O duplo princípio do bem e do mal é um engano!

A crença na existência do mal, como algo criado por Deus (ou pelo “diabo”, quem, por ter sido criado por Deus, acarreta a mesma consequência) e que vem de fora, é algo muito difundido, em todo o mundo e em todas as crenças. O Espiritismo, porém, é a única doutrina filosófica, até hoje existente, a demonstrar, racional e factualmente, que isso não é uma verdade.

Começamos citando Kardec, em A Gênese, no texto “Fonte do Bem e do Mal”:

Sendo Deus o princípio de todas as coisas e, sendo esse princípio todo sabedoria, todo bondade e todo justiça, tudo o que provém dele deve compartilhar esses atributos, pois o que é infinitamente sábio, justo e bom não pode produzir nada irracional, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter originado dele.

Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, seja ele chamado Ahriman, seja Satã((O zoroastrismo, religião ancestral da Pérsia, propunha a existência de deuses gêmeos: Ahura Mazda, da bondade e da luz, e Angra Mainyu, o Ahriman, deus das trevas e do mal. O mundo estaria numa batalha entre o bem e o mal. Satã, personagem da Bíblia, é identificado como anjo caído no novo testamento. (N. do E.))), de duas, uma: ou ele seria igual a Deus e, por consequência, também poderoso e eterno, ou seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que o outro está fazendo, opondo-se mutuamente. Essa hipótese é inconciliável com a harmonia que se revela, na ordem do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, esse ser estaria subordinado a ele. Não podendo ser eterno como ele sem ser seu igual; só poderia ter sido criado por Deus. Se foi criado, só poderia ter sido por Deus. Nesse caso, Deus teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação de sua infinita bondade.

KARDEC, Allan. A Gênese. Editora FEAL. 2a edição, 2018.

Assim, Kardec demonstra que não seria possível a existência de um ser que desse princípio ao mal, pois, sendo esse princípio o próprio Deus, não estaria de acordo com seus atributos (sendo Ele o bem); sendo um outro ser, esse ser teria sido criado por Deus o que faria, portanto, que o mal ainda assim seria criação de Deus.

Em O Céu e o Inferno, Kardec fala da origem do princípio do bem e do mal:

Durante longos séculos e sob diversos nomes, o princípio duplo do bem e do mal foi a base de todas as crenças religiosas, sendo personificado nas figuras de Aúra-Masda e Arimã entre os persas, e de Jeová e Satã entre os hebreus. Entretanto, como qualquer soberano deve ser auxiliado por ministros, todas as religiões admitiram agentes secundários, os gênios bons ou maus. Os pagãos os representavam através de uma inumerável multidão de individualidades, cada qual com atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e as virtudes, e às quais deram o nome genérico de deuses. Os cristãos e os muçulmanos receberam dos hebreus os anjos e os demônios.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Editora FEAL. 1a edição, 2021.

Essas doutrinas, que, em verdade, respondem à moral heterônoma, levam à crença de que o mal é algo externo, definido. No caso das religiões cristãs, esse princípio foi reproduzido na crença dos anjos e dos demônios, e isso principalmente após a Igreja Romana se apropriar do cristianismo:

A doutrina dos demônios tem sua origem, portanto, na antiga crença dos princípios do bem e do mal. Vamos examiná-la aqui apenas do ponto de vista cristão, verificando se está de acordo com o conhecimento mais exato que temos atualmente dos atributos da Divindade.

Esses atributos são o ponto de partida, a base de todas as doutrinas religiosas((A confusão entre o princípio material de prazer e dor (bom e ruim) com o princípio da moral (bem e mal) é a base da heteronomia presente nas crenças das religiões ancestrais. O animal se submete aos instintos, agindo assim cegamente às necessidades das espécies. Mas o ser humano tem dupla natureza, participa da vida animal pelo corpo e da vida espiritual pela alma. Tratado servilmente, o ser humano torna-se máquina. Cabe ao espírito humano abandonar a condição heterônoma de sujeição à vontade de terceiros (fé cega e obediência passiva) pela conquista do livre-arbítrio e do senso moral, como propõe o Espiritismo. (N. do E.))). Os dogmas, o culto, as cerimônias, os costumes, a moral, tudo está em harmonia com a ideia mais ou menos justa, mais ou menos elevada que se faz de Deus, desde o fetichismo até o Cristianismo. Se a essência íntima de Deus é ainda um mistério para a nossa inteligência, compreendemo-Lo hoje, no entanto, melhor do que jamais foi compreendido, graças aos ensinamentos do Cristo. Ensina-nos o Cristianismo, em linha com a razão, que Deus é único, eterno, imutável, imaterial, todo-poderoso, soberanamente justo e bom, e infinito em todas as suas perfeições.

