Um convite à autocrítica do Movimento Espírita

Nosso último encontro virtual de estudos, no dia 06/04/23, deu-se em cima do artigo “Refutação de um artigo de L ‘Univers”, da Revista Espírita de maio de 1859.

O artigo de Kardec começa com a citação integral de uma publicação do Abade Chesnel no jornal citado, publicação, por sinal, um tanto complexa de entender e, na verdade, bastante confusa em suas ideias. Apesar de citar diversas ideias correntes naquela época, como o Espiritualismo, o Magnetismo e o Espiritismo (embora ele confunda o Espiritismo com o Espiritualismo Racional), é muito fácil notar a confusão de conceitos feita pelo Abade, que, como ponto central, defende a ideia de que o Espiritismo (Espiritualismo) seria uma nova religião, apresentando perigos e ameaça à religião católica.

O texto, embora escrito com certa profundidade, é notadamente leviano, no sentido de fazer diversas afirmações sobre o Espiritismo (que, reitero, ele chama de Espiritualismo), sem ter lido nem sequer O Livro dos Espíritos – o que é certo, pois, logo no início da obra, Kardec faz uma clara distinção entre Espiritismo e Espiritualismo [Racional]. Mas não é esse o ponto central desta discussão.

O que nós notamos em nosso estudo, e sobre o que já havíamos conversado outras vezes, é o distanciamento apresentado entre o Movimento Espírita moderno e o Espiritismo “de Kardec” – com todo o cuidado ao usar esse termo, pois o Espiritismo nunca foi de Kardec, não criado nem imaginado por ele. Ora, não é possível negar que o Movimento Espírita fez do Espiritismo uma religião, definição esta que muitos defendem ferrenhamente, ao passo que Kardec faz, com todas as letras, uma árdua defesa racional em contrário, demonstrando que o Espiritismo não tinha nenhum aspecto de uma religião, mas sim o de uma ciência. Já falamos sobre isso no artigo “Espiritismo é religião?”, “Ciência e Espiritismo: matérias em dimensões opostas?“, “A distância entre o Espiritismo e o Movimento Espírita” e em outras ocasiões, mas decidimos voltar ao assunto pela nova ocasião proporcionada e pela persistência enfática de Kardec – que continua na RE de Julho, com uma réplica à resposta do Abade.

Quanto mais estudamos a Revista Espírita, mais notamos essa enorme distância citada. Convidamos o leitor a questionar: por que? Será que o “nosso” Espiritismo, baseado em informações de Espíritos não verificadas de forma científica e controlada, é “mais correto” do que o Espiritismo estudado tão seriamente, de forma metódica e controlada, por Kardec e outros membros da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas? Note o seguinte:

Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião e a prova é que conta como adeptos homens de todas as crenças, os quais, nem por isso, renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto; protestantes de todas as seitas; israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas.

Kardec, Revista Espírita, maio de 1859

Olhemos com frieza para o Movimento Espírita e tentemos encontrar pessoas de outras religiões inseridas nele: praticamente não existem. São raríssimas e, quase sempre, são pessoas que se dizem “sem religião definida”. Será que isso é normal, frente àquilo que Kardec demonstrava? Outra pergunta: se um agente do Censo te perguntar qual é a sua religião e você ser adepto do Espiritismo, o que você responderá?

Todas essas questões não tem a finalidade de atacar a crença pessoal de cada um (até porque, em verdade, o Espiritismo não é feito de crenças, mas de investigação científica), mas o de levantar um grave aspecto que, talvez, muitos não notem: definir o Espiritismo como religião tornou-se o motivo da derrocada do Movimento Espírita, que encontra-se cada vez mais esvaziado. Leia o artigo citado logo no início – pode encontrá-lo aqui – ao menos a partir da resposta de Kardec e procure analisar, por si mesmo, o quanto a definição de “religião” faz o Espiritismo perder em força de alcance e de ajuda no desenvolvimento da humanidade terrestre. Veja a posição do Abade, compatível com a posição moderna de grande parte de seus opositores: ao invés de compreender nessa ciência um suporte às suas crenças; ao invés de tê-la como auxílio às suas incertezas, têm nela uma inimiga, como se o fato de encher os bancos de um centro espírita significa esvaziar os bancos de uma igreja. Infelizmente, muito infelizmente, isso se tornou verdade.

Temos uma felicidade enorme de ter, entre nossos estudantes mais ativos, ao menos uma pessoa que se identifica como católica praticante, que vai à missa, que comunga, que pratica, enfim, sua religião, mas que estuda profundamente e que, muitas vezes, entende melhor que nós, os preceitos morais, filosóficos e científicos do Espiritismo, compreendendo com clara distinção seu caráter científico. Espiritismo é a ciência do que somos e do que é a criação; religião é escolha de práticas humanas, materiais, com significado espiritualista.

Pense, por final, sobre o seguinte: ao passo que Kardec recomendava a prática dos estudos espíritas no lar, o que era mesmo comum naquela época, pergunte-se: existe, hoje, Espiritismo fora dos centros? O que é dito sobre a prática mediúnica fora do centro espírita?

Fica, enfim, o convite reiterado: estude a Revista Espírita. Muitos médiuns bastante conhecidos não tiveram acesso a ela. Hoje, nós temos, e de forma muito, muito fácil e prática. Deixá-la de lado para ficar com o estudo de romances mediúnicos, sem contestação ou investigação, é apego, e traz demérito, dificuldades e erros ao Espiritismo que, de ciência, hoje, no Movimento Espírita não tem nada.




A verdadeira psicologia

A palavra psicologia significa, literalmente, “estudo da alma” (ψυχή, psyché, “alma” – λογία, logia, “tratado”, “estudo”). Não é, porém, o que vemos refletido nos estudos atuais – e de longa data – sobre o tema, pois, por mais que essa área se aproxime do entendimento da alma como “o princípio inteligente, a racionalidade e o pensamento”, ainda procura na matéria cerebral a origem de todas as características do indivíduo ((

“Nosso cérebro, involuntariamente, procura elementos para se apoiar, reforçar suas convicções ou seus interesses, o que o leve a um estilo de vida individualizado, próprio. Não importa o que você utiliza para fortalecer ou motivar seus desejos, suas esperanças, todas as variadas formas são válidas. Pessoas que não acreditam em nada tendem a ser pessimistas e negativas, pois para elas, nada poderá ocorrer para que haja mudança nas suas vidas. Pois o domínio da razão, prende o homem ao que é terreno. A genética explica a origem da fé.”

SOUZA, Andreia Maria S. “O que é alma: significado em psicologia e psicanálise”. Disponível em https://www.psicanaliseclinica.com/alma-o-que-e/. Acesso em 10/09/2022. Grifos nossos.

Como se vê, mesmo a fé, para a psicologia moderna, ainda é materialista, condicionada, para ela, à genética, e não à alma (necessariamente, portanto, em progresso).

)).

A área de pesquisa do ser humano, de sua “psyché” (psique) está predominantemente caracterizada pelas ideias aristotélicas que definem o ser como um resultado do corpo – ideias essas que, varando pelos séculos, criaram, em contrário à filosofia de Sócrates e Platão, autônoma e espiritualista em essência, uma lamentável doutrina heterônoma e materialista, que, além de retirar do ser os princípios da autonomia e da vontade, fizeram surgir as absurdas ideias de racismo, eugenia e, no campo individual, da heteronomia, que, do indivíduo, contamina seu meio social e, por fim, define as estruturas sociais, filosóficas e políticas.

Pautada e contaminada pela ideia aristotélica, onde o indivíduo atribui, quando puramente materialista, todas as suas características morais à genética do corpo e, quando “espiritualista”, a um ou mais seres atuantes como árbitros (como se Deus, ou “os deuses”, fossem seres vingativos, interferentes) ou impelentes ao mal – o diabo, o(s) demônio(s), etc. – a sociedade se descarateriza como social, tornando-se predominantemente egoísta e insulando o ser em si mesmo, visando o atendimento de suas necessidades materiais, ao invés de levá-lo à compreensão de sua vontade como princípio de tudo, no exercício diário e solidário com o outro.

As religiões, enfim, tiraram, por interesses sectários, a autonomia do indivíduo, para o subordinarem a caprichos e castigos de outros seres, interferentes, belicosos e vingativos, quando não maldosos, ao passo que a ciência, não vendo racionalidade nos princípios dogmáticos das religiões, negando-a em completo, renegou a espiritualidade humana, para, então, cair no mesmo erro, tirando a autonomia do indivíduo ao transformá-lo em “boneco-de-ventríloquo” da química corporal. Não é à toa que a eugenia darwinista se fundamentava em Aristóteles, pois, se por um lado acerta na observação do fato natural da seleção, por outro, estende-o ao ser humano, colocando-o, uma vez mais, como efeito de seu corpo, e não como fator determinante sobre ele. Dizia Darwin: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”.

Não sabíamos nós, porém, que, por expressiva quantidade de tempo, e na capital do mundo dos séculos XVIII e XIX, nasceu uma corrente filosófica que retomou os conceitos da autonomia do indivíduo como princípio fundamental da existência e da definição do (ou de) ser. Uma filosofia que definiu as ciências morais francesas ((Diz Paulo Henrique de Figueiredo em “Autonomia”: A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosofia, de Paul Janet, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:

a) As ciências exatas ou matemáticas.

b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).

c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.

As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:

  • As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).
  • As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafia, numismática, geografia) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.
  • As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografia etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.
  • As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano (JANET, 1885, p. 15-17).)) e que passou a ser matéria fundamental na Escola Normal, na formação dos professores, e que depois passou a ser adotada nos liceus e nos colégios, mas que foi sorrateiramente apagada da história humana, juntamente a duas outras ciências filosóficas de mesmo fundamento, como veremos a seguir.

Foi no início do século XIX que Maine de Biran e, depois, Victor Cousin, entre outros, retomaram o conceito da vontade como princípio elaborado psicologicamente pela alma, definindo o livre-arbítrio. Para esses pensadores – numa época em que, como vimos, a filosofia era tratada como ciência – a autonomia do indivíduo está fundamentada na vontade como caraterística da alma. Desse princípio fundamental, nasceram os princípios que afastaram o ser da heteronomia, colocando-o como agente autônomo de si mesmo e, por sua ação solidária, da sociedade. O indivíduo não era mais um reflexo de sua genética (ou, como pensavam na época, de suas disposições biliares ((A bile branca definia o bem e a bile negra definia o mal, na química corporal. Partindo desse princípio, muitos médicos aplicavam as sangrias, tantas vezes mortais, buscando eliminar do corpo a bile negra.)), mas o reflexo primário de sua vontade.

