O silêncio do Movimento Espírita ante os temas sociais

Muitos tem falado num silêncio que o Movimento Espírita precisaria romper com relação à política. Devemos lembrar, é claro, que o silêncio do Movimento Espírita não se reflete tão-somente ao cunho político, mas é um silêncio generalizado ante à própria Doutrina, que recentemente se agita sob os estudos das obras originais de Kardec e das obras que retomam conhecimentos esquecidos no tempo.

É, claro que, no que tange à política, nós jamais estaremos apoiando quem quer que vise ligar o Espiritismo às ideologias, sobretudo quando essas ideologias não se pautam pelas ideias que expressaremos a seguir.

São várias as iniciativas que estão buscando se contraporem ao silêncio citado. Somente de grupos de estudos, conhecemos três ou quatro bastante fortalecidos, além dos papéis dos pesquisadores atuais, dentro os quais não é possível deixar de destacar Paulo Henrique de Figueiredo, em seu extenuado trabalho de recuperação das informações desconhecidas, principalmente aquelas relativas à moral autônoma e ao espiritualismo racional, bem como no trabalho tão importante que é retomar as obras originais de Kardec, não adulteradas.

Pois bem: esse trabalho, que prima pela questão da autonomia, toma por base inquestionável o poder de escolha autônoma que o Espírito deve ter. Não faltariam as citações, na obra de Kardec, dele e de Espíritos diversos, a esse respeito: o Espírito, para se modificar realmente, precisa agir por sua livre vontade e pela razão, sendo que esta dá base à outra. Não existe nenhuma iniciativa, política ou não, que tenha obtido sucesso em qualquer mudança social, duradoura e real, por menor que ela seja, com base na autoridade, apenas. É por isso que vejo sempre com muito cuidado o assunto da política atrelado a qualquer pensamento espírita: ele deveria, inexoravelmente, ser pautado pelo princípio da moral, aplicada às relações, desde os primeiros passos da criança sobre este planeta.

Não canso de destacar, e esta será sempre minha bandeira, após compreender o Espiritismo em sua essência: a transformação social somente se dará pela transformação do indivíduo, através da educação familiar e escolar. É para isso que precisamos voltar TODOS os nossos esforços, dentro e fora da política, sendo que o último seria um meio eficaz para fazer retornar à sociedade a moral pautada pelo Espiritualismo Racional, que compreende e distingue a diferença entre felicidade e infelicidade, que são características dos avanços da alma em direção ao bem, das emoções e dos prazeres, que são puramente materiais. É esse o entendimento que falta. O homem deixará de viver sob as pontes quando ele entender que depende de si mesmo, e de ninguém mais, seu progresso, e quando os demais compreenderem que a caridade é um dever moral e desinteressado, indo muito além da esmola que humilha as partes.

Voltemos nossas inteligências a esse propósito, prezados irmãos! As crianças continuam se tornando jovens e adultos repletos de imperfeições adquiridas, ou daquelas não corrigidas, em grande parte puramente pelos maus hábitos da educação, simplesmente porque ninguém está atento à necessidade urgente de chamar à razão a família e todos os funcionários da educação, pública e particular. Kardec via com olhos radiantes o futuro, porque acreditava que o modelo educacional, pautado pelo Espiritualismo Racional, continuaria a florescer e a se espalhar… Mas o apagar das luzes do século dezenove também jogaram nas sombras as filosofias que elevavam a alma acima da puerilidade da matéria.

Precisamos retroceder e entender Rousseau, Pestalozzi, Rivail, Biran, Janet e tantos outros livres-pensadores que jamais desejaram provocar as mudanças pela força, pois cedo perceberam que ela, em realidade, apenas produz agastamento e irritação. Diria Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública”:

“A criança irritada, e não persuadida, se submete somente à força; nada lhe prova que ela agiu mal; ela sabe apenas que não agiu conforme a vontade do mestre; e esta vontade ele a considera, não como justa e razoável, mas como um capricho e uma tirania; ela se acredita sempre submetida ao arbítrio. Como se faz com que ela sinta comumente mais a superioridade física do que a superioridade moral, ela espera com impaciência ter ela própria bastante força para se subtrair a isso; daí este espírito hostil que reina entre os mestres e os seus alunos.”

