Existe alguma outra forma de verificar a existência da alma sem experimentos?

A questão foi proposta em uma discussão, no Facebook, a respeito da resistência da ciência em investigar a alma, imputando o assunto ao misticismo e ao sobrenatural. Destaco, abaixo, minhas considerações sobre a possibilidade de verificar a existência da alma:

“Diga-me: o átomo é observável? Dirá que sim, e isso é fato: por meio de um instrumento, é possível observar o átomo, cuja investigação do comportamento leva os cientistas a teorizar em várias hipóteses.

Sem o microscópio, no passado, o homem, certamente, diria que isso é loucura ou sobrenatural. A questão é sempre atribuir ao sobrenatural aquilo que não compreendemos: esse é o ponto.

Será que somos assim, tão conhecedores de tudo, a ponto de podermos descartar o corpo como instrumento da alma?

Infelizmente, por uma virada materialista nos paradigmas filosóficos, após o final do século XIX, muitas verdades foram colocadas no esquecimento. Hoje, quando se fala em Psicologia, não se cita Victor Cousin ou Paul Janet; quando o assunto é física quântica, ninguém fala de Mesmer, que, taxado de louco, no passado, vislumbrou teorias em acordo com a física moderna.

O erro, sempre, é associar Ciência apenas com o que é observável, esquecendo-se de que a investigação científica avança, também, pela elaboração de teorias sobre hipóteses galgadas em observações racionais. Quer ver?

“A matéria negra é uma forma de matéria hipotética que os cientistas acreditam existir no universo devido a observações astronômicas. Ela é chamada de “negra” porque não emite, absorve ou reflete luz ou outras formas de radiação eletromagnética, tornando-se invisível para nossos telescópios.

Acredita-se que a matéria negra compõe cerca de 85% da matéria do universo, mas ainda não foi detectada diretamente. Os cientistas inferem a sua existência a partir de efeitos gravitacionais que ela causa em objetos observados, como galáxias e aglomerados de galáxias.

Apesar de muitos estudos e experimentos terem sido realizados para tentar identificar a matéria negra, sua natureza ainda é desconhecida. Várias hipóteses foram propostas, incluindo partículas exóticas ainda não detectadas, buracos negros primordiais, e teorias alternativas da gravitação. A pesquisa sobre a matéria negra continua sendo uma das áreas mais importantes e intrigantes da física e da astronomia modernas.”

Diríamos que os cientistas são loucos, ao perseguirem algo que não pode ser observável por nossos instrumentos (e que talvez nunca seja), simplesmente porque observaram certos efeitos? Partindo-se do censo comum, poderíamos dizer que a matéria negra seria algo sobrenatural?

E isso para não adentrar no escopo das teorias de universos paralelos, que são uma consequência lógica de algumas teorias da mecânica quântica.

Veja: a ciência busca respostas em algo não observável, baseada meramente em efeitos. Busca a causa de um efeito. E será mesmo que os efeitos, no escopo humano, são inobserváveis – ou será que a tendência a tratar qualquer forma de espiritualismo como misticismo ou sobrenatural é apenas um preconceito em um campo onde preconceito não deveria entrar?

Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

[…]

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

[…]

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.

Vemos, portanto, que a alma é tão observável quanto a matéria negra: pelos seus efeitos inteligentes. A diferença é que o Espírito (sinônimo de alma) age por sua própria vontade.




Espiritualismo Racional e Espiritismo – uma nova divisão no meio Espírita?

Parece que alguns Espíritas – aqueles que não entenderam a proposta do Espiritismo – trabalham pela divisão, e não pela construção colaborativa. Encontram em todos os lugares e em todas as pessoas um objeto de suas críticas que, se podem ter algum fundamento, quase sempre perdem-se em razão da notória falta de aprofundamento e de uma real e sólida argumentação, que apresente ponto e contraponto, não dando sentença final sobre nada que não possa ser provado ou suficientemente elaborado pela razão. Interessante, porque, justamente, são (somos) adeptos de uma Doutrina inteiramente fundada na lógica e na razão, onde evidências e hipóteses corroboram teorias, não se dando a posse sobre a verdade. Não agindo assim, Carlos Seth Bastos, do “CSI do Espiritismo”, vem dizer que o tema Espiritualismo Racional e Espiritismo seria uma nova divisão no movimento espírita, sem ter a coragem (ou a vontade) de citar o nome do autor ao qual se refere.

A história se repetiu entre 2016 e 2020 agora no campo da moral, com o lançamento de livros que procuraram trazer pensamentos de Kant, Maine de Biran e Victor Cousin para dentro do Espiritismo, mesmo que para isso precisassem deturpar as ideias de Allan Kardec.

