egoísmo, possamos estender-lhes a palavra amiga, se possível o conhecimento e, ao menos, o bom pensamento, através da prece. Consegue imaginar a alegria de ver, amanhã, reencarnando conosco, aquele que antes causava a inquietação, agora mais concernido do bem e da sua necessidade de progresso?

A regeneração da humanidade não tem absolutamente necessidade da renovação integral dos Espíritos, pois basta uma modificação em suas disposições morais. Essa modificação se opera entre todos aqueles que estão predispostos, toda vez que sejam subtraídos da influência perniciosa do mundo. Portanto, aqueles que retornam nem sempre são outros Espíritos, mas, frequentemente, os mesmos Espíritos, pensando e sentindo de outra forma.

Os cataclismos, as mortes em massa, longe de servirem para cumprirem um “carma coletivo” (sic ((Isso é um completo absurdo, uma ideia que nunca esteve na Doutrina Espírita e, ademais, algo irracional, como já tratamos neste artigo.)) ), cumprem as leis da Natureza. Ainda assim, aceleram as modificações sociais:

Quando esse melhoramento é isolado e individual, ele passa despercebido e fica sem influência ostensiva sobre o mundo. Outro efeito acontece quando o melhoramento se produz simultaneamente sobre grandes massas, pois então, conforme as proporções numa geração, as ideias de um povo ou de uma raça podem ser profundamente modificadas.

É o que se nota quase sempre após as grandes calamidades dizimarem as populações. Os flagelos destruidores destroem apenas os corpos, mas não atingem o Espírito. Elesativam o movimento de ingresso e saída entre o mundo corporal e o espiritual e, por conseguinte, o movimento progressivo dos Espíritos encarnados e desencarnados. É de se notar que, em todas as épocas da história, às grandes crises sociais se seguiram eras de progresso.

Conclusão

Está muito claro, portanto, que as modificações sociais não se darão pela ordem da imposição, nem a política, nem a das armas, nem a das leis humanas e, ainda muito menos, pela ação do “dedo de Deus”, quem em nada interfere em nosso avanço.

Não: o avanço social será uma consequência do avanço moral, e isto somente se dará pela retomada, justamente, da moral esquecida, e será impulsionada se for combinada com o conhecimento prático trazido pelo Espiritismo, capaz de causar uma revolução de ideias a nível individual e, daí, para a sociedade. É óbvio, pelo exposto, que essa revolução de ideias está ligada à transformação moral do indivíduo, e não ao emprego deste ou daquele viés político — não custa repetir.

Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar. Eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras.

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862 > fevereiro > Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses

Em outras palavras, não adianta subir ao palanque ou ir às ruas com cartazes pedindo mudanças, quando nós mesmos não fazemos a nossa parte. A mudança modifica pelo exemplo, contagia, porque todo mundo quer ser feliz (é por isso que, misturando alegrias com felicidade, os perfis do Instagram de pessoas ricas e “bem de vida” ganham tantos seguidores).

Cuidemos, portanto, de nos melhorar, pela consequência moral que tem todo o estudo do Espiritismo. Cuidemos, também, de fazer a nossa parte: de estudar essa Doutrina, com dedicação, de modo a bem compreendê-la, espalhando sua real face de ciência consoladora, afastada dos dogmas e das ideias que materializam e aprisionam o Espírito nos falsos conceitos de pecado, castigo, etc. Nos esforcemos por recuperar os conhecimentos dos grandes filósofos espiritualistas, mas também os conhecimentos esquecidos do Magnetismo. Nos empenhemos em levar, à sociedade, também esses conceitos, começando por nos esforçar em fazer, do ensino infantil, algo melhor, mais autônomo e cooperativo, fraterno, afastado das ideias de castigos, das recompensas e dos “jeitinhos”, baseado, enfim, na educação de grandes pensadores humanistas, como Rousseau e Pestalozzi, que primavam pela razão e na humildade na perseguição das respostas, através do método científico… E, então, estaremos traçando um novo caminho para a mudança social.

Foto de capa: CONSELHO ESPÍRITA INTERNACIONAL (CEI) – https://cei-spiritistcouncil.com/obras-de-allan-kardec-para-download/




Deus e o Diabo — a origem do bem e do mal

FONTE DO BEM E DO MAL
Extraído de A Gênese, 4.ª edição, FEAL — Allan Kardec

1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e, sendo esse princípio todo sabedoria, todo
bondade e todo justiça, tudo o que provém dele deve compartilhar esses atributos, pois o
que é infinitamente sábio, justo e bom não pode produzir nada irracional, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter originado dele.

