O Desvio do Movimento Espírita Brasileiro: A Influência do Roustainguismo e Suas Consequências

O Movimento Espírita Brasileiro possui uma característica singular: ele foi profundamente influenciado pela obra de Jean-Baptiste Roustaing, especialmente após Bezerra de Menezes assumir a presidência da Federação Espírita Brasileira (FEB) em 1895. Essa influência trouxe para o Espiritismo brasileiro uma interpretação que diverge dos ensinamentos organizados por Allan Kardec, imprimindo uma visão mística e cristã tradicional que contrasta com a proposta original de uma doutrina científica e filosófica.

A Doutrina Espírita e Seu Método de Controle

Allan Kardec, em sua missão de organizar os ensinamentos dos espíritos, desenvolveu um método rigoroso de análise e controle, conhecido como “controle universal dos espíritos”. Esse método visava garantir a coerência e a autenticidade das mensagens espirituais: apenas ensinamentos validados por várias comunicações, em diferentes locais e com lógica e moralidade consistentes, eram aceitos. O objetivo era proteger o Espiritismo contra ilusões, falsidades e interpretações incoerentes, assegurando que a doutrina permanecesse fundamentada em princípios racionais e universais.

Na Doutrina Espírita organizada por Kardec, os espíritos evoluem de forma contínua e natural, sem a ideia de uma “queda inicial” ou expiação pelo “pecado original”. A encarnação é vista como um processo de aprendizado e progresso, sem a necessidade de justificativas religiosas tradicionais.

Roustaing e a Introdução de uma Visão Mística

Jean-Baptiste Roustaing, por outro lado, introduziu uma interpretação divergente do Espiritismo. Em sua obra Os Quatro Evangelhos, ele propõe conceitos que incluem a teoria de um “corpo fluídico” de Jesus e a ideia de uma “queda original dos espíritos”, aproximando-se de uma visão espiritualizada dos Evangelhos que se assemelha a doutrinas místicas e cristãs tradicionais. Diferente de Kardec, Roustaing não aplicou o método de controle universal, aceitando comunicações mediúnicas que recebeu por meio de uma única médium, Émilie Collignon, o que trouxe um conjunto de ideias que contrastam com os princípios doutrinários do Espiritismo.

Quando Bezerra de Menezes assumiu a FEB, ele introduziu a obra de Roustaing no movimento, promovendo Os Quatro Evangelhos como uma espécie de interpretação oficial da Doutrina Espírita no Brasil. Com isso, a FEB passou a enfatizar uma visão religiosa e cristã, introduzindo a ideia de um “papel messiânico” do Brasil como “Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”. Essa interpretação é visível na obra homônima, atribuída ao espírito Humberto de Campos e psicografada por Chico Xavier, que descreve o Brasil como o país escolhido para liderar a regeneração espiritual da humanidade.

O Desvio do Espiritismo no Brasil

A promoção do roustainguismo dentro da FEB teve consequências duradouras para o Movimento Espírita Brasileiro. Com o tempo, a ênfase no misticismo e em interpretações messiânicas levou a uma aceitação menos crítica das comunicações dos espíritos, sem o rigor analítico defendido por Kardec. Obras com interpretações místicas e nacionalistas, como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, foram amplamente aceitas, apesar de contradizerem o universalismo imparcial e a objetividade da Doutrina Espírita original.

Essa influência fez com que o Espiritismo brasileiro adquirisse um caráter religioso e místico, distanciando-se dos princípios de investigação e análise científica. Ao invés de uma doutrina racional, centrada no progresso e aprendizado contínuo dos espíritos, o Movimento Espírita Brasileiro adotou elementos que carregam uma visão espiritualizada do Evangelho, transformando a doutrina em algo híbrido, misturando conceitos espiritistas e dogmas religiosos.

Conclusão

O impacto do roustainguismo no Movimento Espírita Brasileiro resultou em um desvio que trouxe ideias místicas e religiosas para dentro da doutrina, afastando-a da proposta original de Allan Kardec. A FEB, sob a influência de Bezerra de Menezes e dos adeptos de Roustaing, adotou práticas que contradizem o método científico e filosófico da Doutrina Espírita, levando o movimento a aceitar comunicações sem o rigor analítico necessário e a promover interpretações que distorcem a essência racional do Espiritismo.

Esse desvio continua sendo um tema de debate e reflexão entre os estudiosos e praticantes do Espiritismo no Brasil, pois levanta questões sobre a fidelidade e a preservação dos princípios que Kardec estabeleceu como fundamentos da doutrina.