Isso revolucionou a psicologia da época e transformou totalmente as ciências morais, pois colocou o indivíduo na condição de único responsável real por suas condições e escolhas morais. Mais: passou a tratar dos temas morais, sob esses princípios, de forma a separar o que era externo ao indivíduo – as emoções (na época chamadas paixões), os prazeres, a dor física, etc – do que era interno ao indivíduo – as escolhas, nascidas da vontade de sua alma (sendo que a alma seria, para eles, o ser que define a vontade e que sobrevive à morte, sem, porém, investigá-la nesse estado) que, por fim, determinariam seu estado de felicidade ou de infelicidade.

Esse conhecimento é fantástico e merece ser recuperado e estudado! Veja: hoje, definimos (ou confundimos) nosso estado de felicidade e infelicidade pelos fatores externos – se não tenho dinheiro para viajar, ou se tenho um corpo debilitado, ou se perdi pessoas queridos, me acho infeliz, sendo que a felicidade, para o pensamento materialista vigente, estaria nas coisas do mundo – as festas, as viagens, o dinheiro, etc. Ao compreender essa moral definida por essa filosofia espiritualista – o espiritualismo racional, como ficou conhecida – passamos a separar as coisas: posso estar infeliz por uma condição ou acontecimento, ou não ter prazeres por conta de não ter dinheiro, ou por ter uma saúde debilitada, ou limitações corporais, mas não é isso que define minha felicidade, pois esta é uma construção da vontade de minha alma no que tange à moral, isto é, no meu esforço pelo desapego de tudo aquilo que nasce das condições exteriores à minha vontade. Por exemplo: como condição exterior à minha vontade, definida pela minha alma, existe o impulso corporal de reagir com violência a determinada situação; ao permitir que esse ímpeto, que nasce do instinto de proteção, domine minha vontade, posso realizar ações que me façam, posteriormente, arrepender-me (quando me conscientizar), pelo que sofrerei. Se me apegar a tal modo de agir, desenvolverei um hábito e, daí, um vício, que me fará sofrer indefinidamente, até que, me arrependendo, resolva, de forma consciente, buscar me desapegar desse erro, num esforço que só pode ser autônomo, e não impositivo.

Talvez quem tenha melhor definido esses conceitos seja Paul Janet, em duas obras principais: “Pequenos Elementos de Moral”, uma obra muito sucinta e simples de ler (recomendamos a leitura!), disponível para download aqui e também disponível no Amazon Kindle, e “Tratado Elementar de Philosophia“, uma obra bastante maior e mais complexa.

Mas não para por aí. Mencionamos a questão da bile negra e da bile branca, que tomou os conceitos médicos da época e que, pelas absurdas ações impostas aos doentes, como a sangria ou os “remédios”, que misturavam até veneno, debilitavam e, por vezes, matavam os doentes. Contrário a essas ideias, ainda no século XVIII, Mesmer, ao observar alguns pacientes, chegou – de forma muito resumida – a elaborar conceitos também autônomos no tratamento da saúde, teorizando que o indivíduo poderia também se curar pela ação de sua vontade. Hahnemann, com a homeopatia, seguiu o mesmo princípio. Para Mesmer, o agente externo, agindo através da vontade do indivíduo doente – o que ficou conhecido por magnetismo – poderia auxiliá-lo a atingir, através de um trabalho persistente, curas que, para muitos, seriam impossíveis e, em alguns casos, quase milagrosas (o que, de fato, não era: trava-se apenas de uma ciência desconhecida). Tal era a exatidão de suas teorias que, já naquela época, e contra as teorias científicas de então, elas se alinhavam aos conceitos ora vigentes e demonstrados pela física moderna, como os da Teoria Quântica de Campos e da existência de uma matéria elementar, “quintessenciada”, que dá origem a toda a matéria (matéria escura). É todo um conhecimento que demandaria um verdadeiro livro para tratá-lo. Como esse livro já existe, recomendamos sua leitura: “Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Mencionamos também a questão de o estudo dos espiritualistas racionais estar limitado à compreensão da alma como agente da vontade, exterior ao corpo e dominante sobre ele, sobrevivente à morte (por mera inferência racional dos postulados anteriores), mas de posterior destino desconhecido, posto que inobservável. Acontece, porém, que “algo” vinha acontecendo, ganhando terreno para o estabelecimento de uma nova ciência, nascida, na época, como todas as outras: pela observação racional e metodológica dos fatos da natureza.

Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

[…]

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

[…]

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”

FIGUEIREDO. Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal.

Chegamos, portanto, ao nascimento da ciência espírita, uma ciência, e não, como muitos julgam, uma “religião”. Posto no corrente dos fatos que pululavam pela Europa (e pelo mundo, na verdade) e, afastando, pela investigação, as charlatanices que visavam apenas atrair curiosos e suas bolsas de dinheiro, o professor Rivail ((Hippolyte Leon Denizard Rivail.)) colocou-se, após muita insistência de alguns conhecidos, a um estudo que culminou naquilo que ficou conhecido como Espiritismo, que, ao invés de nascer, como todas as doutrinas religiosas, da opinião isolada de um indivíduo ou de um grupo, nasceu da análise racional de milhares de comunicações, obtidas de todos os “cantos” do mundo, da mesma forma que os magnetizadores que o precederam também obtiveram as suas: através de indivíduos colocados em estado de sonambulismo, induzido pelo magnetismo (de Mesmer). Um fato estava firmado, sustentado pela razão: a alma, antes ininvestigável, poderia, por sua vontade, se comunicar através da alma do indivíduo colocado em estado sonambúlico.

Através dessas comunicações, Allan Kardec, nome adotado por Rivail com a finalidade de não confundir seus trabalhos como educador e cientista com seus novos estudos, inaugurou uma nova era no estudo psicológico, pois, agora, plenamente alinhado aos conceitos já elaborados pelo espiritualismo racional, estudava a alma em seu estado, após a morte, de felicidade ou infelicidade, frutos de suas escolhas. Não só: contra as ideias pré-concebidas que tinha, junto a outros estudiosos, a respeito da origem da alma, comunicações de incontáveis Espíritos evidenciaram, pela razão, a lei da reencarnação como elemento necessário ao progresso incessante do Espírito ((Destaca Kardec, em sua Revista:

“Sem dúvida, dizem alguns contraditores, vós estáveis imbuídos de tais ideias e por isso os Espíritos concordaram com vossa maneira de ver. É um erro que prova, mais uma vez, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se, antes de julgar, tais pessoas se tivessem dado ao trabalho de ler o que escrevemos sobre o Espiritismo, ter-se-iam poupado ao trabalho de uma objeção tão leviana. Repetiremos, pois, o que já dissemos a respeito, isto é, que quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema.

Aos olhos de algumas pessoas, talvez pareça singular o uso do termo evidência, em semelhante assunto, entretanto não será impróprio para quem se habituou a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos uma evidência moral.

Não é aqui o lugar para explicar esses fatos, só compreensíveis através de um estudo contínuo e perseverante. Nosso objetivo era apenas refutar a ideia de que esta doutrina não passa de uma tradução do nosso pensamento.”

KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1858.

)), em suas escolhas de retorno à matéria, para dar prosseguimento ao seu aprendizado e, em muitos casos, para, após o processo de arrependimento, mediante suas escolhas, e não por uma imposição arbitrária, dar lugar às provas necessárias para a busca pelo desapego de hábitos e vícios que, transformados em imperfeições, os levaram ao sofrimento.

Tais estudos complementaram aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde explicar e demonstraram que a autonomia do ser, definida por sua vontade e pelo seu livre-arbítrio, era, sim, fator determinante em seu progresso e, consequentemente, em seu estado de felicidade ou infelicidade, à medida que a felicidade estaria em quanto mais próximo da lei natural estivesse, ao passo que a infelicidade estaria em lutar contra ela, desenvolvendo apegos. Em reconhecendo o estado de infelicidade e seu motivo, o Espírito escolheria novas oportunidades que proporcionassem aprendizado, não sendo, em nenhuma hipótese, o efeito de um castigo imposto pelo erro cometido.

Eis, prezado leitor, os fatos da verdadeira revolução psicológica e filosófica que, por mais de um século, ficou desconhecida pela sociedade, varrida para baixo do tapete por uma forte reação materialista. Outrora reconhecida como ciência, hoje, sob o império de um entendimento materialista – e inexato – do que é ciência, é tratada como pseudociência, descreditada e desacreditada sob essa classificação. Eis os fatos que, atualmente, são inconcebíveis de serem abordados nas salas de aula das turmas de filosofia, medicina, psicologia e afins. Eis os fatos, enfim, que levaram todo o mundo a mergulhar ou se manter sob os temíveis princípios que tiram do ser a autonomia e que transformam o homem numa verdadeira massa de carne, definida por sua química corporal e, por conseguinte, pelo seu DNA. Não se busca, hoje, em geral, investigar a origem da infelicidade, da depressão ou dos distúrbios pela investigação da alma e de sua vontade: busca-se, pelo contrário, investigar qual é gene da psicopatia, não se cogitando que as “anomalias” seriam definidas pela alma, e não o contrário.

Acontece, porém, que o ser humano, exatamente pelo progresso espiritual, que não cessa, a cada dia mais busca a autonomia, porque, lenta e progressivamente, se aproxima, pela própria razão, da constatação e do entendimento desses princípios, já que o progresso do Espírito não se dá apenas no estado de encarnação. Começam a ganhar força, tanto na sociedade em geral, como nos meios científicos, as ideias autônomas que, a cada dia mais, voltam a se aproximar dessa verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano, no passado. É por isso que, veementemente, indicamos o estudo das obras citadas para, depois, indicar, àqueles que se sintam compelidos a isso, o estudo da Revista Espírita, elaborada por Kardec, de janeiro de 1858 a abril de 1869, onde fica exposta, com muita clareza, a formação dessa doutrina filosófica e moral que, para ser bem entendida, carece da compreensão do contexto em que nasceu e se formou.

Dissemos da verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano. O Espiritismo, tendo sido a única doutrina científica e filosófica que se aprofundou no estudo da psicologia do Espírito após a morte do corpo – eis a razão de a Revista Espírita receber, como subtítulo, “Jornal de Estudos Psicológicos” – estudou os fatos que lhes foram dados de forma racional e com metodologia científica (que pode ser muito bem entendida através do estudo sério da obra de Allan Kardec, e sobre a qual já falamos algumas vezes, em nossos artigos).

