Somos todos Espíritos imperfeitos?
Nem todos somos imperfeitos. Essa é uma falsa ideia, quando entendida sob um determinado ângulo, como vamos demonstrar.
O Espiritismo demonstra, complementando o Espiritualismo Racional, que a imperfeição é algo desenvolvido pela repetição consciente (hábito) do erro. Ao se tornar imperfeição (chama-se “imperfeição adquirida”), pode até se tornar um vício, que demandará o esforço autônomo e também consciente para ser superado, através da escolha de provas e oportunidades em novas encarnações.
É nisso que consiste o mal: afastar-se do bem, que é a moral das leis divinas, através do desenvolvimento de imperfeições. E nem todos fazem isso. O Espírito que não desenvolveu imperfeições, ou aquele que está lutando bravamente para superá-las, está no bem ou caminhando para ele… E isso o fortalece o suficiente para vencer, também, influências exteriores, e até mesmo para repeli-las.
Mas há também o aspecto da imperfeição partindo do ponto de vista que somos todos perfectíveis. Assim, enquanto não nos tornamos Espíritos relativamente perfeitos (porque perfeito, mesmo, somente Deus pode ser), seremos imperfeitos.
Ambos os aspectos do termo são tratados por Kardec na Doutrina Espírita, e podemos provar:
Os que não se interessam apenas pelos fatos e compreendem o aspecto filosófico do Espiritismo, admitindo a moral que dele decorre, mas sem a praticarem. A influência da Doutrina sobre o seu caráter é insignificante ou nula. Não modificam em nada os seus hábitos e não se privariam de nenhum de seus prazeres. O avarento continua insensível, o orgulhoso cheio de amor-próprio, o invejoso e o ciumento sempre agressivos. Para eles, a caridade cristã não passa de uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, 23a Edição. Editora LAKE
O trecho consta da parte em que Kardec está classificando os tipos de espíritas. Ora, não haveria porque classificar uma parte deles como “imperfeitos” se somos todos imperfeitos. Isso demonstra que, nesse ponto, Kardec está tratando das imperfeições adquiridas, conforme explicadas acima.
Falamos também sobre isso no artigo recente Reforma íntima e Espiritismo e, no estudo abaixo, o tema foi tratado em grupo.
É fato: estamos longe da perfeição. Na verdade, nunca atingiremos a perfeição absoluta, pois, se atingíssemos, seríamos como Deus. Atingiremos a perfeição relativa… Porém, isso não nos faz imperfeitos, mas apenas relativamente simples e ignorantes, isto é, desenvolvendo ainda a vontade e a consciência.
Em O Céu e o Inferno, na versão original e não adulterada (vide a edição produzida pela editora FEAL), essa filosofia está claramente exposta, em toda a sua racionalidade inatacável; contudo, desde o início da formação da Doutrina, essa informação já era conhecida. Basta verificar a Escala Espírita, em O Livro dos Espíritos, e veremos que, na Terceira Ordem – Espíritos Imperfeitos, estão apenas os Espíritos que desenvolveram imperfeições: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes”. E basta raciocinar: nem todo mundo desenvolve essas imperfeições, porque alguns podem escolher não repetir os erros, como já se encontra expresso em O Livro dos Espíritos:
133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?
“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”
a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?
“Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”
O Livro dos Espíritos. Grifos nossos.
Mas como pode se dar isso?
Para entender esse fundamento da lei natural, precisamos compreender que o Espírito simples e ignorante é aquele em sua primeira encarnação consciente, no reino humano. Nesse estado, recém-saído do reino animal, guarda ainda todos os resquícios do instinto, que o governaram inconscientemente até então, no bem, porque o bem é estar na lei natural, e o animal que mata o outro para se alimentar está seguindo a lei natural, agindo apenas para suprir suas necessidades instintivas, com inteligência, mas sem consciência. Ao entrar no reino do homem, o Espírito consciente passa a fazer escolhas — não entre bem e mal, mas entre agir desta ou daquela forma. Essas escolhas produzirão resultados, que poderão configurar um acerto — estão dentro da lei divina — ou um erro — estão fora da lei divina, isto é, excedem a necessidade racional. O indivíduo pode, então, escolher não repetir esse erro, mas pode também escolher repeti-lo, pois é algo que, de alguma forma, lhe agrada às emoções ou lhe dá prazer. É nesse momento que desenvolve a imperfeição, se repete o erro constantemente. Mas ele pode também escolher não repetir o erro, pois percebe que lhe causa um mau efeito. Nesse sentido, ele é feliz em suas simplicidade e ignorância, sendo essa felicidade relativa à sua capacidade atual.
