Encarnação como castigo pelo pecado

O seguinte artigo, tratando do princípio da não retrogradação do Espírito e eliminando a ideia da reencarnação como um castigo, foi obtido do artigo “Do princípio da não-retrogradação do Espírito”, da Revista espírita de junho de 1863. Ele contraria o que foi inserido na adulteração de O Céu e o Inferno, conforme demonstramos “A mais forte evidência de adulteração de O Céu e o Inferno, de Allan Kardec“.

“Tendo sido várias vezes levantadas questões sobre o princípio da não retrogradação dos Espíritos, princípio diversamente interpretado, vamos tentar resolvê-las. O Espiritismo quer ser claro para todos e não deixar aos seus futuros seguidores nenhum motivo para discussão de palavras, por isso todos os pontos suscetíveis de interpretação serão elucidados sucessivamente.

Os Espíritos não retrogradam, no sentido de que nada perdem do progresso realizado. Eles podem ficar momentaneamente estacionários, mas de bons não podem tornar-se maus, nem de sábios, ignorantes. Tal é o princípio geral, que só se aplica ao estado moral e não à situação material, que de boa pode tornar-se má, se o Espírito a tiver merecido.

Façamos uma comparação. Suponhamos um homem do mundo, instruído, mas culpado de um crime que o conduz às galés. Certamente há para ele uma grande descida como posição social e como bem-estar material. À estima e à consideração sucederam o desprezo e a abjeção. Entretanto, ele nada perdeu quanto ao desenvolvimento da inteligência. Levará à prisão as suas faculdades, os seus talentos, os seus conhecimentos. É um homem decaído, e é assim que devem ser compreendidos os Espíritos decaídos. Deus pode, pois, ao cabo de certo tempo de prova, retirar de um mundo onde não terão progredido moralmente, aqueles que o tiverem desconhecido, que se tiverem rebelado contra as suas leis, mandando que expiem os seus erros e o seu endurecimento num mundo inferior, entre seres ainda menos adiantados. Aí serão o que eram antes, moral e intelectualmente, mas numa condição infinitamente mais penosa, pela própria natureza do globo, e sobretudo pelo meio no qual se acharem. Numa palavra, estarão na posição de um homem civilizado forçado a viver entre os selvagens, ou de um homem educado condenado à sociedade dos forçados. Eles perderam sua posição e suas vantagens, mas não regrediram ao estado primitivo. De adultos, não se tornaram crianças. Eis o que se deve entender pela não retrogradação. Não tendo aproveitado o tempo, é para eles um trabalho a recomeçar. Em sua bondade, Deus não quer deixá-los por mais tempo entre os bons, cuja paz perturbam, e é por isto que ele os envia para viverem entre homens que eles terão por missão fazer com que progridam, ensinando-lhes o que sabem. Por esse trabalho eles próprios poderão adiantar-se e se regenerarem, expiando as faltas passadas, como o escravo que economiza pouco a pouco para um dia comprar sua liberdade. Mas, como o escravo, muitos só economizam dinheiro, em vez de amontoar virtudes, as únicas que podem pagar seu resgate.

Esta tem sido, até agora, a situação de nossa Terra, mundo de expiação e de provas, onde a raça adâmica, raça inteligente, foi exilada entre as raças primitivas inferiores que a habitavam antes dela. Tal a razão pela qual há tantas amarguras aqui, amarguras que estão longe de sentir no mesmo grau os povos selvagens.

Há, certamente, retrogradação do Espírito no sentido de que retarda seu progresso, mas não do ponto de vista de suas aquisições, em razão das quais e do desenvolvimento de sua inteligência, sua degradação social lhe é mais penosa. É assim que o homem do mundo sofre mais num meio abjeto do que aquele que sempre viveu na lama.

Segundo um sistema que tem algo de especioso à primeira vista, os Espíritos não teriam sido criados para se encarnarem e a encarnação não seria senão o resultado de sua falta. Tal sistema cai pela mera consideração de que se nenhum Espírito tivesse falido, não haveria homens na Terra, nem em outros mundos. Ora, como a presença do homem é necessária para o melhoramento material dos mundos; como ele concorre por sua inteligência e sua atividade para a obra geral, ele é uma das engrenagens essenciais da Criação. Deus não podia subordinar a realização desta parte de sua obra à queda eventual de suas criaturas, a menos que contasse para tanto com um número sempre suficiente de culpados para fornecer operários aos mundos criados e por criar. O bom-senso repele tal ideia.

A encarnação é, pois, uma necessidade para o Espírito que, realizando a sua missão providencial, trabalha para seu próprio adiantamento pela atividade e pela inteligência que ele deve desenvolver a fim de prover à sua vida e ao seu bem-estar.

Mas a encarnação torna-se uma punição quando, não tendo feito o que devia, o Espírito é constrangido a recomeçar sua tarefa e multiplica suas existências corpóreas penosas por sua própria culpa. Um estudante só é graduado após ter passado por todas as classes. Essas classes são um castigo? Não. Elas são uma necessidade, uma condição indispensável ao seu avanço. Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí é uma punição. Ser aprovado em algumas é um mérito. O que é certo, portanto, é que a encarnação na Terra é uma punição para muitos que a habitam, porque poderiam tê-la evitado, ao passo que eles talvez a tenham duplicado, triplicado, centuplicado, por sua própria culpa, assim retardando sua entrada em mundos melhores. O que é errado é admitir, em princípio, a encarnação como um castigo.

Outra questão muitas vezes discutida é esta: Como o Espírito foi criado simples e ignorante, com a liberdade de fazer o bem ou o mal, não teria ele uma queda moral quando toma o mau caminho, considerando-se que ele chega a fazer o mal que não fazia antes?