Devidamente contextualizada em sua época, a Doutrina Espírita, era de tal maneira racional e lógica, clara e, de certa forma, simples, que “convertia” ((Claro que o sentido aqui dado a “converter” é o de adotar princípios e ideias de uma doutrina, e não de afiliar-se a um sistema religioso qualquer.)) incontáveis pessoas, até mesmo ateus e materialistas, desde as classes operárias até os ocupantes dos mais altos postos sociais. Hoje, porém, o Movimento Espírita, contaminado, por mais de um século, por adulterações nas duas obras finais de Kardec e por ideias incutidas em seu meio, perdeu justamente essa característica racional e lógica de uma ciência observacional. Atualmente, muitos se afastam do meio espírita justamente por verem seus raciocínios chocados contra falsos conceitos de pagamento de dívidas, carma, castigo divino através da reencarnação e aceitação desarrazoada de qualquer suposta psicografia espírita, sem submetê-la, como recomendava Kardec, ao crivo da razão.

Eis o porquê da necessidade de estudar e conhecer o Espiritismo nas obras [originais ((As obras O Céu e o Inferno e A Gênese foram respectivamente adulteradas em suas 4a e 5a edições, mas a editora FEAL já tem, atualmente, as obras originais, com enorme quantidade de notas contextualizatórias de Paulo Henrique de Figueiredo.))] de Kardec. O Espiritismo nunca foi uma religião, nem nasceu com o intuito de disputar com as religiões um posto que não lhe compete ((Diria Kardec, na Revista Espírita de 1862:

“A propósito da questão dos milagres do Espiritismo que nos foi proposta, e que tratamos no nosso último número, igualmente se propõe esta: ‘Os mártires selaram com o seu sangue a verdade do Cristianismo; onde estão os mártires do Espiritismo?’

Estais, pois, muito instados a ver os Espíritas colocados sobre a fogueira e lançados às feras! O que deve fazer supor que a boa vontade não vos faltaria se isso ocorresse ainda. Quereis, pois, a toda força elevar o Espiritismo à situação de uma religião! Notai bem que jamais ele teve essa pretensão; jamais se colocou como rival do Cristianismo, do qual declara ser o filho; que ele combate os seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo. Ainda uma vez, é uma filosofia repousando sobre as bases fundamentais de toda religião, e sobre a moral do Cristo; se renegasse o Cristianismo, se desmentiria, se suicidaria. São esses inimigos que o mostram como uma nova seita, que lhe dá sacerdotes e grandes sacerdotes. Gritarão tanto, e tão frequentemente, que é uma religião, que se poderia acabar por nisto crer. É necessário ser uma religião para ter seus mártires? A ciência, as artes, o gênio, o trabalho, em todos os tempos, não tiveram seus mártires, assim como todas as ideias novas?”

Allan Kardec – Revista Espírita de 1862

)). É, antes de tudo, uma ciência moral, como demonstramos, mas também uma ciência nascida da observação dos fatos da natureza. Estudado como tal, afasta preconceitos e ataca o único real inimigo da autonomia humana, o materialismo, demonstrando-o falso e insustentável.




As adulterações em A Gênese após a morte de Kardec: fato ou questão de ponto de vista?

Por Paulo Degering Rosa Junior

A interpretação de texto é dependente da chave de leitura utilizada pelo leitor“, disse-nos uma correspondente envolvida em estudos, ainda hoje, sobre evidências que sugeririam ou comprovariam que a 5.ª edição de A Gênese não foi uma adulteração.

Com certeza – respondo eu – a interpretação depende do conhecimento do leitor. É possível até mesmo não entender a autonomia – fundamento da moral espírita – e, pelo contrário, depreender os falsos conceitos, como aqueles ligados ao carma. O que eu não vejo como questão de interpretação, porém, é a REMOÇÃO de trechos tão essenciais e importantes da obra, como aquele do item 24 do cap. XVIII (“Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau…”) ou aquele que finaliza, na 4.ª edição, o item 19 do cap. III, a respeito dos instintos – “Todos os homens passam pelas paixões […]”. Além disso, temos a retirada ilógica do final do item 22 do cap. II, que explica o conceito da interação espiritual através do fluido perispiritual, indo em encontro à tese de Mesmer. Isso sem falar na carta manuscrita onde consta que, consultando os Espíritos, foi recomendado a Kardec que NADA fosse suprimido na nova edição.

Interessante, ademais, notar que se prende tanto às questões de A Gênese, fazendo um enorme silêncio sobre O Céu e o Inferno, que foi absurdamente destroçada, chegando a ficar contraditória., na 4.ª edição.

De verdade, eu não entendo como, ainda hoje, gasta-se tanto tempo nessa discussão que em nada agrega ao Espiritismo e à humanidade. Nós já sabemos que o Movimento Espírita foi completamente deturpado por pessoas como Leymarie, que também condenou o futuro da antes reconhecida Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas; já sabemos da influência perniciosa de Roustaing e de seus discípulos; já sabemos das publicações dos discípulos leais de Kardec, que sinalizavam, em berros escritos, os fatos que se passavam então (conforme Beacoup de Lumière, de Berthe Fropo, amiga íntima do casal); sabemos, também, que se chegou ao ponto de queimarem-se manuscritos preciosos de Kardec, também pelas mãos de Leymarie; conhecemos os fatos amplamente apresentados por Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec. Apesar de tantos fatos e evidências, para alguns grupos é inconcebível que as obras citadas não tenham sido adulteradas, e gastam preciosos tempo e recursos em pesquisas que apenas apontam para evidências de que Kardec planejava novas edições – o que é mais que racional.

Enquanto isso, a compreensão do Espiritualismo Racional, do Magnetismo, da Educação e do Espiritismo – tudo muito intrinsecamente ligado – fica esquecida em terceiro plano, ao passo que o Movimento Espírita continua preso às falsas ideias, materialistas, vindas desde Aristóteles até os dias de hoje – as mesmas ideias que destroçaram a filosofia inatacável apresentada pela Doutrina Espírita. Respeito o tempo e a vontade de cada um, afinal, falamos de autonomia e, espero, hoje compreendemo-la. Mas não consigo ver, nisso tudo, senão mais uma forma de atrasar o passo da doutrina, enquanto, vivendo ainda na heteronomia, milhares de pessoas “esperam” um posicionamento oficial de órgãos como a FEB, a respeito não só das adulterações das obras, mas do reconhecimento da distância que tomaram da essência filosófica, científica e moral do Espiritismo.

É isso.


Hoje, 25 de agosto de 2022, é o primeiro aniversário do Grupo de Estudos O Legado de Allan Kardec. Nesse último ano, com a cooperação imprescindível de companheiros valorosos, o Grupo felicita-se de ter aprendido tanto, se desenvolvido tanto e de, a cada dia mais, se tornar mais útil pela compreensão da essência verdadeira – moral, científica e filosófica – do Espiritismo.

O Grupo nasceu justamente após a leitura de O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato, que nos acendeu o alerta sobre os fatos que regularmente vimos destacando e comentando e esperamos que, daqui em diante, tenhamos forças e possibilidades de auxiliar cada vez mais na disseminação do verdadeiro caráter da Doutrina Espírita, afastado das falsas ideias, materialistas e dogmáticas.

Espiritismo não tem “lei do retorno”, “lei de ação e reação”, “carma”, “quitação de dívidas” ou qualquer ideia ligada ao dogma da queda pelo pecado; o Espiritismo demonstra que o Espírito é o autor, o fator determinante da vontade, não estando submetido – embora seja influenciado – pela matéria. Demonstra, acima de tudo, o princípio da autonomia e do livre-arbítrio, afastado dos falsos conceitos de um Deus punitivo ou de um diabo inquisidor.

Estudemos!




Somos todos Espíritos imperfeitos?

Nem todos somos imperfeitos. Essa é uma falsa ideia, quando entendida sob um determinado ângulo, como vamos demonstrar.

O Espiritismo demonstra, complementando o Espiritualismo Racional, que a imperfeição é algo desenvolvido pela repetição consciente (hábito) do erro. Ao se tornar imperfeição (chama-se “imperfeição adquirida”), pode até se tornar um vício, que demandará o esforço autônomo e também consciente para ser superado, através da escolha de provas e oportunidades em novas encarnações.

É nisso que consiste o mal: afastar-se do bem, que é a moral das leis divinas, através do desenvolvimento de imperfeições. E nem todos fazem isso. O Espírito que não desenvolveu imperfeições, ou aquele que está lutando bravamente para superá-las, está no bem ou caminhando para ele… E isso o fortalece o suficiente para vencer, também, influências exteriores, e até mesmo para repeli-las.

Mas há também o aspecto da imperfeição partindo do ponto de vista que somos todos perfectíveis. Assim, enquanto não nos tornamos Espíritos relativamente perfeitos (porque perfeito, mesmo, somente Deus pode ser), seremos imperfeitos.

Ambos os aspectos do termo são tratados por Kardec na Doutrina Espírita, e podemos provar:

Os que não se interessam apenas pelos fatos e compreendem o aspecto filosófico do Espiritismo, admitindo a moral que dele decorre, mas sem a praticarem. A influência da Doutrina sobre o seu caráter é insignificante ou nula. Não modificam em nada os seus hábitos e não se privariam de nenhum de seus prazeres. O avarento continua insensível, o orgulhoso cheio de amor-próprio, o invejoso e o ciumento sempre agressivos. Para eles, a caridade cristã não passa de uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, 23a Edição. Editora LAKE

O trecho consta da parte em que Kardec está classificando os tipos de espíritas. Ora, não haveria porque classificar uma parte deles como “imperfeitos” se somos todos imperfeitos. Isso demonstra que, nesse ponto, Kardec está tratando das imperfeições adquiridas, conforme explicadas acima.

Falamos também sobre isso no artigo recente Reforma íntima e Espiritismo e, no estudo abaixo, o tema foi tratado em grupo.

É fato: estamos longe da perfeição. Na verdade, nunca atingiremos a perfeição absoluta, pois, se atingíssemos, seríamos como Deus. Atingiremos a perfeição relativa… Porém, isso não nos faz imperfeitos, mas apenas relativamente simples e ignorantes, isto é, desenvolvendo ainda a vontade e a consciência.

Em O Céu e o Inferno, na versão original e não adulterada (vide a edição produzida pela editora FEAL), essa filosofia está claramente exposta, em toda a sua racionalidade inatacável; contudo, desde o início da formação da Doutrina, essa informação já era conhecida. Basta verificar a Escala Espírita, em O Livro dos Espíritos, e veremos que, na Terceira Ordem – Espíritos Imperfeitos, estão apenas os Espíritos que desenvolveram imperfeições: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes”. E basta raciocinar: nem todo mundo desenvolve essas imperfeições, porque alguns podem escolher não repetir os erros, como já se encontra expresso em O Livro dos Espíritos:

133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?

“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”

a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?

Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”

O Livro dos Espíritos. Grifos nossos.

Mas como pode se dar isso?

