Morte de Luís XI (Do manuscrito ditado por este à Srta. Hermance Dufaux)

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > Morte de Luís XI (Do manuscrito ditado por este à Srta. Hermance Dufaux)

NOTA: Chamamos a atenção do leitor para as observações feitas sobre estas notáveis comunicações, em nosso artigo de março último.

Não me sentindo bastante firme para ouvir pronunciar o vocábulo morte, muitas vezes eu havia recomendado a meus oficiais que apenas me dissessem, quando me vissem em perigo: “Falai pouco”, e eu saberia o que isto significava.

Quando não restavam mais esperanças, Olivier le Daim me disse duramente, em presença de Francisco de Paula e de Coittier:

─ Majestade, temos que desobrigar-nos de um dever. Não tenhais mais esperança neste santo homem, nem em qualquer outro, porque chegais ao fim. Pensai em vossa consciência. Não há mais remédio.

A estas palavras cruéis operou-se em mim uma revolução completa. Eu já não me sentia o mesmo homem e admirava-me de mim mesmo. O passado desenrolou-se rapidamente a meus olhos e as coisas me apareceram sob um aspecto novo. Um não sei que de estranho se passava em mim. Fixando-me, o duro olhar de Olivier le Daim parecia interrogar-me. Para me subtrair a esse olhar frio e inquisidor, respondi com aparente tranquilidade:

─ Espero que Deus me ajude. É possível, talvez, que eu não esteja tão mal quanto pensais.

Luís XI
Luís XI

O monarca dita suas últimas vontades

Ditei minhas últimas vontades e mandei para junto do jovem rei aqueles que ainda me rodeavam. Vi-me só com o meu confessor, Francisco de Paula, le Daim e Coittier. Francisco me fez uma tocante exortação. Parece que a cada uma de suas palavras apagavam-se-me os vícios e a natureza retomava o seu curso. Senti-me aliviado e comecei a recobrar um pouco de esperança na clemência de Deus.

Recebi os últimos sacramentos com uma piedade firme e resignada. A cada instante repetia: “Nossa Senhora de Embrun [1], minha boa Senhora, ajudai-me!”

Terça-feira, 30 de agosto, pelas sete horas da noite, caí em nova prostração. Todos os presentes me julgaram morto e se retiraram. Olivier le Daim e Coittier, sentindo a execração pública, haviam ficado junto ao meu leito, já que não tinham alternativa.

Em breve recuperei completamente a consciência. Ergui-me, sentei-me na cama e olhei em torno. Não havia ninguém de minha família; nenhuma mão amiga procurava a minha, nesse supremo instante, para suavizar a minha agonia num último contato. Àquela hora talvez meus filhos brincassem enquanto seu pai morria. Ninguém pensou que o culpado ainda podia contar com um coração que compreendesse o seu. Procurei ouvir um soluço abafado e só ouvi as risadas dos dois miseráveis que estavam junto de mim.

Divisei a um canto a minha galga favorita, que morria de velha. Meu coração pulsou de alegria, pois eu tinha um amigo, um ser que me estimava.

Fiz-lhe um sinal com a mão. A lebreira arrastou-se com esforço até junto ao leito e veio lamber-me a mão agonizante. Olivier percebeu esse movimento; levantou-se de um salto, praguejando, e esbordoou a infeliz cadela com um bastão até matá-la. Expirando, meu único amigo lançou-me um longo e doloroso olhar.

Olivier empurrou-me violentamente sobre o leito. Deixei-me cair e entreguei a Deus a minha alma culposa.

[1] Embrun é uma antiquíssima cidade do sul da França, situada na Bacia do Ródano, na Provença. Seu antigo nome latino era Ebraduno. Tem cerca de 4.000 habitantes.




Espíritos herdeiros

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > Os Espíritos herdeiros

Um de nossos assinantes de Haia, Holanda, comunica-nos o fato que se segue, ocorrido num grupo de amigos que se ocupavam com as manifestações espíritas. Isto prova, diz ele, mais uma vez, e sem contestação possível, a existência de um elemento inteligente e invisível, agindo individual e diretamente sobre nós.

Os Espíritos se anunciam movendo uma pesada mesa e dando pancadas. Perguntamos pelos nomes: são os finados Sr. e Sra. G…, muito afortunados durante a existência. O marido, do qual provinha a fortuna, não tinha filhos e deserdou os parentes próximos em favor da família da mulher, falecida pouco antes dele. Entre as nove pessoas presentes à sessão estavam duas senhoras deserdadas, bem como o marido de uma delas.

O Sr. G… fora sempre um pobre diabo e um criado humilde da esposa. Depois da morte dela, sua família instalou-se em sua casa, para cuidar dele. O testamento foi feito com um atestado médico, declarando que o moribundo gozava da plenitude de suas faculdades.

O marido da senhora deserdada, que designaremos R… tomou a palavra nestes termos: “Como ousais apresentar-vos aqui, depois do escandaloso testamento que fizestes?” Depois, exaltando-se cada vez mais, acabou por lhe dizer injúrias. Então a mesa deu um salto e atirou a lâmpada com força na cabeça do interlocutor. Esse lhes pediu desculpas por aquele primeiro impulso de cólera e lhes perguntou o que vinham ali fazer.

─ Vimos dar-vos conta dos motivos de nossa conduta.

(As respostas eram dadas por meio de pancadas indicando as letras do alfabeto).

Os herdeiros manifestam-se
Os Espíritos anunciam-se aos herdeiros movendo uma pesada mesa e dando pancadas.

Herdeiros e acompanhantes manifestam-se

Conhecendo a inépcia do marido, o Sr. R… lhe disse bruscamente que devia retirar-se e que escutaria apenas a sua esposa.

Então o Espírito da Sra. G… disse que a Sra. R… e sua irmã eram bastante ricas e podiam privar-se de sua parte da herança; que outros eram maus, e que outros, enfim, deveriam sofrer aquela prova; que por tais motivos aquela fortuna convinhamais à sua própria família. O Sr. R… não se satisfez com a explicação e despejou sua cólera em reproches injuriosos. Então a mesa agitou-se violentamente, pulou, bateu fortes pancadas no soalho e atirou mais uma vez a lâmpada sobre o Sr. R… Depois de acalmar-se, o Espírito tentou persuadir que após a sua morte tinha sido informado de que o testamento fora ditado por um Espírito superior. O Sr. R… e as senhoras, vendo a inutilidade de uma contestação, perdoaram-no sinceramente. Logo a mesa se elevou ao lado do Sr. R… e pousou brandamente junto a seu peito, como que para abraçá-lo. As duas senhoras receberam a mesma demonstração de agradecimento. A mesa tinha uma vibração muito pronunciada. Restabelecido o entendimento, o Espírito lamentou a herdeira atual, dizendo que ela acabaria louca.

Ainda o Sr. R… o censurou, mas afetuosamente, por não haver feito o bem em vida, quando dispunha de tão grande fortuna, acrescentando que ela não era chorada por ninguém. “Sim, respondeu o Espírito; há uma pobre viúva, residente na rua… que algumas vezes pensa em mim, porque algumas vezes lhe dei alimento, roupa e aquecimento.”

Como o Espírito não houvesse dado o nome da pobre mulher, um dos assistentes a procurou, encontrando-a no endereço indicado. E o que não é menos digno de registro é que depois da morte da Sra. G…, ela havia mudado de domicílio. Este último é o que foi indicado pelo Espírito.

Leia também: Palestras familiares de além-túmulo: o Espírito de Mozart.

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As metades eternas ou “as almas gêmeas”

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > As metades eternas

A carta endereçada à Revista Espírita

A passagem que se segue foi extraída da carta de um dos nossos assinantes.

“…Perdi, há alguns anos, uma esposa boa e virtuosa e, embora me houvesse deixado seis filhos, sentia-me em completo isolamento, quando ouvi falar de manifestações espíritas. Em breve eu me encontrava num pequeno grupo de bons amigos, que todas as noites se ocupavam desse assunto. Aprendi, então, através das comunicações obtidas, que a verdadeira vida não está na Terra, mas no mundo dos Espíritos; que a minha Clemência ali era feliz e que, como outras, trabalhava pela felicidade dos que aqui havia conhecido.

“Ora, eis um ponto sobre o qual desejo ardentemente que me esclareçais.

“Uma noite eu dizia à minha Clemência: Minha cara amiga, por que, a despeito do nosso amor, acontece que nem sempre tivemos o mesmo ponto de vista nas diversas circunstâncias de nossa vida comum, e por que tantas vezes fomos obrigados a concessões recíprocas a fim de vivermos em boa harmonia? “Ela me respondeu:

─ “Meu amigo, nós éramos bons e honestos; vivemos juntos e, poderíamos dizer, do melhor modo possível, nessa Terra de provas, mas não éramos nossas metades eternas. Tais uniões são raras na Terra. Embora possam ser encontradas, representam um grande favor de Deus. Aqueles que desfrutam dessa felicidade experimentam alegrias que desconheces.

─ “Podes dizer-me se vês a tua metade eterna?

─ “Sim, respondeu ela. É um pobre diabo que vive na Ásia; poderá unir-se a mim só daqui a 175 anos, segundo a vossa maneira de contar.

─ “Vossa união será na Terra ou em outro mundo?