Esta proposição não é mais sustentável que a precedente. Só há queda na passagem de um estado relativamente bom a um pior. Ora, criado simples e ignorante, o Espírito está, em sua origem, num estado de nulidade moral e intelectual, como a criança que acaba de nascer. Se não fez o mal, também não fez o bem; não é feliz nem infeliz; age sem consciência e sem responsabilidade. Como nada tem, nada pode perder, nem pode retrogradar. Sua responsabilidade só começa no momento em que se desenvolve o seu livre-arbítrio. Seu estado primitivo não é, pois, um estado de inocência inteligente e raciocinada. Consequentemente, o mal que fizer mais tarde, infringindo as leis de Deus e abusando das faculdades que lhe foram dadas, não é um retorno do bem ao mal, mas a consequência do mau caminho por onde entrou.

Isto nos conduz a outra questão. Nero, por exemplo, enquanto encarnado como Nero, pode ter cometido mais maldades do que na sua precedente encarnação? A isto respondemos “sim”, o que não implica que na existência em que tivesse feito menos mal ele fosse melhor. Para começar, o mal pode mudar de forma sem ser um mal maior ou menor. A posição de Nero, como imperador, tendo-o posto em evidência, permitiu que seus atos fossem mais notados. Numa existência obscura ele pode ter cometido atos igualmente repreensíveis, posto que em menor escala, e que passaram despercebidos. Como soberano, ele pôde mandar incendiar uma cidade. Como uma pessoa comum, pôde queimar uma casa e fazer perecer a família. Um assassino vulgar que mata alguns viajantes para despojá-los, se estivesse no trono seria um tirano sanguinário, fazendo em grande escala o que a posição só lhe permite fazer em escala reduzida.

Considerando a questão sob outro ponto de vista, diremos que um homem pode fazer mais mal numa existência que na precedente, mostrar vícios que não tinha, sem que isto implique uma degeneração moral. Muitas vezes são as ocasiões que faltam para fazer o mal. Quando o princípio existe em estado latente, vem a ocasião e os maus instintos se desvelam.

A vida ordinária nos oferece numerosos exemplos dessa ordem: Um homem que era tido como bom, de repente revela vícios que ninguém suspeitava, e que causam admiração. É simplesmente porque soube dissimular, ou porque uma causa provocou o desenvolvimento de um mau germe. É bem certo que aquele em quem os bons sentimentos estão fortemente arraigados não tem nem mesmo o pensamento do mal. Quando tal pensamento existe, é que o germe existe. Frequentemente apenas falta a execução.

Depois, como dissemos, o mal, posto que sob diferentes formas, não deixa de ser o mal. O mesmo princípio vicioso pode ser a fonte de uma porção de atos diversos, provenientes de uma mesma causa. O orgulho, por exemplo, pode fazer cometer um grande número de faltas, às quais se está exposto, enquanto o princípio radical não for extirpado. Um homem pode, pois, numa existência, ter defeitos que não teria manifestado numa outra e que não são senão consequências várias de um mesmo princípio vicioso.

Para nós, Nero é um monstro, porque cometeu atrocidades. Mas é crível que esses homens pérfidos, hipócritas, verdadeiras víboras que semeiam o veneno da calúnia, despojam as famílias pela astúcia e pelo abuso de confiança, que cobrem suas torpezas com a máscara da virtude para chegarem com mais segurança a seus fins e receberem elogios quando só merecem a execração, é crível, dizíamos nós, que eles sejam melhores do que Nero? Certamente não. Serem reencarnados num Nero, para eles não seria uma regressão, mas uma ocasião para se mostrarem sob nova face. Nessa condição, eles exibirão os vícios que ocultavam. Ousarão fazer pela força o que faziam pela astúcia, eis toda a diferença. Mas essa nova prova não lhes tornará o castigo senão mais terrível se, em vez de aproveitar os meios que lhes são dados para reparar, deles se servem para o mal. Entretanto, cada existência, por pior que seja, é uma ocasião de progresso para o Espírito. Ele desenvolve a inteligência e adquire experiência e conhecimentos que mais tarde o ajudarão a progredir moralmente.




Reencarnação Segundo o Espiritismo

Baseado no vídeo de mesmo título do bate-papo semanal do Grupo de Estudos Espiritismo para Todos

Para demonstrar (e não provar) a reencarnação como uma lei natural, Kardec se baseia nos princípios fundamentais do Espiritismo e do Espiritualismo Racional. Dentre eles, estão os atributos essenciais de Deus ((Eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom. Vide O Livro dos Espíritos, Cap. I, item III – Atributos da Divindade)), que são perfeitas em grau infinito, posto que, fosse diferente, não seria esse ser o próprio Deus, sendo necessário, então, que houvesse outro acima, em condição perfeita.

É através da constatação e do entendimento dessas condições essenciais, que deriva o entendimento a respeito da criação divina. Como veremos mais à frente, sua criação também deve ser perfeita e, suas criaturas – os Espíritos – perfectíveis, o que, de contrário, não condiziria com a perfeição divina infinita.

Allan Kardec, de início, não aceitava a reencarnação. Em verdade, ele nem sequer aceitava a possibilidade da nossa interação com os Espíritos, em sua juventude. Era educador emérito, totalmente ligado aos conceitos da moral na pedagogia, além de pesquisador das ciências de então. Dizia ele que, se a educação das crianças fosse bem realizada, elas, quando crescessem, não acreditariam em almas do outro mundo ou em fantasmas ((RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834)). Foi somente após os primeiros contatos com os fatos espíritas, onde ele compreendeu a existência de uma lei natural, a qual se pôs a estudar, que, vencido pelas evidências e pela razão, aceitou, por ser a conclusão mais racional, os fatos acima mencionados.