2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, seja ele chamado Ahriman, seja Satã, de duas, uma: ou ele seria igual a Deus e, por consequência, também poderoso e eterno, ou seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que o outro está fazendo, opondo-se mutuamente. Essa hipótese é inconciliável com a harmonia que se revela, na ordem do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, esse ser estaria subordinado a ele. Não podendo ser eterno como ele sem ser seu igual; só poderia ter sido criado por Deus. Se foi criado, só poderia ter sido por Deus. Nesse caso, Deus teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação de sua infinita bondade.

3. Conforme certa doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e Deus,
para puni-lo, teria o condenado a permanecer eternamente mau, dando-lhe a missão de
seduzir os homens para lhes induzir ao mal. Ora, podendo uma única queda((A queda, para as religiões dogmáticas representa um evento no qual o homem, em sua origem, cometendo falta grave contra Deus, perdendo sua santidade, justiça e sabedoria originais, caindo por castigo na condição presente: com sofrimento, ignorância, arrastamento ao pecado e morte. Ou seja, haveria degradação da alma. A Doutrina Espírita, fundada no conceito de evolução da alma desde simples e ignorante por seu esforço, estabelece por essa sólida lógica sua teoria. (N. do E.))) custar-lhes os mais cruéis castigos pela eternidade, sem esperança de perdão, nisso não haveria só uma falta de bondade. Porém, uma crueldade premeditada, porque, para tornar a sedução mais fácil e melhor ocultar a armadilha, Satã estaria autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as obras próprias de Deus, até o ponto de enganar. Assim, haveria mais iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando toda a liberdade para Satã emergir das trevas e se entregar aos prazeres mundanos para arrastar os homens, o provocador do mal seria menos punido que as vítimas de suas artimanhas, pois estas, caindo por fraqueza, uma vez no abismo, não mais podem sair. Deus lhes recusa um copo de água para saciar sua sede e, durante toda a eternidade, com os anjos, ouve seus gemidos, sem se deixar comover, ao mesmo tempo que permite a Satã todo o prazer que desejar.

De todas as doutrinas sobre a teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a
mais ofensiva para com a divindade. (Ver O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo.
Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.)

4. Entretanto, o mal existe e possui uma causa.

Há várias classes de mal((Na época de Allan Kardec, a Filosofia ensinada na universidade, na escola normal (atual magistério) e nos colégios era o Espiritualismo racional. Na disciplina de moral teórica (uma das Ciências Filosóficas), ensinava-se a diferença entre o mal físico e o moral, para demonstrar uma revolucionária teoria fundamentada na liberdade pessoal, contrária ao dogma da queda e do castigo divino das religiões ancestrais e da coação externa, pelo materialismo: “O mal físico consiste em dor, doença, morte. São consequências inevitáveis da organização dos seres sencientes, estimulante essencial para sua atividade. O mal moral é a condição fundamental da liberdade. Sem o mal, o bem não é possível no mundo, pois, se o homem não pudesse errar, não estaria livre nem seria capaz de fazer o bem. Essa vida é uma época de provação e, sem o mal físico e moral, não há lugar para coragem, paciência, dedicação e demais virtudes”. (Le Mansois-Duprey. Cours de Philosophie Élémentaire em L’école normale: journal de l’enseignement pratique. v. 13. Paris: Larousse et Boyer, 1864. p. 235.) A teoria moral espírita foi um desenvolvimento do Espiritualismo racional: “O Espiritismo repousa, pois, sobre princípios gerais independentes de todas as questões dogmáticas. Ele tem, é verdade, consequências morais como todas as Ciências Filosóficas”. (Revista Espírita, 1859.). (N. do E.))). Em primeiro lugar há o mal físico e o mal moral. Também podemos classificar os males entre aqueles que o homem pode evitar e os que são independentes de sua vontade. Entre estes últimos, é preciso incluir os flagelos naturais.

O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode compreender todos nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista de sua personalidade, dos interesses e das convenções artificiais que criou para si mesmo, não pertencentes à ordem da natureza. É por isso que, em geral, lhe parece prejudicial e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se conhecesse sua causa, seu objetivo e o resultado definitivo. Ao investigar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo tem a marca da sabedoria infinita e se curvará ante a essa sabedoria, mesmo em relação a coisas que não compreenda.