─ “Na Terra. Mas, escuta: eu não te posso descrever bem a felicidade dos seres assim reunidos. Pedirei a Heloísa e a Abelardo que te venham informar.

“Então, senhor, esses entes felizes vieram nos falar dessa indizível felicidade.

─ “À nossa vontade”, disseram eles, “dois não fazem mais que um. Viajamos pelo espaço; gozamos de tudo; amamo-nos com um amor sem fim, acima do qual só existe o amor de Deus e dos seres perfeitos. Vossas maiores alegrias não valem um só de nossos olhares e de nossos apertos de mão.”
“Alegra-me o pensamento das metades eternas. Parece que Deus, criando a Humanidade, a fez dupla e, separando as duas metades da mesma alma, lhes disse: Ide por esse mundo e procurai encarnações. Se fizerdes o bem, a viagem será curta e permitirei a vossa união. Do contrário, passar-se-ão séculos antes que possais gozar dessa felicidade. Tal é, ao que me parece, a causa primeira do movimento instintivo que arrasta a Humanidade em busca da felicidade, essa felicidade que a gente não compreende nem se empenha em compreender.

“Desejo ardentemente, senhor, um esclarecimento sobre esta teoria das metades eternas e sentir-me-ia feliz se tivesse uma explicação sobre o assunto num dos vossos próximos números…”

metades eternas
Kardec também publicava cartas de seus assinantes na Revista Espírita.

A contra-argumentação da carta

Interrogados sobre a matéria, Abelardo e Heloísa nos deram as respostas seguintes:

1. ─ As almas foram criadas duplas?

─ Se tivessem sido criadas duplas, simples elas seriam imperfeitas.

2. ─ É possível que duas almas possam reunir-se na eternidade, formando um todo?

─ Não.

3. ─ Você e sua Heloísa formam, desde a origem, duas almas perfeitamente distintas?

─ Sim.

4. ─ Ainda agora sois duas almas distintas?

─ Sim, mas sempre unidas.

5. ─ Os homens acham-se todos nas mesmas condições?

─ Conforme sejam mais ou menos perfeitos.

6. ─ As almas são todas destinadas a se unirem, um dia, a uma outra alma?

─ Cada Espírito tende a procurar um outro Espírito que lhe seja semelhante. É o que chamais de simpatia.

7. ─ Nessa união existe uma condição de sexo?

─ As almas não têm sexo.

São Luís opina sobre metades eternas

Tanto para satisfazer o desejo de nosso assinante quanto para nossa própria instrução, dirigimos ao Espírito de São Luís as perguntas que seguem:

1 ─ As almas que se devem unir estão predestinadas, desde a origem, a essa união e cada um de nós tem, em qualquer parte do Universo, a sua metade, à qual deverá um dia unir-se fatalmente?

─ Não. Não existe uma união particular e fatal de duas almas. Existe a união entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a posição que ocupam, isto é, segundo a perfeição adquirida: quanto mais perfeitos, mais unidos. Da discórdia brotam todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.

2 ─ Em que sentido devemos entender o vocábulo metade, de que se servem por vezes alguns Espíritos para a designação dos Espíritos simpáticos?

─ A expressão é inexata. Se um Espírito fosse metade de outro, dele separado, seria incompleto.

3 ─ Uma vez unidos, dois Espíritos perfeitamente simpáticos permanecem unidos para a eternidade ou podem separar-se e unir-se a outros Espíritos?

─ Todos os Espíritos estão unidos entre si. Falo dos que chegaram à perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva, não é mais simpático àqueles que deixou.

4 ─ Dois Espíritos simpáticos são o complemento um do outro ou essa simpatia é o resultado de uma perfeita identidade?

─ A simpatia que atrai um Espírito para outro resulta da perfeita concordância de suas inclinações e de seus instintos. Se um devesse completar o outro, perderia sua individualidade.

5 ─ A identidade necessária à simpatia perfeita consistiria apenas na similitude de pensamentos e de sentimentos, ou também na uniformidade de conhecimentos adquiridos?

─ Na igualdade do grau de elevação.

6 ─ Os Espíritos que hoje não são simpáticos poderão sê-lo mais tarde?

─ Sim, todos o serão. Assim, o Espírito que hoje se acha em esfera inferior alcançará, pelo aperfeiçoamento, a esfera onde reside um outro. Seu encontro dar-se a mais prontamente se o Espírito mais elevado, suportando mal as provas a que se submeteu, permanecer no mesmo estado.

7 ─ Dois Espíritos simpáticos poderão deixar de sê-lo?

─ Por certo, se um deles for preguiçoso.

Estas respostas resolvem perfeitamente a questão.

A teoria das metades eternas é uma figura referente à união de dois Espíritos simpáticos; é uma expressão usada mesmo na linguagem comum, tratando-se dos esposos, e que não se deve tomar ao pé da letra. Os Espíritos que dela se serviram certamente não pertencem à mais alta ordem. A esfera de seus conhecimentos é necessariamente limitada. Eles exprimiram o seu pensamento com as palavras de que se teriam servido na vida corpórea. É, pois, necessário rejeitar esta ideia de que dois Espíritos, criados um para o outro, um dia deverão unir-se na eternidade, depois de terem estado separados durante um lapso de tempo mais ou menos longo.




Problemas morais – Perguntas dirigidas a São Luís

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > Problemas morais – Perguntas dirigidas a São Luís

Pergunta 1: opulência e trabalho

 ─ De dois homens ricos, o primeiro nasceu na opulência e jamais conheceu a necessidade; o segundo deve a fortuna ao próprio trabalho. Ambos a empregam exclusivamente na satisfação pessoal. Qual deles é o mais culpável?

Resposta

─ O que conheceu o sofrimento. Ele sabe o que é sofrer.

Pergunta 2: acumulação de bens sem fazer o bem

─ Aquele que acumula continuamente, sem fazer o bem a ninguém, terá uma desculpa aceitável na ideia de acumular para deixar bastante aos filhos?

Resposta

─ É um compromisso com a consciência má.

São Luís de França

Pergunta 3: os avarentos recebem conforme suas obras

─ De dois avarentos, o primeiro se priva do necessário e morre de privações sobre o seu tesouro; o segundo só é avarento para com os outros: é pródigo para consigo mesmo. Enquanto foge ao menor sacrifício a fim de prestar um obséquio ou fazer algo de útil, não põe limite aos seus prazeres pessoais. Aborrece-se quando lhe pedem um favor; quer entregar-se aos seus caprichos, que nunca lhe faltam. Qual o mais culpado e qual deles terá o pior lugar no mundo dos Espíritos?

Resposta

─ O que goza. O outro já recebeu a sua punição.

Pergunta 4: pode-se utilizar a fortuna para o bem após a morte?

─ Aquele que em vida não empregou utilmente a sua fortuna encontra alívio em fazer o bem após a morte, pelo destino que lhe dá?

Resposta

─ Não. O bem vale o que custa.




O orgulho – Ditada por São Luis

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > O orgulho – Dissertação moral ditada por São Luis à Srta. Hermance Dufaux

Caso I – O orgulho e a humildade

Um homem soberbo possuía algumas jeiras (medida agrária com 0,2 hectare) de boa terra. Sentia-se orgulhoso das pesadas espigas que cobriam o seu campo e lançava o olhar desdenhoso sobre o campo estéril do humilde. Esse levantava-se ao cantar do galo e ficava o dia todo curvado sobre o solo ingrato; recolhia pacientemente os seixos e ia atirá-los à beira do caminho; revolvia profundamente a terra e arrancava com dificuldade os espinheiros que a cobriam. Ora, seu suor fecundou o campo e ele colheu o melhor trigo.

Entretanto, o joio crescia no campo do homem soberbo e abafava o trigo, enquanto o dono se vangloriava de sua fecundidade e olhava com piedade os esforços silenciosos do humilde.

Em verdade vos digo que o orgulho é semelhante ao joio que afoga o bom grão. Aquele dentre vós que se julga mais que seu irmão e que se vangloria, é insensato. Sábio é o que trabalha por si mesmo, como o humilde em seu campo, sem se envaidecer de sua obra.

Srta. Ermance Dufaux
Srta. Ermance Dufaux

Caso II – O homem rico e o pobre lenhador

Havia um homem rico e poderoso que desfrutava o favor do príncipe. Morava em palácios e numerosos servos esforçavam-se por adivinhar-lhe os desejos.

Um dia em que suas matilhas acuavam um cervo nas profundezas da floresta, ele avistou um pobre lenhador vergando ao peso de um feixe de lenha. Chamou-o e lhe disse:

─ Vil escravo! Por que passas pelo caminho sem te inclinares perante mim? Sou igual ao Senhor: nos conselhos minha voz decide a paz e a guerra, e os grandes do reino curvam-se em minha presença. Saiba que sou sábio entre os sábios, poderoso entre os poderosos, grande entre os grandes e minha elevação é obra de minhas mãos.

─ “Senhor! ─ respondeu o pobre homem ─ temi que minha saudação humilde vos fosse uma ofensa. Sou pobre e o único bem que possuo são os meus braços, mas não desejo vossas grandezas enganosas. Durmo o meu sono e não temo, como vós, que o prazer do senhor me faça cair em minha obscuridade.