Assim, como foi dito antes (cap. VII, “Penas eternas”), “Se fosse subtraída a menor fração de um só de seus atributos, não mais haveria Deus, porquanto poderia existir um ser mais perfeito”. Tais atributos, em sua mais absoluta plenitude, são, portanto, o critério de todas as religiões, a medida da verdade de cada um dos princípios que ensinam. E, para que qualquer desses princípios seja verdadeiro, é necessário que não atente contra nenhuma das perfeições de Deus. Vejamos se assim acontece na doutrina comum dos demônios.

Ibidem

Kardec segue tecendo uma linha de raciocínio da qual não é possível fugir: ou Deus é soberano, em tudo, ou não é.

Segundo a Igreja, Satã, o chefe ou rei dos demônios, não é uma personificação alegórica do mal, mas efetivamente um ser real a fazer exclusivamente o mal, enquanto Deus pratica exclusivamente o bem. Tomemo-lo, portanto, tal qual nos é apresentado.

Satã existe de toda a eternidade, como Deus, ou é posterior a Ele? Se existe de toda a eternidade, ele é incriado, e, portanto, igual a Deus, caso em que Deus não mais seria único, pois existiria um deus do bem e um deus do mal.

Satã é posterior a Deus? Então ele é uma criatura de Deus. Uma vez que somente faz o mal, sendo incapaz de fazer o bem e de se arrepender, Deus terá criado um ser consagrado eternamente ao mal. Se o mal não é obra de Deus, mas obra de uma de suas criaturas predestinadas a fazê-lo, Deus será sempre o primeiro autor do mal, não sendo, portanto, infinitamente bom. O mesmo acontece com todos os seres maus, chamados demônios((Sabemos que a palavra “demoônio” vem do grego, e significa “gênio” ou “Espírito”.)).

Ibidem

Se, para dizer que Deus não criou o mal, diz-se que o diabo existe também de toda eternidade. Se assim fosse, então Deus não seria mais Deus, pois não seria único, já que existiria um deus do bem e um deus do mal.

Avança Kardec:

Segundo o Espiritismo, nem os anjos nem os demônios são seres à parte, já que a criação dos seres inteligentes é uma só. Unidos a corpos materiais, eles constituem a humanidade que povoa a Terra e as outras esferas habitadas. Libertos desses corpos, constituem o mundo espiritual ou dos espíritos que povoam os Espaços. Deus os criou perfectíveis, dando-lhes por meta a perfeição e a felicidade que desta advém, mas não lhes deu a perfeição. Quis Deus que a atingissem pelo esforço pessoal, a fim de ter o mérito de sua conquista. Os seres progridem desde o momento de sua criação, seja encarnados ou no estado espiritual((As crenças heterônomas das religiões ancestrais afirmam a falsa ideia de que as almas foram criadas por Deus perfeitas em sabedoria e virtude. O mal se daria pelo pecado e ocasionaria a queda no mundo, onde as vicissitudes seriam castigos divinos. Assim, a humanidade inteira estaria nessa condição. Tudo muda com a teoria moral autônoma do Espiritismo, onde todas as almas são criadas simples, ignorantes e perfectíveis, a felicidade é a meta, e o mal, quando existe, é temporário, sendo superado pelo esforço. (N. do E.))) Chegados ao apogeu, tornam-se espíritos puros, ou anjos, segundo a expressão vulgar, de sorte que, do embrião do ser inteligente até o anjo, há uma cadeia ininterrupta em que cada elo assinala um passo na escala do progresso

Ibidem

Nós não somos, portanto, criados perfeitos. Somos criados simples e ignorantes e, pela nossa vontade, progredimos ou estacionamos, desenvolvemos virtudes ou imperfeições. Ora, já está estabelecido que a existência do diabo é, de fato, uma impossibilidade. Onde estaria o mal, então? O mal está em cada um, quando se afasta do bem por viver nas imperfeições.