Para entender esse fundamento da lei natural, precisamos compreender que o Espírito simples e ignorante é aquele em sua primeira encarnação consciente, no reino humano. Nesse estado, recém-saído do reino animal, guarda ainda todos os resquícios do instinto, que o governaram inconscientemente até então, no bem, porque o bem é estar na lei natural, e o animal que mata o outro para se alimentar está seguindo a lei natural, agindo apenas para suprir suas necessidades instintivas, com inteligência, mas sem consciência. Ao entrar no reino do homem, o Espírito consciente passa a fazer escolhas — não entre bem e mal, mas entre agir desta ou daquela forma. Essas escolhas produzirão resultados, que poderão configurar um acerto — estão dentro da lei divina — ou um erro — estão fora da lei divina, isto é, excedem a necessidade racional. O indivíduo pode, então, escolher não repetir esse erro, mas pode também escolher repeti-lo, pois é algo que, de alguma forma, lhe agrada às emoções ou lhe dá prazer. É nesse momento que desenvolve a imperfeição, se repete o erro constantemente. Mas ele pode também escolher não repetir o erro, pois percebe que lhe causa um mau efeito. Nesse sentido, ele é feliz em suas simplicidade e ignorância, sendo essa felicidade relativa à sua capacidade atual.

Isso também está em Kardec, em A Gênese:

“Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos”.

Na versão original dessa obra, conforme apresentada na edição da editora FEAL, Kardec complementa, dizendo que:

“Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

Então, aquele que desenvolveu uma imperfeição é inferior aos que não as desenvolveram? É um mau Espírito? Deve ser castigado por isso? Não, não e não!

Aquele que desenvolveu uma imperfeição, o fez por não conhecer, em realidade, o bem, caso contrário teria agido adversamente. É apenas um erro — repetido conscientemente — e não passa disso. Não é uma característica do Espírito. Deus não cria ninguém mau, nem cria o mal. O mal não existe! É apenas a ausência do bem. É claro, portanto, que Deus não castigaria um filho seu por errar. Não: ele lhe dá a capacidade de raciocinar e a autonomia, de modo que ele mesmo possa perceber que os resultados de seus erros lhe causam sofrimento e, percebendo isso, se arrependa e demande a correção dessas imperfeições.

É nesse ponto que o espiritualismo moderno e o movimento espírita atual divergem da moral espírita original: para esses, ao entender o erro, o Espírito é obrigado a reparar OS EFEITOS, enquanto, para o último, o Espírito é deixado livre para escolher como e quando tentará reparar A IMPERFEIÇÃO (em si), o que pode ou não envolver a reparação de efeitos danosos que tenha realizado.

Aqui, cabe uma conclusão: a doutrina da “lei do retorno” ou do carma, que nunca fez parte do Espiritismo, afirma que, ao fazer mal para uma pessoa, teremos que reencarnar com ela para reparar esse erro. Contudo, já ficou estabelecido que o mal fazemos apenas para nós mesmos — se, ao cometer um erro com alguém, esse alguém escolhe cultivar um sentimento de cólera, ódio ou vingança, está fazendo o mal a si mesmo. Cabe, portanto, à autonomia de cada um se desapegar de tais sentimentos. Se o algoz fosse obrigado a reencarnar com sua vítima para reparar um erro e, por mais que se esforçasse por ter uma atitude irrepreensível no bem, a vítima escolhesse não desapegar de tais sentimentos, quer dizer que o erro não teria sido pago e demandaria quantas encarnações fossem necessárias para isso, vinculando o progresso do outro, que já voltou ao bem, à escolha do outro? E se, por outro lado, a vítima não se apegou, seguiu em frente, mas o algoz continua em suas imperfeições? Ela terá que reencarnar com ele para que ele, que ainda nem sequer entendeu seu sofrimento, “quite suas dívidas”? Não faz sentido!

Voltando ao nosso ponto, falávamos do retorno do Espírito ao bem. Em O Céu e o Inferno (editora FEAL, baseado na versão original, não adulterada), temos o seguinte:

“8º) A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem”.

Sendo o castigo – ou a punição, pois não sabemos ao certo qual foi a intenção da palavra original – uma consequência do erro realizado, será um verdadeiro castigo o sofrimento inerente às imperfeições. Não é uma punição arbitrária divina, mas uma consequência da lei natural. Não há condenação: tudo depende da vontade do indivíduo em arrepender-se e demandar a reparação da imperfeição, retornando, assim, ao bem.

Finalizamos reproduzindo, uma vez mais, a recomendação de Paul Janet ((Em Pequenos Elementos de Moral, disponível aqui para download.)) a repeito dos hábitos:

É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”




O que o Espiritismo diz sobre a pornografia?

O que o Espiritismo tem a dizer sobre a pornografia? Esse é um assunto complicado, porque não é um assunto que tenha sido tratado diretamente pela Doutrina. Para falar sobre isso, precisamos extrapolar conhecimentos e entendimentos que a Doutrina nos dá.

O Espiritismo coloca, acima de tudo, a liberdade de consciência e a autonomia. Fique isso constado, como resultado do estudo da Doutrina Espírita em seu conteúdo moral e filosófico.

À parte desse princípio, vamos verificar no Espiritismo, desenvolvendo o pensamento do Espiritualismo Racional, que o homem pode adquirir maus hábitos pela repetição de um ato relacionado ao prazer. Isso pode se transformar em uma imperfeição, que se torna um vício, do qual muito custará ao Espírito o trabalho de superação, através do esforço reencarnatório CONSCIENTE e AUTÔNOMO.

Paul Janet fala sobre isso em Pequenos Elementos de Moral, o qual recomendo muito a leitura (clique aqui para baixar):

20 Os hábitos. – É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”

O grande problema de entrar nos hábitos materialistas – que são aqueles que sobrepujam as necessidades fisiológicas – é que, desenvolvendo apegos, não só nos será mais difícil e dolorosa a desligação da matéria, no momento da morte, como também atrairemos as “nuvens de testemunhas”, Espíritos também apegados a tais vícios. Normalmente, isso nos levará a viver num contexto espiritual e social conturbado e difícil.

Mas, veja: não existe pecado. Existe erro. Ninguém será castigado por errar, nem por escolher, conscientemente, se apegar a um vício ou mau hábito qualquer; contudo, os resultados de nossas escolhas podem ser danosos para nós, o que podemos chamar de punição, o que, de todo, não é uma imposição deliberada de Deus.

Cumpre destacar que ninguém deveria se martirizar por uma imperfeição ou mau hábito qualquer a ponto de ficar mal. É preciso o trabalho de formiguinha, talvez lento, mas constante, de modo a não fazer como aqueles que prometem não comer doces no novo ano, mas, sendo um compromisso muito pesado, falem após os primeiros dias, dizendo, então: “não sou forte, é impossível. Vou, portanto, comer tudo o que quiser, sempre que quiser”. Essa figura, aliás, representa a exata imagem da não utilização da razão para conter o instinto. Kardec, em A Gênese, complementa:

O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL




Reencarnação Segundo o Espiritismo

Baseado no vídeo de mesmo título do bate-papo semanal do Grupo de Estudos Espiritismo para Todos

Para demonstrar (e não provar) a reencarnação como uma lei natural, Kardec se baseia nos princípios fundamentais do Espiritismo e do Espiritualismo Racional. Dentre eles, estão os atributos essenciais de Deus ((Eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom. Vide O Livro dos Espíritos, Cap. I, item III – Atributos da Divindade)), que são perfeitas em grau infinito, posto que, fosse diferente, não seria esse ser o próprio Deus, sendo necessário, então, que houvesse outro acima, em condição perfeita.

É através da constatação e do entendimento dessas condições essenciais, que deriva o entendimento a respeito da criação divina. Como veremos mais à frente, sua criação também deve ser perfeita e, suas criaturas – os Espíritos – perfectíveis, o que, de contrário, não condiziria com a perfeição divina infinita.

Allan Kardec, de início, não aceitava a reencarnação. Em verdade, ele nem sequer aceitava a possibilidade da nossa interação com os Espíritos, em sua juventude. Era educador emérito, totalmente ligado aos conceitos da moral na pedagogia, além de pesquisador das ciências de então. Dizia ele que, se a educação das crianças fosse bem realizada, elas, quando crescessem, não acreditariam em almas do outro mundo ou em fantasmas ((RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834)). Foi somente após os primeiros contatos com os fatos espíritas, onde ele compreendeu a existência de uma lei natural, a qual se pôs a estudar, que, vencido pelas evidências e pela razão, aceitou, por ser a conclusão mais racional, os fatos acima mencionados.

Sobre os Espíritos, diz Kardec, na introdução de O Livro dos Espíritos: “Conforme notamos acima, os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos ou gênios“.

Já sobre a reencarnação, encontramos um artigo de muito interesse na Revista Espírita de 1858, do mês de novembro, chamado “Pluralidade das Existências“, donde tiramos o seguinte trecho:

[…] quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema, aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema ((Já falamos sobre o quão importante é esse tipo de atitude frente à pesquisa espírita. Longe de constituir um ato de prepotência ou arrogância, é necessário e instigado pelos próprios Espíritos – quando superiores)) .

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 2a edição. Grifos nossos.

Kardec, nesse mesmo artigo, cuja leitura recomendamos fortemente, dá algumas noções preliminares sobre a antiguidade da ideia sobre a transmigração das almas. Citaremo-las, para, então, apresentar as dificuldades encontradas nos falsos em que elas muitas vezes se apoiam – ou vieram a se apoiar.

Das diversas doutrinas professadas pelo Espiritismo, a mais controvertida é, inquestionavelmente, a da reencarnação ou da pluralidade das existências corpóreas. Embora seja esta opinião atualmente partilhada por grande número de pessoas e que já tenha sido abordada por nós em várias ocasiões, julgamos um dever aqui examiná-la mais minuciosamente, à vista de sua extraordinária importância e para responder a diversas objeções que foram levantadas.

Antes de entrar a fundo na questão, devemos fazer algumas observações que se nos afiguram indispensáveis.

Para muitas pessoas o dogma da reencarnação não é novo: é ressuscitado de Pitágoras. Nós jamais dissemos que a Doutrina Espírita é uma invenção moderna. Decorrendo de uma lei natural, o Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos por provar que os seus traços são encontrados na mais alta Antiguidade.

Como se sabe, Pitágoras não é o autor do sistema da metempsicose. Ele bebeu-o nos filósofos indianos e entre os egípcios, onde ela existia desde tempos imemoriais. Assim, a ideia da transmigração das almas era uma crença vulgar, admitida pelas mais eminentes personalidades.

Ibidem.