5. O homem recebeu uma inteligência por meio da qual ele pode afastar, ou ao menos
diminuir bastante os efeitos dos flagelos naturais. Quanto mais conhecimento adquire e
avança na civilização, menos essas calamidades são desastrosas. Com sábia organização
social, poderá até mesmo neutralizar seus efeitos, quando não puderem ser totalmente
evitadas. Dessa forma, para os mesmos flagelos que são úteis na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que nos atacam no presente, Deus deu ao homem, com as faculdades com as quais dotou seu Espírito, os meios para paralisar seus efeitos.

Assim, o homem limpa regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestilentos, fertiliza
terras não cultivadas, preserva-as de inundações; constroem-se casas mais saudáveis, mais fortes para suportar os ventos, tão necessários para a purificação da atmosfera, e se protege do clima. É assim, finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade o fez criar as Ciências, com a ajuda das quais ele melhora as condições de habitabilidade do globo e amplia o conjunto de seu bem-estar.

Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto constituem um incentivo para o exercício de sua inteligência e de todas as suas faculdades físicas e morais, convidando-o à pesquisa dos meios para evitá-los. Se ele nada tivesse a temer, nenhuma
necessidade o levaria à busca do melhor; ele se entorpeceria na inatividade de sua mente; não inventaria nem descobriria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem a seguir adiante, no caminho do progresso.

6. Mas os males mais numerosos são aqueles que o homem cria pelos próprios vícios;
provenientes de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua ganância, de seus
excessos em todas as coisas. Essa é a causa das guerras e calamidades que causam
desavenças, injustiças, a opressão do fraco pelo forte e, finalmente, a maioria das doenças.

Deus estabeleceu leis cheias de sabedoria, cujo objetivo é o bem. O homem encontra
em si mesmo tudo o que é necessário para segui-las. Seu caminho é traçado por sua
consciência, e a lei divina está gravada em seu coração. Além do mais, Deus o recorda,
constantemente, por seus messias e profetas, por todos os Espíritos encarnados que
receberam missão de esclarecer, moralizar e contribuir para seu aperfeiçoamento, assim
como, nesses últimos tempos, pela multidão de Espíritos desencarnados que se manifestam por todos os lados. Se os homens se conformarem rigorosamente com as leis divinas, não há dúvida de que evitariam os males mais graves, vivendo felizes na Terra. Se não o faz, é em virtude de seu livre-arbítrio, e deve aceitar as consequências.

7. Mas, Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal; quer dizer, do próprio mal faz nascer o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e faz o homem sentir a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, sente-se obrigado a procurar no bem o remédio que precisa, sempre em virtude de livrearbítrio. Quando toma um caminho melhor, é por sua vontade e porque reconheceu as desvantagens da outra estrada. A necessidade o compele a melhorar moralmente para ser mais feliz, pois essa mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais de sua existência.

Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. O mal
não é mais um atributo distinto, assim como o frio não é um fluido especial; um é a
negação do outro. Onde o bem não existe, há necessariamente o mal. Não fazer o mal já é o começo do bem. Deus só quer o bem, o mal somente vem do homem. Se houvesse na Criação um ser encarregado do mal, o homem não poderia evitá-lo. Contudo, tendo a causa do mal em si mesmo e, ao mesmo tempo, tendo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, ele o evitará quando desejar.

Tomemos um fato comum, por comparação: um proprietário sabe que, na extremidade
de sua terra, há um local perigoso, no qual pode se ferir ou morrer. O que faz para evitar
acidentes? Coloca, próximo do lugar, um aviso para se afastar, por causa do perigo. Essa é a lei; ela é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente ignora o aviso e sofre um acidente, quem poderia ser responsabilizado, senão ele próprio?

Assim acontece em relação ao mal. O homem o evitaria se observasse as leis divinas.
Deus, por exemplo, colocou um limite para a satisfação das necessidades; o homem é
avisado pela saciedade; se ele ultrapassa esse limite, age voluntariamente. As doenças, as fraquezas do corpo, a morte que podem resultar disso são obra sua, e não de Deus.

8. Sendo o mal resultado das imperfeições do homem, e o homem criado por Deus, dirão, que se ele não criou o mal, pelo menos teria criado a causa dele. Se tivesse criado o homem perfeito, o mal não existiria.