Sobre os Espíritos, diz Kardec, na introdução de O Livro dos Espíritos: “Conforme notamos acima, os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos ou gênios“.

Já sobre a reencarnação, encontramos um artigo de muito interesse na Revista Espírita de 1858, do mês de novembro, chamado “Pluralidade das Existências“, donde tiramos o seguinte trecho:

[…] quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema, aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema ((Já falamos sobre o quão importante é esse tipo de atitude frente à pesquisa espírita. Longe de constituir um ato de prepotência ou arrogância, é necessário e instigado pelos próprios Espíritos – quando superiores)) .

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 2a edição. Grifos nossos.

Kardec, nesse mesmo artigo, cuja leitura recomendamos fortemente, dá algumas noções preliminares sobre a antiguidade da ideia sobre a transmigração das almas. Citaremo-las, para, então, apresentar as dificuldades encontradas nos falsos em que elas muitas vezes se apoiam – ou vieram a se apoiar.

Das diversas doutrinas professadas pelo Espiritismo, a mais controvertida é, inquestionavelmente, a da reencarnação ou da pluralidade das existências corpóreas. Embora seja esta opinião atualmente partilhada por grande número de pessoas e que já tenha sido abordada por nós em várias ocasiões, julgamos um dever aqui examiná-la mais minuciosamente, à vista de sua extraordinária importância e para responder a diversas objeções que foram levantadas.

Antes de entrar a fundo na questão, devemos fazer algumas observações que se nos afiguram indispensáveis.

Para muitas pessoas o dogma da reencarnação não é novo: é ressuscitado de Pitágoras. Nós jamais dissemos que a Doutrina Espírita é uma invenção moderna. Decorrendo de uma lei natural, o Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos por provar que os seus traços são encontrados na mais alta Antiguidade.

Como se sabe, Pitágoras não é o autor do sistema da metempsicose. Ele bebeu-o nos filósofos indianos e entre os egípcios, onde ela existia desde tempos imemoriais. Assim, a ideia da transmigração das almas era uma crença vulgar, admitida pelas mais eminentes personalidades.

Ibidem.

É interessante notar que, embora essa ideia fosse admitida desde a antiguidade, “pelas mais eminentes personalidades”, Kardec não a admitia. Talvez sejam dois os possíveis motivos para isso: ele não pensava nisso, porque não admitia a sobrevivência do Espírito, ou ele não encontrava racionalidade nessas ideias. É sobre esse ponto que entraremos a seguir, para demonstrar que a ausência de razão reside nos falsos princípios, tomados de forma dogmática pelo clero das religiões e ensinado, desde criancinhas, aos seus adeptos.

Falso princípio da degradação da alma

No artigo “Doutrina da reencarnação entre os hindus”, da Revista Espírita de dezembro de 1859, Allan Kardec retoma o assunto da reencarnação em profundidade, apresentando o seguinte:

Conforme os hindus, as almas tinham sido criadas felizes e perfeitas e sua decadência resultou de uma rebelião; sua encarnação no corpo de animais é uma punição. Conforme a Doutrina Espírita, as almas foram e ainda são criadas simples e ignorantes; é pelas encarnações sucessivas que chegam, graças a seus esforços e à misericórdia divina, à perfeição que lhes proporcionará a felicidade eterna. Devendo progredir, a alma pode permanecer estacionária durante um período mais ou menos longo, mas não retrograda. O que adquiriu em conhecimento e em moralidade não se perde. Se não avança, também não recua: eis por que não pode voltar a animar os seres inferiores à Humanidade.

Desse modo, a metempsicose dos hindus está fundada sobre o princípio da degradação das almas. A reencarnação, segundo os Espíritos, está fundada no princípio da progressão contínua.

Segundo os hindus, a alma começou pela perfeição para chegar à abjeção; a perfeição é o começo e a abjeção, o resultado. Conforme os Espíritos, a ignorância é o começo; a perfeição, o objetivo e o resultado. Seria supérfluo procurar demonstrar qual dessas duas doutrinas é mais racional e dá uma ideia mais elevada da justiça e da bondade de Deus.

É, pois, por completa ignorância de seus princípios que algumas pessoas as confundem.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1859.

A crença dos hindus, na queda pelo pecado, é partilhada por muitas outras correntes de pensamento, dentre elas a da Igreja Romana. Segundo essa crença, seria necessário supor que Deus não seria assim tão perfeito, pois, após um erro de um filho seu, criado perfeito, portanto, sem experiência, o submete a um castigo na carne.

No artigo “Do princípio da não-retrogradação dos espíritos”, da RE de junho de 1863, Kardec destaca que:

Segundo um sistema, os Espíritos não teriam sido criados para serem encarnados, reencarnando apenas quando cometem faltas. O bom-senso repele tal pensamento.

A encarnação é uma necessidade para o Espírito que, para cumprir sua missão providencial, trabalha em seu próprio adiantamento pela atividade e a inteligência, que ele deve desenvolver a fim de prover à sua vida e ao seu bem-estar. Mas a encarnação torna-se uma punição quando, não tendo feito o que devia, o Espírito é constrangido ((Esse constrangimento, é claro, dá-se em decorrência da lei natural, divina, e não pela ação direta e arbitrária de Deus)) a recomeçar sua tarefa e multiplica suas existências corpóreas penosas por sua própria culpa.