Assim será, porque assim é, em qualquer aspecto do Espírito. Rivail não pensava nisso, quando escreveu essa obra, mas nós hoje sabemos, como ele veio a saber depois: a criança está animada do mesmo Espírito do adulto, apenas pouco mais limitado em suas percepções e capacidades. É o seu Espírito, portanto, e não seu corpo, que não se submete à força. Lembremos disso.

Paulo Degering Rosa Junior




A fé customizada pelas paixões ideológicas

Por Marco Milani

(Texto publicado na Revista Senda – FEEES, mai/jun 2022, p.5-6((Fonte: https://www.feees.org.br/?jet_download=3739)))

Ao longo de seu discurso à comunidade de espíritas das cidades francesas de Lyon e Bordeaux, em 1862, Kardec((Livro Viagem Espírita em 1862. Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux. Discurso I)) categorizou os adeptos em três grandes grupos: I) Os que creem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem qualquer consequência moral; II) Os que percebem o alcance moral, mas o aplicam aos outros e não a si mesmos; III) Os que aceitam pessoalmente todas as consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.

O verdadeiro espírita, portanto, aplica em si mesmo o que muitos apenas manifestam em discursos normativos carregados de lições enobrecedoras, mas vazios de ações.

Entre cada uma dessas categorias poderiam ser apontadas múltiplas subcategorias, proporcionais à maturidade moral e intelectual dos indivíduos. Uma delas seria formada por aqueles que apresentam-se como adeptos, porém adequam os ensinos aos próprios interesses e não raramente procuram legitimar suas opiniões particulares sobre diversos assuntos polêmicos alegando essas estarem embasadas no Espiritismo. Tal é o espírita por conveniência, que customiza a fé conforme seus interesses e ambições.

A fé customizada é adotada em detrimento da coerência doutrinária por novos sofistas que distorcem a realidade para moldar a aparência da verdade. Tal distorção decorre, muitas vezes, das paixões que o suposto adepto carrega e direcionam sua cosmovisão e consequente argumentação. Ao invés de servir-se das premissas doutrinárias para se autoconhecer, aprimorar-se e repensar suas crenças anteriores com natural mudança de atitudes, ele faz o inverso, partindo de arraigadas convicções ideológicas para encaixar o Espiritismo nessas propostas. O que não couber ou for divergente, simplesmente ignora-se ou reinterpreta-se.

 Assim ocorre com as paixões políticas. Em um mundo de expiações e provas, não faltam antigas propostas revolucionárias sociais que prometem a concretização do reino de justiça na Terra desde que seguida determinada cartilha já idealizada por intérpretes da história e planejadores do comportamento coletivo. Quase a totalidade dessas receitas utópicas de felicidade desconhecem o processo interexistencial de desenvolvimento e pregam a imposição de relações econômicas artificiais e coletivistas como aquelas que transformariam moralmente o indivíduo, mas que acabam por sufocá-lo. Para esses, o Espírito Erasto((Trecho extraído da epístola de Erasto aos espíritas lioneses – 1861. Um alerta contra as utopias materialistas. Revista Espírita, out/1861.)) assim se manifesta. 

Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil deter-me um pouco nela, porque absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, e também porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial; antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos.

 Fruto de ilusões utópicas, muitos espíritas por conveniência selecionam e reinterpretam conceitos doutrinários para legitimar o modelo político que carregam de sistemas de relações socioeconômicas que dependem da perfeição moral de todos.

As questões transitórias sociais recorrentemente estavam presentes nos diálogos de Allan Kardec com os Espíritos e o respectivo ensino doutrinário contém os elementos fundamentais para a construção de uma sociedade terrena mais justa e fraterna, lastreada no conhecimento da realidade espiritual e da finalidade da reencarnação.

A contribuição primordial do Espiritismo no progresso social evidencia-se na condição de um poderoso agente de transformação moral da humanidade, sem qualquer enquadramento em concepções político-ideológicas já concebidas.