É interessante notar que, embora essa ideia fosse admitida desde a antiguidade, “pelas mais eminentes personalidades”, Kardec não a admitia. Talvez sejam dois os possíveis motivos para isso: ele não pensava nisso, porque não admitia a sobrevivência do Espírito, ou ele não encontrava racionalidade nessas ideias. É sobre esse ponto que entraremos a seguir, para demonstrar que a ausência de razão reside nos falsos princípios, tomados de forma dogmática pelo clero das religiões e ensinado, desde criancinhas, aos seus adeptos.

Falso princípio da degradação da alma

No artigo “Doutrina da reencarnação entre os hindus”, da Revista Espírita de dezembro de 1859, Allan Kardec retoma o assunto da reencarnação em profundidade, apresentando o seguinte:

Conforme os hindus, as almas tinham sido criadas felizes e perfeitas e sua decadência resultou de uma rebelião; sua encarnação no corpo de animais é uma punição. Conforme a Doutrina Espírita, as almas foram e ainda são criadas simples e ignorantes; é pelas encarnações sucessivas que chegam, graças a seus esforços e à misericórdia divina, à perfeição que lhes proporcionará a felicidade eterna. Devendo progredir, a alma pode permanecer estacionária durante um período mais ou menos longo, mas não retrograda. O que adquiriu em conhecimento e em moralidade não se perde. Se não avança, também não recua: eis por que não pode voltar a animar os seres inferiores à Humanidade.

Desse modo, a metempsicose dos hindus está fundada sobre o princípio da degradação das almas. A reencarnação, segundo os Espíritos, está fundada no princípio da progressão contínua.

Segundo os hindus, a alma começou pela perfeição para chegar à abjeção; a perfeição é o começo e a abjeção, o resultado. Conforme os Espíritos, a ignorância é o começo; a perfeição, o objetivo e o resultado. Seria supérfluo procurar demonstrar qual dessas duas doutrinas é mais racional e dá uma ideia mais elevada da justiça e da bondade de Deus.

É, pois, por completa ignorância de seus princípios que algumas pessoas as confundem.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1859.

A crença dos hindus, na queda pelo pecado, é partilhada por muitas outras correntes de pensamento, dentre elas a da Igreja Romana. Segundo essa crença, seria necessário supor que Deus não seria assim tão perfeito, pois, após um erro de um filho seu, criado perfeito, portanto, sem experiência, o submete a um castigo na carne.

No artigo “Do princípio da não-retrogradação dos espíritos”, da RE de junho de 1863, Kardec destaca que:

Segundo um sistema, os Espíritos não teriam sido criados para serem encarnados, reencarnando apenas quando cometem faltas. O bom-senso repele tal pensamento.

A encarnação é uma necessidade para o Espírito que, para cumprir sua missão providencial, trabalha em seu próprio adiantamento pela atividade e a inteligência, que ele deve desenvolver a fim de prover à sua vida e ao seu bem-estar. Mas a encarnação torna-se uma punição quando, não tendo feito o que devia, o Espírito é constrangido ((Esse constrangimento, é claro, dá-se em decorrência da lei natural, divina, e não pela ação direta e arbitrária de Deus)) a recomeçar sua tarefa e multiplica suas existências corpóreas penosas por sua própria culpa.

Um escolar somente se forma após passar por todas as classes. São essas classes uma punição? Não: são uma necessidade, uma condição indispensável para seu adiantamento ((Isso está totalmente de acordo com o pensamento pedagogo de Kardec, alinhado à pedagogia de Pestalozzi, totalmente voltado à autonomia e afastado dos conceitos de punição ou castigo, que, diz Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública” (Paris, 1828), “irritam as crianças em vez de convencê-las”)). Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí é uma punição ((Lembrando que a palavra “punição”, para o Espiritismo e para o Espiritualismo Racional, tem o significado de ser o resultado de uma ação, e não de uma imposição divina (veja este artigo). Assim, é possível compreender que repetir de ano, para o estudante, seria uma consequência de suas ações, e não um castigo infligido por elas.)). Ser aprovado em algumas é um mérito.

O que é falso é admitir em princípio a encarnação como um castigo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863. Grifos nossos.

Por incrível que pareça, esse falso princípio dominou o Movimento Espírita, após Kardec. Hoje, sem estudos, fala-se, no meio espírita, em carma, lei do retorno e lei de ação e reação, imputando, à reencarnação, essa característica arbitrariamente punitiva, do “olho-por-olho, dente-por-dente”. É um completo disparate, que só existe, como dissemos, pela ausência do estudo.

Na Revista Espírita de fevereiro de 1864, no artigo “Dissertações Espíritas – Necessidade da Encarnação”, Kardec apresenta a comunicação de um Espírito, assistido por outro, de nome Pascal:

Quis Deus que o Espírito do homem fosse ligado à matéria para sofrer as vicissitudes do corpo ((Afinal, a reencarnação é uma lei. Como diria Kardec no primeiro artigo citado, “Deus não nos pede permissão; não consulta o nosso gosto. Ou é, ou não é.”)), com o qual se identifica a ponto de iludir-se e de o tomar por si mesmo, quando não passa de sua prisão passageira; é como se um prisioneiro se confundisse com as paredes da cela…

Se Deus quis que suas criaturas espirituais fossem momentaneamente unidas à matéria, é, repito, para as fazer sentir e, a bem dizer, para que sofressem as necessidades que a matéria exige de seus corpos, no que respeita ao seu sustento e conservação.

Dessas necessidades nascem as vicissitudes que vos fazem sentir o sofrimento e compreender a comiseração que deveis ter por vossos irmãos na mesma posição. Esse estado transitório é, pois, necessário ao adiantamento do vosso Espírito, que, sem isto, ficaria estagnado.

As necessidades que o corpo vos faz experimentar estimulam os vossos Espíritos e os forçam a buscar os meios de as prover; desse trabalho forçado nasce o desenvolvimento do pensamento. Constrangido a presidir aos movimentos do corpo para os dirigir, visando a sua conservação, o Espírito é conduzido ao trabalho material e daí ao trabalho intelectual, necessários um ao outro, pois a realização das concepções do Espírito exige o trabalho do corpo e este não pode ser feito senão sob a direção e o impulso do Espírito.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864. Grifos nossos.

Ao que Kardec observa:

A estas observações, perfeitamente justas, acrescentaremos que, trabalhando para si mesmo, o Espírito encarnado trabalha para a melhoria do mundo em que habita, assim ajudando a sua transformação e o seu progresso material, que estão nos desígnios de Deus, de quem é o instrumento inteligente. Na sua sabedoria previdente, quis a Providência que tudo se encadeasse na Natureza; que, todos, homens e coisas, fossem solidários ((Esse princípio fundamental da lei natural, demonstrado pelo Espiritismo, vai de contra ao falso princípio do Espírito isolado em si mesmo. Vejamos que, mesmo sem saber ou querer, o Espírito trabalha pelo conjunto, desde sempre. Se houvesse sido criado perfeito (o que também é um contrassenso), não haveria essa necessidade.)).

A reencarnação é necessária enquanto a matéria domina o Espírito. Mas, desde que o Espírito encarnado chegou a dominar a matéria e a anular os efeitos de sua reação sobre o moral, a reencarnação não tem mais nenhuma utilidade nem razão de ser.

Com efeito, o corpo é necessário ao Espírito para o trabalho progressivo até que, tendo chegado a manejar este instrumento à vontade, a lhe imprimir sua vontade, o trabalho esteja realizado.

Ibidem. Idem.

Não creio necessárias maiores explicações. O princípio do progresso sucessivo, através das múltiplas encarnações, está demonstrado como o único capaz de dar razão a todas as questões até hoje levantadas sobre a justiça divina.

Em um próximo artigo continuaremos o assunto.




Os sistemas de reforma social e o Espiritismo

por Paulo Degering Rosa Junior

Há tempos venho realizando abordagens ((Veja os artigos “Espiritismo e Política” e “O silêncio do Movimento Espírita ante os temas sociais“)) a respeito da impossibilidade de se atrelar o Espiritismo a qualquer ideologia política e do quanto essa prática é nociva e danosa ao Movimento Espírita. Quando defendo que o Espiritismo não se deve misturar à política, não quero dizer que ele não possa dar a ela sua contribuição, mas, sim, que ele não deve ser misturado às opiniões e às ideias de sistemas que, de modo avesso à moral espírita, querem mudar a sociedade a golpes de força, por imposição, ao passo que o Espiritismo demonstra que a única forma de realizar qualquer mudança na sociedade é auxiliando o indivíduo a abandonar maus hábitos e imperfeições, num gesto racional, consciente e autônomo.

Quem estuda o Espiritismo com alguma dedicação compreende facilmente esse princípio. Contudo, faltava-me encontrar uma verdadeira pérola de Allan Kardec, inserida em meio a um texto que, até hoje, confesso, ainda não havia lido, nem conhecido. A pérola em questão está na publicação “Viagem espírita em 1862”, em “Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux.”, item III:

Acabo de dizer que sem a caridade o homem não constrói senão sobre a areia. Um exemplo nos fará compreender melhor.

Alguns homens bem-intencionados, tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes, julgaram encontrar o remédio para o mal em certos sistemas de reforma social. Com pequenas diferenças, o princípio é mais ou menos o mesmo em todos eles, seja qual for o nome que se lhes dê. Vida comunitária por ser a menos onerosa; comunidade de bens, para que todos tenham sua parte; participação de todos para a obra comum; nada de grandes riquezas, mas, também, nada de miséria. Isto era muito sedutor para quem, nada tendo, já via a bolsa do rico entrar no fundo social, sem calcular que a totalidade das riquezas, postas em comum, criaria uma miséria geral, em vez de uma miséria parcial; que a igualdade hoje estabelecida seria rompida amanhã pela mobilidade da população e pela diferença entre as aptidões; que a igualdade permanente dos bens supõe a igualdade de capacidades e de trabalho. Mas, não é esta a questão; não entra em minhas cogitações examinar o lado positivo e negativo desses sistemas. Faço abstração das impossibilidades que acabo de citar e me proponho considerá-los de um outro ponto de vista que, parece-me, ainda não preocupou a ninguém e que se relaciona com o nosso assunto.

KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862, Grifos meus.

Kardec, como sempre muito lúcido em seus apontamentos, inicia apontando os problemas muito claros que tais “sistemas de reforma social” acarretariam à sociedade. Contudo, não se aprofunda sobre isso, para atacar, em seguida, a temática moral, esta sim muito importante, e demonstrando, uma vez mais, que seus interesses, alinhados ao Espiritismo, não consistiam em destruir, mas em construir:

Os autores, fundadores ou promotores de todos esses sistemas, sem exceção, não tiveram em mira senão a organização da vida material de uma maneira proveitosa a todos. O objetivo é louvável, sem dúvida. Resta saber se, nesse edifício, não falta a única base que poderia consolidá-lo, admitindo-se que fosse praticável.