Um escolar somente se forma após passar por todas as classes. São essas classes uma punição? Não: são uma necessidade, uma condição indispensável para seu adiantamento ((Isso está totalmente de acordo com o pensamento pedagogo de Kardec, alinhado à pedagogia de Pestalozzi, totalmente voltado à autonomia e afastado dos conceitos de punição ou castigo, que, diz Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública” (Paris, 1828), “irritam as crianças em vez de convencê-las”)). Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí é uma punição ((Lembrando que a palavra “punição”, para o Espiritismo e para o Espiritualismo Racional, tem o significado de ser o resultado de uma ação, e não de uma imposição divina (veja este artigo). Assim, é possível compreender que repetir de ano, para o estudante, seria uma consequência de suas ações, e não um castigo infligido por elas.)). Ser aprovado em algumas é um mérito.

O que é falso é admitir em princípio a encarnação como um castigo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863. Grifos nossos.

Por incrível que pareça, esse falso princípio dominou o Movimento Espírita, após Kardec. Hoje, sem estudos, fala-se, no meio espírita, em carma, lei do retorno e lei de ação e reação, imputando, à reencarnação, essa característica arbitrariamente punitiva, do “olho-por-olho, dente-por-dente”. É um completo disparate, que só existe, como dissemos, pela ausência do estudo.

Na Revista Espírita de fevereiro de 1864, no artigo “Dissertações Espíritas – Necessidade da Encarnação”, Kardec apresenta a comunicação de um Espírito, assistido por outro, de nome Pascal:

Quis Deus que o Espírito do homem fosse ligado à matéria para sofrer as vicissitudes do corpo ((Afinal, a reencarnação é uma lei. Como diria Kardec no primeiro artigo citado, “Deus não nos pede permissão; não consulta o nosso gosto. Ou é, ou não é.”)), com o qual se identifica a ponto de iludir-se e de o tomar por si mesmo, quando não passa de sua prisão passageira; é como se um prisioneiro se confundisse com as paredes da cela…

Se Deus quis que suas criaturas espirituais fossem momentaneamente unidas à matéria, é, repito, para as fazer sentir e, a bem dizer, para que sofressem as necessidades que a matéria exige de seus corpos, no que respeita ao seu sustento e conservação.

Dessas necessidades nascem as vicissitudes que vos fazem sentir o sofrimento e compreender a comiseração que deveis ter por vossos irmãos na mesma posição. Esse estado transitório é, pois, necessário ao adiantamento do vosso Espírito, que, sem isto, ficaria estagnado.

As necessidades que o corpo vos faz experimentar estimulam os vossos Espíritos e os forçam a buscar os meios de as prover; desse trabalho forçado nasce o desenvolvimento do pensamento. Constrangido a presidir aos movimentos do corpo para os dirigir, visando a sua conservação, o Espírito é conduzido ao trabalho material e daí ao trabalho intelectual, necessários um ao outro, pois a realização das concepções do Espírito exige o trabalho do corpo e este não pode ser feito senão sob a direção e o impulso do Espírito.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864. Grifos nossos.

Ao que Kardec observa:

A estas observações, perfeitamente justas, acrescentaremos que, trabalhando para si mesmo, o Espírito encarnado trabalha para a melhoria do mundo em que habita, assim ajudando a sua transformação e o seu progresso material, que estão nos desígnios de Deus, de quem é o instrumento inteligente. Na sua sabedoria previdente, quis a Providência que tudo se encadeasse na Natureza; que, todos, homens e coisas, fossem solidários ((Esse princípio fundamental da lei natural, demonstrado pelo Espiritismo, vai de contra ao falso princípio do Espírito isolado em si mesmo. Vejamos que, mesmo sem saber ou querer, o Espírito trabalha pelo conjunto, desde sempre. Se houvesse sido criado perfeito (o que também é um contrassenso), não haveria essa necessidade.)).

A reencarnação é necessária enquanto a matéria domina o Espírito. Mas, desde que o Espírito encarnado chegou a dominar a matéria e a anular os efeitos de sua reação sobre o moral, a reencarnação não tem mais nenhuma utilidade nem razão de ser.

Com efeito, o corpo é necessário ao Espírito para o trabalho progressivo até que, tendo chegado a manejar este instrumento à vontade, a lhe imprimir sua vontade, o trabalho esteja realizado.

Ibidem. Idem.

Não creio necessárias maiores explicações. O princípio do progresso sucessivo, através das múltiplas encarnações, está demonstrado como o único capaz de dar razão a todas as questões até hoje levantadas sobre a justiça divina.

Em um próximo artigo continuaremos o assunto.




Reencarnação

Neste artigo do mês de Novembro de 1858, o segundo artigo fala da Pluralidade das Existências ou Reencarnação. Kardec vai fazer uma abordagem bem informativa sobre a reencarnação. É um artigo de muito interesse, pois demonstra o cientista, desmistificando o codificador:

“Não é novo, dizem alguns, o dogma da reencarnação; ressuscitaram-no da doutrina de Pitágoras. Nunca dissemos ser de invenção moderna a Doutrina Espírita. Constituindo uma lei da Natureza, o Espiritismo há de ter existido desde a origem dos tempos e sempre nos esforçamos por demonstrar que dele se descobrem sinais na antiguidade mais remota

RE, novembro de 1858

Observação: Ele diz que não era novo pois estava na Bíblia e foi removido pelo Segundo Concílio de Constantinopla.

O Espiritismo está em tudo e toca em todas as áreas da ciência. Ele, em si, em sua profundidade, é a ciência sobre tudo. Esse esforço de Kardec era muito importante, e deve ser o mesmo de nossa parte, pois desmistifica o Espiritismo.