Sua propagação, a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião, nos parece o mesmo discurso de Marius George (Surpreso que a ideia espírita tinha recrutado tão poucos adeptos do exército de republicanos, foi finalmente levado a ver que o obstáculo era inteiramente devido ao disfarce místico sob o qual Allan Kardec o havia apresentado) e Émile Blin (Até que tenhamos trazido à Sociedade parisiense um número suficiente de membros para entrar neste caminho de pesquisa, devemos, para ver nossas fileiras aumentarem, convidar a vir até nós os incrédulos e os descrentes para, pela palavra, deixá-los conhecer nossas intenções, provar-lhes nosso desinteresse e persuadi-los de nossa boa fé e honestidade; então, por experiências tão simples quanto possível, por em suas mãos os meios de adquirir para si a certeza de que tudo o que propomos é real e, de fato, a doutrina imortalista é a única que, sem misticismo e sem orações, dá ao homem a consolação e a coragem no presente, e a esperança e a fé no futuro).

Pelo menos estes discursos não se sustentaram na falácia de uma improvável adulteração das obras de Allan Kardec.

BASTOS, Carlos Seth. Bônus adicional – O final. Espíritos sob investigação. Disponível em: <https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L193.pdf>. Acesso em: 15/04/2023.

Divisão no Espiritismo?

Em primeiro lugar, importa destacar que o Espiritismo não se divide. Sendo uma verdade natural, é una. Colocadas à parte as dificuldades encontradas nas comunicações feitas sem controle, o Espiritismo é um só, em todos os tempos. O que, sim, pode se dividir, é o Movimento Espírita – e essa divisão é incontável. Através do tempo, depois de Kardec, dividiu-se com a “roustainguização” e, depois, com incontáveis outras, por diversos motivos que não cabe citar aqui, mas que Simoni Privato, Paulo Henrique de Figueiredo e Wilson Garcia, dentre outros, contam bem em suas obras (refira-se a Obras Recomendadas).

Segundo Carlos Seth, “cabeça” do CSI do Espiritismo, agora a divisão se dá no campo moral, porque Paulo Henrique de Figueiredo – esse o autor das referidas obras, de 2018 e 2020, a quem Seth nem sequer se digna a fazer referência – estaria distorcendo falas de Kardec para implantar, na Doutrina, algo que nada tem a ver com ela. Veremos.

Em segundo lugar, importa abordar a sentença “a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião”. Como se fazer esforços legítimos e bem embasados para atrair o interesse de “pessoas avessas à religião” fosse um demérito, já que (1) o Espiritismo não é uma religião, (2) desenvolveu-se a partir de uma ciência, como uma ciência e (3) foi precisamente no meio não religioso que encontrou, em sua origem, a maior aderência – justamente porque grande parte dos cientistas que se tornaram adeptos do Espiritismo estavam bem compenetrados do desenvolvimento do Espiritualismo Racional e de suas constatações científicas.

Termina o autor novamente atacando quem, por outras evidências e argumentos lógicos e racionais, conclui pela probabilidade da adulteração ((A teoria da não-adulteração (de O Céu e o Inferno e A Gênese) tem também evidências e argumentos, mas não apresenta prova cabal. Arvora-se numa falácia para atacar outra (segundo defende), esquecendo-se das valiosas sugestões de Kardec: nunca tomar por final senão aquilo que pode ser provado.))

Kardec defendeu o Espiritualismo Racional, mas Seth parece não saber disso

Antes de mais nada, porém, precisaremos evocar Kardec e questionar o porquê de ele ter defendido o tal Espiritualismo Racional – movimento filosófico-científico encabeçado por pessoas como Maine de Biran e Victor Cousin ((Por A + B, se o Espiritualismo Racional estava instituído oficialmente no ensino francês e se era um movimento sólido, fundamentado principalmente pelos autores citados, é fácil concluir, com certeza, que Kardec refere-se ao mesmo movimento, e não a outro qualquer)). Ora, vemos, na Revista Espírita de 1868, que:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

O Sr. Chassang é o autor da história de Apolônio de Tiana, à qual nos referimos na Revista de outubro de 1862.

“Esse livro, de um caráter todo especial, não foi feito por ocasião dos recentes debates sobre o materialismo e, sem a menor dúvida, é independentemente da vontade do autor que as circunstâncias lhe vieram dar uma espécie de atualidade. Escrevendo-o, o Sr. Chassang não pretendia fazer obra de metafísico, mas de simples literato. Não obstante, como as grandes questões de metafísica estão atualmente, como sempre, na ordem do dia, e toda obra literária verdadeiramente digna desse nome supõe sempre algum princípio filosófico, esse livro, de uma inspiração espiritualista muito decidida, se acha em correlação com as preocupações do momento.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Sendo que a metafísica era um dos campos de estudo das ciências filosóficas, oficialmente instituída na Universidade de Sorbonne:

Imagem extraída do Tratado Elementar de Philosophia, de Paul Janet

E isso não é tudo. Antes disso, em 1863, Kardec diz, no artigo intitulado “Noticias bibliográficas – O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”:

Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita; aliás, em breve será seguido ─ e disto temos certeza ─ por outras adesões mais ressonantes ainda, que levarão os negadores e adversários de todas as escolas a refletir seriamente

KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro de 1863

Que sandice, senhor Kardec! Defendendo ideias que, segundo algumas pessoas, não tem nada a ver com o Espiritismo! Afirmando que o Espiritualismo Racional, ao qual se refere, no texto, apenas como “ideias espiritualistas” (o que nos leva a crer que, em outras referências do tipo – “espiritualismo”, “espiritualistas”, etc – ele se referia ao mesmo Espiritualismo Racional) seria algo obtido da observação científica dos fatos! Ora, onde já se viu ciência e espiritualismo andarem juntos? Só se foi no passado, no tempo do “doido” Kardec.