Daí resulta existirem espíritos em todos os graus de adiantamento moral e intelectual, conforme a posição que ocupam na escala((VIDE a “Escala Espírita“)). Há, portanto, espíritos em todos os graus de sabedoria e ignorância, de bondade e maldade. Nas classes inferiores há os que ainda são profundamente inclinados ao mal, comprazendo-se nele. Caso queiramos, podemos chamá- los de demônios porque são capazes de todas as transgressões atribuídas a estes últimos. Se o Espiritismo não os denomina assim, é porque tal nome se prende à ideia de seres distintos da humanidade, de uma natureza essencialmente perversa, consagrados ao mal por toda a eternidade, incapazes de progredir na direção do bem.

Ibidem

Dissemos, então, que o mal é o afastamento do indivíduo da moral da lei divina, natural, para viver nas imperfeições. Queremos, portanto, entender: como se desenvolve o mal? Trataremos disso num próximo artigo, sob esse título!




Deus e o Diabo — a origem do bem e do mal

FONTE DO BEM E DO MAL
Extraído de A Gênese, 4.ª edição, FEAL — Allan Kardec

1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e, sendo esse princípio todo sabedoria, todo
bondade e todo justiça, tudo o que provém dele deve compartilhar esses atributos, pois o
que é infinitamente sábio, justo e bom não pode produzir nada irracional, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter originado dele.

2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, seja ele chamado Ahriman, seja Satã, de duas, uma: ou ele seria igual a Deus e, por consequência, também poderoso e eterno, ou seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que o outro está fazendo, opondo-se mutuamente. Essa hipótese é inconciliável com a harmonia que se revela, na ordem do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, esse ser estaria subordinado a ele. Não podendo ser eterno como ele sem ser seu igual; só poderia ter sido criado por Deus. Se foi criado, só poderia ter sido por Deus. Nesse caso, Deus teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação de sua infinita bondade.

3. Conforme certa doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e Deus,
para puni-lo, teria o condenado a permanecer eternamente mau, dando-lhe a missão de
seduzir os homens para lhes induzir ao mal. Ora, podendo uma única queda((A queda, para as religiões dogmáticas representa um evento no qual o homem, em sua origem, cometendo falta grave contra Deus, perdendo sua santidade, justiça e sabedoria originais, caindo por castigo na condição presente: com sofrimento, ignorância, arrastamento ao pecado e morte. Ou seja, haveria degradação da alma. A Doutrina Espírita, fundada no conceito de evolução da alma desde simples e ignorante por seu esforço, estabelece por essa sólida lógica sua teoria. (N. do E.))) custar-lhes os mais cruéis castigos pela eternidade, sem esperança de perdão, nisso não haveria só uma falta de bondade. Porém, uma crueldade premeditada, porque, para tornar a sedução mais fácil e melhor ocultar a armadilha, Satã estaria autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as obras próprias de Deus, até o ponto de enganar. Assim, haveria mais iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando toda a liberdade para Satã emergir das trevas e se entregar aos prazeres mundanos para arrastar os homens, o provocador do mal seria menos punido que as vítimas de suas artimanhas, pois estas, caindo por fraqueza, uma vez no abismo, não mais podem sair. Deus lhes recusa um copo de água para saciar sua sede e, durante toda a eternidade, com os anjos, ouve seus gemidos, sem se deixar comover, ao mesmo tempo que permite a Satã todo o prazer que desejar.

De todas as doutrinas sobre a teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a
mais ofensiva para com a divindade. (Ver O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo.
Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.)

