A luta contra um Espírito obsessor

Na luta contra um Espírito obsessor, o conhecimento trazido pela Doutrina Espírita, como ela verdadeiramente é, é crucial. Sem as falsas ideias que reinam sobre o movimento espírita atual, podemos chegar às causas raízes e ao método para combater os Espíritos obsessores, pela nossa própria conscientização.

Texto obtido de parte do artigo Obsedados e Subjugados, da Revista Espírita de 1858. Subtítulos e destaques nossos.

Empolgação e vaidade do médium

Seja por entusiasmo, seja por fascínio dos Espíritos, ou seja por amor próprio, em geral o médium psicógrafo é levado a crer que os Espíritos que se comunicam com ele são superiores, e tanto mais, quanto mais os Espíritos, vendo sua propensão, não deixam de ornar-se com títulos pomposos, conforme a necessidade. Segundo as circunstâncias, tomam nomes de santos, de sábios, de anjos, da própria Virgem Maria, e fazem o seu papel como atores, vestindo ridiculamente a roupagem das pessoas que representam. Tirai-lhes a máscara e se tornam o que eram: ridículos. É isto o que se deve saber fazer, tanto com os Espíritos quanto com os homens.

Da crença cega e irrefletida na superioridade dos Espíritos que se comunicam, à confiança em suas palavras há apenas um passo, assim como acontece entre os homens. Se chegarem a inspirar essa confiança, alimentam-na por meio de sofismas e dos mais capciosos raciocínios, ante os quais frequentemente a gente baixa a cabeça. Os Espíritos grosseiros são menos perigosos: reconhecemo-los imediatamente e não inspiram mais que repugnância. Os mais temíveis, em seu mundo, como no nosso, são os Espíritos hipócritas: falam sempre com doçura; lisonjeiam as inclinações; são meigos, manhosos, pródigos em expressões carinhosas e em protestos de dedicação. É preciso ser realmente forte para resistir a semelhantes seduções.

Leia também: Maldição e Espiritismo.

Perguntareis: Onde está o perigo se os Espíritos são impalpáveis? O perigo está nos conselhos perniciosos que dão, aparentando benevolência, e nas atitudes ridículas, intempestivas ou funestas que nos levam a empreender. Já vimos alguns que fizeram certas pessoas andarem de região em regiãoem busca de coisas fantásticas, com o risco de comprometer a saúde, a fortuna e a própria vida. Vimolos ditar, com a aparência de gravidade, as coisas mais burlescas e as máximas mais esquisitas.

Considerando-se que convém dar o exemplo ao lado da teoria, vamos relatar a história de uma pessoa nossa conhecida que esteve sob o domínio de uma fascinação semelhante.

Um jovem médium obsedado

O Sr. F…, moço instruído, de esmerada educação, de caráter suave e benevolente, mas um pouco fraco e indeciso, tornou-se médium psicógrafo com muita rapidez. O Espírito obsessor que dele se apoderou e não lhe dava repouso, escrevia incessantemente. Se uma pena ou um lápis lhe caía na mão, tomava-o num movimento convulsivo e enchia páginas e páginas em poucos minutos. Na falta de instrumento, simulava escrever com o dedo, em qualquer parte onde se encontrasse: na rua, nas paredes, nas portas etc. Entre outras coisas, esta lhe era ditada: “O homem é composto de três coisas: o homem, o mau Espírito e o bom Espírito. Todos vós tendes vosso mau Espírito, que está ligado ao corpo por laços materiais. Para expulsar o mau Espírito é necessário quebrar esses laços para o que é preciso enfraquecer o corpo. Quando este se acha suficientemente enfraquecido, o laço se parte e o mau Espírito vai embora, deixando apenas o bom.”

Em consequência desta bela teoria fizeram-no jejuar durante cinco dias consecutivos e velar à noite. Quando estava extenuado, eles lhe disseram: “Agora a coisa está feita e o laço partido. Teu mau Espírito se foi: ficamos apenas nós, em quem deves crer sem reservas.” E ele, persuadido de que seu mau Espírito havia fugido, acreditava cegamente em todas as suas palavras. A subjugação havia chegado a um ponto em que se lhe tivessem dito para atirar-se na água ou partir para os antípodas, ele o teria feito. Quando queriam obrigá-lo a fazer qualquer coisa que lhe repugnava, era arrastado por uma força invisível.

Damos uma pequena amostra de sua moral; a partir daí pode-se julgar o resto:

Absurdos de um Espírito obsessor que usa até o nome de Jesus

“Para ter melhores comunicações é necessário primeiro orar e jejuar durante vários dias, uns mais, outros menos. O jejum enfraquece os laços que existem entre o ego e um demônio particular ligado a cada ser humano. Esse demônio está ligado a cada pessoa pelo envoltório que une corpo e alma. Esse envoltório se enfraquece pela falta de alimento e permite que os Espíritos arranquem aquele demônio. Então Jesus desce ao coração da pessoa possessa, em lugar do mau Espírito. Esse estado de possuir Jesus em si é o único meio de atingir toda a verdade e muitas outras coisas.

Quando a criatura conseguiu substituir o demônio por Jesus, ainda não possui a verdade. Para tê-la, é necessário crer. Deus não dá a verdade aos que duvidam: seria fazer algo de inútil e Deus nada faz em vão. Como a maioria dos médiuns novos duvidam do que dizem e escrevem, os bons Espíritos, a contragosto, por ordem formal de Deus, são obrigados a mentir e não têm outro jeito senão mentir até que o médium fique convencido; mas assim que ele acredita numa dessas mentiras, os Espíritos elevados se apressam em lhe desvelar os segredos do céu: a verdade inteira dissipa num instante essa nuvem de erros com que tinham sido obrigados a envolver o seu protegido.”

Encheríamos um volume com todas as tolices que lhe foram ditadas e com as circunstâncias que se seguiram. Entre outras coisas fizeram-no desenhar um edifício de tais dimensões que as folhas de papel, coladas umas às outras, chegavam à altura de dois andares.

Observe-se que em tudo isto nada há de grosseiro ou banal. É uma série de raciocínios sofísticos encadeando-se com aparência de lógica. Nos meios empregados para enganá-lo há realmente uma arte infernal e, se nos tivesse sido possível relatar todas essas manifestações, ver-se-ia até que ponto era levada a astúcia e com que habilidade para isso eram empregadas palavras melífluas.

Um bom Espírito buscava ajudar

O Espírito obsessor que representava o papel principal nesse negócio dava o nome de François Dillois, quando não se cobria com a máscara de um nome respeitável. Mais tarde viemos a saber o que esse tal Dillois tinha sido em vida, e então, nada mais nos surpreendeu em sua linguagem. Mas no meio de todo esse aranzel era fácil reconhecer um bom Espírito que lutava, fazendo de quando em quando ouvir algumas boas palavras de desmentido dos absurdos do outro. Havia um combate evidente, mas a luta era desigual. O moço se achava de tal modo subjugado, que sobre ele a voz da razão era impotente. O Espírito de seu pai, notadamente, lhe fez escrever as seguintes palavras: “Sim, meu filho, coragem! Sofres uma rude prova, que será para o teu bem no futuro. Infelizmente, no momento, nada posso fazer para te libertar, e isto muito me custa. Vai ver Allan Kardec; escuta-o, e ele te salvará”.

A vontade do moço e o auxílio de Kardec

Efetivamente, o Sr. F… veio procurar-me e, para começar, reconheci sem dificuldades a influência perniciosa sob que se achava, quer nas palavras, quer por certos sinais materiais que a experiência dá a conhecer, e que não nos podem enganar. Ele voltou várias vezes. Empreguei toda a minha força de vontade para chamar os bons Espíritos por seu intermédio; toda a minha retórica para lhe provar que era vítima de Espíritos detestáveis; que aquilo que escrevia não tinha senso, além de ser profundamente imoral. Para essa obra de caridade juntei-me a um colega, o Sr. T… e pouco a pouco conseguimos que escrevesse coisas sensatas. Ele tomou aversão àquele mau gênio, repelindo-o por vontade própria cada vez que tentava manifestar-se, e lentamente os bons Espíritos triunfaram.

Para modificar suas ideias, ele seguiu o conselho dos Espíritos, de entregar-se a um trabalho rude, que lhe não deixasse tempo para ouvir as sugestões más.

O próprio Espírito obsessor, Dillois, acabou confessando-se vencido e manifestou o desejo de progredir em nova existência. Confessou o mal que tinha tentado fazer e deu provas de arrependimento. A luta foi longa e penosa e ofereceu ao observador particularidades realmente curiosas. Hoje o Sr. F. sente-se livre e feliz. É como se tivesse deposto um fardo. Recuperou a alegria e agradece-nos o serviço que lhe prestamos.




Podemos evocar Espíritos maus?

O assunto está em pauta, porque muitos dizem evocar espíritos. Infelizmente, muitos também acreditam que simplesmente por estarem evocando maus Espíritos, estariam prontamente contraindo ligações com Espíritos obsessores. Veremos, pelo texto seguinte, que não é assim e que, havendo seriedade e bons propósitos, na verdade, se produz o bem e, frequentemente, a ligação com um Espírito que nunca mais esquecerá seu gesto.

Um antigo carreteiro – Revista Espírita de dezembro de 1859 (conteúdo integral)

O excelente médium Sr. V… é um moço que geralmente se distingue pela pureza de suas relações com o mundo espírita. Contudo, depois que se mudou para os aposentos que atualmente ocupa, um Espírito inferior se intromete em suas comunicações, interpondo-se até em seus trabalhos pessoais.

Encontrando-se, na noite de 6 de setembro de 1859, em casa do Sr. Allan Kardec, com quem devia trabalhar, foi entravado por aquele Espírito, que lhe fazia traçar coisas incoerentes ou impedia que escrevesse.

Então o Sr. Allan Kardec, dirigindo-se ao Espírito, manteve com ele a seguinte conversa:

1. ─ Por que vens aqui sem ser chamado?
─ Quero atormentá-lo.

2. ─ Quem és tu? Dize o teu nome.
─ Não o direi.

3. ─ Qual o teu objetivo, intrometendo-te naquilo que não te diz respeito? Isto não te traz nenhum proveito.
─ Não, mas eu o impeço de ter boas comunicações e sei que isto o magoa muito.

4. ─ És um mau Espírito, pois que te alegras em fazer o mal. Em nome de Deus eu te ordeno que te retires e nos deixes trabalhar tranquilamente.
─ Pensas que metes medo com essa voz grossa?

5. ─ Se não é de mim que tens medo, tê-lo-ás sem dúvida de Deus, em nome de quem te falo e que poderá fazer que te arrependas de tua maldade.
─ Não nos zanguemos, burguês.

6. ─ Repito que és um mau Espírito, e mais uma vez te peço que não nos impeças de trabalhar.
─ Eu sou o que sou, é a minha natureza.
Tendo sido chamado um Espírito superior, ao qual foi pedido que afastasse o intruso, a fim de não ser interrompido o trabalho, o mau Espírito provavelmente se foi, porque durante o resto da noite não houve mais nenhuma interrupção.

Interrogado sobre a natureza desse Espírito, respondeu o superior: Esse Espírito, que é da mais baixa classe, é um antigo carreteiro, falecido perto da casa onde mora o médium. Escolheu para domicílio o próprio quarto deste, e há muito tempo é ele que o obsidia e o atormenta incessantemente. Agora que ele sabe que o médium deve, por ordem de Espíritos superiores, mudar de residência, atormenta-o mais do que nunca. É ainda uma prova de que o médium não escreve o seu próprio pensamento. Vês assim que há boas coisas, mesmo nas mais desagradáveis aventuras da vida. Deus revela o seu poder por todos os meios possíveis.

─ Qual era em vida o caráter desse homem?

─ Tudo o que mais se aproxima do animal. Creio que seus cavalos tinham mais inteligência e mais sentimento do que ele.