Maior sandice, na verdade, é a de Paulo Henrique de Figueiredo, que resolveu investigar a fundo e descobriu que a metafísica, ao tempo de Kardec, era uma das áreas de estudo das Ciências Morais oficialmente ensinadas na Universidade de Paris e também na Escola Normal (refira-se a “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, desse autor). Tudo isso contido em obras que, até então, eram desconhecidas ou esquecidas pelo mundo moderno.

A grande dificuldade, porém, será que todos nós, que acompanhamos o trabalho de Paulo Henrique e inclusive ele, teremos que negar a realidade, negar os documentos históricos e as obras existentes, censurar as obras de Paul Janet, negar Kardec, negar suas conclusões e suas afirmações, tudo a fim de não provocarmos uma nova cisão, “agora no campo moral”. Em outras palavras: apaguemos e adulteremos a verdade, para que a moral, da forma que eles entendem, permaneça intocada. Bem, essa sanha de tomar a verdade para si, ignorando fatos, parece um hábito do Carlos Seth Investiga do Espiritismo, como demonstramos no artigo “CSI do Espiritismo: o órgão oficial da Verdade“.

Também precisamos evocar o Espírito do Sr. Love e ter uma séria conversa com ele, a fim de esclarecer sua ousadia em, sendo um espiritualista racional, afirmar que encontrou a mesma moral obtida em suas observações, justamente no Espiritismo “de Kardec”:

A moral, tal qual a compreendo e a deduzi de noções científicas ─ não temo reconhecê-lo ─ tem numerosos pontos de contacto com aquela transmitida pelos médiuns do Sr. Allan Kardec. Também não estou longe de admitir que se nas páginas por eles escritas muitas há que não ultrapassam o alcance ordinário do espírito humano, inclusive o deles, deve havê-las, e as há, de um tal alcance que lhes seria impossível escrever outras idênticas nos seus momentos ordinários.

LOVE, G. H. apud KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro, 1863.

Creio não ser necessário seguir adiante. Deixo ao leitor a liberdade e a tarefa, se assim desejar, de buscar obter informações que o permitam chegar, pelo seu próprio raciocínio, às suas respostas. Apenas gostaria de citar mais uma vez Carlos Seth:

A doutrina espírita é progressiva, mas seu estudo é a chave. Saibamos aguardar novos dados em vez de recusarmos alguns de seus aspectos, como por exemplo a ação dos Espíritos nos fenômenos da natureza. Se ainda assim, determinada característica, como a religiosa, nos incomoda a ponto de não conseguirmos pô-la de lado, deixemos de ser espíritas kardecistas para então seguirmos quaisquer outras seitas oriundas do Espiritismo original. Apesar de recorrente na história,
é isso que hoje presenciamos mais uma vez com laicos, ecléticos e sincréticos.

BASTOS, Carlos Seth. Ibidem. Grifos meus.

Ah, se o sr. Carlos houvesse seguido seu próprio ensinamento e estudado. Se soubesse aguardar, antes de pular precipitadamente às tolas conclusões apressadas… Teria visto Paulo Henrique afirmar, em Revolução Espírita, o quão evidente é que o Espiritismo complementa e desenvolve aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde estudar, resolvendo, aliás, muitos de seus erros, contradições e incertezas. Ah, essa pressa de certos “pesquisadores renomados”…

Por que Kardec não deu mais detalhes sobre o Espiritualismo Racional?

Cabe destacar que, à objeção do porquê Kardec não ter dado mais informações sobre algo para ele tão importante, precisamos responder o seguinte: o mesmo se deu com o Magnetismo, ciência que ele declara ter estudado por mais de 35 anos. Ele simplesmente não se aprofundou sobre algo que estava tão profundamente estabelecido em seu contexto, da mesma forma que, hoje, para falar sobre astronomia, não dedicamos tempo a narrar todo o contexto científico atual, nos limitando a falar, por exemplo, da teoria do Big Bang. Se, porventura, essa teoria fosse colocada no esquecimento, por encontrar-se superada ou pela adoção de outra teoria, não necessariamente correta, um leitor qualquer, no futuro, precisaria buscar resgatar esse conhecimento para bem compreender nossas teorias, suposições e doutrinas.

Devo apenas mencionar que, ao me pronunciar sobre o caso, solicitam-me provas de Kardec teria, como eu disse, defendido amplamente o Espiritualismo Racional. Eis minha resposta:

X, se os autores do artigo (PDF), de bom grado, tivessem se dedicado a estudar a obra desse autor, antes de criticar, teriam entendido muito facilmente todo esse contexto, de modo que eu não tivesse que ficar repetindo aqui toda a informação que já existe.