A comunidade é a abnegação mais completa da personalidade((Um dos princípios do Espiritismo é a relação dos Espíritos para com todos, em contrário do falso princípio da individualidade (N. do E.) )). Cada um devendo dar de si pessoalmente, ela requer o mais absoluto devotamento((O Dever moral era algo muito bem definido pelo Espiritualismo Racional, do qual o Espiritismo é o desenvolvimento(N. do E.) )). Ora, o móvel da abnegação e do devotamento é a caridade, isto é, o amor ao próximo((Caridade desinteressada (N. do E.) )). Mas reconhecemos que o fundamento da caridade é a crença((A caridade, para ser possível, requer consciência, pautada na razão (N. do E.) )); que a falta de crença conduz ao materialismo e o materialismo leva ao egoísmo. Um sistema que, por sua natureza e para sua estabilidade, requer virtudes morais no mais supremo grau, deve tomar seu ponto de partida no elemento espiritual. Pois bem! já que o lado material é o seu objetivo exclusivo((Porque são sistemas baseados nas filosofias materialistas, com origem principal em Aristóteles e reproduzida com muita força por Comte (N. do E.) )), não só o elemento espiritual não é levado em consideração, como vários sistemas são fundados sobre uma doutrina materialista altamente confessada((Vejamos: a imperfeição pode se desenvolver por uma completa inabilidade em lidar com as questões da vida, por falta de entendimento da moral (carência de educação). Ao buscar, por exemplo, a felicidade nas coisas e nas situações da vida, o ser passa a atribuir uma importância descabida aos recursos necessários para fazê-lo. Se não os têm, sente-se infeliz (triste), mas, julgando que a ele também cabe a felicidade, pode julgar que, para satisfazer a isso, lhe seja lícito obtê-la daqueles que têm esses recursos em abundância. É a forma materialista de abordar o tema, reproduzida pela quase totalidade desses sistemas (N. do E.) )), ou sobre o panteísmo, espécie de materialismo disfarçado, verdadeiro adorno do belo nome de fraternidade. Mas a fraternidade, assim como a caridade, não se impõe nem se decreta; é preciso que esteja no coração e não será um sistema que a fará nascer, se lá ela não estiver; caso contrário o sistema ruirá e dará lugar à anarquia.

Ibidem. Idem.

Kardec lançou a semente: as virtudes morais, de onde nasce a fraternidade, não nascem de um sistema. Não podem ser impostas nem decretadas. É preciso nascer do coração.

A experiência aí está para provar que não se sufocam nem as ambições, nem a cupidez. Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa, como se formam obreiros, antes de lhes confiar um trabalho. Antes de construir, é preciso assegurar-se da solidez dos materiais. Aqui os materiais sólidos são os homens de coração, de devotamento e de abnegação. O egoísmo, o amor e a fraternidade são, como já dissemos, palavras vãs; como, então, sob o império do egoísmo, fundar um sistema que requeira a abnegação num grau tanto maior quanto tem, por princípio essencial, a solidariedade de todos para com cada um e de cada um para com todos?

Ibidem. Idem.

Chega a ser incrível não ver, ainda, Kardec ocupar espaço entre os nomes da mais alta filosofia moral. Mas não é só a moral que está esquecida, mas, também, junto a ela, a espiritualidade racional.

Simples e sem adornos linguísticos que só servem para confundir e envaidecer, diz o professor: “Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa”. Sempre, sempre, atacando o cerne da questão, desde seus tempos de juventude, com pouco mais de 20 anos: a educação. Se se deseja mudar a sociedade, é preciso educar desde a infância. Ora, numa sociedade em que não existe educação, mas apenas instrução, que se quer atingir, senão os resultados que somos obrigados a topar, diariamente, mundo afora? Que se pode esperar de indivíduos que são formados, desde os primeiros passos, nas escolas da disputa, da trapaça, da recompensa e do castigo, numa palavra, da heteronomia? Decerto, não serão indivíduos autônomos e fraternos, muito menos caridosos. E, para Kardec,

Sem a caridade, não há instituição humana estável; e não pode haver caridade nem fraternidade possíveis, na verdadeira acepção da palavra, sem a crença((Novamente, Kardec destaca a importância do conhecimento, que alicerça a razão (N. do E.) )). Aplicai-vos, pois a desenvolver esses sentimentos que, engrandecendo-se, destruirão o egoísmo que vos mata. Quando a caridade tiver penetrado as massas, quando se tiver transformado na fé, na religião da maioria, então vossas instituições se tornarão melhores pela força mesma das coisas; os abusos, oriundos do personalismo, desaparecerão. Ensinai, pois, a caridade e, sobretudo, pregai pelo exemplo: é a âncora de salvação da sociedade. Só ela pode realizar o reino do bem na Terra, que é o reino de Deus; sem ela, o que quer que façais, só criareis utopias, das quais só vos resultarão decepções.

Ibidem. Idem.

Não é preciso ir muito mais longe. O pensamento de Kardec é bastante claro e lúcido, e o tomo não como argumento de autoridade , mas porque está de pleno acordo com aquilo que acredito ser a melhor expressão do conhecimento em moral, filosofia e educação, sobretudo no que tange ao progresso sucessivo e autônomo do ser, princípio demonstrado pelo Espiritismo.

Enquanto continuarmos lutando por transformações sociais impostas pela força, e até mesmo pela violência, criaremos apenas utopias e decepções. Vejamos que os exemplos disso, após Kardec, já são vários, e pululam à nossa volta. De certa forma, ele praticamente fez uma previsão daquilo que boa parte do mundo viria enfrentar, no século seguinte, por força dos sistemas e ideologias materialistas que vingam ainda hoje e que, paradoxalmente, são defendidos por expressiva parte do Movimento Espírita, que, em verdade, ainda não entendeu a verdadeira moral do Espiritismo e quer forçar os outros a se modificarem conforme o que agentes externos definem como ideal, e não pela própria consciência, num movimento autônomo e consciente.

Quando se trata de Movimento Espírita, é um disparate ver ideias materialistas defendidas dentro desse meio. Suponhamos, de forma bastante ingênua, que se crie uma lei que obrigue o rico a partilhar das suas riquezas: isso apenas gerará revolta nos Espíritos que tenham a imperfeição da avareza e, na primeira oportunidade, nesta ou em outras vidas, lutarão para restabelecer o poder antes possuído. Isso para não falar nos indivíduos que, acostumados aos vícios diversos, apenas utilizarão dos recursos partilhados para se refestelarem um tanto mais. Não é assim que se modifica uma sociedade.

Sem a caridade, que nasce da compreensão da moral da lei divina e do movimento autônomo em direção ao bem, o homem não constrói senão sobre a areia.




Ciência e Espiritismo: matérias em dimensões opostas?

Obtivemos, recentemente, a seguinte observação de uma correspondente nossa, srta. A…:

A ciência hoje não confirma muito do que acreditamos ser o mundo espiritual e a intervenção no nosso plano. A própria mesa girante já foi acusada de ser apenas resultado do efeito ideomotor e não mensagens dos espíritos. Não temos comprovação científica de muitas coisas e mesmo assim acreditamos nelas. A ciência na época de Kardec evoluiu e não confirmou tudo. Espiritismo, por mais que tenha utilizado o método científico não é comprovado pela ciência, talvez no futuro seja. Mas ainda não é ciência. Podemos chamar de filosofia, religião baseado no método científico. Há coisas que sabemos que não são reais como o nome de quem deu certas mensagens em psicografias e nos é dito para apenas considerar o teor da mensagem dada e ignorar a suposta falsa identidade. Há coisas que preferimos não saber ou aceitamos ser estranhas mesmo. Mas quando vemos essas mesmas coisas em outras doutrinas e em outros grupos acusamos de falta de bom senso e de método científico.

Resumiremos a seguir nossa resposta a tais observações:

A prezada srta. A… disse bem: a ciência DE HOJE e, adicionamos, desde sempre, a ciência materialista, dogmática, não aceitam as constatações que os Espíritos vieram demonstrar. Porém, ainda antes de Kardec, muitos cientistas honestos constataram até mesmo a existência de algo além do corpo material. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em” Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”

Vemos, então, Rivail, educador emérito, anos antes, dizendo, a respeito da educação das crianças que, se fosse bem realizada, evitaria que elas acreditassem em almas do outro mundo ou em fantasmas; que elas não tomariam fogos-fátuos por Espíritos((RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834)). Veja a incrível mudança que se operou em suas ideias – não sem resistência, como podemos constatar no artigo “Pluralidade das existências“, da Revista Espírita de novembro de 1858 – para, já então como Kardec, dizer que “em geral, se faz uma ideia muito falsa do estado dos Espíritos. Eles não são, como alguns pensam, seres vagos e indefinidos, nem chamas, como fogos-fátuos, nem fantasmas, como nos contos de aparições. São seres semelhantes a nós, possuindo um corpo como o nosso, mas fluídico e invisível em estado normal((Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864 > Abril > Resumo da lei dos fenômenos Espíritas))”.

Produziríamos um texto sem fim, buscando reafirmar os inúmeros pontos que demonstram a força da formação do Espiritismo como ciência – ciência, esta, aliás, desenvolvida sobre o Espiritualismo Racional((ver “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, de Paulo Henrique de Figueiredo)) – tarefa que somente pode ser bem desempenhada e alcançada por aquele que, livremente, decida sair de suas pré-concepções e ESTUDAR o Espiritismo, em toda sua formação, o que se encontra facilmente na Revista Espírita e, depois, profundamente estabelecido em antologia, filosofia e moral nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese (em suas versões originais, não adulteradas).

Vê-se que o caminho é longo e somente pode ser trilhado por aquele realmente interessado em sair da heteronomia, que congela o passo, para a autonomia, que nos coloca no comando do leme de nossa própria nau.

Veja, apenas para complementar, que o Espiritismo nasceu como toda ciência que conhecemos: pela observação metodológica e racional de fatos da natureza. Se ela ainda não atingiu o status de ciência reconhecida, não é por culpa sua, mas por conta do grande desvio que tomaram as ciências filosóficas espiritualistas no final do século XIX, que apagaram as luzes do raciocínio sustentado pela moral para nos deixar nas sombras do materialismo aristotélico, que contamina e define nossa sociedade até hoje em dia. Chegamos ao cúmulo de ver a Psicologia esquecida de sua própria definição – o estudo da alma – para olhar o homem apenas sob o ponto de vista behaviorista, materialista. Percebe o fosso que existe entre o ponto de vista atual e as ciências filosóficas, morais, psicológicas e racionais do passado?