Se o homem tivesse sido criado perfeito, estaria fatalmente inclinado ao bem. Agora,
em virtude de seu livre-arbítrio, não tende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Deus quis que ele fosse submetido à lei do progresso, e que esse progresso fosse fruto do próprio trabalho, a fim de que o mérito fosse seu, mesmo tendo a responsabilidade pelo mal que pratica por sua vontade. A questão, portanto, está em saber qual é, no homem, a origem da sua propensão ao mal((O erro consiste em pretender que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando ele, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado do refinamento gradual do espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude de seu livre-arbítrio, pudesse escolher entre o bem e o mal, chegando aos seus derradeiros fins por uma vida dedicada e pela resistência ao mal. Se tivesse criado a alma com uma perfeição à sua semelhança – e que, saindo de suas mãos, ele a tivesse ligado à sua beatitude eterna –, Deus a teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio, como já dito. Conhecedora de todas as coisas em razão de sua essência e sem ter aprendido nada, mas movida por um sentimento de orgulho nascido da consciência de seus atributos divinos, a alma seria induzida a renegar sua origem, a desconhecer o autor de sua existência, ficando em estado de rebelião contra seu Criador. (Bonnamy, juiz de instrução. A razão do Espiritismo, capítulo VI.) (Nota de Allan Kardec.))).

9. Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos((Na teoria moral espírita, o livre-arbítrio surge após o desenvolvimento da inteligência racional. Desse modo, a responsabilidade moral só aí se inicia e se amplia gradualmente, na proporção direta do desenvolvimento racional. Nos animais e nos seres ainda simples e ignorantes, não surgiu o livre-arbítrio, o senso moral e a responsabilidade pelos seus atos. Esses conceitos psicológicos afastam completamente os dogmas do pecado original, da queda e da encarnação como castigo. Também são falsas as hipóteses científicas do egoísmo e do sentimento antissocial inatos em todos os indivíduos. Traz alento, pois quanto maior a inteligência, maior a responsabilidade. Por fim, para uma evolução moral plena da humanidade é necessário garantir para todos os indivíduos a oportunidade do desenvolvimento racional pela educação. (N. do E.))).

10. O destino do Espírito é a vida espiritual. Mas, nas primeiras fases de sua existência
corporal, ele só possui necessidades materiais para satisfazer. Com essa finalidade, o
exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente falando. Porém, saindo desse período, possui outras necessidades, a princípio semimorais e semimateriais, e depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria. Na medida em que se liberta de seu jugo, avança pela vida adequada e se aproxima de seu destino final. Se, ao contrário, deixar-se dominar pela matéria, se atrasa e se identifica com os irracionais. Nessa situação, o que antes era um bem, por ser uma necessidade da sua natureza, torna-se um mal, não só por não ser mais uma necessidade, mas porque se torna nocivo para a espiritualização do ser. Por isso, o mal é relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento.

Todas as paixões têm sua utilidade providencial, sem o que Deus teria feito algo inútil
e nocivo. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa, conforme seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo próprio interesse, ele escolhe, livremente, entre o bem e o mal




31 de Março: Aniversário de morte de Allan Kardec

Dia 31 de março. Data pouco conhecida ou pouco lembrada no meio Espírita, é o dia em que morreu, em 1869, o querido e emérito professor, cientista, filósofo e estudioso dos fenômenos espíritas, Hypolite Leon Denizard Rivail – grafado dessa forma, mesmo, conforme ele próprio corrigiu, em documento de punho próprio, disponibilizado pelo CDOR. Esse foi Allan Kardec, aquele que dedicou seus últimos anos de vida e fez, em pouco mais de uma década, aquilo que poucos fazem em uma vida: obteve, pela observação racional e metodológica dos fenômenos espíritas, naturais e inteligentes, toda uma Doutrina, consoladora em sua essência e que, um dia, será reconhecida como a grande revolução no pensamento humano a respeito da vida, da sociedade, da caridade e da verdade sobre o bem.