Já citei uma das vezes em que Kardec citou, com ênfase, e nomeadamente, “Espiritualismo Racional”, afirmando que toda defesa dele seria favorável ao Espiritismo. Em outubro de 1863 (RE) você terá DOIS artigos muito interessantes sobre o assunto. Cito o início do segundo, ao final do número (“O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”):

“Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita”.

Vá até o Google e coloque assim: “site:kardecpedia.com espiritualismo”, e encontrará muita coisa.

Ora, se Kardec falava de fluidos (vital, elétrico, magnético, etc) não nos cabe investigar o que é isso, ao invés de adotar, cegamente, teorias erradas? Vamos então verificar que era um conceito da ciência da época, superada pela ciência atual e, ao que tudo indica, abandonada por Kardec, após convencer-se da veracidade da teoria de Mesmer. Sem fazer isso, caio no erro de dizer que Mesmer e Espiritismo não tem nada a ver, sem saber que Kardec TAMBÉM defendeu o Magnetismo de Mesmer.

Afinal, que linha de pesquisa é essa, para a qual querem dar tantos ares de seriedade e confiança, mas que comete um erro tão grave e absurdo como tal, com o agravante de dar sentenças finais sobre este ou aquele assunto, influenciando o meio espírita para uma nova cisão que não existe senão em suas mentes, apegadas a uma discordância inicial ((Refiro-me à discordância entre ter havido ou não adulterações nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese))?

Terminam por cair no ridículo e no descrédito aqueles que assim agem. Não que não estejamos livres, de nossa parte, de incorrer em erros do gênero ou outros piores, mas o estudo do Espiritismo e do proceder científico de Kardec muito nos tem ajudado nesse sentido.

O monopólio do bom-senso

Termino com uma observação de Kardec, feita sobre o artigo “A bibliotecária de Nova York”, na Revista Espírita de maio de 1860. Não é relacionado ao tema principal, mas, quem sabe, nos sirva de reflexão. Os grifos são meus, como sempre:

Sobre o artigo, faremos uma primeira observação: é a displicência com que os negadores dos Espíritos se atribuem o monopólio do bom-senso. “Os espiritualistas, diz o autor, aí veem um exemplo a mais das manifestações do outro mundo. As pessoas sensatas não vão buscar a explicação tão longe e reconhecem claramente os sintomas de uma alucinação”. Assim, conforme esse autor, só são sensatas as pessoas que pensam como ele; as demais não têm senso comum, mesmo que fossem doutores, e o Espiritismo os conta aos milhares. Estranha modéstia, na verdade, a que tem como máxima: ninguém tem razão, salvo nós e nossos amigos!

KARDEC, Allan. Revista Espírita, maio de 1860

Os documentos que eles encontraram, corroborando uma hipótese de não adulteração, são, segundo eles, comprobatórios, dão sentenças finais – mesmo sendo nada mais que evidências que não explicam muitas coisas. Fora disso, segundo eles, é tudo descartável, falácia ou invenção.

O questionamento é natural, salutar e necessário. Ele nos instiga a pesquisar, a reler, a estudar. Mas seria ainda mais produtivo se a opinião discordante nascesse, sempre, de um profundo embasamento bibliográfico e científico, de modo a não terminar como os Srs. Schiff e Jobert (Revista Espírita, junho, 1859) que, tendo descoberto no estalar de um músculo a confirmação de uma hipótese, terminaram por afirmar categoricamente, com palavra final, contra todos os fenômenos espíritas. Bem, basta ler o artigo para certificar-se do ridículo no qual caíram frente aos fatos apresentados por Kardec.

Isso é ciência. Isso é desapego. Isso é compromisso com a verdade. Por todo esse compromisso, longe de configurar como um ataque, mas como uma defesa, faço o que eles não fizeram, e dou nome e sobrenome àqueles que atacam de maneira leviana o trabalho de outros.

Estranhamente, Seth vê uma divisão ao tratar do movimento que deu base ao surgimento do Espiritismo, mas não vê problema algum em ficar fuçando e trazendo à tona fofocas da época, lançada por médiuns que não quiseram se adequar àquilo que a Doutrina Espírita demandava. Vai entender…




A verdadeira psicologia

A palavra psicologia significa, literalmente, “estudo da alma” (ψυχή, psyché, “alma” – λογία, logia, “tratado”, “estudo”). Não é, porém, o que vemos refletido nos estudos atuais – e de longa data – sobre o tema, pois, por mais que essa área se aproxime do entendimento da alma como “o princípio inteligente, a racionalidade e o pensamento”, ainda procura na matéria cerebral a origem de todas as características do indivíduo ((

“Nosso cérebro, involuntariamente, procura elementos para se apoiar, reforçar suas convicções ou seus interesses, o que o leve a um estilo de vida individualizado, próprio. Não importa o que você utiliza para fortalecer ou motivar seus desejos, suas esperanças, todas as variadas formas são válidas. Pessoas que não acreditam em nada tendem a ser pessimistas e negativas, pois para elas, nada poderá ocorrer para que haja mudança nas suas vidas. Pois o domínio da razão, prende o homem ao que é terreno. A genética explica a origem da fé.”