O grande erro está em querer definir a ciência pelo entendimento atual, como se fosse apenas aquilo que se faz em laboratório, esquecendo-se de que, ainda hoje, a inferência e a elaboração de ideias através de hipóteses ainda faz parte do método científico. Incrível, então, será constatar que Kardec, corroborando com Mesmer e apoiado pela pesquisa espírita, já havia, naquele tempo, chegado aos conceitos de campo e onda, aproximando-se da Física Moderna((Ver A Gênese, editora FEAL)). Vemos, enfim, que a ciência natural é uma só, subdividida, porém, pelas especialidades dos homens.

Kardec diria, na Revista Espírita de janeiro de 1858:

Talvez nos contestem a denominação de ciência que damos ao Espiritismo. Ele não teria, sem dúvida e em nenhum caso, as características de uma ciência exata e precisamente nisso está o erro dos que o pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um problema de matemática; já é bastante que seja uma ciência filosófica. Toda ciência deve basear-se em fatos, mas estes, por si sós, não constituem a ciência. Ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos: é o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado de ciência? Se se trata de uma ciência acabada, sem dúvida será prematuro responder afirmativamente, mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a ciência.

Quando a senhorita A… diz que “há coisas que preferimos não saber ou aceitamos ser estranhas mesmo”, fala apenas do seu ponto de vista, do qual não fazem parte nossas ideias. Não agimos dessa maneira. Não aceitamos, simplesmente. Pesquisamos, buscamos respostas. Se, realmente, não há respostas, ficamos no aguardo do dia que poderemos obtê-las, através do método científico necessário para estabelecer a comunicação com seres que não podemos julgar de outra forma senão pela razão. Se, hoje, o Movimento Espírita não prima por esse método, ainda uma vez, a culpa não é do Espiritismo, mas das deturpações realizadas no seio doutrinário, mas que, para quem tem boa vontade de estudar, estão sendo rapidamente corrigidas e anuladas, com a consequente restauração do Espiritismo verdadeiro.

Vamos fazer parte desse movimento?




A moral autônoma e a moral heterônoma

Vivemos em um mundo até agora dominado pelos conceitos de heteronomia. Para bem entender esse conceito, precisamos analisar a etimologia da palavra: heteronomia é formada do radical grego “hetero” que significa “diferente”, e “nomos” que significa “lei”, portanto, é a aceitação de normas que não são nossas, mas que reconhecemos como válidas para orientar a nossa consciência que vai discernir o valor moral de nossos atos. Esse entendimento é fundamental, pois entender a moral autônoma faz total diferença no entendimento do Espiritismo.

O mundo heterônomo

No mundo heterônomo, nós atribuímos tudo a algo externo: a culpa está no diabo ou no obsessor, o efeito está na ira divina e a reparação está na imposição carmática. Tudo, absolutamente tudo no mundo heterônomo, vem como imposição externa, através de leis que respeitamos por obrigação, e não por entendimento. E na ausência dela ou de seus atores, nos vemos sem limites e sequer sem amor-próprio.

A heteronomia é algo inerente e talvez mesmo necessário a uma condição de pouco avanço espiritual, quando, sem o entendimento mais profundo dos mecanismos da vida e da evolução, somos forçados a atender, por medo, às imposições de leis divinas, humanizadas, ou mesmo das leis humanas, divinizadas. Infelizmente, como já sabemos, também é algo extensamente utilizado pelas religiões para manter o controle sobre seus fieis. Mas isso é algo que, conforme podemos constatar, vai se modificando conforme o avanço do Espírito humano, tanto em ciência quanto em moralidade.

Um grande problema do conceito da heteronomia, ou, antes, da crença nele, é que ele entrava por certo tempo a evolução do Espírito: ora, se o indivíduo acredita que suas dificuldades na vida são um castigo imposto por Deus, ele apenas aceita seus efeitos, de forma submissa (o que, sim, é importante), mas sem fazer nada para se modificar. Aguarda apenas o fim de suas provações. Nem mesmo a caridade pode ser realmente entendida e praticada em um contexto heterônomo, pois o indivíduo pratica a caridade esperando um retorno, sem entender que ela é uma obrigação moral e natural do ser pensante.

Outro ponto muito problemático é que quando o indivíduo acredita no castigo divino — e, pior ainda, no castigo eterno — é muito comum que perca qualquer limite após cometer um erro. Com certeza o leitor já ouviu inúmeras vezes a afirmação: “já vou para o inferno mesmo, então, um pecado a mais, tanto faz”.

Mas nos enganamos se pensamos que o conceito heterônomo se encontra apenas nas religiões. Infelizmente, mesmo no meio espírita, tal conceito também se infiltrou, sobretudo com a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese, de Allan Kardec. Se hoje ouvimos constantemente, da boca de espíritas, as palavras “carma”, “lei de ação e reação”, “resgate”, isso se dá em grande parte por essas adulterações, passadas de geração em geração e que hoje fazem muitos de nós, espíritas, ainda acreditarmos que o “carma” faz eu renascer nessa vida para “resgatar” um erro passado.

Vejamos bem: é justamente uma das mais sérias adulterações em O Céu e o Inferno que incutiu esse pensamento heterônomo, que atrasa o avanço do Espírito, no seio de uma Doutrina que era totalmente voltada à autonomia do ser. No capítulo VII, item 9 da obra citada, vamos ler: “Toda falta cometida, todo mal realizado é uma divida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, será na seguinte ou seguintes”. Esse item não existia até a morte de Kardec, sendo que só apareceu em novas edições feitas mais de dois anos após a morte do Professor.

Não — insisto em dizer: no Espiritismo não existe carma, nem “lei de ação e reação” e, muito menos, “resgate”. São conceitos que, no fundo, tem o mesmo efeito da crença no castigo divino e na queda pelo pecado, que foram, ambas, ideias superadas pelo Espiritismo.

A Moral Autônoma

Oposta ao conceito da heteronomia, a autonomia (auto — de si mesmo) coloca o indivíduo como peça central em sua evolução. Depende de sua vontade, única e exclusivamente, tanto suas ações, quanto seus pensamentos e os Espíritos atraídos ou repelidos por estes.

No conceito da autonomia, que não nasceu com o Espiritismo, mas que foi por essa Doutrina ampliado — e demonstrado — o Espírito é senhor de si mesmo e de suas escolhas desde o momento em que desenvolve a consciência e, com isso, passa a ter o livre-arbítrio. Escolhe, assim, entre bem e mau, ou melhor, escolhe sobre formas de agir frente às situações e se felicita ou não com seus efeitos. Contudo, quando o efeito é negativo, não significa que está sendo efetivamente castigado por um Deus punitivo, mas sim que está sofrendo as consequências morais de suas ações. E essas consequências morais só existem para o Espírito que já tem consciência de sua existência, razão pela qual os animais, por exemplo, não as tem.

É assim que, avaliando as consequências de nossos atos e, quando mais conscientes, as imperfeições morais que nos levam a cometer erros, nos impomos, a nós mesmos, vidas cheias de provas e de expiações, com o fim de tentar nos livrarmos dessas imperfeições, a partir do aprendizado:

“Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem”, quando desejam conquistar paciência, resignação ou saber agir com poucos recursos. Outros desejam testar se já superaram as paixões inferiores e então “preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar”. Aqueles que lutam contra os abusos que cometeram, “decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício” (O Livro dos Espíritos, p.220).

É claro: ao praticar o mal contra Espíritos Inferiores, teremos uma hipótese quase garantida de recebermos, em troca, a vingança; mas essa vingança, se houver, é efeito da escolha do outro Espírito, e não de uma reação “carmática” de uma suposta “lei de ação e reação” — que, aliás, é uma lei da Física Newtoniana, e não divina. Ao praticar a vingança, o outro Espírito também erra, pois dá margem ao hábito de suas imperfeições e, por isso, pode entrar em um círculo de erro e vingança com o outro que pode durar séculos. Quando isso não ocorre — e esse é o ponto-chave — o efeito é apenas o Espírito que erra permanecer por mais tempo afastado da felicidade dos bons Espíritos, por conta de suas próprias imperfeições.

Não existe “lei de ação e reação” no Espiritismo

Muitas pessoas, apegadas a velhos conceitos do passado, se sentem perplexas com tal afirmação, mas qualquer um que se tenha colocado dedicadamente a estudar o Espiritismo consegue perceber que a moral autônoma, em tudo, é colocada bastante clara aos nossos olhos, através da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos. O que ganhamos ao fazer o bem? Avançaremos mais rápido. E o que sofreremos ao praticar o mal? Ficaremos mais tempo retidos à inferioridade espiritual e à roda das sucessivas encarnações em mundos inferiores.

O Espiritismo nos demonstra que, ao entrarmos no círculo da consciência, passamos a versar sobre nossos próprios destinos, sendo que as provas e as expiações que enfrentamos na atual encarnação se devem às nossas próprias escolhas, realizadas antes de encarnarmos, ainda que muito difíceis, posto que, em estado de Espírito errante (libertos do corpo), avaliamos de forma muito mais clara nossas imperfeições e, assim, escolhemos oportunidades, ainda que sofridas, para aprendermos e nos elevarmos. O Espiritismo, aliás, quando bem compreendido, favorece muito a que tomemos melhores escolhas, pois paramos apenas de desejar a expiação de erros passados, numa mecânica de pecado e castigo, e passamos a escolher oportunidades que nos levem mais a fundo a aprender e a desenvolver melhores hábitos, abafando as imperfeições que tenhamos transformado em hábitos.

Já abordamos um caso bem típico, extraído da Revista Espírita, que trata da questão das escolhas do Espírito quanto às suas provas, tratado por Kardec na evocação do assassino Lemaire, na edição de março de 1858.

Outro caso bastante interessante é o de Antônio B, que, tendo emparedado viva sua esposa na vida anterior, não sabendo lidar com essa culpa, planejou uma encarnação onde terminou enterrado vivo, após ser pensado morto. Acordou no caixão e lá dentro padeceu horrivelmente até sua morte, como se tivesse “pagado” aquela dívida com sua própria consciência. O que realmente interessa nesse caso é que, efetivamente, em vida, foi um homem probo e bom, e não precisaria desse fim trágico para “quitar” qualquer coisa.

Uma prova racional de que não existe tal “lei”: se um Espírito inferior praticar o mal contra um Espírito superior, o que ele receberá em troca? Nada além de compreensão e amor. O próprio exemplo do assassino Lemaire nos demonstra isso. Onde estaria então o retorno? Num outro Espírito que Deus designaria para sua “vingança”, para “cobrar uma dívida”, tornando-o, assim então, também um Espírito em débito para com a Lei?