O triste dia

Com uma beleza poética, Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, assim se expressa, sobre a morte de Kardec:

Como sentia que sua encarnação passava de maneira célere e constatava que suas tarefas doutrinárias continuavam aumentando, Allan Kardec evitava perder tempo. […] Ali [na Passagem Sainte-Anne] trabalhava desde a manhã até a noite e, frequentemente, desde a noite até a manhã, sem ao menos poder descansar, uma vez que estava só para ocupar-se de um trabalho cuja dimensão dificilmente se pode imaginar e que aumentava à medida que o espiritismo se difundia.

Como o contrato de aluguel do imóvel na Passagem Sainte-Anne estava para vencer, Allan Kardec pretendia deixá-lo no dia 1º de abril de 1869 e retirar-se para a Villa Ségur, onde tinha a intenção de concentrar-se mais na elaboração de textos doutrinários. Nessa mesma data, o escritório para assinatura e expedição da Revista Espírita, bem como a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seriam transferidos da Passagem Sainte-Anne para a sede da Livraria Espírita, na rua de Lille, nº 72.

Na quarta-feira, 31 de março, Allan Kardec encontrava-se na Passagem Sainte-Anne organizando seus livros e papéis para a mudança, que já havia começado e que deveria terminar no dia seguinte. Durante a manhã, recebeu um funcionário de uma livraria que desejava adquirir um número da Revista Espírita. Ao lhe entregar o exemplar, subitamente Allan Kardec perdeu os sentidos e tombou no solo sem haver dito sequer uma palavra.

[…]

Até o último instante de sua existência física, Allan Kardec deixou profundos ensinamentos. Morreu como viveu: trabalhando pelo Espiritismo. Suas mãos laboriosas despediram-se deste mundo entregando a Revista Espírita — periódico no qual deixou registrados seus ensinamentos, suas lutas, suas vitórias e, naquele último momento, sua imortalidade.

[…]

No cemitério, os curiosos procuravam posicionar-se nos lugares de onde podiam escutar os discursos. No entanto, quando o ataúde desceu para o fundo da cova, a emoção calou as palavras; fez-se um grande silêncio.

E esse silêncio parece ter se arrastado até os dias atuais, em que a grande parte do movimento espírita, em realidade, não conhece Allan Kardec e, muito menos, seu trabalho na formação da Doutrina Espírita — o Espiritismo.

Allan Kardec esquecido

Com grande tristeza, podemos averiguar que, nos pontos históricos que envolvem esse grande trabalho, o nome de Kardec não existe, nem como Allan Kardec, nem como Rivail: foi apagado pelo tempo, assim como fizeram com todos os cientistas que se dedicaram a estudar o Espiritismo e o Magnetismo. Não há uma placa dedicatória a Kardec. Não há um busto. Não há uma inscrição na parede ou na calçada, quando, por muito menos, personalidades do satirismo ou do horror merecem uma gravação dedicada, sob a luz dos holofotes, nas calçadas da fama que existem, mundo afora. Não. Nas ruas da França, parece que o único lugar em que o querido professor merece uma lembrança é no cemitério, como que por obrigação, e onde, morto e enterrado, não chama a atenção de ninguém com suas ideias “subversivas”.

Passage Sanite-Anne, lugar que dava acesso àquela que foi a primeira sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Rue des Martyrs, 8 (porta rosê), onde Kardec viveu com sua esposa, Amélie, no 2° andar

Mas a grande questão aqui não é apenas o esquecimento da figura de Allan Kardec, mas do seu papel como cientista espírita e da sua metodologia, da sua honestidade, da sua humildade e da sua seriedade no estudo do Espiritismo. Não cultuamos Kardec, mas reconhecemos seu trabalho e sua dedicação. Em uma paródia muito pertinente, há quem acredite, hoje, que a gravidade é uma grande farsa, por não ter estudado e compreendido o estudo de Isaac Newton, que principiou as ciências físicas, como hoje as conhecemos. Dá-se o mesmo com o Espiritismo.