SOUZA, Andreia Maria S. “O que é alma: significado em psicologia e psicanálise”. Disponível em https://www.psicanaliseclinica.com/alma-o-que-e/. Acesso em 10/09/2022. Grifos nossos.

Como se vê, mesmo a fé, para a psicologia moderna, ainda é materialista, condicionada, para ela, à genética, e não à alma (necessariamente, portanto, em progresso).

)).

A área de pesquisa do ser humano, de sua “psyché” (psique) está predominantemente caracterizada pelas ideias aristotélicas que definem o ser como um resultado do corpo – ideias essas que, varando pelos séculos, criaram, em contrário à filosofia de Sócrates e Platão, autônoma e espiritualista em essência, uma lamentável doutrina heterônoma e materialista, que, além de retirar do ser os princípios da autonomia e da vontade, fizeram surgir as absurdas ideias de racismo, eugenia e, no campo individual, da heteronomia, que, do indivíduo, contamina seu meio social e, por fim, define as estruturas sociais, filosóficas e políticas.

Pautada e contaminada pela ideia aristotélica, onde o indivíduo atribui, quando puramente materialista, todas as suas características morais à genética do corpo e, quando “espiritualista”, a um ou mais seres atuantes como árbitros (como se Deus, ou “os deuses”, fossem seres vingativos, interferentes) ou impelentes ao mal – o diabo, o(s) demônio(s), etc. – a sociedade se descarateriza como social, tornando-se predominantemente egoísta e insulando o ser em si mesmo, visando o atendimento de suas necessidades materiais, ao invés de levá-lo à compreensão de sua vontade como princípio de tudo, no exercício diário e solidário com o outro.

As religiões, enfim, tiraram, por interesses sectários, a autonomia do indivíduo, para o subordinarem a caprichos e castigos de outros seres, interferentes, belicosos e vingativos, quando não maldosos, ao passo que a ciência, não vendo racionalidade nos princípios dogmáticos das religiões, negando-a em completo, renegou a espiritualidade humana, para, então, cair no mesmo erro, tirando a autonomia do indivíduo ao transformá-lo em “boneco-de-ventríloquo” da química corporal. Não é à toa que a eugenia darwinista se fundamentava em Aristóteles, pois, se por um lado acerta na observação do fato natural da seleção, por outro, estende-o ao ser humano, colocando-o, uma vez mais, como efeito de seu corpo, e não como fator determinante sobre ele. Dizia Darwin: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”.

Não sabíamos nós, porém, que, por expressiva quantidade de tempo, e na capital do mundo dos séculos XVIII e XIX, nasceu uma corrente filosófica que retomou os conceitos da autonomia do indivíduo como princípio fundamental da existência e da definição do (ou de) ser. Uma filosofia que definiu as ciências morais francesas ((Diz Paulo Henrique de Figueiredo em “Autonomia”: A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosofia, de Paul Janet, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:

a) As ciências exatas ou matemáticas.

b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).

c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.

As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:

  • As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).
  • As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafia, numismática, geografia) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.
  • As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografia etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.
  • As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano (JANET, 1885, p. 15-17).)) e que passou a ser matéria fundamental na Escola Normal, na formação dos professores, e que depois passou a ser adotada nos liceus e nos colégios, mas que foi sorrateiramente apagada da história humana, juntamente a duas outras ciências filosóficas de mesmo fundamento, como veremos a seguir.

Foi no início do século XIX que Maine de Biran e, depois, Victor Cousin, entre outros, retomaram o conceito da vontade como princípio elaborado psicologicamente pela alma, definindo o livre-arbítrio. Para esses pensadores – numa época em que, como vimos, a filosofia era tratada como ciência – a autonomia do indivíduo está fundamentada na vontade como caraterística da alma. Desse princípio fundamental, nasceram os princípios que afastaram o ser da heteronomia, colocando-o como agente autônomo de si mesmo e, por sua ação solidária, da sociedade. O indivíduo não era mais um reflexo de sua genética (ou, como pensavam na época, de suas disposições biliares ((A bile branca definia o bem e a bile negra definia o mal, na química corporal. Partindo desse princípio, muitos médicos aplicavam as sangrias, tantas vezes mortais, buscando eliminar do corpo a bile negra.)), mas o reflexo primário de sua vontade.

Isso revolucionou a psicologia da época e transformou totalmente as ciências morais, pois colocou o indivíduo na condição de único responsável real por suas condições e escolhas morais. Mais: passou a tratar dos temas morais, sob esses princípios, de forma a separar o que era externo ao indivíduo – as emoções (na época chamadas paixões), os prazeres, a dor física, etc – do que era interno ao indivíduo – as escolhas, nascidas da vontade de sua alma (sendo que a alma seria, para eles, o ser que define a vontade e que sobrevive à morte, sem, porém, investigá-la nesse estado) que, por fim, determinariam seu estado de felicidade ou de infelicidade.