A distância entre o Espiritismo e o Movimento Espírita

Uma correspondente questionou a respeito do que seria essa suposta distância, por nós sempre afirmada, entre a Doutrina Espírita e o Movimento Espírita.

A ela, podemos responder desta forma, para exemplificar para todos:

“B…, isso é algo que cada um precisa realmente estudar ou buscar se informar, principalmente sobre as obras citadas ((

  • No sentido das alterações doutrinarias: O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; Nem Céu Nem Inferno, de Paulo Henrique de Figueiredo; Ponto Final, de Wilson Garcia
  • No sentido do conhecimento sobre o contexto doutrinário: Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo;
  • No entendimento real da Doutrina, na essência proposta por Kardec, através dos estudos: O Céu e o Inferno e A Gênese, ambos da editora FEAL, pois os outros são as versões adulteradas, ainda.)) , porque compreender e, daí, assumir novo posicionamento, precisa ser uma ação autônoma. Contudo, posso ressaltar algumas diferenças capitais entre Doutrina Espírita (DE) e Movimento Espírita atual (ME):

  • Evocações dos espíritos: DE foi formada sobre elas e demonstrou a necessidade de serem realizadas, com método, para continuar seu desenvolvimento; ME recomenda não fazer, provocando uma onda de médiuns que ficam apenas “à disposição”, portanto, sem controle nem objetivo de aprendizado.
  • Generalidade do ensino: DE demonstrou a necessidade de desenvolver o estudo espírita através do método do duplo controle: universalidade e concordância do ensino e julgamento racional; ME, contagiada por Roustaing, que via um perigo nesse método (que desmentiria suas teorias), passou a tomar comunicações isoladas como expressão da verdade, sem raciocinar.
  • Vida do Espírito na erraticidade: DE demonstrou que emoções e sensações físicas somente existem para o Espírito apegado; ME passou a ensinar um mundo espiritual totalmente materializado, criando, assim, ideias de apego nocivas ao Espírito que desencarna.
  • Necessidade da encarnação: DE demonstrou que a encarnação é uma necessidade para o progresso do Espírito, na qual ele, mesmo que involuntariamente, faz seu papel solidário na criação. Afastou os conceitos de castigo e punição como uma ação arbitrária de Deus, demonstrando que tudo é fruto da escolha do Espírito consciente; ME, sob influência roustainguista, inseriu os falsos conceitos de carma, resgate, lei de ação e reação e lei do retorno.
  • Heteronomia x autonomia: DE demonstrou, em toda ela, que o Espírito se desenvolve de forma autônoma, sendo ele o autor primeiro, senão o único, de suas escolhas; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da vida de forma heterônoma – se sofro é porque estou recebendo o retorno; se tenho alegria é porque fui abençoado, etc.
  • Caridade: DE demonstrou que a caridade é uma ação desinteressada, fruto do dever do Espírito que, conscientemente, se move em direção ao bem; ME passou a tratar da caridade como uma ação externa, quase sempre apenas material. Por ausência de estudos da DE, ME deixa de fazer o bem que poderia fazer para auxiliar no desenvolvimento da sociedade pelas ideias espíritas.
  • Moral: DE demonstrou que, todos criados simples e ignorantes, os Espíritos se desenvolvem errando e acertando, através das encarnações, escolhendo entre agir desta ou daquela forma. Não há dualidade entre bem e mal. Alguns escolhem repetir o erro, desenvolvendo imperfeições das quais muito custarão a se desvencilhar, através do trabalho reencarnatório, em uma ação consciente e autônoma; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da encarnação como um castigo, como se todos os Espíritos que encarnam fossem imperfeitos.
  • Método: DE sempre demonstrou a forma como ela própria se desenvolveria: pelo estudo das ciências humanas, confrontadas, pela razão, com os ensinamentos espíritas, na troca de informações com grupos idôneos espalhados por todo o mundo; já a ME praticamente não estuda os fundamentos da DE, se isolou nos centros em rotinas que compreendem: monólogos, quase sempre recheados de todos os erros apontados anteriormente; passes, sem conhecimento do magnetismo; e sessões mediúnicas que, sem método e sem estudos, perdem o propósito e a utilidade que realmente poderiam ter.

E por aí vai.”

Vemos que as diferenças entre a Doutrina Espírita, em sua origem, e o que hoje professa ou acredita o Movimento Espírita, são profundas e, quase sempre, danosas à propagação da Doutrina. Cabe, portanto, o esforço voluntário de cada um no estudo honesto e desapegado, bem como na divulgação fraterna e cooperativa do conhecimento.

Complementando as obras citadas, não podemos deixar de apontar a necessidade do estudo da Revista Espírita, que demonstra como se deu a formação da Doutrina Espírita.