4. Entretanto, o mal existe e possui uma causa.

Há várias classes de mal((Na época de Allan Kardec, a Filosofia ensinada na universidade, na escola normal (atual magistério) e nos colégios era o Espiritualismo racional. Na disciplina de moral teórica (uma das Ciências Filosóficas), ensinava-se a diferença entre o mal físico e o moral, para demonstrar uma revolucionária teoria fundamentada na liberdade pessoal, contrária ao dogma da queda e do castigo divino das religiões ancestrais e da coação externa, pelo materialismo: “O mal físico consiste em dor, doença, morte. São consequências inevitáveis da organização dos seres sencientes, estimulante essencial para sua atividade. O mal moral é a condição fundamental da liberdade. Sem o mal, o bem não é possível no mundo, pois, se o homem não pudesse errar, não estaria livre nem seria capaz de fazer o bem. Essa vida é uma época de provação e, sem o mal físico e moral, não há lugar para coragem, paciência, dedicação e demais virtudes”. (Le Mansois-Duprey. Cours de Philosophie Élémentaire em L’école normale: journal de l’enseignement pratique. v. 13. Paris: Larousse et Boyer, 1864. p. 235.) A teoria moral espírita foi um desenvolvimento do Espiritualismo racional: “O Espiritismo repousa, pois, sobre princípios gerais independentes de todas as questões dogmáticas. Ele tem, é verdade, consequências morais como todas as Ciências Filosóficas”. (Revista Espírita, 1859.). (N. do E.))). Em primeiro lugar há o mal físico e o mal moral. Também podemos classificar os males entre aqueles que o homem pode evitar e os que são independentes de sua vontade. Entre estes últimos, é preciso incluir os flagelos naturais.

O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode compreender todos nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista de sua personalidade, dos interesses e das convenções artificiais que criou para si mesmo, não pertencentes à ordem da natureza. É por isso que, em geral, lhe parece prejudicial e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se conhecesse sua causa, seu objetivo e o resultado definitivo. Ao investigar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo tem a marca da sabedoria infinita e se curvará ante a essa sabedoria, mesmo em relação a coisas que não compreenda.

5. O homem recebeu uma inteligência por meio da qual ele pode afastar, ou ao menos
diminuir bastante os efeitos dos flagelos naturais. Quanto mais conhecimento adquire e
avança na civilização, menos essas calamidades são desastrosas. Com sábia organização
social, poderá até mesmo neutralizar seus efeitos, quando não puderem ser totalmente
evitadas. Dessa forma, para os mesmos flagelos que são úteis na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que nos atacam no presente, Deus deu ao homem, com as faculdades com as quais dotou seu Espírito, os meios para paralisar seus efeitos.

Assim, o homem limpa regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestilentos, fertiliza
terras não cultivadas, preserva-as de inundações; constroem-se casas mais saudáveis, mais fortes para suportar os ventos, tão necessários para a purificação da atmosfera, e se protege do clima. É assim, finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade o fez criar as Ciências, com a ajuda das quais ele melhora as condições de habitabilidade do globo e amplia o conjunto de seu bem-estar.

Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto constituem um incentivo para o exercício de sua inteligência e de todas as suas faculdades físicas e morais, convidando-o à pesquisa dos meios para evitá-los. Se ele nada tivesse a temer, nenhuma
necessidade o levaria à busca do melhor; ele se entorpeceria na inatividade de sua mente; não inventaria nem descobriria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem a seguir adiante, no caminho do progresso.

6. Mas os males mais numerosos são aqueles que o homem cria pelos próprios vícios;
provenientes de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua ganância, de seus
excessos em todas as coisas. Essa é a causa das guerras e calamidades que causam
desavenças, injustiças, a opressão do fraco pelo forte e, finalmente, a maioria das doenças.

Deus estabeleceu leis cheias de sabedoria, cujo objetivo é o bem. O homem encontra
em si mesmo tudo o que é necessário para segui-las. Seu caminho é traçado por sua
consciência, e a lei divina está gravada em seu coração. Além do mais, Deus o recorda,
constantemente, por seus messias e profetas, por todos os Espíritos encarnados que
receberam missão de esclarecer, moralizar e contribuir para seu aperfeiçoamento, assim
como, nesses últimos tempos, pela multidão de Espíritos desencarnados que se manifestam por todos os lados. Se os homens se conformarem rigorosamente com as leis divinas, não há dúvida de que evitariam os males mais graves, vivendo felizes na Terra. Se não o faz, é em virtude de seu livre-arbítrio, e deve aceitar as consequências.

7. Mas, Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal; quer dizer, do próprio mal faz nascer o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e faz o homem sentir a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, sente-se obrigado a procurar no bem o remédio que precisa, sempre em virtude de livrearbítrio. Quando toma um caminho melhor, é por sua vontade e porque reconheceu as desvantagens da outra estrada. A necessidade o compele a melhorar moralmente para ser mais feliz, pois essa mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais de sua existência.

Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. O mal
não é mais um atributo distinto, assim como o frio não é um fluido especial; um é a
negação do outro. Onde o bem não existe, há necessariamente o mal. Não fazer o mal já é o começo do bem. Deus só quer o bem, o mal somente vem do homem. Se houvesse na Criação um ser encarregado do mal, o homem não poderia evitá-lo. Contudo, tendo a causa do mal em si mesmo e, ao mesmo tempo, tendo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, ele o evitará quando desejar.

Tomemos um fato comum, por comparação: um proprietário sabe que, na extremidade
de sua terra, há um local perigoso, no qual pode se ferir ou morrer. O que faz para evitar
acidentes? Coloca, próximo do lugar, um aviso para se afastar, por causa do perigo. Essa é a lei; ela é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente ignora o aviso e sofre um acidente, quem poderia ser responsabilizado, senão ele próprio?

Assim acontece em relação ao mal. O homem o evitaria se observasse as leis divinas.
Deus, por exemplo, colocou um limite para a satisfação das necessidades; o homem é
avisado pela saciedade; se ele ultrapassa esse limite, age voluntariamente. As doenças, as fraquezas do corpo, a morte que podem resultar disso são obra sua, e não de Deus.

8. Sendo o mal resultado das imperfeições do homem, e o homem criado por Deus, dirão, que se ele não criou o mal, pelo menos teria criado a causa dele. Se tivesse criado o homem perfeito, o mal não existiria.

Se o homem tivesse sido criado perfeito, estaria fatalmente inclinado ao bem. Agora,
em virtude de seu livre-arbítrio, não tende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Deus quis que ele fosse submetido à lei do progresso, e que esse progresso fosse fruto do próprio trabalho, a fim de que o mérito fosse seu, mesmo tendo a responsabilidade pelo mal que pratica por sua vontade. A questão, portanto, está em saber qual é, no homem, a origem da sua propensão ao mal((O erro consiste em pretender que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando ele, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado do refinamento gradual do espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude de seu livre-arbítrio, pudesse escolher entre o bem e o mal, chegando aos seus derradeiros fins por uma vida dedicada e pela resistência ao mal. Se tivesse criado a alma com uma perfeição à sua semelhança – e que, saindo de suas mãos, ele a tivesse ligado à sua beatitude eterna –, Deus a teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio, como já dito. Conhecedora de todas as coisas em razão de sua essência e sem ter aprendido nada, mas movida por um sentimento de orgulho nascido da consciência de seus atributos divinos, a alma seria induzida a renegar sua origem, a desconhecer o autor de sua existência, ficando em estado de rebelião contra seu Criador. (Bonnamy, juiz de instrução. A razão do Espiritismo, capítulo VI.) (Nota de Allan Kardec.))).

9. Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos((Na teoria moral espírita, o livre-arbítrio surge após o desenvolvimento da inteligência racional. Desse modo, a responsabilidade moral só aí se inicia e se amplia gradualmente, na proporção direta do desenvolvimento racional. Nos animais e nos seres ainda simples e ignorantes, não surgiu o livre-arbítrio, o senso moral e a responsabilidade pelos seus atos. Esses conceitos psicológicos afastam completamente os dogmas do pecado original, da queda e da encarnação como castigo. Também são falsas as hipóteses científicas do egoísmo e do sentimento antissocial inatos em todos os indivíduos. Traz alento, pois quanto maior a inteligência, maior a responsabilidade. Por fim, para uma evolução moral plena da humanidade é necessário garantir para todos os indivíduos a oportunidade do desenvolvimento racional pela educação. (N. do E.))).

10. O destino do Espírito é a vida espiritual. Mas, nas primeiras fases de sua existência
corporal, ele só possui necessidades materiais para satisfazer. Com essa finalidade, o
exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente falando. Porém, saindo desse período, possui outras necessidades, a princípio semimorais e semimateriais, e depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria. Na medida em que se liberta de seu jugo, avança pela vida adequada e se aproxima de seu destino final. Se, ao contrário, deixar-se dominar pela matéria, se atrasa e se identifica com os irracionais. Nessa situação, o que antes era um bem, por ser uma necessidade da sua natureza, torna-se um mal, não só por não ser mais uma necessidade, mas porque se torna nocivo para a espiritualização do ser. Por isso, o mal é relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento.

Todas as paixões têm sua utilidade providencial, sem o que Deus teria feito algo inútil
e nocivo. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa, conforme seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo próprio interesse, ele escolhe, livremente, entre o bem e o mal