Ora, o príncipe entediou-se do orgulho da soberba. Os grandes humilhados ergueram-se contra ele, que foi precipitado do pináculo de seu poder, como uma folha seca que o vento varre do cume da montanha. Mas o humilde continuou pacificamente seu rude trabalho, sem preocupação pelo dia seguinte.

Caso III – O soberbo

Soberbo, humilha-te, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até a poeira!

Escuta! Nasceste onde te lançou a sorte; saíste do seio materno fraco e nu como o último dos homens. Por que levantas a fronte mais alto que os teus semelhantes, tu que como eles nasceste para a dor para a morte?

Escuta! Tuas riquezas e tuas grandezas, vaidades das vaidades, escaparão de tuas mãos quando vier o grande dia, como as águas inconstantes da torrente que o sol evapora. Não levarás de tuas riquezas mais que as tábuas do esquife, e os títulos gravados na lápide funerária serão palavras vazias de sentido.

Escuta! O cão do coveiro brincará com os teus ossos, e eles serão misturados aos do mendigo; a tua poeira confundir-se-á com a dele, porque um dia vós ambos sereis apenas pó. Então amaldiçoarás os dons que recebeste, quando vires o mendigo revestido de sua glória, e chorarás o teu orgulho.

Humilha-te, soberbo, porque a mão do Senhor curvará o teu orgulho até o pó.

As parábolas

Por que São Luís nos fala em parábolas?

─ Parece que hoje a lição nos deve ser dada de maneira mais direta, sem termos que recorrer à alegoria.

─ O Espírito humano gosta do mistério. A lição se grava melhor no coração quando nós a procuramos.

─ Encontrá-la-eis no desenvolvimento. Desejo ser lido, e a moral necessita de um disfarce sob a atração do prazer.




Considerações sobre o Espírito batedor de Bergzabern

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — Maio de 1858 > Considerações sobre o Espírito batedor de Bergzabern

Allan Kardec continua o assunto do post anterior sobre o Espírito batedor com novos fatos. Ele pareceu não querer estender o anterior e prosseguiu seu texto com esse novo título ao qual vamos nos reportar agora.

Como a doutrina considera o Espírito batedor de Bergzabern

É fácil dar a explicação solicitada pelo narrador que acabamos de citar: Só existe uma, a que é dada pela Doutrina Espírita. Esses fenômenos nada têm de extraordinário para as pessoas familiarizadas com aqueles a que nos habituaram os Espíritos. Sabe-se o papel que certas criaturas emprestam à imaginação. Sem dúvida, se a menina apenas tivesse tido visões, os partidários da alucinação ter-se-iam embandeirado. Mas aqui havia efeitos materiais de natureza inequívoca e que tiveram um grande número de testemunhas. Era preciso admitir que todos estivessem alucinados a ponto de pensarem ouvir aquilo que não ouviam e verem movimento em coisas imóveis. Ora, nisso estaria um fenômeno ainda mais extraordinário.

Espírito batedor
O Espírito batedor

Como ocorre a hierarquia dos Espíritos?

Aos incrédulos resta apenas um recurso: negar. É mais fácil e dispensa o raciocínio.

Examinando as coisas do ponto de vista espírita, torna-se evidente que o Espírito que se manifestou era inferior ao da menina, pois lhe obedecia; subordinava-se até aos assistentes, pois esses lhe davam ordens. Se não soubéssemos pela Doutrina que os chamados Espíritos batedores estão na parte inferior da escala, aquilo que se passou nos seria uma prova disso.

Realmente não se conceberia que um Espírito elevado, assim como os nossos sábios e nossos filósofos, viesse divertir-se em bater marchas e valsas e, numa palavra, representar o papel de jogral ou submeter-se aos caprichos dos seres humanos. Ele se mostra com as feições de criatura mal-encarada, circunstância que apenas corrobora esta opinião. Em geral a moral se reflete no envoltório. Está, pois, demonstrado para nós que o batedor de Bergzabern é um Espírito inferior, da classe dos Espíritos levianos, que se manifestou como antes outros o fizeram e ainda o fazem em nossos dias.

Por que o batedor se manifestou?

Mas, com que propósito se manifestou? A notícia não diz que tenha sido chamado. Hoje, que estamos mais experimentados nestas coisas, não se deixaria entrar um visitante tão estranho sem que ele informasse quais os seus propósitos. Apenas podemos fazer uma conjectura. É verdade que nada fez ele que revelasse maldade ou má intenção, pois a menina não sofreu nenhum distúrbio físico ou moral. Só os homens poderiam ter chocado a sua moral, ferindo-lhe a imaginação com contos ridículos. Por sorte não o fizeram. Esse Espírito, por mais inferior que fosse, nem era mau nem malévolo. Era apenas um desses Espíritos tão numerosos, dos quais, por vezes e malgrado nosso, estamos rodeados. Ele pode ter agido naquelas circunstâncias por um mero capricho, como também poderia fazê-lo por instigação de Espíritos elevados, com o fito de despertar a atenção dos homens e convencê-los da realidade de um poder superior, fora do mundo corpóreo.

Faculdade de fenômenos físicos

Quanto à criança, é certo que era um desses médiuns de influência física, dotados, malgrado seu, de tal faculdade, e que estão para os outros médiuns assim como os sonâmbulos naturais estão para os sonâmbulos magnéticos. Dirigida com prudência por um homem experimentado nesta nova Ciência, essa faculdade poderia ter produzido coisas ainda mais extraordinárias e de natureza a lançar nova luz sobre esses fenômenos, que são maravilhosos apenas porque não são compreendidos.




Espírito batedor de Bergzabern I

 Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > O Espírito batedor de Bergzabern I

Uma celeuma na Baviera

Já tínhamos ouvido falar de certos fenômenos espíritas que em 1852 haviam causado enorme celeuma na Baviera renana, nas cercanias de Spira; sabíamos até que havia sido publicada uma brochura em alemão, com um relato autêntico. Depois de longas e infrutíferas buscas, uma senhora, nossa assinante da Alsácia, demonstrando grande interesse e perseverança, pelo que lhe somos imensamente agradecidos, conseguiu um exemplar daquela brochura e no-la ofereceu.

Kardec deu aqui a sua tradução in extenso, esperando seja lida com tanto maior interesse quanto mais uma vez vem provar que fatos desse gênero são de todos os tempos e lugares, desde que estes ocorreram numa época em que apenas se começava a falar em Espíritos.

A Brochura

Prefácio

Há vários meses um acontecimento singular constitui o assunto de todas as conversas em nossa cidade e suas imediações. Referimo-nos ao Batedor, como é chamado, da casa do alfaiate Pedro Sänger.

Fizeram abster-se de qualquer relato em sua folha ─ o Jornal de Bergzabern ─ das manifestações que desde 1.º de janeiro de 1852 se produzem naquela casa. Como, porém, chamaram a atenção geral a tal ponto que as autoridades se sentiram no dever de pedir ao Dr. Bentner uma explicação para o caso e o Dr. Dupping, de Spira, chegou a ir ao local para observar os fatos, não nos podemos por mais tempo furtar ao dever de lhes dar publicidade.

Quanto a nós, limitar-nos-emos ao simples relato dos fatos, principalmente daqueles que testemunhamos ou que ouvimos de pessoas dignas de fé. O leitor que forme a sua opinião.

A introdução foi assinada por F. A. Blanck, Redator do Jornal de Bergzabern, em maio de 1852.

Os primeiros golpes do batedor de Bergzabern

A 1.º de janeiro deste ano, em Bergzabern, na casa em que residia, e no quarto vizinho à sala de estar, a família de Pedro Sänger ouviu um como martelar, que começava por golpes surdos e como se viessem de longe, e que se tornavam progressivamente mais fortes e distintos. Esses golpes pareciam desferidos na parede, junto à qual se achava o leito de sua filha de doze anos de idade.

Habitualmente, o ruído era ouvido entre nove e meia e dez e meia. A princípio o casal não ligou importância; como, porém, essa singularidade se repetisse todas as noites, pensaram que viesse da casa vizinha, onde talvez um doente se distraísse tamborilando na parede. Logo, entretanto, se convenceram de que não havia tal doente, nem ele poderia ser a causa do ruído. Foi revolvido o chão do quarto; a parede foi derrubada, mas tudo sem resultado. A cama foi mudada para o lado oposto do quarto: então ─ coisa admirável ─ o ruído mudou de lugar e era percebido assim que a menina dormia.

Era claro que de algum modo a garota participava da manifestação daquele ruído. Depois das inúteis pesquisas da polícia, começou-se a pensar que o fato deveria ser atribuído a uma doença da criança ou a uma particularidade de sua conformação. Entretanto, até agora nada veio confirmar tal suposição. É ainda um enigma para os médicos.

Com a espera, a coisa se desenvolveu: o ruído prolongou-se por mais de uma hora e os golpes eram vibrados com mais força. A menina mudou de cama e de quarto, mas o batedor se manifestou nesse outro quarto; debaixo da cama; na cama e na parede. Os golpes não eram idênticos: ora mais fortes, ora mais fracos e isolados, ora, enfim, sucedendo-se rapidamente e seguindo o ritmo das marchas militares e das danças.