Não, prezado irmão: não existe retorno senão na constatação, cedo ou tarde, por parte do próprio Espírito, de que ele não é feliz enquanto for imperfeito. Claro, precisamos também lembrar: o Espírito se encontra no meio em que se apraz, e atrai para si os Espíritos de mesma vibração. Portanto, poderá até se sentir alegre, mas jamais será feliz o Espírito que, por suas predisposições, só atrai para si Espíritos inferiores. Nisso também consiste uma espécie de castigo.

A razão explica, conduz e conforta

A maior característica do Espiritismo é ser uma Doutrina científica racional, cuja teoria nasceu da observação lógica dos fatos e dos ensinamentos dos Espíritos. Ora, em se tratando de Deus, qual seria a razão de ele nos punir com castigos, sendo que ele nos criou e sabe que nossos erros nascem de nossas imperfeições? Não há racionalidade nisso. É como se puníssemos nossas crianças por errarem contas de matemática ou por colocarem o dedo na tomada: em ambos os casos, a dor ou a sensação de ficar para trás é a punição em si mesma e, ao adicionarmos a isso uma punição adicional, estamos apenas condicionando o ser a não pensar e apenas a ter medo de errar — e, portanto, a ter o medo de tentar.

Falávamos da razão: pois é por ela, principalmente, que o Espiritismo nos conduz a melhores escolhas evolutivas. Ao entender profundamente a Doutrina, deixamos de fazer escolhas por conta de imposições ou expectativas externas, seja porque “Deus quer”, porque “Jesus espera”, ou porque “o diabo assombra”. Passamos a fazer melhores escolhas, com uma vontade mais ativa, quando entendemos que, quanto mais tempo dermos margem às nossas imperfeições ou à nossa materialidade, mais tempo demoraremos para sair dessa “roda de encarnações” dolorosas e embrutecidas.

Também esse entendimento é um grande remédio contra o suicídio: não mais o vemos com as concepções de pecado e castigo — que ainda são divulgados e defendidos até no meio espírita — mas, sim, com o entendimento racional: se sou Espírito inferior, cheio de imperfeições, significa que a vida é rica oportunidade de aprendizado. Encurtá-la por minha escolha, além de ser uma enorme oportunidade perdida, será apenas perda de tempo, pois me verei, em Espírito, imperfeito como sou, talvez de forma ainda mais escancarada, e terei que voltar e recomeçar uma nova existência para poder aprender e me livrar das imperfeições que me impossibilitam de me tornar mais feliz.

A expiação explicada à luz da Doutrina Espírita

Define assim Kardec, em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, de 1858:

EXPIAÇÃO — pena que sofrem os Espíritos em punição de faltas cometidas durante a vida corpórea. Como sofrimento moral, a expiação se verifica no estado errante; como sofrimento físico, no estado de encarnado. As vicissitudes e os tormentos da vida corpórea são, ao mesmo tempo, provas para o futuro e expiação para o passado.

Parece, por esse texto, que Kardec então defendia que, sim, pagamos na vida atual pelos erros passados? Não exatamente. Não podemos esquecer que, para a Doutrina Espírita, a autonomia, ou o Espírito como ator central de tudo, é a peça-chave de tudo. Portanto, mesmo no caso da expiação, é algo que consiste na escolha do próprio Espírito, com o intuito de buscar superar uma imperfeição adquirida:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Editora FEAL, 2021.

E, para bem entender o uso dos termos castigo e punição, por Allan Kardec, é necessário entender o contexto filosófico do Espiritualismo Racional, no qual ele estava inserido. Já falamos sobre isso no artigo “Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec“.

Contudo, bem sabemos que “os tempos são chegados” e que o planeta Terra deixará, lentamente, de ser um planeta de provas e expiações para ser um mundo de regeneração, onde deverá haver encarnações um pouco mais felizes do que as atuais. Usemos, um momento, a razão para avaliar tudo isso que temos exposto até aqui:

Se a Doutrina Espírita, nos ensinando a moral autônoma, nos traça melhores rumos e melhores escolhas, pensemos: o que ensina mais ao indivíduo? Um sofrimento de mesmo gênero e mesmo grau, como no caso de Antônio B, acima, ou, entendendo as imperfeições que nos levaram a praticar o mal, em primeiro lugar, uma vida cheia de oportunidades, muitas vezes bastante desafiadores e trabalhosas, de exercitarmos o aprendizado e a prática do bem?

Entende onde estamos chegando? Tudo, absolutamente tudo, depende de nossas escolhas frente à nossa capacidade de entendimento consciente de nós mesmos, e, nisso, o estudo do Espiritismo nos alavanca em vários degraus.

É por isso que o mundo vai deixar de ser um mundo de provas e expiações: porque os Espíritos que aqui encarnam passarão a escolher melhor suas encarnações, deixando de aplicar a si mesmos a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para, então, cuidarem de desenvolver hábitos morais mais saudáveis. Até nisso contatamos que tudo parte do indivíduo para fora, e não o contrário.

Conclusão

Portanto, irmãos, avante: estudemos o Espiritismo de forma aprofundada e, hoje sabendo das adulterações em O Céu e o Inferno e A Gênese, estudemos as versões originais (já disponibilizadas pela FEAL) de modo a não mais perdermos tempo com conceitos heterônomos e, sobretudo, de modo a não mais repetirmos, no meio Espírita, as lastimáveis afirmações como aquelas que dizem que “fulano nasceu com problemas mentais porque está pagando por um erro na vida passada”. Isso, além de ser um erro absurdo, afasta as pessoas do Espiritismo.

Veja um exemplo:

Pasmemos: essa frase não é de Kardec. Nem parece ser sua, nem pode ser encontrada em NENHUMA de suas obras. Essa é uma prova a mais do quanto o Espiritismo foi invadido por falsas ideias, quase sempre antidoutrinárias.

Nossas provas são ricas oportunidades, quase sempre escolhidas por nós mesmos, sendo impostas apenas nos casos em que não temos condições conscienciais para tais escolhas e, mesmo assim, se dão por ação de benevolência de Espíritos superiores, e não como castigo divino.

A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).

O maior castigo que há está em continuarmos por eras incontáveis nos arrastando na lama de nossas imperfeições. Isso já é o bastante.


Nota: o nome do artigo vem do texto de mesmo título, que serviu de inspiração a este, do livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Sugestões de estudos

Sugerimos ao leitor os seguintes conteúdos complementares:




O silêncio do Movimento Espírita ante os temas sociais

Muitos tem falado num silêncio que o Movimento Espírita precisaria romper com relação à política. Devemos lembrar, é claro, que o silêncio do Movimento Espírita não se reflete tão-somente ao cunho político, mas é um silêncio generalizado ante à própria Doutrina, que recentemente se agita sob os estudos das obras originais de Kardec e das obras que retomam conhecimentos esquecidos no tempo.

É, claro que, no que tange à política, nós jamais estaremos apoiando quem quer que vise ligar o Espiritismo às ideologias, sobretudo quando essas ideologias não se pautam pelas ideias que expressaremos a seguir.

São várias as iniciativas que estão buscando se contraporem ao silêncio citado. Somente de grupos de estudos, conhecemos três ou quatro bastante fortalecidos, além dos papéis dos pesquisadores atuais, dentro os quais não é possível deixar de destacar Paulo Henrique de Figueiredo, em seu extenuado trabalho de recuperação das informações desconhecidas, principalmente aquelas relativas à moral autônoma e ao espiritualismo racional, bem como no trabalho tão importante que é retomar as obras originais de Kardec, não adulteradas.

Pois bem: esse trabalho, que prima pela questão da autonomia, toma por base inquestionável o poder de escolha autônoma que o Espírito deve ter. Não faltariam as citações, na obra de Kardec, dele e de Espíritos diversos, a esse respeito: o Espírito, para se modificar realmente, precisa agir por sua livre vontade e pela razão, sendo que esta dá base à outra. Não existe nenhuma iniciativa, política ou não, que tenha obtido sucesso em qualquer mudança social, duradoura e real, por menor que ela seja, com base na autoridade, apenas. É por isso que vejo sempre com muito cuidado o assunto da política atrelado a qualquer pensamento espírita: ele deveria, inexoravelmente, ser pautado pelo princípio da moral, aplicada às relações, desde os primeiros passos da criança sobre este planeta.

Não canso de destacar, e esta será sempre minha bandeira, após compreender o Espiritismo em sua essência: a transformação social somente se dará pela transformação do indivíduo, através da educação familiar e escolar. É para isso que precisamos voltar TODOS os nossos esforços, dentro e fora da política, sendo que o último seria um meio eficaz para fazer retornar à sociedade a moral pautada pelo Espiritualismo Racional, que compreende e distingue a diferença entre felicidade e infelicidade, que são características dos avanços da alma em direção ao bem, das emoções e dos prazeres, que são puramente materiais. É esse o entendimento que falta. O homem deixará de viver sob as pontes quando ele entender que depende de si mesmo, e de ninguém mais, seu progresso, e quando os demais compreenderem que a caridade é um dever moral e desinteressado, indo muito além da esmola que humilha as partes.

Voltemos nossas inteligências a esse propósito, prezados irmãos! As crianças continuam se tornando jovens e adultos repletos de imperfeições adquiridas, ou daquelas não corrigidas, em grande parte puramente pelos maus hábitos da educação, simplesmente porque ninguém está atento à necessidade urgente de chamar à razão a família e todos os funcionários da educação, pública e particular. Kardec via com olhos radiantes o futuro, porque acreditava que o modelo educacional, pautado pelo Espiritualismo Racional, continuaria a florescer e a se espalhar… Mas o apagar das luzes do século dezenove também jogaram nas sombras as filosofias que elevavam a alma acima da puerilidade da matéria.

Precisamos retroceder e entender Rousseau, Pestalozzi, Rivail, Biran, Janet e tantos outros livres-pensadores que jamais desejaram provocar as mudanças pela força, pois cedo perceberam que ela, em realidade, apenas produz agastamento e irritação. Diria Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública”:

“A criança irritada, e não persuadida, se submete somente à força; nada lhe prova que ela agiu mal; ela sabe apenas que não agiu conforme a vontade do mestre; e esta vontade ele a considera, não como justa e razoável, mas como um capricho e uma tirania; ela se acredita sempre submetida ao arbítrio. Como se faz com que ela sinta comumente mais a superioridade física do que a superioridade moral, ela espera com impaciência ter ela própria bastante força para se subtrair a isso; daí este espírito hostil que reina entre os mestres e os seus alunos.”

Assim será, porque assim é, em qualquer aspecto do Espírito. Rivail não pensava nisso, quando escreveu essa obra, mas nós hoje sabemos, como ele veio a saber depois: a criança está animada do mesmo Espírito do adulto, apenas pouco mais limitado em suas percepções e capacidades. É o seu Espírito, portanto, e não seu corpo, que não se submete à força. Lembremos disso.

Paulo Degering Rosa Junior