─ Por que meio pode o Sr. V… desembaraçar-se dele?

─ Há dois: o meio espiritual, pedindo a Deus; o meio material, deixando a casa onde está.

─ Então há realmente lugares assombrados por certos Espíritos?

─ Sim, Espíritos que ainda estão sob a influência da matéria ligam-se a certos locais.

─ Os Espíritos que assombram certos lugares podem torná-los fatalmente funestos ou propícios às pessoas que os habitam?

─ Quem poderia impedi-los? Mortos, exercem influência como Espíritos; vivos, exercem-na como homens.

─ Alguém que não fosse médium, que jamais tivesse ouvido falar de Espíritos e que nem acreditasse neles poderia sofrer tal influência e ser vítima de vexames de tais Espíritos?

─ Indubitavelmente. Isto acontece mais frequentemente do que pensais, e explica muitas coisas.

─ Há fundamento na crença de que os Espíritos frequentam de preferência as ruínas e as casas abandonadas?

─ Superstição.

─ Então os Espíritos assombrarão uma casa nova da Rua de Rivoli, do mesmo modo que um velho pardieiro?

─ Por certo. Eles podem ser atraídos antes para um lugar do que para outro, pela disposição de espírito dos seus moradores.
Tendo sido evocado, na Sociedade, o Espírito do carreteiro acima mencionado, por intermédio do Sr. R…, ele manifestou-se por sinais de violência, quebrando os lápis, enfiando-os com força no papel, e por uma escrita grosseira, trêmula, irregular e pouco legível.

1. (Evocação).
─ Aqui estou.

2. ─ Reconheceis o poder de Deus sobre vós?
─ Sim; e daí?

3. ─ Por que escolhestes o quarto do Sr. V…, e não um outro?
─ Porque isto me agrada.

4. ─ Ficareis ali muito tempo?
─ Tanto quanto me sentir bem.

5. ─ Então não tendes a intenção de melhorar?
─ Veremos. Eu tenho tempo.

6. ─ Estais contrariado porque vos chamamos?
─ Sim.

7. ─ Que fazíeis quando vos chamamos?
─ Estava na taberna.

8. ─ Então bebíeis?
─ Que tolice! Como posso beber?

9. ─ Então o que quisestes dizer quando falastes da taberna?
─ Quis dizer o que disse.

10. ─ Quando vivo, maltratáveis os vossos cavalos?
─ Sois da polícia municipal?

11. ─ Quereis que oremos por vós?
─ E faríeis isto?

12. ─ Certamente. Nós oramos por todos aqueles que sofrem, porque temos piedade dos infelizes e sabemos que a misericórdia de Deus é grande.
─ Oh! Bem, sois boa gente mesmo. Eu gostaria de poder vos dar um aperto de mão. Procurarei merecê-lo. Obrigado.

OBSERVAÇÃO: Esta conversa confirma o que a experiência já provou muitas vezes, relativamente à influência que podem os homens exercer sobre os Espíritos, e por meio da qual contribuem para a sua melhora. Mostra a influência da prece.

Assim, essa natureza bruta e quase indomável e selvagem encontra-se como que subjugada pela ideia das vantagens que se lhe pode oferecer. Temos numerosos exemplos de criminosos que vieram espontaneamente comunicar-se com médiuns que haviam orado por eles, testemunhando-nos assim o seu arrependimento.

Às observações acima juntaremos as considerações que seguem, relativas à evocação de Espíritos inferiores.

Temos visto médiuns, justamente ciosos de conservar suas boas relações de além-túmulo, recusarem-se a servir de intérpretes dos Espíritos inferiores que podem ser chamados. É de sua parte uma suscetibilidade mal entendida. Pelo fato de evocarmos um Espírito vulgar, e mesmo mau, não ficaremos sob a dependência dele.

Longe disso, e ao contrário, nós é que o dominaremos. Não é ele que vem impor-se, contra a nossa vontade, como nas obsessões. Somos nós que nos impomos. Ele não ordena, obedece. Nós somos o seu juiz, e não a sua presa. Além disso, podemos serlhes úteis por nossos conselhos e por nossas preces e eles nos ficam reconhecidos pelo interesse que lhes demonstramos. Estender-lhe a mão em socorro é praticar uma boa ação. Recusá-la é falta de caridade; ainda mais, é orgulho e egoísmo. Esses seres inferiores, aliás, são para nós um grande ensinamento. Foi por seu intermédio que pudemos conhecer as camadas inferiores do mundo espírita e a sorte que aguarda aqueles que aqui fazem mau emprego de sua vida.

Notemos, além do mais, que é quase sempre tremendo que eles vêm às reuniões sérias, onde dominam os bons Espíritos.

Ficam envergonhados e se mantêm à distância, ouvindo a fim de instruir-se. Muitas vezes vêm com esse objetivo, sem terem sido chamados.

Por que, pois, recusaríamos ouvi-los, quando muitas vezes seu arrependimento e seu sofrimento constituem motivo de edificação ou, pelo menos, de instrução?

Nada há que temer dessas comunicações, desde que visem o bem. Que seria dos pobres feridos se os médicos se recusassem a tocar em suas chagas?




Evocação de um Espírito suicida em sofrimento

O artigo descreve a evocação do Espírito de um suicida francês, por Kardec, em pleno estado de sofrimento moral.

Leia mais sobre casos do tipo clicando aqui.

Publicado na Revista Espírita de novembro de 1858. Na íntegra:

Recentemente os jornais noticiaram o seguinte fato: “Ontem (7 de abril de 1858) pelas sete horas da noite, um homem de cerca de cinquenta anos, vestido decentemente, apresentou-se no estabelecimento da Samaritana e pediu um banho. O empregado admirou-se de que, após duas horas, o indivíduo não chamasse; decidiu-se a entrar no banheiro para ver se não se sentira indisposto. Testemunhou então um horrível espetáculo: o infeliz havia cortado a garganta com uma navalha e todo o sangue se havia misturado à água da banheira. Desde que a identidade não pôde ser estabelecida, o cadáver foi transportado para o necrotério.”

Pensamos que seria possível tirar um ensinamento útil à nossa instrução da conversa com o Espírito desse homem. Assim, evocamo-lo a 13 de abril, apenas seis dias após a sua morte.

1. ─ Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco.

─ Espera… (Depois de alguns instantes): Ei-lo.

OBSERVAÇÃO: Para compreender esta resposta é preciso que se saiba que, em geral, em todas as reuniões regulares, há um Espírito familiar, do médium ou da família, que está sempre presente, sem ser preciso chamá-lo. É ele que faz virem os que são evocados e, conforme seja mais ou menos elevado, serve como mensageiro ou dá ordens aos Espíritos que lhe são inferiores. Quando nossas reuniões têm como intérprete a Srta. Ermance Dufaux, é sempre o Espírito de São Luís que voluntariamente toma esse encargo. Foi ele que deu a resposta acima.

2. ─ Onde você está agora?

─ Não sei… Dizei-me onde me encontro.

3. ─ Na Rua Valois (Palais-Royal), n.º 35, numa reunião de pessoas que se ocupam de estudos espíritas e que lhe são benevolentes.

─ Dizei-me se estou vivo… Eu sufoco no caixão.

4. ─ Quem o convidou a vir até nós?

─ Senti-me aliviado.

5. ─ Que motivo o levou ao suicídio?

─ Estou morto?… Não!… Estou em meu corpo… Não sabeis quanto sofro!… Eu sufoco!… Que uma mão piedosa venha dar-me um fim!

OBSERVAÇÃO: Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada naquilo que poderíamos chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrenas ainda se acham vivazes. Ele não acredita que está morto.

6. ─ Por que não deixou nenhum elemento de identificação?

─ Estou abandonado. Fugi do sofrimento para encontrar a tortura.

7. ─ Você tem ainda os mesmos motivos para ficar incógnito?

─ Sim. Não coloqueis um ferro em brasa na ferida que sangra.

8. ─ Poderia dar-nos o seu nome, idade, profissão e domicílio?

─ Não a tudo. Não!…

9. ─ Você tinha uma família, uma mulher, filhos?

─ Eu estava abandonado. Ninguém me amava.

10. ─ O que você fez para não ser amado por ninguém?

─ Quantos há como eu!… Um homem pode estar abandonado no meio da própria família, quando nenhum coração o ama.

11. ─ Você experimentou alguma hesitação ao realizar o suicídio?

─ Eu tinha sede de morrer… Esperava o repouso.

12. ─ Como é que a ideia do futuro não o levou a renunciar àquele desígnio?

─ Eu não cria mais no futuro; estava sem esperanças. O futuro é a esperança.

13. ─ Que reflexões você fez ao sentir extinguir-se a vida?

─ Não refleti; senti… Mas a minha vida não se extinguiu… minha alma está ligada ao corpo… não morri…, entretanto sinto que os vermes me roem.

14. ─ Que sentimento experimentou no momento em que se completou a morte?

─ Ela está completa?

15. ─ Foi doloroso o momento em que se extinguiu a vida?

─ Menos doloroso do que depois. Então, só o corpo sofreu.

São Luís continua:

─ O Espírito libertava-se de um fardo que o esmagava. Ele sentia a volúpia da dor.

(A São Luís): ─ Esse estado é o que sempre se segue ao suicídio?

─ Sim. O Espírito do suicida fica ligado ao corpo até o termo de sua vida. A morte natural é o enfraquecimento da vida. O suicídio a interrompe bruscamente.

─ Esse estado será o mesmo em toda morte acidental independente da vontade e que abrevia a duração natural da vida?

─ Não. Que entendeis por suicídio? O Espírito só é culpado por suas obras.

OBSERVAÇÃO: Havíamos preparado uma série de perguntas que nos propuséramos dirigir ao Espírito desse homem sobre a sua nova existência. Diante de suas respostas, elas perderam o sentido. Era evidente, para nós, que nenhuma consciência tinha ele da situação. A única coisa que nos pôde descrever foi o seu sofrimento.

Essa dúvida sobre a morte é muito comum nos recém-falecidos e principalmente naqueles que em vida não elevaram a alma acima da matéria. À primeira vista é um fenômeno bizarro, mas explicável muito naturalmente. Se perguntarmos a uma pessoa que pela primeira vez é levada ao sonambulismo se está adormecida, ela responderá quase sempre que não, e sua resposta é lógica. O interrogante é que formula mal a pergunta, servindo-se de um termo impróprio. A ideia de sono, no falar comum, está ligada à da suspensão de todas as faculdades sensitivas. Ora, o sonâmbulo, que pensa e vê; que tem consciência de sua liberdade moral, não crê que durma e, com efeito, não dorme, na acepção vulgar do vocábulo. Eis por que responde que não está dormindo, até familiarizar-se com essa nova maneira de entender a coisa. O mesmo acontece com o homem que acaba de morrer. Para ele a morte era o nada. Ora, como ocorre com o sonâmbulo, ele vê, sente a fala. Para ele, portanto, a vida continua, e ele assim o afirma, até que tenha adquirido consciência de seu novo estado.

Foto de capa: Daniel Reche: https://www.pexels.com/pt-br/foto/foto-em-escala-de-cinza-de-um-homem-cobrindo-o-rosto-com-as-maos-3601097/




Problemas morais – Suicídio por amor

O artigo seguinte, sobre o suicídio de um rapaz, em um ato de emoções incontidas, foi publicado na Revista Espírita de novembro de 1858. Na íntegra:

Há sete ou oito meses, Luís G…, sapateiro, namorava a jovem Vitorina R…, pespontadeira de botinas, com a qual deveria casar-se brevemente, pois os proclamas estavam sendo publicados. Estando as coisas nesse ponto, os jovens se consideravam quase definitivamente unidos e, como medida de economia, o sapateiro vinha fazer as refeições em casa da noiva.

Tendo vindo, quarta-feira última, como de costume, cear em casa da pespontadeira((costureira)), sobreveio uma discussão a propósito de uma futilidade. Obstinaram-se, de uma e de outra parte, e as coisas chegaram ao ponto em que Luís deixou a mesa e se foi, jurando não mais voltar.