Os antigos, inclusive Pitágoras (séc. VI ac), acreditavam na metempsicose, ao passo que o Espiritismo demonstra a impossibilidade dessa teoria.

Metempsicose: É uma crença fundamentalmente oriental, principalmente hinduísta, ligada ao dogma da queda pelo pecado, que não encontra base na razão desenvolvida pelo Espiritismo.

É interessante notar, porém, que um Espírito, no início de sua evolução, pode e vai encarnar em animais: (AG, cap. XI, “HIPÓTESE SOBRE A ORIGEM DO CORPO HUMANO” )

HIPÓTESE SOBRE A ORIGEM DO CORPO HUMANO

15. ​Da semelhança de formas exteriores que existe entre o corpo do homem e o de um macaco, alguns fisiologistas concluíram que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nisso não há nada de impossível e, se for assim, não há razão para que o homem sinta sua dignidade afetada. Os corpos dos símios podem, muito bem, ter servido de vestimenta aos primitivos Espíritos humanos, necessariamente pouco avançados, que vieram encarnar na Terra, porque eram as mais apropriadas às suas necessidades e as mais adequadas ao exercício de suas faculdades que os corpos de qualquer outro animal. Em vez de uma veste especial que tenha sido feita para o Espírito, ele teria encontrado uma pronta. Vestiu-se então com a pele do macaco, sem deixar de ser um Espírito humano, como o homem se reveste por vezes da pele de certos animais sem deixar de ser homem. Fique bem entendido que aqui só se trata de uma hipótese que de nenhuma maneira se enuncia como princípio, mas que é apenas apresentada para mostrar que a origem do corpo não prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica na paridade entre seu Espírito e o dele.

16. ​Admitindo essa hipótese, pode-se dizer que, sob a influência e pelo efeito da atividade intelectual de seu novo habitante, o invólucro se modificou, embelezando-se nos detalhes, conservando no todo a forma geral do conjunto. Os corpos melhorados, ao procriarem, reproduziram-se nas mesmas condições, como acontece com as árvores enxertadas, e deram nascimento a uma nova espécie que, aos poucos, se distanciou do tipo primitivo, à medida que o Espírito progrediu. O Espírito simiesco, que não foi aniquilado, continuou procriando para seu uso corpos de macacos, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie e o Espírito humano procriou corpos de homens variantes do primeiro molde em que se estabeleceu. O tronco se bifurcou; produziu um ramo, e este se tornou um tronco. Como não existem transições bruscas na natureza, é provável que os primeiros homens que apareceram na Terra se diferenciavam pouco do macaco, na forma exterior e, sem dúvida, pouco também na inteligência. Há ainda, em nossos dias, selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés, e a conformação da cabeça, tem tanta semelhança com os macacos que lhe faltam somente serem peludos para que a semelhança seja completa.

Allan Kardec. A GÊNESE – Os milagres e as Predições Segundo o Espiritismo

Isso é bem diferente, porém, de supor que um Espírito humano, em razão de um castigo, possa ser condenado a encarnar num macaco, o que, para ele, seria uma retrogradação.

Alguns contraditores dizem: “vocês já partilhavam dessa ideia, por isso os Espíritos apenas comunicaram conceitos que já aceitavam”. Ledo engano, como veremos a seguir:

“Quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, estava tão distante do nosso pensamento que, sobre os antecedentes da alma, havíamos construído um sistema completamente diferente, partilhado, aliás, por muitas pessoas. Sob esse aspecto, portanto, a Doutrina dos Espíritos nos surpreendeu profundamente; diremos mais: contrariou-nos, porquanto derrubou as nossas próprias ideias. Como se pode ver, estava longe de refleti-las. Mas isso não é tudo: nós não cedemos ao primeiro choque; combatemos, defendemos nossa opinião, levantamos objeções e só nos rendemos à evidência quando percebemos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as dificuldades levantadas por essa questão.”

Aos olhos de algumas pessoas o vocábulo evidência parecerá, sem dúvida, singular em semelhante matéria; não será, entretanto, impróprio aos que estão habituados a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos do ponto de vista moral.”

Hoje, temos não apenas a evidência moral, mas as evidências factuais da reencarnação, que, contudo, ainda não pôde ser (e nunca será) comprovada em laboratório.

“Temos, ainda, uma outra refutação a opor: é que não somente a nós ela foi ensinada; foi, também, ensinada em muitos outros lugares, na França e no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isso antes mesmo da publicação de O Livro dos Espíritos.

Acrescentamos, ainda, que, desde que nos entregamos ao estudo do Espiritismo, obtivemos comunicações através de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos, de inteligência normal mais ou menos limitada, alguns até mesmo completamente analfabetos e, em consequência, absolutamente estranhos às matérias filosóficas; não obstante, em nenhum caso os Espíritos se desmentiram sobre essa questão.”

Observação: A maioria das comunicações, pelo que sabemos, era de médiuns psicógrafos mecânicos, muitas vezes colocados em sono sonambúlico (chamado de crise, na época). Mas Kardec nunca deixou de buscar o valor nas outras formas de comunicação e nas manifestações em geral, sempre buscando destacar aquelas que pudessem despertar interesse e demonstrar a realidade da intervenção espiritual. Para seus olhos de pesquisador, até mesmo uma pintura mediúnica, como veremos logo mais, poderia representar fenômeno de interesse.

Não apenas essa doutrina é suportada pelas evidências, mas principalmente pela razão. Sem ela não existe autonomia, pois não seria dado, ao Espírito, a oportunidade de avançar, através do aprendizado nos acertos e nos erros. É o que acontece com a Doutrina ensinada pela Igreja Católica e por outras religiões, a ponto de nos espantarmos, hoje, que ainda existam as pessoas que pensem assim.