Uma Doutrina desconhecida

Dizíamos que o Movimento Espírita desconhece Kardec e seu trabalho. Sim, de tal forma que, de fato, em grande parte, desconhecem a própria Doutrina que dizem professar. Poucos sabem do enorme desvio que a Doutrina, ou, antes, o Movimento Espírita, sofreu após a morte de Kardec, pelas mãos de Leymarie e com a influência de Roustaing e seus seguidores; poucos sabem que as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” foram adulteradas, respectivamente nas edições 5.ª e 4.ª; poucos sabem que essa influência se espalhou e se instalou no Movimento Espírita nascente, aqui no Brasil, logo em seus primeiros passos; poucos sabem que o próprio Bezerra de Menezes, por suas inclinações religiosas, preferiu as ideias roustainguistas sobre as espiritistas e que, por isso, as difundiu no Brasil; poucos sabem, ainda, que Kardec planejava dar início, a partir de abril de 1869, a uma nova fase do Espiritismo, sem figuras ou entidades centralizadoras e sem hierarquias, de modo que ninguém pudesse ditar regras — cenário totalmente diferente do que vivemos em nosso país, onde, desde os primórdios do Movimento Espírita, uma Federação se autointitulou centralizadora e regradora — a mesma Federação que chegou a colocar, também, Roustaing acima de Kardec.

No Brasil, país onde o Espiritismo parece ter conquistado o maior número de adeptos, vivemos um movimento espiritista religioso, com rituais e paramentos, onde “o telefone só toca de lá para cá” virou lei e, pior, onde as ideias de pecado e castigo, carma, “lei de causa e efeito” ou “lei de ação e reação”, que nunca fizeram parte dessa Doutrina, passaram a ser tomadas como doutrinárias.

Que me desculpe o querido Chico, mas, na afirmação sobre o telefone, ele errou, ou foi mal entendido. Contudo, erram ainda mais os adeptos, que, por falta de estudo e de forma irrefletida, passaram a tomar opiniões de médiuns e de Espíritos como se fossem a lei ou a expressão inquestionável da verdade e da sabedoria. É por isso que reafirmamos: o Movimento Espírita desconhece o Espiritismo, pois o ponto fundamental da Doutrina é aquele com o qual Kardec inicia sua última obra, A Gênese, apresentando, logo na primeira página:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

O Movimento desconhece, muito mais, a formação da Doutrina, apresentada largamente na Revista Espírita (leia este artigo), onde Kardec, número após número, demonstra várias evocações de Espíritos das mais diversas categorias (conforme a escala espírita), afirmando sua utilidade. Kardec evocou assassinos e cientistas, sábios e ignorantes, suicidas há poucos dias de sua morte, reis e rainhas e, de todos, sempre obteve ensinamentos importantes, que, progressivamente, através do método da busca pela concordância universal, sob o julgamento da razão, do bom-senso e da ciência humana, foram constituindo toda uma Doutrina e que, depois, serviram de base para a formação das demais obras e para a complementação de O Livro dos Espíritos.

As adulterações desconhecidas

Mas não podemos culpar, de todo, apenas a falta de empenho no estudo, pois muitos estudaram, mas estudaram sem saber que estudavam algo adulterado, como foi o caso de A Gênese e O Céu e o Inferno[1]. Ora, um dos pontos mais controversos de OCI nasceu de uma adulteração, pois a seguinte frase não existia na obra original, escrita por Kardec:

Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.

Texto inserido na versão adulterada de OCI, a partir da 4a edição

Sabemos hoje, por documentos históricos, que não apenas essas obras, mas todo o movimento espírita, sob as mãos de Leymarie, foi adulterado e subvertido, em nome do dinheiro e da vaidade. Um dos piores casos foi aquele conhecido como “O processo dos espíritas“, que manchou a reputação do Espiritismo na sociedade francesa.

O contexto de Allan Kardec

Também não conhecíamos o contexto de Kardec, onde O Espiritualismo Racional e as Ciências Morais davam base à formação educacional francesa, como podemos averiguar largamente em “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, por Paulo Henrique de Figueiredo, obra essa que também apresenta a face puramente autônoma do Espiritismo, completamente afastado de noções como as de carma, largamente presentes no Movimento Espírita atual. Não apenas isso, temos também a questão do Magnetismo, citado constantemente por Kardec como ciência gêmea do Espiritismo, de modo que uma sem a outra ficariam incompletas. Ora, Mesmer, “pai” do Magnetismo, só passou a ser compreendido recentemente, através da recuperação e da tradução de suas obras, culminando no livro Mesmer: A ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.

Enfim: nós precisamos recuperar Kardec. Precisamos estudá-lo em suas obras e na Revista Espírita; precisamos compreender o contexto no qual estava inserido; precisamos conhecer o Magnetismo; precisamos compreender o Espiritismo como ciência, que de fato é, e não como religião, que nunca foi, senão sob a compreensão da religião natural, conforme o entendimento do Espiritualismo Racional. E, entendendo o Espiritismo em sua essência, precisamos fazê-lo sair dos círculos fechados dos centros espíritas, para fazê-lo conquistar a sociedade através de suas ideias renovadoras e verdadeiramente consoladoras. Mas, para isso, a mudança precisa começar pelo indivíduo, se espalhando, então, para a família e para a sociedade.