Entretanto, no dia seguinte, o sapateiro, muito confuso, veio pedir perdão. Diz-se que a noite é boa conselheira, mas a operária, talvez prevendo, depois da cena de véspera, o que poderia acontecer quando não mais houvesse tempo para voltar atrás, recusou reconciliar-se e nem os protestos, nem as lágrimas, nem o desespero puderam vencê-la. Entretanto, como já se houvessem passado vários dias desde aquele arrufo, esperando que a sua amada estivesse mais tratável, anteontem à noite Luís quis tentar uma última explicação: chegou-se, bateu à porta de modo a se dar a conhecer, mas ela se recusou a abrir. Novas súplicas do pobre abandonado, novos protestos através da porta, mas nada demoveu a implacável eleita.

“Então adeus, ó malvada!” exclamou enfim o pobre rapaz, “Adeus para sempre! Procure um marido que a queira tanto quanto eu!”

Ao mesmo tempo a moça escutou uma espécie de gemido abafado, depois como que o ruído de um corpo que caísse escorregando ao longo da porta, e tudo entrou em silêncio. Ela pensou que Luís se houvesse sentado à soleira para esperar sua primeira saída, mas prometeu a si mesma não pôr o pé na rua enquanto ele lá estivesse.

Decorrido apenas um quarto de hora, um dos inquilinos que passava no pátio com uma luz gritou pedindo socorro. Logo chegaram os vizinhos e a senhorita Vitorina, tendo aberto também a sua porta, soltou um grito de horror, ao perceber no chão o corpo de seu noivo, pálido e inanimado. Todos se apressaram em prestar-lhe auxílio e procurar um médico, mas logo verificaram que tudo era inútil, pois ele já deixara de existir. O infeliz moço havia enterrado no peito a faca de sapateiro e o ferro ficara na ferida.

O fato que encontramos no Le Siècle de 7 de abril último despertou-nos a ideia de dirigir a um Espírito superior algumas perguntas sobre as suas consequências morais. Ei-las aqui, com as respectivas respostas, dadas pelo Espírito de São Luís na sessão da Sociedade do dia l0 de agosto de 1858.

1. ─ A moça, causa involuntária da morte do namorado, tem responsabilidade? ─ Sim, porque não o amava.

2. ─ Para evitar essa desgraça, deveria ela desposá-lo, embora não o amasse? ─ Ela buscava uma ocasião para se separar dele; fez no começo de sua ligação o que teria feito mais tarde.

3. ─ Assim a culpabilidade consiste em ter nele alimentado sentimentos de que não partilhava e que foram a causa da morte do rapaz? ─ Sim. É isto mesmo.

4. ─ Neste caso, sua responsabilidade deve ser proporcional à falta, que não deve ser tão grande quanto se ela tivesse, de caso pensado, provocado a morte. ─ Isto salta aos olhos.

5. ─ O suicídio de Luís encontra justificativa no desvario em que o mergulhou a obstinação de Vitorina? ─ Sim, porque seu suicídio, provocado pelo amor, é menos criminoso aos olhos de Deus do que o do homem que quer livrar-se da vida por covardia.

OBSERVAÇÃO: Dizendo que esse suicídio é menos criminoso aos olhos de Deus, evidentemente significa que há criminalidade, posto que menor. A falta consiste na fraqueza que ele não soube vencer. É sem dúvida uma prova a que sucumbiu. Ora, os Espíritos nos ensinam que o mérito está em lutar vitoriosamente contra as provas de todo gênero, que são a essência da vida terrena.

Evocado num outro dia, foram feitas ao Espírito de Luís C… as seguintes perguntas, a que respondeu:

1. ─ Que pensais da ação que praticastes? ─ Vitorina é uma ingrata. Errei em matar-me por ela, pois ela não o merecia.

2. ─ Então ela não vos amava? ─ Não. A princípio pensou que sim, mas estava iludida. A cena que fiz abriulhe os olhos. Depois, sentiu-se feliz com esse pretexto para desembaraçar-se de mim.

3. ─ E vós a amáveis sinceramente? ─ Eu tinha paixão por ela. Acredito que era apenas isso. Se eu a amasse com puro amor, não teria querido magoá-la.

4. ─ Se ela soubesse que realmente queríeis matar-vos, ela teria persistido na recusa? ─ Não sei. Não creio, pois ela não era má. Entretanto, teria sido infeliz. Para ela foi melhor assim.

5. ─ Ao chegar à sua porta tínheis intenção de vos matar, caso fosse recusado? ─ Não. Nem pensava nisso. Não a supunha tão obstinada. Somente quando vi sua teimosia é que fui tomado por uma vertigem.

6. ─ Parece que não lamentais o suicídio senão porque Vitorina não o merecia. É vosso único sentimento? ─ Neste momento, sim. Ainda me acho perturbado. Parece-me estar à sua porta. Sinto, porém, algo que não posso definir.

7. ─ Compreendereis mais tarde? ─ Sim, quando estiver desembaraçado… O que fiz foi ruim. Deveria tê-la deixado tranquila… Fui fraco e sofro as consequências… Como vedes, a paixão leva o homem à cegueira e a cometer erros absurdos. Ele só compreende quando é tarde demais.

8. ─ Dissestes que sofreis as consequências. Qual a pena que sofreis? ─ Errei abreviando a vida. Não deveria tê-lo feito. Deveria resistir em vez de acabar com tudo prematuramente. Por isso sou infeliz. Sofro. É sempre ela que me faz sofrer. Parece-me estar ainda à sua porta. Que ingrata! Não me faleis mais nisto. Não quero mais pensar, pois isto me faz muito mal. Adeus.




Um caso de obsessão espiritual: O Espírito e o jurado

O artigo seguinte foi publicado na Revista Espírita de novembro de 1858, e trata de um caso de obsessão espiritual, onde um rapaz foi obsediado por um Espírito – por culpa dele mesmo – a ponto de ser levado a matar uma senhora:

“Um dos nossos correspondentes, homem de grande saber e portador de títulos científicos oficiais, o que não o impede de cometer a fraqueza de acreditar que temos uma alma e que essa alma sobrevive ao corpo, que depois da morte fica errante no espaço e ainda pode comunicar-se com os vivos, tanto mais quanto ele próprio é um bom médium e mantém conversas com os seres de além-túmulo, dirige-nos a seguinte carta:

“Senhor,

“Talvez julgueis acertado agasalhar na vossa interessante revista o fato seguinte:

“Há algum tempo eu era jurado. O tribunal devia julgar um moço, apenas saído da adolescência, acusado de ter assassinado uma senhora idosa em circunstâncias horríveis. O acusado confessava e contava os detalhes do crime com uma impassibilidade e um cinismo que faziam fremir a assembleia.

“Entretanto é fácil prever, em virtude da sua idade, da sua absoluta falta de educação e dados os estímulos recebidos em família, que fossem apresentadas em seu favor circunstâncias atenuantes, tanto mais que ele fora levado pela cólera, agindo contra uma provocação por injúrias.

“Eu quis consultar a vítima a respeito do grau de sua culpabilidade. Chamei-a, durante uma sessão, por uma evocação mental. Ela me fez saber que estava presente e eu pus minha mão às suas ordens. Eis a conversação que tivemos ─ eu, mentalmente, ela pela escrita:

“─ O que a senhora pensa de seu assassino?

“─ Não serei eu quem o acusará.

“─ Por quê?

“─ Porque ele foi levado ao crime por um homem que me fez a corte há cinquenta anos e que, nada tendo conseguido de mim, jurou vingar-se. Conservou, após a sua morte, o desejo de vingança e aproveitou as disposições do acusado para lhe inspirar o desejo de matar-me.

“─ Como sabe disso?

“─ Porque ele mesmo me disse, quando cheguei a este mundo que hoje habito.

“─ Compreendo sua reserva diante dos estímulos que o seu assassino não repeliu como deveria e poderia. Mas a senhora não pensa que a inspiração criminosa, à qual ele voluntariamente obedeceu, não teria sobre ele o mesmo poder, se não houvesse nutrido ou entretido, durante muito tempo, sentimentos de inveja, de ódio e de vingança contra a senhora e a sua família?

“─ Com certeza. Sem isso ele teria sido mais capaz de resistir. Eis por que digo que aquele que quis vingar-se aproveitou as disposições desse moço. O senhor compreende que ele não se teria dirigido a alguém que se dispusesse a resistir.

“─ Ele goza com a sua vingança?

“─ Não, pois vê que isso lhe custará caro. Além disso, em lugar de me fazer mal, ele me prestou um serviço, fazendo-me entrar mais cedo no mundo dos Espíritos, onde sou mais feliz. Foi, pois, uma ação má sem proveito para ele.
“Circunstâncias atenuantes foram admitidas pelo júri, baseadas nos motivos acima indicados, e a pena de morte foi descartada.

“A respeito do que acabo de contar, deve fazer-se uma observação moral de grande importância. É necessário concluir, com efeito, que o homem deve vigiar os seus menores pensamentos malévolos e até mesmo os seus maus sentimentos, por mais fugidios que pareçam, pois eles podem atrair para si Espíritos maus e corrompidos, e expô-lo, fraco e desarmado, às suas inspirações culposas. É uma porta que ele abre ao mal, sem compreender o perigo. Foi, pois, com um profundo conhecimento do homem e do mundo espiritual que Jesus Cristo disse: ‘Todo aquele que olhar para uma mulher para cobiçá-la, já em seu coração adulterou com ela.” (Mat. 5:28).

“Tenho a honra, etc. SIMON M…”




Walewska: reflexões sob a ótica do Espiritismo

Uma das maiores atletas brasileiras, Walewska Oliveira (e não Valeska, Valesca, Walesca, Waleska, etc.) faleceu na noite do dia 21/09/23, em São Paulo. O motivo da morte foi uma queda fatal — provável suicídio — do 17º andar do prédio em que morava com seu marido, Ricardo Alexandre Mendes. O boletim de ocorrência policial registrou o incidente como queda, e também registrou a existência de um papel onde, possivelmente, teria ela registrado uma carta de despedida. Nas câmeras do edifício, ficaram registrados os momentos em que a atleta se encaminha a essa área, portando uma garrafa de vinho e uma pasta. Ainda não se conhecem os detalhes do caso, mas o assunto, justamente neste mês, marcado pela campanha Setembro Amarelo, destinada à prevenção do suicídio (omitimos a palavra para evitar problemas com os mecanismos de buscas) suscita uma reflexão sob a ótica do Espiritismo, naquilo que em verdade ela diz.

Antes de mais nada, devo dizer que acho lamentável qualquer opinião que busque julgar atitudes como essa (supondo que isso tenha acontecido) classificando-as como egoístas, “falta de Deus”, covardia, etc.

Desejamos aos familiares, aos amigos e ao marido de Walewska muita força para passarem por algo tão difícil e que, se forem buscar respostas, possam encontrá-las nos lugares corretos. Além disso, desejamos que nenhum suposto espírita venha, inadvertidamente, trazer supostas comunicações, cartas psicografadas, expondo-as ao público sem raciocinar sobre elas. Sentimos, que, se o que supomos, foi o que aconteceu, não tenha tido ela a oportunidade de conhecer uma filosofia que dá a certeza do futuro e a capacidade de enfrentar as dores da vida sob outro olhar.

Doutrina Espírita e Movimento Espírita

Não custa lembrar que a Doutrina Espírita, como ela realmente é, é uma ciência, formada por estudos metodológicos e sérios, coordenados por Allan Kardec, analisando comunicações, evocações e fenômenos por toda a parte do mundo. Sua principal característica, como ciência, é que qualquer princípio doutrinário deverá nascer do método científico, coisa que foi abandonada a partir do final do século XIX.