Estado sonambúlico da menina

A menina ocupava desde alguns dias o quarto mencionado, quando notaram que, durante o seu sono, ela emitia palavras curtas e incoerentes. As palavras logo se tornaram mais distintas e mais inteligíveis; parecia que a criança falava com outra pessoa sobre a qual ela tinha autoridade. Entre os fatos que diariamente se produziam, o autor desta brochura relata um, do qual foi testemunha:

A criança achava-se na cama, deitada sobre o lado esquerdo. Apenas adormecida, os golpes começaram e assim começou ela a falar: “Você, você! Bata uma marcha!” E o batedor marcou uma que se parecia muito com uma marcha bávara. À ordem de “alto!” dada pela menina, o batedor parou. Então ela ordenou: “Bata três, seis, nove vezes”. O batedor executou a ordem. A uma nova ordem de bater 19 golpes, ouviram-se 20 batidas, ao que retorquiu a menina adormecida: “Não está certo; foram 20 batidas”. Logo foi possível contar 19 golpes. A seguir ela pediu 30 pancadas e as 30 foram ouvidas. À ordem de 100 pancadas só foi possível contar até 40, tão rápidos eram os golpes. Soado o último golpe a menina disse: “Muito bem! Agora 110”. Então só nos foi possível contar até cerca de 50. Ao último golpe disse a dorminhoca: “Não está certo. Você deu apenas 106”; e logo se fizeram ouvir as 4 pancadas para completar as 110. Depois ela pediu: “Mil!” Foram batidas apenas 15. “Ora, vamos!” O batedor marcou ainda 5 golpes e parou.

Então os assistentes tiveram a ideia de dar ordens diretamente ao batedor, o qual as executou. Parava quando recebia a ordem de “Alto! Silêncio! Basta!” Depois, por si mesmo e sem comando, recomeçava a bater. Um dos assistentes disse, em voz baixa, num canto do quarto, que queria comandar apenas por pensamento, para que fossem dadas 6 batidas. Então o experimentador postou-se junto ao leito e não disse uma só palavra: foram ouvidas as 6 pancadas. Ainda por pensamento foram pedidas 4 e os 4 golpes foram ouvidos. A mesma experiência foi tentada por outras pessoas, mas nem sempre deu bom resultado.

Em breve a menina espreguiçou-se, afastou as cobertas e levantou-se.

O Espírito batedor é reconhecido

Quando lhe perguntaram o que havia acontecido, respondeu que tinha visto um homem grande e mal-encarado, junto a seu leito, e que lhe apertava os joelhos. Acrescentou que sentia dor nos joelhos quando o homem batia. Ela adormeceu novamente e as manifestações prosseguiram até que o relógio bateu onze horas. De repente o batedor parou, a menina entrou em sono tranquilo, reconhecido pela regularidade da respiração e naquela noite nada mais foi ouvido.

Observamos que o batedor obedecia à ordem de marcar marchas militares. Várias pessoas afirmaram que quando se lhe pedia uma marcha russa, austríaca ou francesa, ela era marcada com muita exatidão.

A 25 de fevereiro, estando adormecida, a menina disse: “Agora você não quer mais bater; quer arranhar. Está bem! Quero ver como você fará isso.” Com efeito, no dia seguinte, 26, em vez dos golpes ouvia-se um arranhar que parecia vir da cama e que se manifestou até hoje. As batidas se misturaram à raspagem, ora alternadas, ora simultaneamente, de tal modo que nas árias de marcha ou de dança a raspagem marcava os tempos fortes e a batida os tempos fracos. Conforme os pedidos, a hora do dia ou a idade das pessoas eram indicadas por golpes secos ou pela raspagem. Em relação à idade das pessoas, às vezes havia erros, logo corrigidos na segunda ou terceira tentativa, desde que se dissesse que o número tinha sido marcado erradamente. Algumas vezes, em lugar de dar a idade pedida, o batedor executava uma marcha.

A linguagem da menina aperfeiçoa-se

Dia a dia a linguagem da criança, durante o sono, tornava-se mais perfeita. Aquilo que a princípio não passava de simples palavras ou de ordens rápidas ao batedor, transformou-se, com o tempo, numa conversa encadeada com os pais. Assim, um dia se entreteve com a irmã mais velha sobre assuntos religiosos, num tom de exortação e de ensino, dizendo-lhe que ela devia ir à missa, fazer as preces todos os dias e mostrar submissão e obediência aos pais. À noite retomou o mesmo assunto. Em seus ensinamentos, nada havia de teológico, mas apenas algumas daquelas noções que se aprendem na escola.

Antes dessas conversas ouviam-se durante uma hora, pelo menos, pancadas e arranhões, não só durante o sono da menina, mas até em seu estado de vigília. Vimo-la comer e beber enquanto as batidas e raspagens eram ouvidas, do mesmo modo que, estando acordada, tínhamos ouvido a transmissão de ordens ao batedor, as quais foram todas executadas.

Na noite de sábado, 6 de março, várias pessoas se reuniram em casa dos Sänger, pois estando desperta a menina, havia predito durante o dia que o batedor apareceria às nove horas da noite. Ao bater essa hora, quatro golpes tão violentos foram desferidos na parede que os assistentes se assustaram. Logo, e pela primeira vez, as batidas foram dadas na madeira da cama e exteriormente. O leito foi todo abalado. Esses golpes se manifestaram de todos os lados da cama, ora num, ora noutro lugar. Pancadas e arranhões alternavam-se. A uma ordem da menina e das pessoas presentes, ora os golpes se ouviam no interior da cama, ora externamente. De repente o leito levantou-se em sentidos diferentes, enquanto os golpes eram desferidos com força. Mais de cinco pessoas em vão tentaram repor o leito no lugar, e quando desistiram da tentativa, ele ainda se balançou por alguns instantes, depois do que tomou a sua posição natural. Este fato já havia ocorrido uma vez, antes dessa manifestação pública.

Batedor de Bergzabern
Vista da cidade de Bergzabern, na Alemanha.

O discurso da jovem

Todas as noites a menina fazia uma espécie de discurso, de que falaremos de modo sucinto.

Antes de mais nada, é preciso notar que ela, assim que baixava a cabeça, logo adormecia e começavam os golpes e as arranhaduras. Com as batidas ela gemia, agitava as pernas e parecia sentir-se mal. Já o mesmo não acontecia com as raspagens. Chegado o momento de falar, a menina deitava-se em decúbito dorsal, o rosto tornava-se pálido, assim como as mãos e os braços. Ela acenava com a mão direita e dizia: “Vamos! Venha para perto de minha cama e junte as mãos. Vou lhe falar do Salvador do mundo”. Então cessavam batidas e arranhaduras e todos os assistentes ouviam com respeitosa atenção o discurso da adormecida.

Ela falava com vagar e de modo muito inteligível em puro alemão, o que surpreendia tanto mais quanto mais se sabia que ela era menos adiantada que seus colegas de colégio, nessa matéria, o que certamente era devido a uma doença dos olhos, que lhe dificultava o estudo. Suas palestras discorriam sobre a vida e as ações de Jesus desde os doze anos; sua presença no templo entre os escribas; seus benefícios à Humanidade e os seus milagres. Depois se entretinha em descrever os seus sofrimentos e censurava duramente os judeus por terem crucificado Jesus, apesar de seus atos de bondade e de suas bênçãos. Terminando, a menina dirigia a Deus uma fervorosa prece, pedindo que “lhe concedesse a graça de suportar com resignação os sofrimentos que lhe tinha enviado, pois que a havia escolhido para entrar em comunicação com o Espírito”. Pedia a Deus para não morrer ainda, pois era criança e não queria descer ao túmulo escuro. Terminadas as suas prédicas, recitava com uma voz solene o Pater noster, depois do que dizia: “Agora você pode vir”. Imediatamente recomeçavam as batidas e arranhaduras. Ela ainda falou duas vezes ao Espírito e, a cada uma delas, o batedor parava. Dizia ainda algumas palavras e acrescentava: “Agora você pode ir, em nome de Deus”. E despertava.

Durante essas palestras os olhos da menina ficavam bem fechados, mas os lábios se mexiam. As pessoas mais próximas do leito podiam observar-lhe os movimentos. A voz era pura e harmoniosa.

Despertando, perguntavam-lhe o que tinha visto e o que se havia passado. Ela respondia:

— O homem que vem me ver.

— Onde está ele?

— Perto de minha cama, com as outras pessoas.

— Você viu as outras pessoas?

— Vi todos os que estavam perto da minha cama.

Incredulidade das manifestações

É fácil compreender que tais manifestações encontrassem muitos incrédulos. Chegou-se mesmo a pensar que toda essa história era pura mistificação. Mas o pai era incapaz de palhaçadas, sobretudo de uma palhaçada que exigia toda a habilidade de um prestidigitador profissional. Ele goza da reputação de homem decente e honesto.

Para responder e fazer cessar a suspeita, a menina foi levada para uma casa estranha. Apenas lá chegando, ouviram-se as batidas e arranhaduras. Além disso, alguns dias antes ela tinha ido com a mãe a uma pequena aldeia chamada Capela, a cerca de meia légua de distância, à casa da viúva Klein. Como ela disse que estava cansada, deitaram-na num canapé, e imediatamente o mesmo fenômeno se produziu. Várias testemunhas o podem afirmar. Posto a criança tivesse um aspecto saudável, devia ser afetada por uma doença que, se não ficasse provada pelas manifestações acima relatadas, pelo menos pelos movimentos involuntários dos músculos e dos abalos nervosos.