Kardec superado?

Muitos pensam e afirmam o seguinte: “Kardec está superado no passado, então esqueçamo-lo e sigamos com o estudo dessas novas concepções que temos hoje”, o que é um erro profundo.

Espiritismo é ciência, tanto sob o aspecto das ciências morais francesas, no contexto de seu nascimento, quanto do ponto de vista de uma ciência de observação, que deduz, infere, analisa empiricamente, como fica muito claro para todos que estudam-no em suas fontes. Como ciência, tem uma base, sem a qual não se pode avançar. O Físico Nuclear também precisa passar por Newton, para depois chegar a Einstein e, depois, nos atuais cientistas.

No Espiritismo, tem pelo menos duas coisas que não mudaram, com relação ao nosso estado atual: a moral e os Espíritos. A primeira precisa ser estudada desde Jesus, e mesmo antes, sendo essa uma das propostas centrais do Espiritismo. Já os Espíritos continuam pertencendo a toda aquela escala, proposta por Kardec e refinada pelos Espíritos, e continuam se comunicando conosco, nos influenciando e conduzindo pelas mesmas formas que sempre utilizaram. Desde que, nisso, de forma inegável, há uma ciência, é necessário estudá-la e compreendê-la.

É por esquecer Kardec que, hoje, se aceita no movimento espírita conteúdos perniciosos, irracionais e antidoutrinários.

Se temos muito a aprender? Ora, mas é claro que sim! E os Espíritos nos ensinam aquilo que nós estamos prontos para entender, segundo o progresso da nossa ciência material. Kardec “arranhou” em assuntos científicos tão profundos, mas que ainda não podiam ser entendidos. Imaginem o que ele poderia alcançar se, naquela época, soubéssemos o que conhecemos hoje? Imagine, aliás, o que um pesquisador sério, elevado e honesto como ele poderia obter, segundo a ciência atual, a respeito de tudo aquilo que não pôde ser aprofundado naquela época?

Mas isso, meus caros, somente será feito no momento certo. Por isso, faço minhas as palavras do Paulo Henrique de Figueiredo: estudemos, estudemos, estudemos, até cansar. Entendamos o Espiritismo na Revista Espírita e nos seus complementos. Estudemos as obras de Kardec, as de Bozzano, as que, hoje, estudam o contexto do Espiritismo, inserido no Espiritualismo Racional, e estudemos ainda o magnetismo de Mesmer.

Quando estivermos prontos, como outrora, os próprios Espíritos nos buscarão e, quem sabe, eles precisem voltar a girar mesas e tocar tambores invisíveis de modo a chamar nossa atenção.

Uma motivação a mais para o estudo

E, se te falta ainda uma motivação para se afundar nesses estudos, deixo a seguinte reflexão:

O que nos afasta da felicidade real são nossas imperfeições, nossos vícios morais, nossas paixões desenfreadas. Somente o Espírito que venceu suas imperfeições, através das provas, e que desenvolveu seu raciocínio, através do conhecimento, consegue progredir no caminho da evolução espiritual. Todos nós o faremos, mais cedo ou mais tarde, mas a velocidade depende da vontade de cada um, galgada na razão, pois somente faz a verdadeira mudança o Espírito que realmente entende, racionalmente.

Diz Kardec, em A Gênese: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.

Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra (que deu base a todas as traduções e edições futuras), que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, importantíssimo, omitido pela adulteração:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Tudo o que vivemos, portanto, como nos mostra a Doutrina, jamais se trata de castigo, mas, sim, de oportunidades para a nossa evolução. O Espiritismo é autônomo em sua essência — “Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta” [RE — outubro de 1858].

Se isso tudo não te motiva a estudar Kardec, não sabemos o que mais faria.


1. A editora FEAL já tem as traduções dessas obras, segundo o texto original. O contexto das adulterações de A Gênese pode ser entendido através da leitura da obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; já o das adulterações de O Céu e o Inferno pode ser entendido na obra “Nem céu, nem inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo”, por Lucas Sampaio e Paulo Henrique de Figueiredo