Esse conhecimento é fantástico e merece ser recuperado e estudado! Veja: hoje, definimos (ou confundimos) nosso estado de felicidade e infelicidade pelos fatores externos – se não tenho dinheiro para viajar, ou se tenho um corpo debilitado, ou se perdi pessoas queridos, me acho infeliz, sendo que a felicidade, para o pensamento materialista vigente, estaria nas coisas do mundo – as festas, as viagens, o dinheiro, etc. Ao compreender essa moral definida por essa filosofia espiritualista – o espiritualismo racional, como ficou conhecida – passamos a separar as coisas: posso estar infeliz por uma condição ou acontecimento, ou não ter prazeres por conta de não ter dinheiro, ou por ter uma saúde debilitada, ou limitações corporais, mas não é isso que define minha felicidade, pois esta é uma construção da vontade de minha alma no que tange à moral, isto é, no meu esforço pelo desapego de tudo aquilo que nasce das condições exteriores à minha vontade. Por exemplo: como condição exterior à minha vontade, definida pela minha alma, existe o impulso corporal de reagir com violência a determinada situação; ao permitir que esse ímpeto, que nasce do instinto de proteção, domine minha vontade, posso realizar ações que me façam, posteriormente, arrepender-me (quando me conscientizar), pelo que sofrerei. Se me apegar a tal modo de agir, desenvolverei um hábito e, daí, um vício, que me fará sofrer indefinidamente, até que, me arrependendo, resolva, de forma consciente, buscar me desapegar desse erro, num esforço que só pode ser autônomo, e não impositivo.

Talvez quem tenha melhor definido esses conceitos seja Paul Janet, em duas obras principais: “Pequenos Elementos de Moral”, uma obra muito sucinta e simples de ler (recomendamos a leitura!), disponível para download aqui e também disponível no Amazon Kindle, e “Tratado Elementar de Philosophia“, uma obra bastante maior e mais complexa.

Mas não para por aí. Mencionamos a questão da bile negra e da bile branca, que tomou os conceitos médicos da época e que, pelas absurdas ações impostas aos doentes, como a sangria ou os “remédios”, que misturavam até veneno, debilitavam e, por vezes, matavam os doentes. Contrário a essas ideias, ainda no século XVIII, Mesmer, ao observar alguns pacientes, chegou – de forma muito resumida – a elaborar conceitos também autônomos no tratamento da saúde, teorizando que o indivíduo poderia também se curar pela ação de sua vontade. Hahnemann, com a homeopatia, seguiu o mesmo princípio. Para Mesmer, o agente externo, agindo através da vontade do indivíduo doente – o que ficou conhecido por magnetismo – poderia auxiliá-lo a atingir, através de um trabalho persistente, curas que, para muitos, seriam impossíveis e, em alguns casos, quase milagrosas (o que, de fato, não era: trava-se apenas de uma ciência desconhecida). Tal era a exatidão de suas teorias que, já naquela época, e contra as teorias científicas de então, elas se alinhavam aos conceitos ora vigentes e demonstrados pela física moderna, como os da Teoria Quântica de Campos e da existência de uma matéria elementar, “quintessenciada”, que dá origem a toda a matéria (matéria escura). É todo um conhecimento que demandaria um verdadeiro livro para tratá-lo. Como esse livro já existe, recomendamos sua leitura: “Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Mencionamos também a questão de o estudo dos espiritualistas racionais estar limitado à compreensão da alma como agente da vontade, exterior ao corpo e dominante sobre ele, sobrevivente à morte (por mera inferência racional dos postulados anteriores), mas de posterior destino desconhecido, posto que inobservável. Acontece, porém, que “algo” vinha acontecendo, ganhando terreno para o estabelecimento de uma nova ciência, nascida, na época, como todas as outras: pela observação racional e metodológica dos fatos da natureza.

Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

[…]

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

[…]

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”

FIGUEIREDO. Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal.

Chegamos, portanto, ao nascimento da ciência espírita, uma ciência, e não, como muitos julgam, uma “religião”. Posto no corrente dos fatos que pululavam pela Europa (e pelo mundo, na verdade) e, afastando, pela investigação, as charlatanices que visavam apenas atrair curiosos e suas bolsas de dinheiro, o professor Rivail ((Hippolyte Leon Denizard Rivail.)) colocou-se, após muita insistência de alguns conhecidos, a um estudo que culminou naquilo que ficou conhecido como Espiritismo, que, ao invés de nascer, como todas as doutrinas religiosas, da opinião isolada de um indivíduo ou de um grupo, nasceu da análise racional de milhares de comunicações, obtidas de todos os “cantos” do mundo, da mesma forma que os magnetizadores que o precederam também obtiveram as suas: através de indivíduos colocados em estado de sonambulismo, induzido pelo magnetismo (de Mesmer). Um fato estava firmado, sustentado pela razão: a alma, antes ininvestigável, poderia, por sua vontade, se comunicar através da alma do indivíduo colocado em estado sonambúlico.