A Doutrina da Reencarnação, conforme explicada pelo Espiritismo, é a única doutrina que encaixa todas as peças do quebra-cabeças, explicando as diferenças entre os seres e a bondade divina.

“Temos raciocinado, abstraindo-nos, como dissemos, de qualquer ensinamento espírita que, para certas criaturas, carece de autoridade. Não é somente porque veio dos Espíritos que nós e tantos outros nos fizemos adeptos da pluralidade das existências. É porque essa parte da doutrina nos pareceu a mais lógica e porque só ela resolve questões até então insolúveis.”

Vejamos:

“Se não há reencarnação, só há, evidentemente, uma existência corporal. Se a nossa atual existência corpórea é a única, a alma de cada homem foi criada por ocasião do seu nascimento, a menos que se admita a anterioridade da alma, caso em que caberia perguntar o que era ela antes do nascimento e se o estado em que se achava não constituía uma existência sob forma qualquer. Não há meio termo: ou a alma existia, ou não existia antes do corpo. Se existia, qual a sua situação? Tinha, ou não, consciência de si mesma? Se não tinha, é quase como se não existisse. Caso tivesse individualidade, era progressiva, ou estacionária? Num e noutro caso, a que grau chegara ao tomar o corpo? Admitindo, de acordo com a crença vulgar, que a alma nasce com o corpo, ou, o que vem a ser o mesmo, que, antes de encarnar, só dispõe de faculdades negativas, perguntamos:”

Kardec, RE novembro 1858

1. Por que mostra a alma aptidões tão diversas e independentes das idéias que a educação lhe fez adquirir? 

2. Donde vem a aptidão extranormal que muitas crianças revelam em tenra idade, para esta ou aquela arte, para esta ou aquela ciência, enquanto outras se conservam inferiores ou medíocres durante a vida toda? 

3. Donde, em uns, as ideias inatas ou intuitivas, que noutros não existem?

4. Donde, em certas crianças, o instinto precoce que revelam para os vícios ou para as virtudes, os sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza, contrastando com o meio em que nasceram? 

5. Por que, abstraindo-se da educação, uns homens são mais adiantados do que outros? 

6. Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomardes de um menino hotentote recém-nascido e o educardes nos nossos melhores liceus, fareis dele algum dia um Laplace ou um Newton?

Comentário: Essa questão do selvagem africano vai em encontro com as diversas críticas, bastante severas, a um “racismo”, em Kardec. Como, mais abaixo, Kardec repete que “Relativamente à sexta questão, dir-se-á, sem dúvida, que o hotentote é de uma raça inferior”, acreditamos que devemos tirar um tempinho para fazer a alusão ao contexto científico de Kardec, que era, por definição, racista, isto é, classificava o ser humano por raças. Veja nosso artigo clique aqui

“Qual a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas? É fora de dúvida que, ou as almas são iguais ao nascerem, ou são desiguais. Se iguais, por que, entre elas, tão grande diversidade de aptidão? Dir-se-á que isso depende do organismo. Mas, então, achamo-nos em presença da mais monstruosa e imoral das doutrinas. O homem seria simples máquina, joguete da matéria; deixaria de ter a responsabilidade de seus atos, pois que poderia atribuir tudo às suas imperfeições físicas. Se as almas são desiguais, é que Deus as criou assim. Nesse caso, porém, por que a inata superioridade concedida a algumas? Corresponderá essa parcialidade à justiça de Deus e ao amor que ele consagra igualmente a todas as suas criaturas?”

Kardec, RE 1858

Até aqui nós analisamos a alma pelo seu passado e seu presente. E qual seria o seu futuro segundo Kardec?

1. ─ Se é unicamente a nossa existência presente que deve decidir o nosso porvir, qual será, na vida futura, a posição respectiva do selvagem e do homem civilizado? Estarão no mesmo nível ou distanciados na soma de felicidades eternas?

2. ─ O homem que durante toda sua vida trabalhou para se melhorar estará no mesmo nível daquele que permaneceu inferior, não por falta sua, mas porque não teve nem tempo nem possibilidades de melhorar-se?

3. ─ O homem que pratica o mal porque não teve possibilidade de esclarecer-se está sujeito a circunstâncias que não dependeram dele?

Observação item 2: Percebemos aqui o conhecimento contextual e filosófico dos Espiritualistas Racionais estava presente nesses questionamentos.

4. ─ Trabalha-se para esclarecer os homens, moralizá-los, civilizá-los; mas para cada um que se esclarece, há milhões que morrem diariamente, antes que a luz chegue até eles. Qual é o destino desses? São eles tratados como réprobos? Se não o são, o que fizeram para serem mantidos na mesma classe dos outros?

5. ─ Qual a sorte das crianças que morrem em tenra idade, antes de poderem fazer o bem ou o mal? Se se acham entre os eleitos, por que este favor, quando nada fizeram por merecê-lo? Por que privilégio foram liberadas das tribulações da vida?

Kardec conclui o artigo:

“Existe uma doutrina que pode resolver estas questões? Admiti as existências sucessivas e tudo estará explicado conforme à justiça de Deus. Aquilo que não se pode fazer numa existência, far-se-á em outra. Assim, ninguém escapará à lei do progresso e todos serão recompensados segundo o mérito real e ninguém será excluído da felicidade suprema a que pode aspirar, sejam quais forem os obstáculos encontrados em sua rota.”

“Essas questões facilmente se multiplicariam ao infinito, porque inúmeros são os problemas psicológicos e morais que só na pluralidade das existências encontram solução. Limitamo-nos a formular as de ordem mais geral.”

Idem

Comentários: Há urgência em se realizar um progresso qualquer? Muitos palestrantes tem utilizado um tom alarmista, dizendo que temos que nos modificar “pra ontem”, fazer a reforma íntima, porque “o planeta” vai entrar em uma nova fase, a de regeneração. Se sofremos por uma imperfeição, a urgência está em nosso próprio tempo; se estamos apenas no processo do aprendizado, esse somente se dará no tempo de cada um, segundo sua vontade.

Nossas sugestões de documentário e livro sobre Reencarnação – Pluralidade das Existências:

Documentario A&E
Reencarnação: Um Espirito em Meu Filho A&E
Livro: Crianças que se Lembram de Vidas Passadas – Ian Stevenson



Reencarnação compulsória

Assunto recorrente esse. Não basta muito esforço para encontrar tal afirmativa: um Espírito renitente, ou seja, que resiste a avançar, poderia ser “forçado” a uma reencarnação compulsória, compreendendo-se, nesse conceito, que os Espíritos superiores o forçariam a encarar provas e expiações “para seu próprio bem”.

Bem, meus irmãos, “calma lá”! É preciso ter muito cuidado com as afirmações que fazemos por aí, muitas vezes baseadas em conceitos que tem um fundo de verdade, mas que se tornam genericamente aplicados como “lei” — e aqui já abordamos diversos desses casos.

Primeiramente, precisamos recuperar o que aprendemos com o estudo do Espiritismo — aquela ciência que muitos resistem em estudar e que formou, através dos estudos de Kardec, a Doutrina Espírita ou Espiritismo: em primeiro lugar, o Espiritismo tem como fundamento a doutrina da escolha das provas, isto é, afirma que, desde que tenhamos capacidade, nós sempre escolhemos nossas provas e nossas expiações. Não custa lembrar: prova é uma oportunidade de enfrentar uma situação, para aprender com essa situação e vencer uma imperfeição; já a expiação acontece quando o Espírito se impõe um sofrimento qualquer a fim de enfrentar, na própria pele, um mal que impôs a outrem.

Dissemos: “se impõe”, porque ninguém, nem nenhum Espírito, nem mesmo Deus, impõem castigos a ninguém. Quando, no contexto de Kardec, se diz “Deus quis”, “Deus permitiu”, “Deus puniu”, quer dizer que tudo isso se dá como efeito da Criação. Ora, como somos suas criaturas, seres inteligentes e capazes do livre-arbítrio, quando nos impomos uma provação qualquer significa que, indiretamente, Deus o permite, assim como permite que o mal – ou, antes, a ausência do bem – exista.

Bem, apresentamos o conceito de provas e expiações, que visam trazer um aprendizado ao Espírito. Contudo, sabemos que apenas aprendemos algo quando entendemos realmente que erramos, o que nos traz a culpa, o remorso e a vontade de reparar – o que pode se dar ou não com as vítimas de nossos erros. Também relembramos que a escolha das provas e expiações é um princípio primordial, conforme ensinado pelos Espíritos. Aliás, isso está exposto claramente em O Livro dos Espíritos:

258. Quando na erraticidade, antes de começar nova existência corporal, tem o Espírito consciência e previsão do que lhe sucederá no curso da vida terrena?

“Ele próprio escolhe o gênero de provas por que há de passar, e nisso consiste o seu livre-arbítrio.”

a) – Não é Deus, então, que lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?

“Nada ocorre sem a permissão de Deus, porquanto foi Deus que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Ide agora perguntar por que decretou ele esta lei e não aquela! Dando ao Espírito a liberdade de escolher, Deus lhe deixa a inteira responsabilidade de seus atos e das consequências que estes tiverem. Nada lhe estorva o futuro; abertos se lhe acham, assim, o caminho do bem, como o do mal. Se vier a sucumbir, restar-lhe-á a consolação de que nem tudo se lhe acabou, e que a bondade divina lhe concede a liberdade de recomeçar o que foi mal feito. Ademais, cumpre se distinga o que é obra da vontade de Deus do que o é da do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós quem o criou e sim Deus. Vosso, porém, foi o desejo de a ele vos expordes, por haverdes visto nisso um meio de progredirdes, e Deus o permitiu.”

Onde fica, então, a tal da “reencarnação forçada”?

Vamos ver, na questão 262, o que segue:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”

a) – Quando o Espírito goza do livre-arbítrio, a escolha da existência corporal dependerá sempre exclusivamente de sua vontade, ou essa existência lhe pode ser imposta ((Reencarnação compulsória)), como expiação, pela vontade de Deus?

“Deus sabe esperar, não apressa a expiação. Todavia, pode impor certa existência a um Espírito, quando este, pela sua inferioridade ou má vontade, não se mostra apto a compreender o que lhe seria mais benéfico, e quando vê que tal existência servirá para a purificação e o progresso do Espírito, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.”

Ora, Deus então impõe a expiação? Não é bem isso. O que acontece é que quando o Espírito está em negação ou resistência, ele não consegue ver o bem que lhe proporcionaria o enfrentamento de suas imperfeições através das provas e das expiações. Não pode, portanto, escolher lucidamente…. Mas continua reencarnando. Vejamos, ainda em OLE:

167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?

“Expiação, melhoria progressiva da humanidade. Sem isto, onde a justiça?”