Em contrário às evocações e comunicações espontâneas, naquele tempo submetidas ao duplo critério da concordância e da razão, hoje o Movimento Espírita em geral acredita cegamente em praticamente dizem médiuns e Espíritos, esquecendo-se ou desconhecendo que são apenas opiniões que deveriam passar pelo critério citado. Outras vezes, generalizam situações individuais, justamente pela falta de conhecimento. Criam-se, assim, as diversas narrativas que, se não são apenas absurdas, por vezes ofendem o raciocínio e mesmo desrespeitam indivíduos em suas diversas condições.

O Vale dos Suicidas

Podemos citar, dentre elas, e no aspecto aqui tratado, a ideia de que todo suicida irá para o “Vale dos Suicidas”, onde, segundo essa ideia, ficará sofrendo até que aceite o “resgate” de um Espírito que, muitos dizem, seria a própria Virgem Maria. Outros dizem que aquele que pratica esse ato renascerá em corpos mutilados pela culpa, onde deverão resgatar o crime realizado. Não passam, respectivamente, das falsas ideias oriundas de religiões que ensinam a queda pelo pecado.

Me pergunto: será que as pessoas que assim dizem tais coisas não se colocam no lugar de quem as ouve? Não raciocinam? Como se sentiria uma mãe, cujo filho nasceu com certas características físicas, ao ouvir a ideia de que a razão daquilo se deveria ao fato de ele ter cometido crimes, senão contra outros, contra si e contra Deus? Muitas não se ofenderiam? Outras tantas poderiam passar a vê-los com estigmas, talvez? Pior: o que pensariam as próprias pessoas que nasceram com tais características? O fato é que muitos abandonam o Espiritismo por culpa do Movimento Espírita que, em plena era da informação, é renitente em reconhecer a necessidade de voltar a Kardec, não por fundamentalismo, mas por buscar fundamentos científicos.

Já chegamos a ouvir afirmarem, dentro de um Centro Espírita, pela boca de pessoas envolvidas nos trabalhos da instituição, e até mesmo de palestrantes, que o motivo de a pessoa ter nascido cega seria porque ela usou sua visão, na vida passada, para o mau. Quantos absurdos, quantos disparates, que somente fazem esvaziar os bancos do Movimento Espírita, transformado em religião.

O Espiritismo de verdade

Mas, graças aos estudos metodológicos de Kardec, nós podemos demonstrar facilmente a falsidade na generalização dessas ideias. Bastaria, a todo adepto espírita, ler o primeiro ano da Revista Espírita (1858), para verificar que as situações dos Espíritos de pessoas que cometeram esses atos não são únicas, justamente porque não podemos traçar um “código penal da vida futura”, ideia introduzida na adulteração de O Céu e o Inferno, em sua quarta edição, lançada após a morte de Kardec, sobre a qual todas as edições conhecidas até há pouco tempo foram baseadas (refira-se à edição da Editora FEAL para ter acesso ao conteúdo original e intocado).

Constatariam, com esse estudo, que o futuro do Espírito depende de sua psicologia, de seu conhecimento, de suas ideias. Que o ato extremo, muitas vezes é tomado em estado de desvario, de loucura, de irreflexão, de incapacidade de lidar com emoções não vigiadas. O artigo “Suicídio por amor“, de Revista de setembro de 1858, demonstra isso. Já o artigo “O suicida da Samaritana“, de junho do mesmo ano, demonstra outro caso, onde o Espírito, em um estado profundo de perturbação, acredita, por um estado de sofrimento moral, estar ligado ainda ao seu corpo.

Fatos

Um fato é inegável: o remorso e o arrependimento serão estados que todos os Espíritos encontrarão, depois, quando perceberem que tomaram tal atitude por uma incapacidade de lidar com a dor, com as emoções (naquela época conhecidas como paixões), com os arrependimentos, com os desgostos, etc. Infelizmente, tudo gerado por uma incapacidade de ver a vida sob outro ângulo, ângulo esse muito amplo, lógico, claro, que o Espiritismo dá, em sua originalidade. Não tenta impor o medo do castigo, mas demonstra os fatos, as consequências e dá ao indivíduo o vislumbre do futuro, onde apegos desviam para o mal e para o sofrimento, mas que o caminho de retorno ao bem estará sempre aberto, a partir do momento em que este compreender os motivos do seu sofrimento e, por vontade e esforços próprios, decidir enfrentar as raízes dos seus erros.

Veja: no caso apresentado na Revista de setembro de 1858, o rapaz apenas praticou um ato impensado. Ele afirma que nem pensava naquilo, mas que foi tomado de uma “vertigem”, isto é, uma emoção tão forte, com a qual não soube lidar. Em Espírito, compreendeu a tolice (motivo pelo qual todos, sem exceção, ficarão algum tempo com a cena fatídica repetindo-se em suas mentes) e compreendeu a necessidade de corrigir-se no futuro, para não mais cometer esse tipo de problema. Quem sabe, de acordo com sua capacidade de compreensão, escolherá uma vida que lhe dará, desde cedo, a fibra para lidar com essas emoções?

Resta dizer que as cenas que alguns Espíritos sofredores transmitem nas comunicações, como vales tenebrosos ou mesmo a ideia do “Umbral“, nascem de suas próprias mentes. Quiçá, possam materializá-las em escala, em uma espécie de sofrimento sintonizado, mas que não são por isso menos passageiras e que, definitivamente, não representam a condição genérica do Espírito sofredor após a morte (leia a Revista Espírita e verá).

A obsessão

Temos mais um aspecto a abordar: a questão da obsessão. A ciência dos Espíritos, tratada seriamente, foi enfática em demonstrar que os indivíduos, por vezes, cometem tais atos em estado de loucura, fora de si. Muitas vezes, mas nem sempre, esse estado tem a influência determinante de um Espírito obsessor.

Um artigo que demonstra isso é “O Espírito e o jurado“, de novembro de 1859. Nele, fica evidente que o papel de um Espírito obsessor, quando encontra caminhos nas próprias ideias do indivíduo, pode influenciá-lo lentamente. Este, aceitando essa influência, que lhe agrada, mesmo sem saber que o faz, vai lentamente se deixando sintonizar com o Espírito obsessor, como uma marionete cujos fios, lentamente, fossem sendo ligados às mãos de seu mestre. Em certo ponto, o indivíduo passa a responder cegamente, chegando ao estado de possessão, conforme abordado por Kardec em A Gênese (refira-se à edição da editora FEAL).

Daí, nasce uma espécie de culpa compartilhada, da qual cada um será seu próprio juiz. Aquele que se deixou influenciar, quando compreender, buscará criar a força para não mais se permitir a isso. O que influenciou, um dia, entenderá o mal que faz a si próprio, desviando-se do bem, e buscará condições de reparação de seu desvio.

Palavras finais

Há muito a recuperar no que tange aos princípios científicos do Espiritismo. Disso depende sua retomada, sua restauração, livre de dogmas e falsas ideias diariamente divulgadas e ensinadas nos centros espíritas, nas tribunas e, agora, na Internet, onde encontram uma lastimável facilidade de propagação. Precisamos utilizar essa facilidade em favor do bem e da restauração das ideias verdadeiras, não atacando os outros, como muitos ainda perdem o tempo fazendo, mas recuperando a verdade e as divulgando, em verdadeiro trabalho de formiguinha, onde cada um precisa carregar os seus grãos. Tome sua iniciativa. Esqueça, de momento, os romances. Estude o Espiritismo onde ele realmente existe como doutrina científica.




Mediunidade: Espiritismo, a Umbanda e as demais religiões

Há pouco tempo, demonstrei, em artigo e em vídeo, que o motivo do nascimento da Umbanda se deu por conta de uma atitude absurda de um centro espírita que proibiu que se comunicassem Espíritos como os dos “pretos-velhos”, reconhecidos, na Umbanda, como uma de suas entidades. Pensavam, erradamente, que a mediunidade pertence ao Espiritismo. Triste realidade de uma doutrina distorcida, formada pela cooperação de grupos e indivíduos oriundos até mesmo do catolicismo e do protestantismo, que a estudavam, a despeito de suas religiões.

Imagem: pessoas de branco, com roupas da umbanda, religião onde se pratica a mediunidade e, muitas vezes, até se estuda o Espiritismo

Hoje, o Movimento Espírita, que acusa outras religiões de “misticismo”, também adota várias ideias místicas, em detrimento do conhecimento doutrinário existente.

Acontece que esse desentendimento se deu, de ambas as partes, pelo desconhecimento do que realmente seja o Espiritismo, que, naquela época, já se encontrava deturpado em solo brasileiro. Do lado dos espíritas, que quiseram ditar a verdade baseados em falsos conceitos, se houvessem conhecido o conteúdo da Revista Espírita, saberiam o quanto tal atitude seria descabida, já que Kardec demonstrou a utilidade de se evocar todos os Espíritos, com um detalhe: não para ouvi-los e neles se acreditar sem raciocinar, mas para poder estudar suas comunicações de forma psicológica.

Antes de continuar, preciso dizer que, se você acredita que sabe o suficiente e que não precisa saber de mais nada, este artigo não é para você. Caso contrário, se você tem o interesse de conhecer os fatos e, assim, julgar por sua própria consciência, continue comigo até o final.

Quero dizer, para que fique claro, baseando-me para isso no conhecimento adquirido pelo estudo: todos os Espíritos tem algo a ensinar, embora não da mesma maneira, da mesma forma que podemos aprender com as palavras dos sábios, que buscamos interiorizar, e com os exemplos dos criminosos, que buscamos não repetir. É assim que, por exemplo, Kardec e outros encontravam aprendizado em desde o Espírito-guia da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, São Luís, até no estudo do Espírito do trapeiro da rua Noyers, que assustava as pessoas do local e atirava pedras nas vidraças (leia Revista Espírita 1860 » Agosto » O trapeiro da rua de Noyers).

Dissidências

Infelizmente, com a dissidência, os primeiros fundadores da religião da Umbanda não se afastaram apenas do Movimento Espírita, com seus erros, mas também da Doutrina Espírita, que foi o resultado dos esforços conjuntos e colaborativos, coordenados por Allan Kardec, no estudo metodológico e sistemático de milhares de evocações, comunicações espontâneas e de fenômenos espíritas diversos. A Umbanda não foi o único caso.

Mas não estou aqui para apontar dedos para ninguém. Sou da opinião de que tudo foi se enrolando pela “força das coisas”, isto é, as pessoas apenas repetiam aquilo que eram ensinadas. Não é demais repetir: o Espiritismo, quando realmente ganhou força no território brasileiro, já chegou adulterado em princípios e bastante influenciado pelas ideias de Jean-Baptiste Roustaing, quem escolheu acreditar cegamente em Espíritos que alimentavam sua vaidade por declara-lo o “revelador das revelações” e quem rapidamente se voltou contra Kardec quando este buscou avisá-lo do perigo em assim proceder, ao invés de tomar o cuidado de questionar os Espíritos e sua própria razão. A própria FEB – Federação Espírita Brasileira – autoproclamada responsável pelos rumos do Espiritismo no Brasil, adotou princípios de Roustaing desde suas origens, e esse é um dos maiores motivos de as evocações terem sido abolidas neste país, influência essa que se espalha hoje sobre o mundo e que tornou o Movimento Espírita uma religião, muito afastada da ciência que em verdade é o Espiritismo.

Por conta desse afastamento do Espiritismo, substancialmente estigmatizado pelas ações, práticas e palavras dos “espíritas” brasileiros, inúmeras foram as dissidências do Movimento Espírita, ora para outras religiões, ora para a descrença. Mas, aqui, chegamos ao problema da questão: a mediunidade, para aqueles que a possuíam, quase nunca se interrompia pela saída do Movimento Espírita, que não a detém. Assim, quase sempre, passavam a viver a mediunidade da forma como sabiam e como podiam, afastados do conhecimento gerado por aquele trabalho colaborativo do qual Kardec foi o responsável, como era necessário ser naquele momento.

Estigma

Esse estigma, gerado pelo Movimento Espírita, fez com que, por muito tempo, e ainda hoje – infelizmente – pessoas de religiões como a Umbanda, que praticam a mediunidade, olhassem para Allan Kardec com preconceito e até com certa raiva, crendo, muitas vezes, que ele havia fundado uma religião onde pretendia se adonar da verdade. Nada mais falso, mas a verdade era muito difícil de ser alcançada por detrás de tantas falsas ideias que o Movimento Espírita cultivava (e ainda cultiva). Kardec nunca tomou para si a verdade. Seu papel foi de um pesquisador dedicado, que sempre buscou agir de forma impessoal, sempre pronto para modificar seus conceitos e suas hipóteses quando essas se mostravam erradas. Assim, pela observação sistemática e cuidadosa, feita em colaboração com incontáveis grupos e pessoas, foi possível estabelecer vários princípios doutrinários, que não são a verdade absoluta, mas que a razão indicam como os mais racionais e prováveis possíveis.

imagem: Allan Kardec, pesquisador responsável por coordenar os estudos, com uso da mediunidade, que permitiram a formação da Doutrina Espírita, ou Espiritismo

As entidades da Umbanda

Por detrás das nomenclaturas de raízes africanas, que muitos ainda estranham e estigmatizam, estão os Espíritos que se comunicam na religião da Umbanda. Abaixo de Olorum, os orixás da tradição iorubá são venerados como entidades superiores, e eles variam de acordo com cada ramificação da religião. Estes incluem Oxalá, Oxum, Oxóssi, Xangô, Ogum, Obaluaiê, Yemanjá, Oyá, Oxumaré, Obá, Egunitá, Yansã, Nanã e Omolu. Abaixo dos orixás, as entidades espirituais são agrupadas em linhas e falanges, abrangendo diversas categorias, como os Caboclos, que são os espíritos indígenas; os Pretos Velhos, que representam os espíritos dos antigos escravos brasileiros; os Exus, que são espíritos benevolentes e mensageiros dos orixás; as Pombas Giras, identificadas como damas da noite ou feiticeiras; e os Erês, que são espíritos infantis.

Como podemos ver, são apenas nomenclaturas, e nada mais que isso. Com Kardec se comunicavam ou eram evocados Paxás, Zuavos (que eram soldados africanos), supostos feiticeiros, etc. Quando mais esclarecidos, apresentavam-se desapegados das personalidades anteriores; quando menos, diziam se apresentar tal como eram ou como deles lembravam ou imaginavam.

É claro que não posso deixar de lembrar que a evocação com finalidade de curiosidade vazia ou brincadeira será retribuída pela presença de Espíritos de igual pensamento. As evocações sérias eram realizadas com a finalidade de desenvolver a Doutrina.

É a partir daqui que faremos a aproximação com o Espiritismo em sua realidade, sem imposições, já que, tratando-se a Umbanda de uma religião, é necessário reconhecer a liberdade de cada um acreditar naquilo que quiser, e como quiser.

A redescoberta do Espiritismo verdadeiro

O que pretendo demonstrar, enfim, é que a mediunidade praticada na Umbanda não difere da mediunidade praticada pelos espíritas, ou pelos católicos, pelos budistas, por qualquer religião, enfim, ou ainda por livres-pensadores, senão por um detalhe: crenças. E aqui, preciso ser enfático em repetir que o Espiritismo, estando, do ponto de vista espiritual, na própria Natureza, caracteriza-se assim por uma ciência natural, de forma que, para bem compreendê-lo, é necessário dedicação científica. Notem que aqui estou desvinculando o Espiritismo do Movimento Espírita: são duas coisas diferentes.

Pois bem: o mérito de Kardec e de todos aqueles que seriamente estudaram o Espiritismo em seus primeiros passos, foi o de analisar com metodologia e rigor científico os resultados das comunicações mediúnicas e dos fenômenos diversos, obtendo, como mencionei, uma teoria composta de diversos princípios doutrinários, exaustivamente verificados. Kardec, por exemplo, várias vezes questiona como o Espírito chegou ali tão rápido, não se satisfazendo com a primeira resposta. Foi possível, assim, compreender quem são os Espíritos; como se encontram após deixar o corpo material, pela morte deste, etc., o que deu origem posterior às demais obras de Kardec, incluindo “O Livro dos Médiuns ou Guia dos Médiuns e dos Evocadores”, um verdadeiro tratado prático sobre a ciência da comunicação com os Espíritos. Com isso, foi possível aos médiuns e aos estudiosos da época, que eram naturalmente provenientes de diversas religiões, fora os livres-pensadores, superarem diversos erros e se tornarem cada vez mais úteis na propagação de um conhecimento que a cada dia mais convertia ao bem e à fé raciocinada criminosos, depressivos em ponto de desespero, descrentes, etc.

Se você está me acompanhando, deve entender o que estou dizendo. É como afirmar: havendo os estudos sobre a física, que explica princípios como os da inércia, seria insensato praticar base jumping sem calcular a inércia que poderá fazer com que o indivíduo se arrebente ao chão, tomando os cuidados necessários para que isso não aconteça. Quando falamos em mediunidade, dizemos o mesmo.

Um exemplo de erros dos espíritas modernos é aquele dado no início, quando quiseram proibir a comunicação de um Espírito que tenha se apresentado sob tal nomenclatura. Outro: já foi demonstrado que não podemos acreditar cegamente no que dizem os Espíritos, pois eles não ganham a sabedoria por deixar o corpo físico, sendo necessário sempre raciocinar sobre o que dizem e, havendo qualquer margem para dúvida, é necessário investigar mais a fundo, inclusive pelas evocações, se necessário, caso a Doutrina já não forneça respostas suficientes para o assunto em questão.

Mais um exemplo: já foi demonstrado que não é possível dominar os Espíritos por meio de rituais, fórmulas ou objetos, e que os Espíritos maldosos frequentemente enrijecem ainda mais seus ataques quando se tenta fazê-lo. Isso é fruto desse estudo metodológico sobre incontáveis Espíritos. Kardec, aliás, tenta fazer um mau Espírito ir embora pela força das palavras e do nome de Deus, durante uma evocação, sem sucesso. Ainda assim, existem aqueles que escolham deliberadamente fazerem-se de surdos para esses fatos e que, não raro, terminam ampliando seus desgostos ou, às vezes, fazem descrentes, que não encontram solução para as suas perturbações, a despeito de todas as fórmulas, sinais, objetos e rituais utilizados.

Conclusão

É claro que Kardec não encerrou o Espiritismo. Muito pelo contrário: como cientista, sempre asseverou a necessidade de continuar os estudos. Contudo, para essa continuidade, são necessários todos os aspectos anteriormente destacados. Não basta ouvir opiniões isoladas dos Espíritos e tomá-las como verdade, e quem luta contra isso, no fundo, quer apenas sustentar suas próprias opiniões, vaidosamente cultivadas.

A reflexão, para terminar, é esta: nem os espíritas, nem os dissidentes, nem as demais pessoas, religiosas ou não, conhecem de fato o seja o Espiritismo atualmente, embora todos tenham condições de praticar a mediunidade. Por isso, sofrem de diversos enganos e efeitos maléficos, sendo o principal deles a obsessão e até a possessão, além da divulgação das falsas ideias que atrasam o desenvolvimento da humanidade. Muitas vezes, esses maus resultados são encontrados por pessoas de boa-fé, às quais bastaria o conhecimento. Outras vezes, são pessoas renitentes, que definitivamente não querem se abrir à possibilidade de admitir que estão erradas ou que não sabem de tudo – mas este artigo não é para elas.

Vamos, portanto, como na época de Kardec, auxiliar na recuperação desse conhecimento. Vamos aprender o que realmente é o Espiritismo, através do estudo da Revista Espírita de 1858 a 1869; vamos praticar uma mediunidade sadia, livre das falsas ideias diversas; vamos retomar, depois, as evocações, e então cooperar entre os grupos, como Kardec apresenta na Revista Espírita, não com a mediunidade restrita aos “centros espíritas”, como conhecemos hoje, mas sim com ela espalhada por pequenos grupos e grupos familiares, cada um deles um “centro”. Não importa a religião de cada um, à qual cada um tem direito: Espiritismo é fato natural, sendo acessível a todos.

Por muito tempo, o Movimento Espírita e a Umbanda foram guiados pelo misticismo, embora tenham , a seu dispor, um cabedal de conhecimentos tão ricos e sérios. Seja você participante do Movimento Espírita, ou de outra religião, ou, ainda, um livre-pensador que pretende conhecer os fatos, junte-se a esse esforço de recuperação. Esse é o convite.

Sugiro, como uma ótima leitura, a obra “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Obrigado por me acompanhar até aqui.




A história do Espiritismo e o Movimento Espírita

O Espiritismo na atualidade, ou, antes, aquilo que o Movimento Espírita conhece e transmite dele está muito longe de ser realidade, e isso é muito sério, pois é justamente por essas distorções que criaram-se as falsas ideias que repelem os indivíduos e criam brigas, não somente internas, mas também com as religiões espiritualistas.

Um caso muito conhecido é o da Umbanda, que foi criada por conta de um indivíduo ter sido proibido de “receber” um Espírito de um “preto velho” num centro espírita. Não somente isso: na atualidade, pessoas de quaisquer religiões que tenham algum interesse pelo Espiritismo são levadas à questão: “preciso abandonar minha religião para ser espírita?”. Isso porque “ser espírita”, na modernidade, é frequentar um centro espírita que, segundo falsos conceitos, é onde “mora” o Espiritismo.

Estou aqui para demonstrar o quão erradas estão essas concepções e que, longe de uma disputa de verdades, é possível haver união e que, em verdade, foi assim que se desenvolveu o Espiritismo.

A história do Espiritismo como quase ninguém conheceu

É lógico dizer que, antes que o Espiritismo se estabelecesse como doutrina, ninguém era espírita. Como foi possível, então, formar essa ciência, de aspecto filosófico e consequências morais?

Erra quem diz ou pensa que foi Allan Kardec quem criou o Espiritismo. Não: o Espiritismo está na natureza, assim como as demais ciências. Caberia a alguém estudar, com metodologia científica e seriedade, os princípios dessa ciência, e foi o que Kardec fez. Ele nunca se deu o direito de tomar para si a verdade, simplesmente porque, como cientista honesto, sabia que a ciência não lida com verdades, mas sim com teorias que mais se aproximam da verdade.

Assim, Kardec dedicou-se a estudar os fenômenos e as comunicações dos Espíritos, pela principal ferramenta disponível: as evocações, através dos médiuns. E ele não fez isso sozinho: naquela época, os grupos de estudos espalhavam-se pela França e outros países próximos e, em verdade, precederam Kardec nas evocações. Quando ele se interessou pelo Espiritismo, já haviam diversas evocações registradas em papel, por ele reunidas, analisadas e organizadas, o que deu origem à primeira edição de O Livro dos Espíritos, com cerca de metade do tamanho que teria em sua segunda edição.

Rapidamente Kardec percebeu que esse esforço inicial na Doutrina necessitaria de um desenvolvimento, como toda ciência. Assim, em 1858, nasceu a Revista Espírita — Jornal de Estudos Psicológicos, periódico mensal onde ele apresentava ao público resultados dos estudos sobre as evocações e as comunicações espontâneas no âmbito da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, além de conteúdos pertinentes, enviados por outros grupos. Também utilizava a Revista para reforçar a verdadeira face do Espiritismo, frequentemente apresentando contrapontos a opiniões e artigos carregados de desconhecimento e, por vezes, maldade.

Falamos em metodologia científica: bem, o Espiritismo nasceu como toda ciência: de uma observação sistemática e controlada sobre fatos verificáveis (embora não sob a nossa vontade), de onde se criaram hipóteses. Das hipóteses, se criou uma teoria, que então foi submetida a experimentos (evocações). Dos experimentos, verificaram-se os resultados e, daí, avaliava-se as hipóteses: se eram corroboradas, eram incorporadas à teoria; se não, eram reavaliadas e novas observações eram realizadas.

Inverdades

Uma das maiores inverdades que reinam sobre o Movimento Espírita atual é a de que as evocações não devem ser realizadas, o que está em oposto às características históricas do Espiritismo. Quem estuda o primeiro ano da Revista Espírita entende o quanto elas são indispensáveis para a ciência espírita, que, por ser uma ciência, não deve ser tomada como um conteúdo sagrado, que deva ficar intocado. Pelo contrário: o Espiritismo carece de desenvolvimento, mas esse desenvolvimento somente pode ser feito através da metodologia científica, que depende necessariamente da retomada das evocações. Um exemplo de uma prática ausente de método, ou tomada por falsos princípios, é a de que basta evocar um ou mais Espíritos, em um grupo isolado, e a ele perguntar (ou ouvir) sobre tudo, fazendo disso princípio doutrinário.

Outra grande inverdade é a suposição de que a mediunidade pertence à Doutrina Espírita. Tanto é, que demonstramos que o Espiritismo nasceu pelo esforço conjunto de grupos que não poderiam ser espíritas, já que a doutrina ainda não existia. Naquela época, pessoas de várias crenças e religiões praticavam a mediunidade em seus lares, em grupos pequenos, e colhiam bons ou maus resultados das evocações conforme seus empenhos em raciocinar sobre as comunicações. Kardec cita, na Revista, que os adeptos do Espiritismo contavam entre eles católicos, protestantes, muçulmanos, budistas, etc., realizando evocações e estudos e muitas vezes enviando-as à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde, junto a outros colaboradores, eram avaliadas, analisadas e separadas aquelas que poderiam representar um interesse para o público geral.

Aqui, temos mais duas inverdades do Movimento Espírita moderno: aquela que diz que a mediunidade somente pode ser praticada no centro espírita e aquela que diz que devemos ficar apenas aguardando a livre comunicação dos Espíritos. Dessas, nasce talvez o maior erro dos espíritas e adeptos modernos: a aceitação cega e não raciocinada de tudo o que dizem os Espíritos.

Outra inverdade, que não podemos deixar de citar, é a que diz que o Espiritismo seja uma religião. Já demonstramos que ele é uma ciência e que só pode ser tomado como religião no sentido filosófico da religião natural, abordada de maneira metafísica e moral pelo Espiritualismo Racional, do qual já falaremos. Esse é o motivo de encontrar, na época de Kardec, adeptos entre as religiões, que não deixavam suas religiões, com suas particularidades, para praticar o Espiritismo. Sobre isso, fique conosco até o final, pois a compreensão é sobremaneira importante.

Infelizmente, o Movimento Espírita apagou a ciência e transformou o Espiritismo em uma religião, que passou a criar falsas ideias e dogmas que, se agradam alguns, agradam por algum tempo, mas não podem enfrentar a razão nos momentos mais críticos da vida, criando, assim, descrentes. Esqueceram que os Espíritos não se tornam sábios por deixarem o corpo material e que, dentre eles, existem bons e maus, sábios e ignorantes, etc., e que é sobretudo quando se coloca apenas à disposição, sem diálogo, que se apresenta qualquer um.

Existem inúmeras falsas ideias, que alimentam o Movimento Espírita e adeptos em geral, que não passaram pelo crivo necessário, que não foram investigadas e questionadas, ainda que fossem opostas àquilo que, com metodogia, foi transformado em princípio pela observação psicológica de milhares de Espíritos, de todos os “tipos”.

Convidamos o leitor, se ainda não fez, a iniciar o estudo da Revista Espírita de 1858 e 1859 (ela vai até maio de 1869). Essa publicação, que deve ser tomada como um laboratório onde se pode acompanhar o desenvolvimento da Doutrina Espírita, através do método destacado anteriormente, e não como uma ideia final em cada artigo, demonstra o que de fato é o Espiritismo e o quanto nossa sociedade está longe dessa realidade.

Notem que dizemos inverdades, e não “mentiras”, pois a maioria dos que as divulgam, falam do que foram ensinados. Mas de onde vieram essas inverdades?

A virada materialista do século XIX

O Espiritismo não nasceu do nada. O terreno foi muito bem preparado antes disso e, no início do século XIX, nascia o movimento conhecido como Espiritualismo Racional, que, baseados na metafísica, buscava estudar a psiquê humana pelo seu mais elementar e indissociável aspecto: a alma. Autores como Maine de Biran, Victor Cousin e Paul Janet foram seus principais expoentes.

Provavelmente você não sabe, mas o Espiritualismo Racional definiu as Ciências Morais francesas em meados desse século, fazendo parte do ensino francês e definindo sua estrutura. Deixarei informações na descrição. Mas o ER abordava esse estudo apenas pela metafísica, e não de forma prática. Como Espiritismo, que foi o seu desenvolvimento, nasce a Psicologia Experimental (e agora você sabe o porquê do subtítulo da Revista Espírita). Não entrarei em muitos detalhes, que podem ser encontrados no livro “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, de Paulo Henrique de Figueiredo. A questão aqui é outra.

No final do século XIX, a filosofia materialista alemã sobrepujou a filosofia espiritualista francesa que, segundo alguns governantes, teria sido a razão do fracasso da França na guerra. O Espiritualismo Racional foi varrido para baixo do tapete e o Espiritismo, que já sofria com adulterações (já falaremos sobre isso) tomou o golpe final, sendo praticamente esquecido na França, na Europa e, depois, no mundo. Novos ícones da filosofia do nada e da psicologia materialista (por mais paradoxal que seja essa ideia), como Nietzche e Freud, foram tomados como ídolos, substituindo a psicologia espiritualista racional pela perspectiva da nulidade de esforços morais e do egoísmo.

Adulterações no Espiritismo

Detalhes muito interessantes sobre os acontecimentos após a morte de Allan Kardec podem ser colhidos nos livros “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Ponto Final”, de Wilson Garcia. Resumindo: o fatídico e inesperado evento abalou os espíritas por toda a parte, que custaram por retomar alguma força. Junto a isso, vieram guerras e, na Sociedade Espírita, o sucessor de Kardec, Pierre Gaetan Leymarie, colocava abaixo os princípios científicos doutrinário, expulsava velhinhos, em pleno inverno, de lares criados por Kardec para espíritas pobres, queimava correspondências cuidadosamente guardadas pelo Professor e, por interesses pessoais, admitia na Revista Espírita conteúdos oriundos da ideologia de Roustaing, já falecido, que se considerava o revelador das verdades, acreditando cegamente em um ou mais Espíritos obsessores que se comunicavam através de uma médium. Acabou-se o cuidado com a racionalidade, com a concordância geral das comunicações espíritas e, para jogar a última pá-de-cal no Espiritismo francês, Leymarie foi levado a julgamento por publicar conteúdos provenientes de um charlatão, naquilo que ficou conhecido como “Processo dos Espíritas”.

Por conta de todo esse cenário, o Espiritismo fortaleceu-se no Brasil já distorcido. As origens da FEB, instituição, que tomou a liberdade de se proclamar dirigente geral do Espiritismo no Brasil, aliás, são completamente ligadas a essas distorções. A FEB foi fundada e guiada pelos princípios de Roustaing por longo tempo (leia Ponto Final, de Wilson Garcia). Esse é o principal motivo das distorções do Movimento Espírita brasileiro.

Somado a isso, a Revista Espírita somente veio ser traduzida na década de 1950. Aqui, formaram-se diversas falsas ideias, sendo, como demonstramos, o pressuposto de não julgar as comunicações e não evocar Espíritos para investigações as mais danosas delas.

A retomada

Quando falamos em retomar o Espiritismo, falamos em retomá-lo como ciência. Para isso, é necessário conhecimento, nascido do estudo, seriedade, vontade, propósito e colaboração. A mediunidade, que não pertence à Doutrina Espírita nem ao Movimento Espírita, pode ser praticada por todos, fora dos centros espíritas, inclusive. As evocações são necessárias e salutares, mas, aqui, precisamos alertar sobre alguns princípios da ciência dos Espíritos.

A Doutrina Espírita, como ciência, tem o mérito de ter produzido um conhecimento sobre a observação dos fenômenos e das comunicações dos Espíritos, espalhadas pelo mundo. Não nasceu do cérebro de Kardec, mas, sim, de milhares de evocações e de fatos, analisados de maneira científica. Repetimos muito isso, pois esse entendimento é substancial.

Já no tempo de Allan Kardec, a mediunidade era praticada por toda parte. De início, com muitos erros; depois, conforme o conhecimento foi se estabelecendo, cada vez tomou mais seriedade e mais racionalidade, restando apenas dissidentes e renitentes que, não querendo observar os princípios científicos e levados pelo amor-próprio, insistiam em erros banais, que quase sempre os levavam a obsessões. Citamos, há pouco, Roustaing, que, preferindo acreditar cegamente nas palavras de Espíritos que lhe alimentavam o ego, prontamente se virou contra Kardec quando este buscou alertá-lo. É como Ícaro, que, alertado de que não poderia se aproximar do sol sem se queimar, alimentado de ego por suas asas, ignorou os alertas e terminou queimado.

Esse alerta geral vem em encontro à finalização deste importante chamamento: o Espiritismo precisa ser retomado, e isso depende de conhecimento e de cuidados. As evocações precisam ser retomadas. A doutrina dos Espíritos precisa voltar a ser desenvolvida pelos pequenos grupos, cooperando entre si. Esse era o rumo que Kardec buscava dar à ao Espiritismo, pouco antes de sua morte (leia Revista espírita — 1868 > Dezembro > Constituição transitória do Espiritismo), onde o Espiritismo passaria a ser desenvolvido pelos grupos espalhados, coordenados entre si, observando os princípios já estabelecidos pelo método. Pessoas de quaisquer religiões podem fazê-lo, pois a mediunidade não pertence ao Movimento Espírita. O centros precisam voltar a ser centros de estudos, sérios, controlados. Ao retomar as evocações, é evidente que enfrentaremos desafios diferentes; é lógico supor que muitos encontrarão dificuldades e outros tantos cairão no erro da vaidade e do personalismo, lutando para estabelecerem falsas ideias, como já acontece. Infelizmente, os encontraremos sobretudo no Movimento Espírita. Mas são desafios que serão enfrentados e, se o forem com o conhecimento doutrinário já existente, serão rapidamente superados, se é que virão a existir.

Vislumbremos um novo futuro, onde não se briga entre religiões, mas onde indivíduos e grupos cooperam com a restauração das evocações com um propósito maior: o da retomada do desenvolvimento do Espiritismo. Retomaremos o Espiritismo nos lares, como na época de Kardec, onde evocações familiares consolavam, ensinavam e, por vezes, representavam interesse doutrinário. Serão espíritas, ou seus adeptos, pessoas de quaisquer religiões, quaisquer credos, ou mesmo descrentes, que, com o firme propósito de aprender e com a plena consciência de não serem os detentores da verdade, buscarão, pelas evocações e pela colaboração, restaurar o caminho momentaneamente interrompido do Espiritismo, doutrina capaz de revolucionar ideias e, assim, transformar indivíduos, famílias, grupos e, por fim, o mundo. A verdade não pertence a ninguém, mas as teorias que mais se aproximam dela poderão ser encontradas por aquela máxima expressa por Allan Kardec, representando o método científico no Espiritismo:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec – A Gênese

Contamos com seus comentários abaixo.




Espiritismo e Ciência: superando desafios e erros modernos

O Espiritismo, como ciência de aspecto filosófico e consequências morais ((O Espiritismo somente pode ser visto como religião do ponto de vista filosófico, disse Kardec, justamente se baseando na filosofia de então, o Espiritualismo Racional, de onde o Espiritismo se desenvolveu.)), formada através do método científico, vive desafios de todos os lados. Colocado em figura, parece-se com a mais bela flor, do mais suave perfume e das maiores propriedades curativas, abafadas pelos espinhos e pelas ervas-daninhas.

Surgem de todos os lados as mais diversas dificuldades, nascidas principalmente de uma falta de empenho, de zelo e de cuidado. Sob essa nomenclatura, admitem quaisquer tipos de ideias, provenientes da boca ou da intermediação mediúnica de indivíduos tornados ícones inquestionáveis. Não bastasse isso, ausentes de conhecimento sobre o que seja ciência e sobre o necessário método científico, responsável justamente pela força inatacável da Doutrina nascida dos estudos coordenados por Allan Kardec, a maioria dos pesquisadores modernos promove, no meio espírita, novas ideias, novas teorias, distraindo-se do ponto essencial: as evocações, produzindo ensinamentos concordantes entre si, então submetidos à análise racional, frente à ciência humana e frente àquilo que já havia sido construído pelo mesmo método.

Método Científico

Retomemos, por um momento, a questão da definição do método científico, exemplificado na figura em anexo. Para quem se dedicou a estudar pelo menos o primeiro ano da Revista Espírita (1858), ficará muito fácil identificar os mesmos passos tomados por Kardec:

  • a observação sistemática e controlada de certos fenômenos e, depois, das evocações;
  • a verificação de fatos identificados;
  • a investigação de hipóteses, que formam uma teoria, coesa em si mesma, de onde se obtêm implicações, conclusões e previsões;
  • a realização de experimentos, através das evocações, de onde se obtém novas observações, analisadas racional e logicamente;
  • daí, a observação de novos fatos, que corroborarão ou não com a teoria;
  • por final, agregar os resultados dessas observações à teoria científica, se corroborarem com ela, ou reciclar hipóteses, realizando novas observações e percorrendo, novamente, o mesmo método.
Exemplificação do método científico

Um fato muito notável, que denota o rigor científico de Kardec e o seu compromisso indissolúvel com a ciência verdadeira, é que ele nunca se apegou a qualquer ideia no estudo do Espiritismo. Quem passou sobre o estudo da Revista Espírita de 1858 e 1859 já compreende isso muito bem. Um exemplo disso é o estudo tratado principalmente a partir da RE de julho de 1859, iniciando no artigo O Zuavo de Magenta e concluído (pelo menos de momento) nos artigos do mês seguinte. Destacamos o estudo no artigo Materialidade de Além-Túmulo.

E é justamente nesse ponto, o do apego às ideias, somados à ausência do método necessário, que erra a imensa maioria dos pesquisadores modernos do Espiritismo.

O erro do movimento espírita moderno

O grande problema surge a partir do momento em que, abandonando o método científico indispensável para a ciência espírita, o Movimento Espírita passou a admitir teorias contrárias aos princípios já solidificados pelo mesmo método, tais como as ideias de colônias espirituais, umbral, etc., caindo no erro mais básico do espírita empolgado: crer cegamente nas opiniões dos Espíritos.

Não dizemos que o Espiritismo, estudado por Kardec, já tenha observado tudo o que há para ser observado. É claro que não. O que dizemos é que o movimento espírita moderno criou um grande conjunto de teorias que não podem enfrentar o método científico, porque não passaram por ele!

Encontramos, muito frequentemente, mesmo aqueles pesquisadores dedicados e de boa vontade — não tomaremos deles esse ímpeto verdadeiro — que, contudo, apegam-se às mais diversas ideias e que muito rapidamente se mostram irritado pela contradita daquilo que, cientificamente, faz parte dos princípios doutrinários do Espiritismo.

A base da metodologia indispensável no Espiritismo

Retomemos, aqui, o que está destacado em nossa página inicial – uma citação de Allan Kardec em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec — A Gênese

A afirmação acima destacada, feita por Kardec, não é mero fruto de uma sistematização pessoal. Muito pelo contrário: ela representa o método científico necessário para o estudo e o desenvolvimento do Espiritismo. Não basta que um mesmo princípio seja consagrado pela generalidade (o que requer o emprego das evocações, porque não basta que apenas nos coloquemos no papel de ouvir e aceitar o que dizem os Espíritos); não: é necessário, além disso, que essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos seja passada pelo critério da lógica, o que quer dizer confrontá-la frente à ciência humana e o método científico, para que, apenas assim, possa ser tomada como princípio do Espiritismo.

Note, ademais, o termo “opinião” utilizado por Kardec, não por acaso: o que dizem os Espíritos, através das comunicações mediúnicas, são opiniões próprias, nascidas de seus conhecimentos e suas próprias observações, quando não são frutos de uma deliberada intenção de mistificar, isto é, promover falsas ideias. Acontece nos melhores grupos. As opiniões dos Espíritos, como as opiniões dos seres humanos, podem estar carregadas de crenças, falsas ideias, pouco conhecimentos, ilusões, etc. Como, então, analisá-las de forma científica? Através da observação psicológica dessas comunicações.

As nuances em uma ciência psicológica

Quem já estudou pelo menos os dois primeiros anos da Revista Espírita nota que, ainda ao final do segundo ano, Kardec continua frequentemente questionando ao Espírito comunicante como ele chegou ali, como ele se apresenta, como ele vê outros Espíritos, etc. Se uma resposta destoar da teoria científica ou trouxer novos fatos, será investigado pelas evocações e segundo o método científico — o que não é realizado hoje em dia.

Kardec investigou, dentre tantas coisas, a questão da dor no Espírito. Houve aqueles que afirmaram sentirem frio ou calor; dores; fome; vermes roendo seu corpo, etc. Foi pelo estudo dedicado, pela análise racional nas nuances psicológicas dessas comunicações, que Kardec chegou a diversos princípios científicos doutrinários. Um exemplo disso é a comunicação do Espírito do assassino Lemaire na RE de março de 1858:

6. Imediatamente após a tua execução, tiveste consciência de tua nova existência? — Eu estava mergulhado numa perturbação imensa, da qual ainda não saí. Senti uma grande dor; parece que meu coração a sentiu. Vi qualquer coisa rolar ao pé do cadafalso. Vi o sangue correr e minha dor tornou-se mais pungente.

Kardec poderia facilmente, não fosse seu rigor científico, admitir que o Espírito sofria materialmente de uma dor no coração. Mas ele investiga:

7. Era uma dor puramente física, semelhante à causada por uma ferida grave, como, por exemplo, a amputação de um membro? — Não. Imagina um remorso, uma grande dor moral.

Poderíamos citar uma enorme diversidade de casos que ilustram esse princípio científico, mas deixamos a cargo da curiosidade sadia do leitor o propósito de estudar a Doutrina que abraça.

O Espiritismo precisa de defesa

Deixar de lado o método científico é um grande erro da maior parte dos pesquisadores modernos do Espiritismo, que visa construir novos princípios doutrinários sem passar por esse processo, quando deveria estar não só praticando as evocações, frente ao estudo dedicado da Revista Espírita, como também deveria estar a todo tempo incitando o movimento espírita a fazê-lo.

Por não fazê-lo, jogam mais uma pá de cal sobre o Espiritismo, produzindo, dele, uma má impressão e uma falsa ideia ante o meio científico, que não o reconhece como algo nascido da ciência, mas como uma mera crendice supersticiosa ou uma religião. Não são raras as vezes em que me deparo com alegações de pessoas que, não tendo tido a chance de conhecer o que realmente seja o Espiritismo, dele se afastaram por não poder admitir, pela razão, que, por exemplo, um Espírito tenha que tomar um ônibus voador para se locomover.

Temos muito a fazer e você já deve ter percebido que o primeiro passo é estudar.




Já sabemos o essencial; há razão em se dedicar?

Muitos de nós, e eu me coloco entre esses, em certos momentos se perguntam, sobre o Espiritismo: “parece que já entendi o essencial. Qual o sentido de continuar estudando? Ninguém mais parece querer saber sobre isso.”

Minha sugestão é que, sempre que nos encontrarmos com falta de respostas, evoquemos os bons Espíritos, pela disposição interna do próprio pensamento. A resposta, de uma forma ou de outra, não tardará a surgir.

Não me considero médium, propriamente dito, mas tenho, como todo Espírito encarnado tem, a capacidade intuitiva. Eis que hoje, sem esperar, me veio ao pensamento: Revista Espírita, agosto de 1865. Deixo a vocês essa maravilhosa reflexão do próprio Kardec:

O que ensina o Espiritismo

“Há criaturas que perguntam quais são as conquistas novas que devemos ao Espiritismo. Pelo fato de ele não ter dotado o mundo com uma nova indústria produtiva, como o vapor, concluem que ele nada produziu. A maior parte dos que fazem tal pergunta, não se tendo dado ao trabalho de estudá-lo, só conhecem o Espiritismo de fantasia, criado para as necessidades da crítica, e que nada tem de comum com o Espiritismo sério. Não é, pois, de admirar que perguntem qual pode ser o seu lado útil e prático. Teriam tido que buscá-lo em sua fonte, e não nas caricaturas que dele fizeram os que só têm interesse em denegri-lo.

Numa outra ordem de ideias, alguns acham, ao contrário, a marcha do Espiritismo muito lenta para o seu gosto. Admiram-se que ele não tenha ainda sondado todos os mistérios da Natureza, nem abordado todas as questões que parecem ser de sua alçada; gostariam de vê-lo diariamente ensinar coisas novas, ou enriquecer-se com alguma descoberta. Como ele ainda não resolveu a questão da origem dos seres, do princípio e do fim de todas as coisas, da essência divina e de algumas outras do mesmo porte, concluem que não saiu do á-bê-cê; que ainda não entrou na verdadeira via filosófica e que se arrasta nos lugares-comuns, porque prega incessantemente a humildade e a caridade. Dizem eles: “Até hoje ele nada de novo nos ensinou, porque a reencarnação, a negação das penas eternas, a imortalidade da alma, a gradação através dos períodos da vitalidade intelectual, o perispírito, não são descobertas espíritas propriamente ditas; então é preciso caminhar para descobertas mais verdadeiras e mais sólidas.”

A tal respeito julgamos que devemos apresentar algumas observações, que também não serão novidades, mas há coisas que devem ser repetidas sob diversas formas.

É verdade que o Espiritismo nada inventou de tudo isso, pois não há verdadeiras verdades senão aquelas que são eternas e que, por isto mesmo, devem ter germinado em todas as épocas. Mas não é alguma coisa havê-las tirado, senão do nada, ao menos do esquecimento; de um germe ter feito uma planta vivaz; de uma ideia individual, perdida na noite dos tempos, ou abafada pelos preconceitos, ter feito uma crença geral; ter provado o que estava em estado de hipótese; ter demonstrado a existência de uma lei no que parecia excepcional e fortuito; de uma teoria vaga ter feito uma coisa prática; de uma ideia improdutiva ter tirado aplicações úteis? Nada é mais verdadeiro que o provérbio: “Não há nada de novo sob o sol”, e até mesmo essa verdade não é nova. Assim, não há uma descoberta da qual não se encontrem vestígios e o princípio em algum lugar. Por conta disto, Copérnico não teria o mérito de seu sistema, porque o movimento da Terra tinha sido suspeitado antes da era cristã. Era uma coisa tão simples, entretanto, era preciso encontrá-la. A história do ovo de Colombo será sempre uma eterna verdade.

Além disso, é incontestável que o Espiritismo ainda tem muito a nos ensinar. É o que não temos cessado de repetir, pois jamais pretendemos que ele tenha dito a última palavra. No entanto, considerando-se que ainda há o que fazer, segue-se que ele não tenha ainda saído do á-bê-cê? Seu á-bê-cê foram as mesas girantes, e a partir de então, ao que nos parece, ele tem dado alguns passos; parece-nos mesmo que tais passos foram grandes em alguns anos, se o compararmos às outras ciências que levaram séculos para chegar ao ponto em que estão. Nenhuma chegou ao apogeu num primeiro impulso; elas avançam, não pela vontade dos homens, mas à medida que as circunstâncias as põem no caminho de novas descobertas. Ora, ninguém tem o poder de comandar essas circunstâncias, e a prova é que todas as vezes que uma ideia é prematura, ela aborta, para reaparecer mais tarde, em tempo oportuno.

Mas em falta de novas descobertas, os homens de ciência nada terão que fazer? A Química não será mais a Química se diariamente não descobrir novos corpos? Os astrônomos serão condenados a cruzar os braços por não encontrarem novos planetas? E assim em todos os outros ramos das Ciências e da indústria. Antes de procurar coisas novas, não se tem que fazer aplicação daquilo que se sabe? É precisamente para dar aos homens tempo de assimilar, aplicar e vulgarizar o que sabem, que a Providência põe em compasso de espera a marcha para a frente. Aí está a História para nos mostrar que as Ciências não seguem uma marcha ascendente contínua, pelo menos ostensivamente. Os grandes movimentos que revolucionam uma ideia só se operam em intervalos mais ou menos distanciados. Não há, portanto, estagnação, mas elaboração, aplicação e frutificação daquilo que se sabe, o que sempre é progresso.

Poderia o Espírito humano absorver incessantemente novas ideias? A própria Terra não necessita de um tempo de repouso antes de reproduzir? Que diriam de um professor que diariamente ensinasse novas regras aos seus alunos, sem lhes dar tempo para se exercitarem nas que aprenderam, de com elas se identificarem e de aplicá-las? Então Deus seria menos previdente e menos hábil que um professor?

Em todas as coisas, as ideias novas devem encaixar-se nas ideias adquiridas. Se estas não estão suficientemente elaboradas e consolidadas no cérebro; se o espírito não as assimilou, aquelas que aí quisermos implantar não criarão raízes. Estaremos semeando no vazio.

Dá-se o mesmo em relação ao Espiritismo. Os adeptos de tal modo aproveitaram o que ele até hoje ensinou, que nada mais tenham a fazer? São de tal modo caridosos, desprovidos de orgulho, desinteressados, benevolentes para os seus semelhantes; moderaram tanto as suas paixões, abjuraram o ódio, a inveja e o ciúme; enfim são tão perfeitos que de agora em diante seja supérfluo pregar-lhes a caridade, a humildade, a abnegação, numa palavra, a moral? Essa pretensão, por si só, provaria quanto ainda necessitam dessas lições elementares, que alguns consideram fastidiosas e pueris. É, entretanto, somente com o auxílio dessas instruções, se as aproveitarem, que poderão elevar-se bastante para se tornarem dignos de receber um ensinamento superior.

O Espiritismo tem como objetivo a regeneração da Humanidade: isto é um fato constatado. Ora, não podendo essa regeneração operar-se senão pelo progresso moral, daí resulta que seu objetivo essencial, providencial, é o melhoramento de cada um. Os mistérios que ele nos pode revelar são o acessório. Porque ele nos abriu o santuário de todos os conhecimentos, não estaríamos mais adiantados para o nosso estado futuro, se não fôssemos melhores. Para admitir-nos ao banquete da suprema felicidade, Deus não pergunta o que sabemos nem o que possuímos, mas o que valemos e o bem que fizemos. É, pois, no seu melhoramento individual que todo espírita sincero deve trabalhar, antes de tudo. Só aquele que dominou suas más inclinações realmente tirou proveito do Espiritismo e receberá a sua recompensa. É por isto que os bons Espíritos, por ordem de Deus, multiplicam suas instruções e as repetem à saciedade; só um orgulho insensato pode dizer: Não preciso de mais nada. Só Deus sabe quando elas serão inúteis e só a ele cabe dirigir o ensino de seus mensageiros e de adequá-lo ao nosso adiantamento.

Vejamos, entretanto, se fora do ensinamento puramente moral os resultados do Espiritismo são tão estéreis quanto pretendem alguns.

1.º ─ Inicialmente ele dá, como sabem todos, a prova cabal da existência e da imortalidade da alma. É verdade que não é uma descoberta, mas é por falta de provas sobre este ponto que há tantos incrédulos ou indiferentes quanto ao futuro; é provando o que não passava de teoria, que ele triunfa sobre o materialismo e evita as funestas consequências deste sobre a Sociedade. Tendo transformado em certeza a dúvida sobre o futuro, é toda uma revolução nas ideias, cujas consequências são incalculáveis. Se a isto se limitassem os resultados das manifestações, esses resultados seriam imensos.

2.º ─ Pela firme crença que desenvolve, ele exerce uma ação poderosa sobre o moral do homem; leva-o ao bem, consola-o nas aflições, dá-lhe força e coragem nas provações da vida e o desvia do pensamento do suicídio.

3.º ─ Retifica todas as ideias falsas que se tivessem feito do futuro da alma, do o Céu, do inferno, das penas e das recompensas; destrói radicalmente, pela irresistível lógica dos fatos, os dogmas das penas eternas e dos demônios; numa palavra, desvela-nos a vida futura e no-la mostra racional e conforme à justiça de Deus. É ainda uma coisa de muito valor.

4.º ─ Dá a conhecer o que se passa no momento da morte. Esse fenômeno, até hoje insondável, não mais tem mistérios; as menores particularidades dessa passagem tão temida são hoje conhecidas. Ora, como todo mundo morre, tal conhecimento interessa a todo mundo.

5.º ─ Pela lei da pluralidade das existências, abre um novo campo à Filosofia; o homem sabe de onde vem, para onde vai, com que objetivo está na Terra. Explica a causa de todas as misérias humanas, de todas as desigualdades sociais; dá as próprias leis da Natureza como base dos princípios de solidariedade universal, de fraternidade, de igualdade e de liberdade, que se assentavam apenas na teoria. Enfim, lança luz sobre as questões mais árduas da Metafísica, da Psicologia e da Moral.

6.º ─ Pela teoria dos fluidos perispirituais, dá a conhecer o mecanismo das sensações e das percepções da alma; explica os fenômenos da dupla vista, da visão à distância, do sonambulismo, do êxtase, dos sonhos, das visões, das aparições, etc.; abre um novo campo à Fisiologia e à Patologia.

7.º ─ Provando as relações existentes entre os mundos corporal e espiritual, mostra neste último uma das forças ativas da Natureza, um poder inteligente, e revela a razão de uma porção de efeitos atribuídos a causas sobrenaturais que alimentaram a maioria das ideias supersticiosas.

8.º ─ Revelando o fato das obsessões, faz conhecer a causa, até aqui desconhecida, de numerosas afecções sobre as quais a Ciência se havia equivocado em detrimento dos doentes, e dá os meios de curá-los.

9.º ─ Dando-nos a conhecer as verdadeiras condições da prece e seu modo de ação; revelando-nos a influência recíproca dos Espíritos encarnados e desencarnados, ensina-nos o poder do homem sobre os Espíritos imperfeitos para moralizá-los e arrancá-los aos sofrimentos inerentes à sua inferioridade.

10.º ─ Dando a conhecer a magnetização espiritual, que era desconhecida, abre ao magnetismo um novo caminho e lhe traz um novo e poderoso elemento de cura.

O mérito de uma invenção não está na descoberta de um princípio, quase sempre anteriormente conhecido, mas na aplicação desse princípio. A reencarnação, sem dúvida, não é uma ideia nova, tanto quanto o perispírito, descrito por São Paulo sob o nome de corpo espiritual, nem mesmo a comunicação com os Espíritos. O Espiritismo, que não se gaba de haver descoberto a Natureza, procura cuidadosamente todos os traços que pode encontrar, da anterioridade de suas ideias, e quando os encontra, apressa-se em proclamá-los, como prova em apoio ao que propõe. Aqueles, pois, que invocam essa anterioridade visando depreciar o que ele faz, vão contra o seu objetivo, e agem incorretamente, pois isto poderia levantar a suspeita de uma ideia preconcebida.

A descoberta da reencarnação e do perispírito não pertence, pois, ao Espiritismo. É coisa sabida. Mas, até o aparecimento dele, que proveito a Ciência, a Moral, a Religião haviam tirado desses dois princípios, ignorados pelas massas, e mantidos em estado de letra morta? Ele não só os pôs à luz, os provou e fez reconhecer como leis da Natureza, mas os desenvolveu e faz frutificar; deles já fez saírem numerosos e fecundos resultados, sem os quais não se poderia compreender uma infinidade de coisas; diariamente nos leva a compreendermos coisas novas, e estamos longe de esgotar essa mina. Levando-se em conta que esses dois princípios eram conhecidos, por que ficaram tanto tempo improdutivos? Por que, durante tantos séculos, todas as filosofias se chocaram contra tantos problemas insolúveis? É que eram diamantes brutos, que deviam ser lapidados: é o que fez o Espiritismo. Ele abriu um novo caminho à Filosofia, ou melhor, criou uma nova Filosofia que diariamente conquista seu lugar no mundo. Então, estes são resultados de tal modo nulos que devamos acelerar a caminhada em busca de descobertas mais verdadeiras e mais sólidas?

Em resumo, um certo número de verdades fundamentais, esboçadas por alguns cérebros de escol, e conservadas, em sua maioria, como que em estado latente, uma vez que foram estudadas, elaboradas e provadas, de estéreis que eram, tornam-se uma mina fecunda, de onde saíram inúmeros princípios secundários e aplicações, e abriram um vasto campo à exploração, novos horizontes às Ciências, à Filosofia, à Moral, à Religião e à economia social.

Tais são, até hoje, as principais conquistas devidas ao Espiritismo, e não temos feito mais do que indicar os pontos culminantes. Supondo que devessem limitar-se a isto, já nos poderíamos dar por satisfeitos, e dizer que uma ciência nova, que dá tais resultados em menos de dez anos, não é acusada de nulidade, porque toca em todas as questões vitais da Humanidade e traz aos conhecimentos humanos um contingente que não se pode desdenhar. Até que apenas esses pontos tenham recebido todas as aplicações que lhes são susceptíveis, e que os homens os tenham aproveitado, ainda se passará muito tempo, e os espíritas que quiserem pô-los em prática para si próprios e para o bem de todos, não ficarão desocupados.

Esses pontos são outros tantos focos de onde irradiarão inumeráveis verdades secundárias que se trata de desenvolver e aplicar, o que se faz diariamente, porque diariamente se revelam fatos que levantam uma nova ponta do véu. O Espiritismo deu sucessivamente e em alguns anos todas as bases fundamentais do novo edifício. Cabe agora a seus adeptos pôr em prática esse material, antes de pedir materiais novos. Deus saberá bem lhos fornecer, quando tiverem completado sua tarefa.

Dizem que os espíritas só sabem o á-bê-cê do Espiritismo. Que seja. Para começar, então, aprendamos a soletrar esse alfabeto, o que não é problema de um dia, porque, mesmo reduzido tão somente a essas proporções, passará muito tempo antes que tenhamos esgotado todas as combinações e recolhido todos os frutos. Não restam mais fatos a explicar? Aliás, os espíritas não têm que ensinar esse alfabeto aos que o ignoram? Já lançaram eles a semente em toda parte onde poderiam fazêlo? Não resta mais incrédulos a converter, obsedados a curar, consolações a dar, lágrimas a enxugar? Temos razões para dizer que não há mais nada a fazer quando ainda não terminamos a tarefa, quando ainda restam tantas chagas a fechar? Aí estão nobres ocupações que vale a pena conhecer melhor e um pouco mais cedo que os outros.

Saibamos, pois, soletrar o nosso alfabeto antes de querer ler correntemente no grande livro da Natureza. Deus saberá bem no-lo abrir, à medida que avançarmos, mas não depende de nenhum mortal forçar sua vontade, antecipando o tempo para cada coisa. Se a árvore da Ciência é muito alta para que possamos atingi-la, esperemos para voar sobre ela que as nossas asas estejam crescidas e solidamente pregadas, para não termos a sorte de Ícaro.