Através dessas comunicações, Allan Kardec, nome adotado por Rivail com a finalidade de não confundir seus trabalhos como educador e cientista com seus novos estudos, inaugurou uma nova era no estudo psicológico, pois, agora, plenamente alinhado aos conceitos já elaborados pelo espiritualismo racional, estudava a alma em seu estado, após a morte, de felicidade ou infelicidade, frutos de suas escolhas. Não só: contra as ideias pré-concebidas que tinha, junto a outros estudiosos, a respeito da origem da alma, comunicações de incontáveis Espíritos evidenciaram, pela razão, a lei da reencarnação como elemento necessário ao progresso incessante do Espírito ((Destaca Kardec, em sua Revista:

“Sem dúvida, dizem alguns contraditores, vós estáveis imbuídos de tais ideias e por isso os Espíritos concordaram com vossa maneira de ver. É um erro que prova, mais uma vez, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se, antes de julgar, tais pessoas se tivessem dado ao trabalho de ler o que escrevemos sobre o Espiritismo, ter-se-iam poupado ao trabalho de uma objeção tão leviana. Repetiremos, pois, o que já dissemos a respeito, isto é, que quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema.

Aos olhos de algumas pessoas, talvez pareça singular o uso do termo evidência, em semelhante assunto, entretanto não será impróprio para quem se habituou a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos uma evidência moral.

Não é aqui o lugar para explicar esses fatos, só compreensíveis através de um estudo contínuo e perseverante. Nosso objetivo era apenas refutar a ideia de que esta doutrina não passa de uma tradução do nosso pensamento.”

KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1858.

)), em suas escolhas de retorno à matéria, para dar prosseguimento ao seu aprendizado e, em muitos casos, para, após o processo de arrependimento, mediante suas escolhas, e não por uma imposição arbitrária, dar lugar às provas necessárias para a busca pelo desapego de hábitos e vícios que, transformados em imperfeições, os levaram ao sofrimento.

Tais estudos complementaram aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde explicar e demonstraram que a autonomia do ser, definida por sua vontade e pelo seu livre-arbítrio, era, sim, fator determinante em seu progresso e, consequentemente, em seu estado de felicidade ou infelicidade, à medida que a felicidade estaria em quanto mais próximo da lei natural estivesse, ao passo que a infelicidade estaria em lutar contra ela, desenvolvendo apegos. Em reconhecendo o estado de infelicidade e seu motivo, o Espírito escolheria novas oportunidades que proporcionassem aprendizado, não sendo, em nenhuma hipótese, o efeito de um castigo imposto pelo erro cometido.

Eis, prezado leitor, os fatos da verdadeira revolução psicológica e filosófica que, por mais de um século, ficou desconhecida pela sociedade, varrida para baixo do tapete por uma forte reação materialista. Outrora reconhecida como ciência, hoje, sob o império de um entendimento materialista – e inexato – do que é ciência, é tratada como pseudociência, descreditada e desacreditada sob essa classificação. Eis os fatos que, atualmente, são inconcebíveis de serem abordados nas salas de aula das turmas de filosofia, medicina, psicologia e afins. Eis os fatos, enfim, que levaram todo o mundo a mergulhar ou se manter sob os temíveis princípios que tiram do ser a autonomia e que transformam o homem numa verdadeira massa de carne, definida por sua química corporal e, por conseguinte, pelo seu DNA. Não se busca, hoje, em geral, investigar a origem da infelicidade, da depressão ou dos distúrbios pela investigação da alma e de sua vontade: busca-se, pelo contrário, investigar qual é gene da psicopatia, não se cogitando que as “anomalias” seriam definidas pela alma, e não o contrário.

Acontece, porém, que o ser humano, exatamente pelo progresso espiritual, que não cessa, a cada dia mais busca a autonomia, porque, lenta e progressivamente, se aproxima, pela própria razão, da constatação e do entendimento desses princípios, já que o progresso do Espírito não se dá apenas no estado de encarnação. Começam a ganhar força, tanto na sociedade em geral, como nos meios científicos, as ideias autônomas que, a cada dia mais, voltam a se aproximar dessa verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano, no passado. É por isso que, veementemente, indicamos o estudo das obras citadas para, depois, indicar, àqueles que se sintam compelidos a isso, o estudo da Revista Espírita, elaborada por Kardec, de janeiro de 1858 a abril de 1869, onde fica exposta, com muita clareza, a formação dessa doutrina filosófica e moral que, para ser bem entendida, carece da compreensão do contexto em que nasceu e se formou.

Dissemos da verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano. O Espiritismo, tendo sido a única doutrina científica e filosófica que se aprofundou no estudo da psicologia do Espírito após a morte do corpo – eis a razão de a Revista Espírita receber, como subtítulo, “Jornal de Estudos Psicológicos” – estudou os fatos que lhes foram dados de forma racional e com metodologia científica (que pode ser muito bem entendida através do estudo sério da obra de Allan Kardec, e sobre a qual já falamos algumas vezes, em nossos artigos).