Entendemos facilmente que a encarnação é uma necessidade para o avanço do Espírito e que, quando ainda é simples e ignorante, o que facilmente lhe dá o estado de resistência, pode facilmente resistir a enfrentar suas próprias imperfeições. É aí, portanto, que a mecânica da Lei Divina supre sua inexperiência: através de uma encarnação “forçada”, isto é, uma encarnação “comum”, mas sem escolhas de provas e expiações, o Espírito enfrentará a escola da vida material, que o colocará, de uma forma ou de outra, frente às suas imperfeições, de acordo com a forma como escolher agir na matéria. Assim, poderá escolher – no fundo, sempre há a escolha, a partir do momento em que o Espírito entra na idade da consciência – continuar cedendo às paixões, prática da qual colherá resultados amargos (e nisso consiste as expiações involuntárias), até que, um dia, esse sofrimento moral lhe motive a dizer: “chega! Cansei de agir assim! Cansei de sofrer por ser imperfeito! Preciso me livrar dessas imperfeições!”. É nesse momento que, então, esse Espírito volta a escolher provas e expiações.

Lembramos, para terminar, que o conhecimento trazido pelo Espiritismo é de substancial importância para alavancar o processo de evolução do Espírito, pois, no momento em que, pela ciência, isto é, pela razão, ele entende que tem que ter vontade firme para vencer suas imperfeições, pode avançar em anos o que não avançou em sucessivas encarnações.




A dádiva da reencarnação

Muitas vezes nos pegamos perguntando: pra que reencarnar? Não poderíamos realizar todo o progresso no plano espiritual?

O Espiritismo, como em tudo aquilo que já nos é dado compreender, vem em nosso socorro, explicando mais esse ponto, na verdade fundamental para nossas vidas, posto que vemos tantos irmãos e, às vezes, nós mesmos, com pensamentos de esmorecimento e desistência. Quantos irmãos já não tiraram a própria vida do corpo, pelas vias do suicídio, interrompendo um planejamento reencarnatório tão importante para eles?

O que o Espiritismo nos ensina, prezado irmão ou irmã, é que, quando em Espírito, no estado de erraticidade, ou seja, no período entre uma encarnação e outra, nosso eu verdadeiro aflora com ênfase e transparência. Assim, nossas boas e más virtudes, incrustradas em nossas mentes, se mostram como eles são, e com maior verdade. É como se fôssemos um vaso de cristal que tem a água turva jogada fora e, então, passa a brilhar em sua clareza original, embora isso nem sempre mostre uma cristalidade de coração.

O Espírito que há tempos se degladia por conta de imperfeições morais – e até mesmo de vícios materiais – e que, de encarnação em encarnação, ainda não encontrou a decisão forte por sua mudança, ao desencarnar, passa a experimentar esse ambiente moral à sua disposição, já que se desloca, com a velocidade do pensamento, para as companhias e os ambientes que mais lhes apetecem. Assim, muitos Espíritos facilmente passam a inteirar as fileiras de Espíritos que agonizam na incompreensão de que, para dali saírem, basta a vontade firme, que até então, mesmo em vida física, muitas vezes não conseguiram ter.

Outrossim, há os casos dos Espíritos obsediados e perseguidos, dementados, muitas vezes, pela extensão de suas próprias culpa e incompreensão.

Vem, então, a oportunidade da reencarnação como valiosíssimo dispositivo que permite ao Espírito, pela obliteração da memória integral, retomada de fôlego e correção de imperfeições, sobretudo através do papel tão importante mas ainda tão esquecido dos pais ou cuidadores, desde a primeira infância material que o Espírito atravessa, fase na qual ele se torna mais dócil e maleável ao aprendizado – que deveria sempre ser feito nas bases do amor e da fraternidade, de forma construtiva e jamais violenta ou impositiva.

Mas, lembramos, a reencarnação, ou o planejamento reencarnatório, somente acontece de forma “impositiva” quando o Espírito ainda não tem a consciência desenvolvida a ponto de entender as necessidades para seu avanço. É nesse ponto que ele é constrangido a reencarnar, por Espíritos outros que, em nome da caridade, se dedicam a tal tarefa.

A partir do momento, contudo, em que o Espírito desenvolve sua própria consciência a respeito de suas próprias imperfeições e da necessidade de corrigi-las, passa a atuar positivamente nesse processo, muitas vezes solicitando uma nova encarnação, cheia de provas e expiações, com a finalidade de aprender e corrigir suas imperfeições.

Portanto, a encarnação, a vida atual, é uma dádiva divina, uma oportunidade abençoada para reajustarmos os fatores que, em nós mesmos, nos levam a errar e, por isso, a sofrer. Nunca foi e nunca será um castigo ou uma punição e, se nós mesmo não aumentarmos nossos sofrimentos por nossas próprias ações, conseguiremos passar pelas provas e expiações muitas vezes por nós escolhidas, pois jamais estaremos abandonados nessa empreitada e, além dos irmãos que nos assistem do plano espiritual, sempre haverão as pessoas, à nossa volta, prontas e, muitas vezes, devotadas a esse planejamento, para nos ajudar.

Queridos irmãos, espalhemos essa verdade tão simples e tão poderosa, a fim de que o irmão prestes a desistir da vida reconsidere sua posição e que não tenha que, apenas do plano espiritual, envolto em sofrimentos, olhar para trás e verificar que o sofrimento que atravessava estava prestes a acabar e que tinha muito a lhe auxiliaria a se modificar, para nunca mais sofrer daquela forma, se tivesse sua vontade muito firme e decidida. E, lembremos, sempre: todos nós chegaremos à felicidade e à perfeição, alguns mais rápido do que outros, pela ação de sua própria vontade:

133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?

“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”

a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?

“Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”

O Livro dos Espíritos

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