Para terminar, faremos notar que há algumas semanas a menina foi levada ao Dr. Bentner, com quem ficou, a fim de que esse sábio pudesse estudar mais de perto os fenômenos em apreço. Desde então cessou todo barulho em casa da família Sänger, passando a produzir-se na do Dr. Bentner.

São estes, com toda a sua autenticidade, os fatos que se passaram. Entregamo-los ao público sem emitir opinião. Possam os homens da Medicina dar-lhes em breve uma explicação satisfatória.

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Teoria das manifestações físicas I

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Maio > Teoria das manifestações físicas I

Nesta Revista Espírita, Allan Kardec coloca que é fácil conceber a influência moral dos Espíritos e as relações que possam ter com a nossa alma, ou com o Espírito em nós encarnado. Compreende-se que dois seres da mesma natureza possam comunicar-se pelo pensamento, que é um de seus atributos, sem o concurso dos órgãos da palavra. Já é, entretanto, mais difícil dar-nos conta dos efeitos materiais que eles podem produzir, tais como os ruídos, o movimento dos corpos sólidos, as aparições e sobretudo as aparições tangíveis.

A Teoria de manifestações defendida por Kardec

A teoria que Kardec defende é a de que o Espírito, sendo imaterial por definição, algo ainda tem de matéria, pois se nada tivesse, nada seria.

Encarnado no corpo, o Espírito constitui a alma. Quando o deixa, com a morte, não sai despojado de todo o envoltório. Dizem-nos todos que conservam a forma que tinham quando vivos; realmente, quando nos aparecem, em geral é sob a forma por que os conhecíamos.

Observemo-los atentamente, no instante em que deixam a vida: eles se acham em estado de perturbação; ao seu redor tudo é confuso; veem o próprio corpo, inteiro ou mutilado, conforme o gênero de morte. Por outro lado, veem-se e sentem-se vivos; algo lhes diz que aquele é o seu corpo, mas não compreendem como podem estar separados. O laço que os unia ainda não está, pois, rompido completamente.

Após o momento de perturbação, o espírito vê-se livre do envoltório carnal que lhe servia como uma gaiola, da qual se despojaram sem pesar, mas continuam a se ver em sua forma primitiva. 

Certas manifestações produzidas pelo Sr. Home e por outros médiuns do mesmo gênero ocorrem com aparecimento de mãos que têm todas as propriedades das vivas, que tocamos, que nos seguram e que se desfazem repentinamente.

Que devemos concluir disso? Veja os conceitos mais marcantes presentes na Revista:

A alma e o perispírito

A alma não deixa tudo no caixão: leva algo consigo.

Há em nós duas espécies de matéria: uma grosseira, que constitui o envoltório exterior; a outra sutil e indestrutível. A morte é a destruição, ou melhor, a desagregação da primeira, daquela abandonada pela alma; a outra se destaca e segue a alma que, assim, continua tendo sempre um envoltório.

A esse envoltório denominamos perispírito. Essa matéria sutil, por assim dizer extraída de todas as partes do corpo a que estava ligada durante a vida, conserva a forma daquele. Eis por que todos os Espíritos são vistos e por que nos aparecem tais quais eram em vida.

O perispírito não tem a tenacidade nem a rigidez da matéria compacta do corpo: é flexível e expansiva. Eis por que a forma que toma, muito embora calcada sobre a do corpo, não é absoluta: dobra-se à vontade do Espírito, que lhe dá, conforme queira, esta ou aquela aparência, enquanto que o envoltório sólido lhe oferece uma resistência intransponível.

Desembaraçando-se desse entrave que o comprimia, o perispírito distende-se ou se contrai; transforma-se e, numa palavra, presta-se a todas as metamorfoses, de acordo com a vontade que sobre ele atua.

Kardec assinala que, por extensos estudos, a matéria sutil que constitui o segundo envoltório do Espírito só pouco a pouco se desprende do corpo, e não instantaneamente.

Dito isso, a experiência ainda prova que a duração desse desprendimento varia conforme os indivíduos. Em alguns opera-se em três ou quatro dias, ao passo que noutros não se completa senão ao cabo de vários meses.

Como ocorre a separação do Espírito após a morte do corpo?

Em algumas pessoas a separação começa antes da morte: são as que em vida se elevaram pelo pensamento e pela pureza de seus sentimentos, acima das coisas materiais.

Nelas a morte encontra apenas fracos liames entre a alma e o corpo e que se rompem quase instantaneamente. Quanto mais materialmente viveu o homem; quanto mais seus pensamentos foram absorvidos nos prazeres e nas preocupações da personalidade, tanto mais tenazes são aqueles laços. Parece que a matéria sutil se identifica com a matéria compacta e que entre elas se estabelece uma coesão molecular. Eis por que só se separam lentamente e com dificuldade.

Nos primeiros instantes que se seguem à morte, quando ainda existe união entre o corpo e o perispírito, este conserva muito melhor a impressão da forma corpórea, da qual, por assim dizer, reflete todas as nuanças e mesmo todos os acidentes. Eis por que um supliciado nos dizia, alguns dias após a sua execução: Se me pudésseis ver, ver-me-íeis com a cabeça separada do tronco. Um homem que tinha sido assassinado nos dizia: Vede a ferida que me fizeram no coração. Pensava ele que poderíamos vê-lo.

Teoria das manifestações físicas
Teoria das manifestações físicas

Sensação dos Espíritos

Imaginemos o Espírito revestido de seu envoltório semimaterial, ou perispírito, tendo a forma ou aparência que possuiu quando vivo. Alguns até se servem desta expressão para se designarem: minha aparência está em tal lugar. A matéria desse envoltório é suficientemente sutil para escapar à nossa vista em seu estado normal, mas não é completamente invisível. Para começar, vemo-lo pelos olhos da alma, nas visões produzidas durante os sonhos. Mas não é disto que nos queremos ocupar. Nessa matéria eterizada pode haver uma modificação; o próprio Espírito pode fazê-la sofrer uma espécie de condensação que a torna perceptível aos olhos do corpo. É o que ocorre nas aparições vaporosas. A sutileza dessa matéria lhe permite atravessar os corpos sólidos, razão por que tais aparições não encontram obstáculos e por que tantas vezes desaparecem através das paredes.

A condensação pode chegar ao ponto de produzir a resistência e a tangibilidade. É o caso das mãos que podemos ver e tocar. Mas essa condensação ─ e esta é a única palavra de que nos podemos servir, para dar uma ideia, embora imperfeita, de nosso pensamento ─ esta condensação, íamos dizendo, ou ainda essa solidificação da matéria etérea, é apenas temporária ou acidental, porque esse não é o seu estado normal. Eis por que, em um dado momento, as aparições tangíveis nos escapam como uma sombra. Assim, do mesmo modo que um corpo se nos apresenta em estado sólido, líquido ou gasoso, conforme o grau de condensação, assim a matéria etérea do perispírito pode aparecer-nos em estado sólido, vaporoso visível ou vaporoso invisível.

Como a matéria espiritual aparece para nós?

A mão aparente, tangível, oferece uma resistência: exerce pressão, deixa impressões, opera uma tração sobre os objetos que seguramos. Nela há, pois, uma força. Ora, estes fatos, que não são hipóteses, podem levar-nos à explicação das manifestações físicas.

Notemos, antes de mais nada, que essa mão obedece a uma inteligência, pois age espontaneamente; dá sinais inequívocos de uma vontade e obedece a um pensamento: pertence, pois, a um ser completo, que só nos mostra essa parte de si mesmo, e a prova é que produz impressões com as partes invisíveis; os dentes deixam marcas na pele e produzem dor.

Entre as diversas manifestações, uma das mais interessantes é, sem dúvida, o toque espontâneo de instrumentos de música. Os pianos e acordeons são aparentemente os instrumentos prediletos. Este fenômeno é explicado muito naturalmente pelo que precede. A mão que tem a força para apanhar um objeto, também pode tê-la para fazer pressão sobre as teclas e fazê-las soar. Aliás, por diversas vezes vimos os dedos em ação, e quando a mão não é vista, veem-se as teclas em movimento e o fole a distender-se e fechar-se. As teclas só podem ser movidas por mão invisível, a qual dá mostras de inteligência, tocando árias perfeitamente ritmadas e não sons incoerentes.

Desde que essa mão pode enfiar-nos as unhas na carne, beliscar-nos, arrebatar aquilo que temos na mão; desde que a vemos apanhar e transportar um objeto, assim como nós o faríamos, também nos pode dar pancadas, erguer e derrubar uma mesa, tocar uma campainha, puxar uma cortina e até mesmo nos dar uma bofetada invisível.

Perguntarão talvez como essa mão, no estado vaporoso invisível, pode ter a mesma força que no estado tangível. E por que não? Vemos o ar derrubar edifícios, o gás lançar projéteis, a eletricidade transmitir sinais, o fluido do ímã levantar massas? Por que a matéria etérea do perispírito seria menos poderosa? Mas não a queiramos submeter às nossas experiências de laboratório e às nossas fórmulas algébricas. Principalmente pelo fato de havermos tomado os gases como termo de comparação, não lhes vamos atribuir propriedades idênticas, nem computar sua força do mesmo modo pelo qual calculamos a do vapor. Até agora ela escapa a todos os nossos instrumentos. É uma nova ordem de ideias, fora da competência das ciências exatas. Eis por que essas ciências não nos oferecem a aptidão especial para apreciá-las.

O movimento dos corpos

Damos esta teoria do movimento dos corpos sólidos sob a influência dos Espíritos apenas para mostrar a questão sob todos os seus aspectos e provar que, sem nos afastarmos muito das ideias recebidas, é possível dar-nos conta da ação dos Espíritos sobre a matéria inerte. Há, porém, uma outra, de alto alcance filosófico, dada pelos próprios Espíritos, e que lança sobre este problema uma luz inteiramente nova. Ela será mais bem compreendida depois que a tiverem lido. Aliás, é útil conhecer todos os sistemas, a fim de poder compará-los.

Resta agora explicar como se opera essa modificação da substância etérea do perispírito; por que processo o Espírito opera e, em consequência, o papel dos médiuns de influência física na produção desses fenômenos; aquilo que em tais circunstâncias neles se passa; a causa e a natureza de suas faculdades, etc.

É o que se fará no próximo artigo.




O Sr. Home III e Variedades

O Sr. Home III

O Sr. Home sempre foi citado por Allan Kardec como médium de capacidades especiais e surpreendentes, mas sobre fenômenos de aparição, nada foi imposto a ele. Nesta Revista Espírita, Kardec nos conta um pouco mais sobre outras faculdades e os fenômenos advindos dela em outros médiuns. Para concluir, ainda citaremos fatos extras que ele intitulou de Variedades.

Kardec indaga-se: por que mãos e não outras partes do corpo são materializadas? No entanto, há relatos de médiuns que fazem aparecer todo o corpo.

As mãos

De um modo geral, o aparecimento da mão se manifesta sob a toalha da mesa, por ondulações produzidas ao percorrer toda a superfície. Depois se mostra às bordas da toalha, que ela levanta; por vezes vem postar-se sobre a toalha, bem no meio da mesa; outras vezes toma um objeto e o leva para baixo da toalha. Essa mão, a todos visível, nem é vaporosa nem translúcida: tem a cor e a opacidade naturais; no pulso, termina de forma indefinida. Se alguém a toca sem segunda intenção hostil, ela oferece a resistência, a solidez e a impressão de mão viva; seu calor é suave, um tanto úmido. Não é absolutamente inerte, pois age, presta-se aos movimentos que se lhe imprimem, ou resiste, acaricia-nos, ou nos aperta. Se, pelo contrário, quisermos pegá-la bruscamente e de surpresa, apenas encontraremos o vazio.

Casos que as envolvem

Caso 1

Tinha entre os seus dedos uma campainha de mesa; mão invisível a princípio, e pouco depois perfeitamente visível, veio pegá-la, fazendo esforços para arrebatá-la; não o tendo conseguido, passou a puxá-la por cima, a fim de fazê-la escorregar. O esforço de tração era sensível quanto teria sido o de qualquer mão humana. Havendo tentado segurar violentamente essa mão, a sua apenas encontrou o ar; tendo aberto os dedos, a campainha ficou suspensa no ar e foi lentamente pousar no soalho.

Caso 2

Várias pessoas achavam-se reunidas em torno de uma dessas mesas de sala de jantar que se abrem em duas. Ouvem-se batidas; a mesa se agita, abre-se por si mesma e através da fenda aparecem três mãos: uma de tamanho normal, outra muito grande e uma terceira muito peluda. Tocam-nas, apalpam-nas, elas apertam as mãos dos circunstantes e depois se dissolvem.

Caso 3

Em casa de um dos amigos que havia perdido uma criança em tenra idade, o que aparece é a mão de um recém-nascido. Todos podem vê-la e tocá-la. Essa criança senta-se no colo da mãe que sente distintamente a impressão de todo o seu corpo sobre os joelhos.

As mãos que escrevem

A mão que aparece também pode escrever. Algumas vezes, ela para no meio da mesa, toma um lápis e traça as letras num papel preparado. Na maioria das vezes, porém, leva o papel para debaixo da mesa e o devolve todo escrito. Se a mão fica invisível, a escrita parece produzir-se por si mesma. Por este meio conseguem-se respostas às diversas perguntas que se pode fazer.

Mãos que tocam instrumentos

Outro gênero de manifestações não menos notável, mas que se explica pelo que acabamos de dizer, é o dos instrumentos de música que tocam sozinhos. Em geral são pianos ou acordeons. Em tais circunstâncias, veem-se distintamente as teclas se moverem, bem como o fole. A mão que toca ora é visível, ora invisível. A ária que se ouve pode ser conhecida e tocada a pedido. Se o artista invisível é deixado à vontade, produz acordes harmoniosos, cujo efeito lembra a vaga e suave melodia da harpa eólia.

Em casa de um assinante, onde tais fenômenos se produziram muitas vezes, o Espírito que assim se manifestava era o de um moço falecido há algum tempo, amigo da família que quando vivo revelava notável talento musical. A natureza das árias que preferia tocar não deixava a menor dúvida quanto à sua identidade para todos aqueles que o haviam conhecido.

Conclusão

O mais extraordinário fato neste gênero de manifestações não é, na opinião de Kardec, o da aparição. Se esta fosse sempre aeriforme, seria compatível com a natureza etérea que atribuímos aos Espíritos. Ora, nada se oporia a que essa matéria eterizada se tornasse perceptível à vista, por uma espécie de condensação, sem perder a sua propriedade vaporosa. O que há de mais estranho é a solidificação dessa mesma matéria, suficientemente resistente para deixar uma visível impressão em nossos órgãos. No próximo número daremos a explicação desse fenômeno singular, conforme o ensinamento dos próprios Espíritos. Naquela data, limitaram-se a deduzir-lhe uma consequência relativa ao toque espontâneo dos instrumentos de música. Com efeito, desde que a ocasional tangibilidade dessa matéria eterizada é um fato constatado, e desde que em tal estado a mão, aparente ou não, oferece resistência suficiente para exercer pressão sobre os corpos sólidos, não é de admirar que ela possa exercer uma pressão suficiente para mover as teclas de um instrumento. Por outro lado, fatos não menos positivos provaram que essa mão pertence a um ser inteligente. Nada, pois, de admirar que essa inteligência se manifestasse por sons musicais, de vez que poderia fazê-lo pela escrita e pelo desenho.

Uma vez entrados nesta ordem de ideias, as batidas vibradas, o movimento dos objetos e todos os fenômenos espíritas de ordem material se explicam muito naturalmente.

Variedades

Vamos à segunda parte deste post. Kardec demonstra insatisfação com as críticas atribuídas ao Sr. Home nos seguintes termos:

Maledicência contra o Sr. Home

Em certos indivíduos a malevolência não conhece limites. A calúnia tem sempre veneno contra todo aquele que se eleva acima da multidão. Os adversários do Sr. Home acharam que o ridículo é uma arma muito frágil: ela devia amolgar-se contra os nomes respeitáveis que o cercam com a sua proteção. Desde que não podiam rir à sua custa, procuraram denegri-lo. Espalharam o boato, com o objetivo que bem compreendemos e as más línguas o repetem de que o Sr. Home não havia partido para a Itália, conforme fora anunciado, mas que estava na prisão de Mazas, sob o peso de graves acusações, que são contadas como anedotas, de que são sempre ávidos os desocupados e os amigos de escândalos.

Podemos afirmar que nada há de verdadeiro em todas essas maquinações infernais. Temos à vista várias cartas do Sr. Home, datadas de Pisa, de Roma e de Nápoles, onde atualmente ele se encontra. Estamos, pois, em condição de provar aquilo que afirmamos.

Têm razão os Espíritos de afirmar que os verdadeiros demônios se acham entre os homens.

Seriam as mesas girantes alienadoras de pessoas?

Leu-se num jornal: conforme a Gazette des Hôpitaux (Gazeta dos hospitais)naquele momento, contavam-se no hospital de “alienados” de Zurique 25 pessoas que perderam a razão graças às mesas girantes e aos Espíritos batedores.

Para começar, perguntaram se estava bem averiguado que esses 25 alienados deviam todos a perda da razão aos Espíritos batedores, o que é contestável, pelo menos até haver provas autênticas. Admitindo que esses estranhos fenômenos tenham podido impressionar de modo prejudicial certos caracteres fracos, perguntaríamos se, por outro lado, o medo do diabo não fez mais loucos do que a crença nos Espíritos. Ora, de vez que os Espíritos não são impedidos de bater, o perigo está na crença de que todos aqueles que se manifestam são demônios. Afaste-se esta ideia, dando a conhecer a verdade, e não haverá mais medo do que dos vagalumes. A ideia de que se é assediado pelo diabo é feita sob medida para perturbar a razão.

Em contraposição, tiveram uma outra notícia, de outro jornal, que dizia: há um curioso documento estatístico das funestas consequências a que, entre os ingleses, arrastava o hábito da intemperança e das bebidas fortes. De cada 100 indivíduos entrados no hospital de alienados de Hamwel, havia 72 cuja alienação mental devia ser atribuída à embriaguez.

Receberam dos assinantes numerosos relatos de fatos muito interessantes que nos apressaremos a publicar em nossas próximas edições, de vez que a falta de espaço não os permitiu fazê-lo nesta.




Teoria das Manifestações Físicas – Primeiro Artigo

https://www.youtube.com/watch?v=3NVwXDL3HdA

Allan Kardec inicia a Revista do mês de Maio de 1858 trazendo à luz uma reflexão sobre as Manifestações Físicas dos Espíritos, o que, para muitos, é algo “sobrenatural” e mesmo impossível.

Isso se deve ao fato de pensarmos que o Espírito é uma abstração. Diz Kardec: Interrogados sobre se são imateriais, assim responderam os Espíritos: “Imaterial não é bem o termo, porque o Espírito é alguma coisa; do contrário seria o nada. É material, se se quiser, mas de uma matéria de tal modo etérea que para vós é como se não existisse”. 

Assim, o Espírito não é uma abstração, como pensam alguns; é um ser, mas cuja natureza íntima escapa aos nossos sentidos grosseiros.

Segundo observações, e não um sistema, o Espírito recém liberto do corpo guarda suas características físicas da encarnação imediata, envolto, quase sempre, em uma perturbação que se segue por mais ou menos tempo, dependendo de cada um. Após esse período, o corpo torna-se para eles como uma “roupa velha”, que não se quer mais.

Voltemos então aos vários relatos de aparições tangíveis, como foi citado no caso do Sr Home, na edição de abril. Kardec retoma esse fato para concluir o seguinte: que a alma não deixa tudo no caixão: leva algo consigo.

Haveria, portanto, em nós, duas espécies de matéria alem do Espírito: a matéria grosseira, que constitui o corpo, e uma matéria mais sutil, que constitui o que Kardec chamou de perispírito.

Essa matéria sutil, por assim dizer extraída de todas as partes do corpo a que estava ligada durante a vida, conserva a forma daquele. Eis por que todos os Espíritos são vistos e por que nos aparecem tais quais eram em vida

O perispírito, contudo, não é algo rígido e compacto como o corpo: é uma matéria expansível e flexível, e que não se circunscreve ao corpo, como numa casca: se expande em volta dele, à razão de centímetros ou metros, e é o que dá origem àquilo que muitos chamam de aura. Na realidade, a aura é como se fosse um campo de energias do corpo sólido e não o perispírito.

Desembaraçando-se desse entrave que o comprimia, o perispírito distende-se ou se contrai; transforma-se e, numa palavra, presta-se a todas as metamorfoses, de acordo com a vontade que sobre ele atua.

Prova a observação ─ e insistimos sobre o vocábulo observação, porque toda a nossa teoria é consequência dos fatos estudados ─ que a matéria sutil, que constitui o segundo envoltório do Espírito, só pouco a pouco se desprende do corpo, e não instantaneamente

Os laços que unem alma e corpo não se rompem de súbito pela morte. Ora, o estado de perturbação que observamos dura todo o tempo em que se opera o desprendimento. Somente quando esse desprendimento é completo o Espírito recobra a inteira liberdade de suas faculdades e a consciência clara de si mesmo.

A experiência ainda prova que a duração desse desprendimento varia conforme os indivíduos. Em alguns opera-se em três ou quatro dias, ao passo que noutros não se completa senão ao cabo de vários meses. Assim, a destruição do corpo e a decomposição pútrida não bastam para que se opere a separação. Eis a razão por que certos Espíritos dizem: Sinto que os vermes me roem.

E nós nos perguntamos: Haveria nisso uma explicação para os supostos Hospitais Espirituais? Veja o video com nossa discussão a respeito.

Em algumas pessoas a separação começa antes da morte: são as que em vida se elevaram pelo pensamento e pela pureza de seus sentimentos, acima das coisas materiais. Nelas a morte encontra apenas fracos liames entre a alma e o corpo e que se rompem quase instantaneamente. Quanto mais materialmente viveu o homem; quanto mais seus pensamentos foram absorvidos nos prazeres e nas preocupações da personalidade, tanto mais tenazes são aqueles laços. 

Parece que a matéria sutil se identifica com a matéria compacta e que entre elas se estabelece uma coesão molecular. Eis por que só se separam lentamente e com dificuldade.

A matéria do perispírito é algo sutil o suficiente para escapar às nossas vistas e atravessar objetos sólidos, mas, segundo a vontade do Espírito, pode se condensar o suficiente, embora momentaneamente, para se tornar sólida como a rocha. Temos exemplo disso no artigo do Sr. Home de abril, onde citam-se mãos que saiam do meio da mesa, mas que se tornavam tangíveis. Bozzano também cita isso em O Espiritismo e as Manifestações Supranormais.

A mão aparente, tangível, oferece uma resistência: exerce pressão, deixa impressões, opera uma tração sobre os objetos que seguramos. Nela há, pois, uma força. Ora, estes fatos, que não são hipóteses, podem levar-nos à explicação das manifestações físicas.

Kardec continua, afirmando que essas mãos (ou outras corporais), quando condensadas, tem a força suficiente, assim como nós o faríamos, também nos pode dar pancadas, erguer e derrubar uma mesa, tocar uma campainha, puxar uma cortina e até mesmo nos dar uma bofetada invisível.

Onde poderia haver a capacidade para tal matéria sutil ser capaz de tanta força material?

Mas Kardec assevera: não queiramos testar o Espírito com nossos instrumentos de laboratório, principalmente após termos tomado o vapor como base de comparação: É uma nova ordem de ideias, fora da competência das ciências exatas. Eis por que essas ciências não nos oferecem a aptidão especial para apreciá-las.

Kardec toma essas comparações apenas para poder mostrar aos demais que os fatos das manifestações físicas não são assim algo tão inconcebível, nem tão longe daquilo que nós já conhecemos (ou conhecíamos naquele tempo).

No Livro dos Espíritos, há uma explicação sobre:

257. O corpo é o instrumento da dor. Se não é a causa primária desta é, pelo menos, a causa imediata. A alma tem a percepção da dor: essa percepção é o efeito. A lembrança que da dor a alma conserva pode ser muito penosa, mas não pode ter ação física. De fato, nem o frio, nem o calor são capazes de desorganizar os tecidos da alma, que não é suscetível de congelar-se, nem de queimar-se. Não vemos todos os dias a recordação ou a apreensão de um mal físico produzirem o efeito desse mal, como se real fora? Não as vemos até causar a morte? Toda gente sabe que aqueles a quem se amputou um membro costumam sentir dor no membro que lhes falta. Certo que aí não está a sede, ou, sequer, o ponto de partida da dor. O que há, apenas, é que o cérebro guardou desta a impressão. Lícito, portanto, será admitir-se que coisa análoga ocorra nos sofrimentos do Espírito após a morte. Um estudo aprofundado do perispírito, que tão importante papel desempenha em todos os fenômenos espíritas; nas aparições vaporosas ou tangíveis; no estado em que o Espírito vem a encontrar-se por ocasião da morte; na ideia, que tão frequentemente manifesta, de que ainda está vivo; nas situações tão comoventes dos suicidas, dos supliciados, dos que se deixaram absorver pelos gozos materiais; e inúmeros outros fatos, lançaram luz sobre esta questão, dando lugar a explicações que passamos a resumir. 
O perispírito é o laço que à matéria do corpo une o Espírito; é tirado do meio ambiente, do fluido universal. Participa ao mesmo tempo da eletricidade, do fluido magnético e, até certo ponto, da matéria inerte. Poder-se-ia dizer que é a quintessência da matéria. É o princípio da vida orgânica, porém, não o da vida intelectual, que reside no Espírito. É, além disso, o agente das sensações exteriores. No corpo, os órgãos, servindo-lhe de condutos, localizam essas sensações. Destruído o corpo, elas se tornam gerais. Daí o Espírito não dizer que sofre mais da cabeça do que dos pés, ou vice-versa. Não se confundam, porém, as sensações do perispírito, que se tornou independente, com as do corpo. Estas últimas só por termo de comparação as podemos tomar e não por identidade. Libertos do corpo, os Espíritos podem sofrer, mas esse sofrimento não é corporal, embora não seja exclusivamente moral, como o remorso, pois que eles se queixam de frio e calor. Também não sofrem mais no inverno do que no verão: temo-los visto atravessar chamas, sem experimentarem qualquer dor. Nenhuma impressão lhes causa, conseguintemente, a temperatura. A dor que sentem não é, pois, uma dor física propriamente dita: é um vago sentimento íntimo, que o próprio Espírito nem sempre compreende bem, precisamente porque a dor não se acha localizada e porque não a produzem agentes exteriores; é mais uma reminiscência do que uma realidade, reminiscência, porém, igualmente penosa. Algumas vezes, entretanto, há mais do que isso, como vamos ver.
Ensina-nos a experiência que, por ocasião da morte, o perispírito se desprende mais ou menos lentamente do corpo; que, durante os primeiros minutos depois da desencarnação, o Espírito não encontra explicação para a situação em que se acha. Crê não estar morto, porque se sente vivo; vê a um lado o corpo, sabe que lhe pertence, mas não compreende que esteja separado dele. Essa situação dura enquanto haja qualquer ligação entre o corpo e o perispírito. Disse-nos, certa vez, um suicida: “Não, não estou morto.” E acrescentava: No entanto, sinto os vermes a me roerem. Ora, indubitavelmente, os vermes não lhe roíam o perispírito e ainda menos o Espírito; roíam-lhe apenas o corpo. Como, porém, não era completa a separação do corpo e do perispírito, uma espécie de repercussão moral se produzia, transmitindo ao Espírito o que estava ocorrendo no corpo. Repercussão talvez não seja o termo próprio, porque pode induzir à suposição de um efeito muito material. Era antes a visão do que se passava com o corpo, ao qual ainda o conservava ligado o perispírito, o que lhe causava a ilusão, que ele tomava por realidade. Assim, pois, não haveria no caso uma reminiscência, porquanto ele não fora, em vida, roído pelos vermes: havia o sentimento de um fato da atualidade. Isto mostra que deduções se podem tirar dos fatos, quando atentamente observados. Durante a vida, o corpo recebe impressões exteriores e as transmite ao Espírito por intermédio do perispírito, que constitui, provavelmente, o que se chama fluido nervoso. Uma vez morto, o corpo nada mais sente, por já não haver nele Espírito, nem perispírito. Este, desprendido do corpo, experimenta a sensação, porém, como já não lhe chega por um conduto limitado, ela se lhe torna geral. Ora, não sendo o perispírito, realmente, mais do que simples agente de transmissão, pois que no Espírito é que está a consciência, lógico será deduzir-se que, se pudesse existir perispírito sem Espírito, aquele nada sentiria, exatamente como um corpo que morreu. Do mesmo modo, se o Espírito não tivesse perispírito, seria inacessível a toda e qualquer sensação dolorosa. É o que se dá com os Espíritos completamente purificados. Sabemos que quanto mais eles se purificam, tanto mais etérea se torna a essência do perispírito, donde se segue que a influência material diminui à medida que o Espírito progride, isto é, à medida que o próprio perispírito se torna menos grosseiro.
Mas, dir-se-á, desde que pelo perispírito é que as sensações agradáveis, da mesma forma que as desagradáveis, se transmitem ao Espírito, sendo o Espírito puro inacessível a umas, deve sê-lo igualmente às outras. Assim é, de fato, com relação às que provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos. O som dos nossos instrumentos, o perfume das nossas flores nenhuma impressão lhe causam. Entretanto, ele experimenta sensações íntimas, de um encanto indefinível, das quais ideia alguma podemos formar, porque, a esse respeito, somos quais cegos de nascença diante da luz. Sabemos que isso é real; mas, por que meio se produz? Esse ponto escapa ao conhecimento. Sabemos que no Espírito há percepção, sensação, audição, visão; que essas faculdades são atributos do ser todo e não, como no homem, de uma parte apenas do ser; mas, de que modo ele as tem? Ignoramo-lo. Os próprios Espíritos nada nos podem informar sobre isso, por inadequada a nossa linguagem a exprimir ideias que não possuímos, precisamente como o é, por falta de termos próprios, a dos selvagens, para traduzir ideias referentes às nossas artes, ciências e doutrinas filosóficas.
Dizendo que os Espíritos são inacessíveis às impressões da matéria que conhecemos, referimo-nos aos Espíritos muito elevados, cujo envoltório etéreo não encontra analogia neste mundo. Outro tanto não acontece com os de perispírito mais denso, os quais percebem os nossos sons e odores, não, porém, apenas por uma parte limitada de suas individualidades, conforme lhes sucedia quando vivos. Pode-se dizer que, neles, as vibrações moleculares se fazem sentir em todo o ser e lhes chegam assim ao sensorium commune, que é o próprio Espírito, embora de modo diverso e talvez, também, dando uma impressão diferente, o que modifica a percepção. Eles ouvem o som da nossa voz, entretanto nos compreendem sem o auxílio da palavra, somente pela transmissão do pensamento. Em apoio do que dizemos há o fato de que essa penetração é tanto mais fácil, quanto mais desmaterializado está o Espírito. Pelo que concerne à vista, essa, para o Espírito, independe da luz, qual a temos. A faculdade de ver é um atributo essencial da alma, para quem a obscuridade não existe. É, contudo, mais extensa, mais penetrante nas mais purificadas. A alma, ou o Espírito, tem, pois, em si mesma, a faculdade de todas as percepções. Estas, na vida corpórea, se obliteram pela grosseria dos órgãos do corpo; na vida extracorpórea, se vão desanuviando, à proporção que o envoltório semimaterial se eteriza.
Haurido do meio ambiente, esse envoltório varia de acordo com a natureza dos mundos. Ao passarem de um mundo a outro, os Espíritos mudam de envoltório, como nós mudamos de roupa, quando passamos do inverno ao verão, ou do polo ao equador. Quando vêm visitar-nos, os mais elevados se revestem do perispírito terrestre e então suas percepções se produzem como nos Espíritos comuns de nosso mundo. Todos, porém, assim os inferiores como os superiores, não ouvem, nem sentem, senão o que queiram ouvir ou sentir. Não possuindo órgãos sensitivos, eles podem, livremente, tornar ativas ou nulas suas percepções. Uma só coisa são obrigados a ouvir: os conselhos dos Espíritos bons. A vista, essa é sempre ativa; mas, eles podem fazer-se invisíveis uns aos outros. Conforme a categoria que ocupem, podem ocultar-se dos que lhes são inferiores, porém não dos que lhes são superiores. Nos primeiros instantes que se seguem à morte, a visão do Espírito é sempre turbada e confusa. Aclara-se à medida que ele se desprende, e pode alcançar a nitidez que tinha durante a vida terrena, independentemente da possibilidade de penetrar através dos corpos que nos são opacos. Quanto à sua extensão através do espaço indefinido, do futuro e do passado, depende do grau de pureza e de elevação do Espírito.
Objetarão, talvez: “Toda esta teoria nada tem de tranquilizadora. Pensávamos que, uma vez livres do nosso grosseiro envoltório, instrumento das nossas dores, não mais sofreríamos, e eis nos informais de que ainda sofreremos. De uma forma ou de outra, será sempre sofrimento.” Sim! pode dar-se que continuemos a sofrer, e muito, e por longo tempo, mas também que deixemos de sofrer, até mesmo desde o instante em que se nos acabe a vida corporal.
Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de nós; muitos, contudo, são devidos à nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas que lhe teria sido possível evitar. Quantos males, quantas enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua ambição, numa palavra: às suas paixões? Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações se forraria. O mesmo se dá com o Espírito. Os sofrimentos por que passa são sempre a consequência da maneira por que viveu na Terra. Certo já não sofrerá mais de gota, nem de reumatismo; no entanto, experimentará outros sofrimentos que nada ficam a dever àqueles. Vimos que seu sofrer resulta dos laços que ainda o prendem à matéria; que quanto mais livre estiver da influência desta, ou, por outra, quanto mais desmaterializado se achar, menos sensações dolorosas experimentará. Ora, está nas suas mãos libertar-se de tal influência desde a vida atual. Ele tem o livre-arbítrio, tem, por conseguinte, a faculdade de escolha entre o fazer e o não fazer. Dome suas paixões animais; não alimente ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; não se deixe dominar pelo egoísmo; purifique-se, nutrindo bons sentimentos; pratique o bem; não ligue às coisas deste mundo importância que não merecem; e, então, embora revestido do envoltório corporal, já estará depurado, já estará liberto do jugo da matéria e, quando deixar esse envoltório, não mais lhe sofrerá a influência. Nenhuma recordação dolorosa lhe advirá dos sofrimentos físicos que haja padecido; nenhuma impressão desagradável eles deixarão, porque apenas terão atingido o corpo e não o Espírito. Sentir-se-á feliz por se haver libertado deles, e a paz da sua consciência o isentará de qualquer sofrimento moral. Interrogamos, aos milhares, Espíritos que na Terra pertenceram a todas as classes da sociedade, ocuparam todas as posições sociais; estudamo-los em todos os períodos da vida espírita, a partir do momento em que abandonaram o corpo; acompanhamo-los passo a passo na vida de além-túmulo, para observar as mudanças que se operavam neles, nas suas ideias, nas suas sensações e, sob esse aspecto, não foram os que aqui se contaram entre os homens mais vulgares os que nos proporcionaram menos preciosos elementos de estudo. Ora, notamos sempre que os sofrimentos guardavam relação com o proceder que eles tiveram e cujas consequências experimentavam; que a outra vida é fonte de inefável ventura para os que seguiram o bom caminho. Deduz-se daí que, aos que sofrem, isso acontece porque o quiseram; que, portanto, só de si mesmos se devem queixar, quer no outro mundo, quer neste.

Há, porém, uma outra [teoria], de alto alcance filosófico, dada pelos próprios Espíritos, e que lança sobre este problema uma luz inteiramente nova. Ela será mais bem compreendida depois que a tiverem lido. Aliás, é útil conhecer todos os sistemas, a fim de poder compará-los.

Resta agora explicar como se opera essa modificação da substância etérea do perispírito; por que processo o Espírito opera e, em consequência, o papel dos médiuns de influência física na produção desses fenômenos; aquilo que em tais circunstâncias neles se passa; a causa e a natureza de suas faculdades, etc.



É o que faremos no próximo artigo.