Isso também está em Kardec, em A Gênese:
“Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos”.
Na versão original dessa obra, conforme apresentada na edição da editora FEAL, Kardec complementa, dizendo que:
“Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”
Então, aquele que desenvolveu uma imperfeição é inferior aos que não as desenvolveram? É um mau Espírito? Deve ser castigado por isso? Não, não e não!
Aquele que desenvolveu uma imperfeição, o fez por não conhecer, em realidade, o bem, caso contrário teria agido adversamente. É apenas um erro — repetido conscientemente — e não passa disso. Não é uma característica do Espírito. Deus não cria ninguém mau, nem cria o mal. O mal não existe! É apenas a ausência do bem. É claro, portanto, que Deus não castigaria um filho seu por errar. Não: ele lhe dá a capacidade de raciocinar e a autonomia, de modo que ele mesmo possa perceber que os resultados de seus erros lhe causam sofrimento e, percebendo isso, se arrependa e demande a correção dessas imperfeições.
É nesse ponto que o espiritualismo moderno e o movimento espírita atual divergem da moral espírita original: para esses, ao entender o erro, o Espírito é obrigado a reparar OS EFEITOS, enquanto, para o último, o Espírito é deixado livre para escolher como e quando tentará reparar A IMPERFEIÇÃO (em si), o que pode ou não envolver a reparação de efeitos danosos que tenha realizado.
Aqui, cabe uma conclusão: a doutrina da “lei do retorno” ou do carma, que nunca fez parte do Espiritismo, afirma que, ao fazer mal para uma pessoa, teremos que reencarnar com ela para reparar esse erro. Contudo, já ficou estabelecido que o mal fazemos apenas para nós mesmos — se, ao cometer um erro com alguém, esse alguém escolhe cultivar um sentimento de cólera, ódio ou vingança, está fazendo o mal a si mesmo. Cabe, portanto, à autonomia de cada um se desapegar de tais sentimentos. Se o algoz fosse obrigado a reencarnar com sua vítima para reparar um erro e, por mais que se esforçasse por ter uma atitude irrepreensível no bem, a vítima escolhesse não desapegar de tais sentimentos, quer dizer que o erro não teria sido pago e demandaria quantas encarnações fossem necessárias para isso, vinculando o progresso do outro, que já voltou ao bem, à escolha do outro? E se, por outro lado, a vítima não se apegou, seguiu em frente, mas o algoz continua em suas imperfeições? Ela terá que reencarnar com ele para que ele, que ainda nem sequer entendeu seu sofrimento, “quite suas dívidas”? Não faz sentido!
Voltando ao nosso ponto, falávamos do retorno do Espírito ao bem. Em O Céu e o Inferno (editora FEAL, baseado na versão original, não adulterada), temos o seguinte:
“8º) A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem”.
Sendo o castigo – ou a punição, pois não sabemos ao certo qual foi a intenção da palavra original – uma consequência do erro realizado, será um verdadeiro castigo o sofrimento inerente às imperfeições. Não é uma punição arbitrária divina, mas uma consequência da lei natural. Não há condenação: tudo depende da vontade do indivíduo em arrepender-se e demandar a reparação da imperfeição, retornando, assim, ao bem.
Finalizamos reproduzindo, uma vez mais, a recomendação de Paul Janet ((Em Pequenos Elementos de Moral, disponível aqui para download.)) a repeito dos hábitos:
É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”