Como filosofia interexistencialista, o Espiritismo não se limita às relações do mundo material, pois expande a compreensão da realidade e desloca a finalidade última do ser para a conquista do verdadeiro Reino de Deus em si mesmo. As misérias humanas são reflexos do nível moral dos indivíduos, confrontando-os com as chagas do orgulho e do egoísmo, incentivando-os a exercitar a inteligência e praticar a caridade em seu verdadeiro sentido, em harmonia com as leis divinas.

O Espiritismo, ao demonstrar a responsabilidade de cada um sobre suas ações e respectivas consequências durante o processo reencarnatório em plena conformidade com as leis naturais, afasta-se da míope perspectiva materialista histórica que concebe o homem como produto de seu meio e ignora sua bagagem reencarnatória, suas tendências e necessidades evolutivas para a realização espiritual. A expressão “a cada um segundo suas obras” resume a essência meritocrática do esforço individual na jornada interior em busca da verdadeira felicidade, segundo o Espiritismo.

A confiança e a crença racional na justiça divina e no futuro pautado pelos benefícios consequentes da prática da caridade, aqui entendida como a ação benevolente, indulgente e voltada ao perdão das ofensas, deveriam nortear a conduta equilibrada do adepto, promovendo conforto e coragem para superar os desafios materiais. A conduta do espírita espelha o seu próprio progresso moral nas obras realizadas e faz-se reconhecido como coerente aos princípios de paz e solidariedade que professa.

A fé raciocinada, sob esse ângulo, analisa criticamente e admite a consistência do conjunto de ensinos apresentados por Allan Kardec, convidando o adepto da filosofia espírita a agir conforme os princípios doutrinários, reduzindo e atenuando hábitos e posturas orgulhosas e egoístas. Certamente, em um mundo de expiações e provas, não se deve exigir a súbita perfeição e o progresso moral é paulatino e proporcional aos esforços e maturidade de cada um.

A transformação social, para Kardec, não ocorrerá de maneira impositiva e totalitária ao indivíduo, mas de maneira oposta, decorrente da melhoria do indivíduo respeitando-se a liberdade de consciência de cada um. Conforme afirma-se na edição de fevereiro de 1862 da Revista Espírita((Trecho extraído do texto Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo, Revista Espírita, Revista Espírita, fev/1862)), tem-se:

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.

 Ao crer somente naquilo que está em concordância com suas paixões político-ideológicas e rejeitar tudo o que na doutrina espírita as contrarie, o adepto por conveniência exemplifica a postura egoísta e orgulhosa que leva à insensatez doutrinária. A militância política, com o intuito de ocupar espaços e disseminar suas propostas para convencer o maior número de pessoas, desrespeita a liberdade de pensamento e livre-arbítrio do próximo nas instituições espíritas e provoca cismas.

Allan Kardec, dirigindo-se aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha preparada por adversários do Espiritismo que objetivavam levar aos grupos espíritas a discussão política((ibidem)).

Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.

                       Atuando como promotores de cizânia em nome de paixões políticas variadas, os supostos adeptos que customizam a fé lançam-se com entusiasmo ao proselitismo de suas convicções pessoais camuflando-as de assuntos doutrinários, fomentando as discussões contra ou a favor de governantes, defendendo ou atacando condutas alheias, ou ainda, tentando fazer crer que só quem compartilha de suas paixões político-ideológicas poderia ser considerado um espírita legítimo.

Que nesses tempos agitados pela polarização política, consigamos entender o alerta de Kardec sobre os cuidados no trato das paixões e o respeito à liberdade de pensamento e exemplificarmos em nós mesmos o comportamento que gostaríamos que outros tivessem.




Espiritismo e Política

Bate o horário da palestra no Centro Espírita. Sobe à tribuna o palestrante, aparentemente bem preparado e de linguagem eloquente e, em meio a temas relativos ao meio espírita atual, começa a emitir opiniões diversas a respeito de um suposto propósito do Espiritismo como alicerce de movimentos políticos.

Muito provavelmente você também, caro leitor, já presenciou tais feitos, ou já ouviu relatos próximos. E, é claro, tais opiniões – pessoais, lembramos – despertam simpatias e antipatias, porque, no campo político, há muito embate e discordância de ideologias.

Não vamos nomear lados, partidos, ideologias ou o que quer que seja. O que vamos defender, aqui, é que o Espiritismo não é e nem nunca será um movimento político. E quem envolve a Doutrina em tais assuntos, não a entendeu em sua profundidade e se baseia num entendimento distorcido para fundamentar suas próprias inclinações ideológicas políticas, afastando do Espiritismo as pessoas que não concordam com sua forma de pensar – quase sempre bastante fechada em um círculo específico de ideias.

O Espiritismo, lembramos, é uma ciência moral de aspecto filosófico, cuja teoria nasceu da observação dos fatos espíritas – isto é, da manifestação dos Espíritos. Sua essência, em sua clareza original, é voltada à reforma de ideias, no sentido de como o Espírito humano encara sua evolução, suas provas, suas dificuldades e suas oportunidades. Não é acaso, aliás, que Allan Kardec foi formado no Castelo de Yverdon, pelo método de Pestalozzi: é através da pedagogia da fraternidade e do amor, e não pela punição, que o Espírito realmente adquire um entendimento real a respeito de suas potencialidades e de suas imperfeições, se aperfeiçoando e deixando para trás seus maus hábitos.

Por que dizemos tudo isso? Porque as ideologias políticas, de todos os lados, contam com adeptos – à exclusão daqueles muitos apenas utilizam da política para benefício próprio – que visam a melhoria social. Quando esses adeptos são espíritas, muitas vezes são levados a acreditar, por um entendimento muito raso, que as ideias espíritas se aliam às suas ideologias políticas, e passam a divulgar a quatro ventos tais crenças, sem se importar com as antipatias que despertarão. A propósito, precisamos também lembrar: a maioria das ideologias políticas atropela as liberdades de pensamento individuais, sendo que o Espiritismo faz justamente o contrário.

E isso tudo, repito, por um entendimento muito raso, por não se aprofundar nos estudos da Doutrina a ponto de entender que o propósito do Espiritismo é reeducar o Espírito humano e, aliando-se à educação desde a infância, melhorar a forma como o Espírito encara a vida material, promovendo nele uma mudança de ideias sobre as dificuldades da vida e sobre a necessidade de abafar seus ímpetos de orgulho e egoísmo e de agir de forma caridosa, como obrigação moral, respeitando o livre-arbítrio que cada um tem.

Isso sim muda a sociedade, pois modifica a forma como o indivíduo encara a vida e o próximo. O Espiritismo nos oferece terreno comum, sendo uma ciência disponível para pessoas de todas as crenças e ideologias, desde entendam que a sua real proposta é a modificação individual, pela livre-consciência, e não por força de lei.

Da mesma forma que se afugenta um indivíduo que bate à porta do centro buscando consolação mas ouve as mais diversas abobrinhas, também se afugentam irmãos ao envolver temas políticos no meio espírita. Infelizmente, vejo muitos espíritas apoiando ideias e indivíduos que, direta ou indiretamente, ferem ou declaradamente desejam ferir o primeiro princípio básico da lei divina, sustentada pelo Espiritismo, que é o livre-arbítrio.

Não quero dizer que seja eu alguém tão digno de se fazer importante por sua presença ou ausência, mas penso que não sou o único a se afastar por conta desse tipo de viés que não deveria, segundo minha modesta opinião, fazer parte de estudos da Doutrina – pensando que, embora queiramos imprimir aos grupos nossas próprias personalidades e ideias, temos muita responsabilidade sobre os demais, da mesma forma que tem responsabilidade aquele que “acolhe” a mãe de um indivíduo portador de deficiências dizendo que ele é assim porque cometeu suicídio na vida passada e que, por isso, a afasta.

Portanto, não, o Espiritismo não pode jamais ser misturado a movimentos políticos quaisquer.

Para terminar, lembremos

Allan Kardec que, na Revista Espírita de Fevereiro de 1862, faz um alerta:

“Devo ainda chamar a atenção para outra tática de nossos adversários: a de procurar comprometer os espiritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da Doutrina, que é o da moral (grifo nosso), para abordarem questões que não são de sua competência e que poderiam, com toda razão, despertar suscetibilidade e desconfianças.

Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às questões irritantes, nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando eia for boa.

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente uteis serão uma consequência natural”.