Devidamente contextualizada em sua época, a Doutrina Espírita, era de tal maneira racional e lógica, clara e, de certa forma, simples, que “convertia” ((Claro que o sentido aqui dado a “converter” é o de adotar princípios e ideias de uma doutrina, e não de afiliar-se a um sistema religioso qualquer.)) incontáveis pessoas, até mesmo ateus e materialistas, desde as classes operárias até os ocupantes dos mais altos postos sociais. Hoje, porém, o Movimento Espírita, contaminado, por mais de um século, por adulterações nas duas obras finais de Kardec e por ideias incutidas em seu meio, perdeu justamente essa característica racional e lógica de uma ciência observacional. Atualmente, muitos se afastam do meio espírita justamente por verem seus raciocínios chocados contra falsos conceitos de pagamento de dívidas, carma, castigo divino através da reencarnação e aceitação desarrazoada de qualquer suposta psicografia espírita, sem submetê-la, como recomendava Kardec, ao crivo da razão.

Eis o porquê da necessidade de estudar e conhecer o Espiritismo nas obras [originais ((As obras O Céu e o Inferno e A Gênese foram respectivamente adulteradas em suas 4a e 5a edições, mas a editora FEAL já tem, atualmente, as obras originais, com enorme quantidade de notas contextualizatórias de Paulo Henrique de Figueiredo.))] de Kardec. O Espiritismo nunca foi uma religião, nem nasceu com o intuito de disputar com as religiões um posto que não lhe compete ((Diria Kardec, na Revista Espírita de 1862:

“A propósito da questão dos milagres do Espiritismo que nos foi proposta, e que tratamos no nosso último número, igualmente se propõe esta: ‘Os mártires selaram com o seu sangue a verdade do Cristianismo; onde estão os mártires do Espiritismo?’

Estais, pois, muito instados a ver os Espíritas colocados sobre a fogueira e lançados às feras! O que deve fazer supor que a boa vontade não vos faltaria se isso ocorresse ainda. Quereis, pois, a toda força elevar o Espiritismo à situação de uma religião! Notai bem que jamais ele teve essa pretensão; jamais se colocou como rival do Cristianismo, do qual declara ser o filho; que ele combate os seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo. Ainda uma vez, é uma filosofia repousando sobre as bases fundamentais de toda religião, e sobre a moral do Cristo; se renegasse o Cristianismo, se desmentiria, se suicidaria. São esses inimigos que o mostram como uma nova seita, que lhe dá sacerdotes e grandes sacerdotes. Gritarão tanto, e tão frequentemente, que é uma religião, que se poderia acabar por nisto crer. É necessário ser uma religião para ter seus mártires? A ciência, as artes, o gênio, o trabalho, em todos os tempos, não tiveram seus mártires, assim como todas as ideias novas?”

Allan Kardec – Revista Espírita de 1862

)). É, antes de tudo, uma ciência moral, como demonstramos, mas também uma ciência nascida da observação dos fatos da natureza. Estudado como tal, afasta preconceitos e ataca o único real inimigo da autonomia humana, o materialismo, demonstrando-o falso e insustentável.




Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões ((Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época)). Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 ((JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870))

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro ((Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.)); não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro ((Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral))), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência ((Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo)); mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral ((Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso)).

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno ((Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações)), falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição ((Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”)), assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.




O Espiritualismo Racional e o Tratado de Filosofia de Paul Janet

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

[originalmente publicado em https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet/]

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosophia, de Paul Janet, obra em dois volumes, que podem ser baixados por aqui, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:

  • a) As ciências exatas ou matemáticas.
  • b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).
  • c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.

As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:

1) As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).

2) As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafa, numismática, geografa) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.

3) As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografa etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.

4) As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano ( JANET, 1885, p. 15-17).

As três últimas classes das ciências morais (históricas, filológicas e sociais) tratam dos fatos ou fenômenos morais que são exteriores ao ser humano, visto a partir do ponto de vista objetivo. Mas, considerando espírito humano “o conjunto das faculdades intelectuais e morais do homem, tais quais se manifestam interiormente em cada um de nós”, tudo o que concerne ao eu, princípio interior consciente de si mesmo, é o ponto de vista subjetivo, ou “estudo da própria alma” (JANET, 1885, p. 17). Daí um grupo de ciências chamadas ciências psicológicas. Elas adotam a metodologia da introspecção e foram um desenvolvimento da escola científica iniciada por Maine de Biran. Todavia, para sustentar o estudo psicológico pelo olhar espiritualista, as bases conceituais desse paradigma precisaram se tornar objeto de pesquisa, compreendendo uma ciência do homem (espírito humano) e uma ciência das causas primeiras, ou metafísica. Esses são os objetos das ciências filosóficas.

Veja mais detalhes na obra Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo.