Manifestações de Espíritos – Respostas ao Sr. Viennet, por Paul Auguez

Sr. Paul Auguez foi um grande poeta e intelectual francês de sua época, além de um dos primeiros defensores do Espiritismo, tendo conhecido Kardec através do lançamento de sua primeira obra como tal – O Livro dos Espíritos.

O Sr. Paul Auguez responde de forma digna, séria, profunda e racional aos ataques sofridos, razão pela qual Allan Kardec sai em sua defesa na Revista Espírita de fevereiro de 1858.

Pelas numerosas citações que atestam um estudo sério e uma profunda erudição, ele prova que se os adeptos de hoje, apesar de sua cifra sempre crescente, e as pessoas esclarecidas de todos os países que a eles se ligam, são, como pretende o ilustre acadêmico, cérebros desequilibrados, tal enfermidade lhes é comum com a da maioria dos gênios que honram a humanidade.

Allan Kardec, [RE], 1858

É importante destacar que o Espiritismo não é uma teoria tirada da cabeça de uma pessoa, mas é uma ciência cuja teoria está apoiada na observação lógica dos fatos. É dessa observação, racional, lógica e séria, que surge a teoria, e não o contrário.

Diz Paulo Henrique de Figueiredo:

O Espiritismo atende, principalmente, a quem, por ter um pensamento racional incompatível com o misticismo, deseja compreender as leis da espiritualidade pelo uso da razão. Também àqueles que, educados pelo catecismo nas igrejas em sua formação primeira, estão desiludidos pelos dogmas, aceitos pela fé cega, que exigem submissão. A Doutrina Espírita é uma teoria organizada por conceitos fundamentais que formam uma estrutura lógica irrepreensível, explicando os fenômenos da vida moral por meio de leis naturais. Quem a estuda profundamente, e compreende sua mensagem original, encontra forças nos momentos difíceis, coragem para enfrentar seus próprios infortúnios, tem esperança no futuro e ganha a certeza de um mundo melhor, onde encontrará o seu lugar.

Figueiredo, Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, 2019

E completa: “Uma teoria apoiada sobre fatos é a própria definição de ciência, pois representa o que a diferencia de outras formas de pensar, como a conjectura ou a fé religiosa.”




Espiritismo é religião?

É muito comum ouvirmos dizer que “Espiritismo é religião”, incluindo comparando-o a outras religiões existentes. Será mesmo que ele é uma religião?

Bem, para isso, primeiramente, precisamos conceituar o termo religião.

O que é religião

Embora muitos o compreendam principalmente como um conjunto de crenças em uma ou mais divindades, existem mesmo as religiões ateias ou agnósticas. Assim, para evitar maiores confusões, vamos nos ater a duas formas principais de entender o termo religião:

  1. Um conjunto de princípios, crenças e práticas de doutrinas religiosas, baseadas em livros sagrados, comumente separada entre sacerdotes e fiéis, sendo que os primeiros se organizam através de hierarquias claramente distintas que culminam, no topo, em um sumo-sacerdote, que representa toda a Igreja e tem a palavra final, inquestionável.

2. Um sistema de regras e valores morais estabelecido por meio de crenças que caracterizam um grupo de indivíduos.

No primeiro aspecto, a doutrina religiosa é indiscutível pelos fieis e pelos níveis mais baixos da hierarquia sacerdotal. Uma mudança, se vier, vem de cima para baixo. Muito comumente, encontram-se, nelas, ideias que se debatem frente à ciência humana, de forma muitas vezes irracional.

Já o segundo aspecto vai mais em encontro à ideia de religião natural, que se entende pela nossa ligação natural a Deus e à Espiritualidade.

E em qual desses dois aspectos O Espiritismo se encaixaria mais?

Muito bem sabemos que o Espiritismo, em sua essência, jamais teve qualquer dos aspectos da primeira classificação. Mas… E quanto à segunda? Para discutir sobre isso, precisamos conceituar o Espiritismo em seu momento histórico.

O Espiritualismo Racional e o Espiritismo

Como já falamos neste artigo, o Espiritismo surgiu em meio ao movimento chamado Espiritualismo Racional. Esse Movimento foi adotado, na França, a partir da terceira década do século XIX, principalmente, como oposição ao movimento materialista e às velhas religiões escravizadoras do pensamento. Segundo Paulo Henrique de Figueiredo, na obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, o Movimento:

caracteriza- se pela adoção de metodologia científica, buscando fazer com o ser humano o que se conquistou com sucesso ao estudar a matéria: a compreensão das leis naturais que o fundamentam. Ou seja, substituiu a fé cega por uma fé racional, exigência dos novos tempos”.

FIGUEIREDO, Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo

E, em outro trecho, destaca:

Em seu tempo, os espiritualistas racionais, distantes das religiões formais, faziam uso dos conceitos de religião e moral natural para estudar os atos da alma humana e de suas relações sociais.

ibidem

Assim, o conceito de religião natural era algo estudado de modo científico (pelas ciências morais) naquele contexto histórico no qual nasceu o Espiritismo. É por isso, e unicamente por isso, que Kardec admitia um aspecto religioso no Espiritismo, já que ele nasceu como desenvolvimento do Espiritualismo Racional, como destaca o próprio Kardec:

[…] toda defesa do Espiritualismo Racional abre caminho para o Espiritismo, que dele é o desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, [RE] 1868, p. 223

O Espiritismo não só nunca foi uma religião – conforme o primeiro conceito – como, muito pelo contrário, nasceu e cresceu como uma ciência moral de aspecto filosófico, galgada na observação dos fatos para dar suporte à dedução lógica e racional que baseiam a teoria:

Toda ciência deve estar baseada sobre fatos; mas só os fatos não constituem a ciência; a ciência nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos: é o conjunto de leis que os regem. O Espiritismo chegou ao estado de ciência? Se se trata de uma ciência perfeita, sem dúvida, seria prematuro responder afirmativamente; mas as observações são, desde hoje, bastante numerosas para se poder, pelo menos, deduzir os princípios gerais, e é aí que começa a ciência.

KARDEC, [RE] 1858, p. 3

O Espiritismo nunca foi uma nova religião

Vemos, afinal, que o Espiritismo, sendo um desenvolvimento do Espiritualismo Racional, e com os aspectos de uma ciência racional, nasceu diametralmente oposto às ideias de dogmatismo religioso que sempre imperaram na humanidade. A proposta principal da Doutrina dos Espíritos é justamente a de tirar o controle da fé humana dos grupos religiosos que, agindo por interesses diversos, escravizavam as consciências aos seus livros e rituais sagrados.

Contudo, muito importante dizer, o Espiritismo não é uma Doutrina que nasceu para brigar com as outras. Ele não vem para lançar anátema sobre as demais crenças, mas, sim, como ciência, para dar um campo neutro onde pessoas de todas as crenças podem se abrigar:

O Espiritismo vem, a seu turno, não como uma religião, mas como uma doutrina filosófica, trazer a sua teoria, apoiada sobre o fato das manifestações; não se impõe; não reclama confiança cega; candidata-se e diz: Examinai, comparai e julgai; se encontrardes alguma coisa melhor do que a que vos dou, tomai-a. Ele não diz: Venho saber os fundamentos da religião e substituí-la por um culto novo; ele diz: Eu não me dirijo àqueles que creem e que estão satisfeitos com a sua crença, mas àqueles que desertam de vossas fileiras pela incredulidade e que não soubestes ou não pudestes reter; venho lhes dar, sobre as verdades que repelem, uma interpretação de natureza a satisfazer sua razão e que lhes faz aceitá-la. (Ibidem)

KARDEC, [RE] 1862, p. 70

Mas o Espiritismo é uma religião

A contradição é proposital, porque quero que nos forcemos a entender a distinção que se dá ao termo religião conforme o entendimento que a ele se dá. Isso é imprescindível. Dependendo de como entendemos – se pelo aspecto filosófico de religião natural, relativo ao contexto histórico de Allan Kardec, ou se pelo aspecto de sistema religioso, que compreende rituais, sacerdotes e dogmas – então o Espiritismo pode ser dito como religião ou não. Kardec conceitua muito bem essa distinção na Revista Espírita de 1868:

[…] então o Espiritismo é uma religião?

“Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião[1], e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da Natureza.”

Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se quiserem, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou.”

“Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor as pessoas inevitavelmente ter-se-iam equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.”

KARDEC, [RE], 1868

Onde mora o problema, então?

Chegando aqui, já para encerrar, preciso reforçar o meu pensamento, que compactua com Kardec: não devemos chamar o Espiritismo de religião, muito menos o apresentar como uma, pois, na cabeça das pessoas, não existe essa distinção de entendimentos – sobretudo atualmente. Diga-se que ele é uma religião e, prontamente, se perguntará o adepto de alguma linha religiosa: “mas então será que eu posso ser espírita, já que sou católico/evangélico/hindu/etc?”. Ou, pior, afirmará: “já tenho minha religião. Essa outra não me interessa” .

Ora, não podemos negar que, ao tratar o Espiritismo como religião, segundo o entendimento popular dado ao termo, estaremos criando uma grande dificuldade de expansão da Doutrina Espírita nas massas, posto que entenderão que, se o Espiritismo é outra religião, então não podem deixar as suas próprias religiões para estudá-lo. Apresentemo-lo, porém, como a ciência de aspecto filosófico que ele é e estão desfeitas as dificuldades: todo mundo pode estudar o Espiritismo, sorvendo dos conhecimentos dados pelos Espíritos por todas as partes e dos estudos de Allan Kardec e de outros, sobre tais conhecimentos, sem a necessidade de deixar sua religião, seus rituais, etc. Aliás, sobre isso, o Espiritismo, seja nas palavras de Kardec ou nas palavras dos próprios Espíritos, sempre foi muito claro: ele não vem forçar ninguém a crer ou a mudar; apresenta, de forma lógica, suas ideias sobre as causas e os efeitos e deixa a cada um a liberdade de mudar ou não.

Aliás, o Espiritismo nem mesmo coloca a necessidade de visitar ou frequentar um centro espírita – embora, claro, não neguemos a grande utilidade que os centros espíritas podem ter – por conta de que o Espiritismo é uma Doutrina para ser estudada e vivida individualmente e no núcleo familiar.

Conclusão

Aqui, finalizando, chegamos a um ponto crucial: a forma como o Espiritismo se difundiu no Brasil. Por uma série de questões, sendo que a principal delas é o desconhecimento da real face do Espiritismo, por falta de estudo das obras de Kardec, mas também por desconhecimento das adulterações sofridas após a morte de Kardec, a Doutrina ganhou diversos aspectos de religião, “indo morar” em templos, atendendo a rituais e hierarquias e, principalmente, deixando para trás toda a metodologia de estudos baseada na evocação de Espíritos, como já tratamos neste artigo.

Contudo, assim como Jesus Cristo nunca fundou uma religião, mas, pelo contrário, tratou de toda a moral por ele trazida de forma natural – aí, sim, adquirindo os traços de uma “religião natural” – o Espiritismo nunca foi nem nunca será uma religião conforme hoje entendemos. Cabe, a nós, entende-lo profundamente, buscando restaurar sua verdadeira face, aplicando-o em nossas próprias vidas e espalhando-o, de forma fraterna e clara, a todos aqueles que possam dela obter algum proveito em suas vidas.

Adicionamos, para enriquecer, a entrevista a esse respeito com Paulo Henrique de Figueiredo:


  1. Veja que, quando Kardec diz que “no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião“, ele está se referindo ao Espiritismo como ciência moral de aspecto filosófico, sendo que tal ciência, nesse momento, abordava a religião natural, afastada dos dogmas das velhas religiões.



O Espiritismo sem os Espíritos

Hoje, 3 de outubro, é aniversário de nascimento de Allan Kardec – Hypolite Leon Denizard Rivail¹, seu nome de registro – e, por entendermos fundamental seu papel no estudo da Doutrina dos Espíritos, à qual denominou Espiritismo, vamos abordar um assunto importantíssimo, que, para quem estuda as obras de Kardec, até pode soar pueril, sem importância: o “Espiritismo sem Espíritos”.

Ora, não será raro aquele que já tenha ouvido as mais diversas afirmações ou que tenha conhecimento do pensamento difundido de que não devemos incomodar os Espíritos, evocando-os. Muitos se baseiam na conhecida frase de Chico Xavier, “o telefone toca de lá pra cá”, imputando a ela um entendimento distorcido e fazendo dela cláusula pétrea no código mediúnico: “não podemos evocá-los. Devemos esperar que eles nos busquem”. Nada mais afastado da verdade e mesmo do propósito do Espiritismo.

Digno de nota, a frase de Chico, pode ser assim interpretada: “podemos evocá-los, mas depende deles, e não de nós, se vão responder ou não”. Outrossim, precisamos lembrar que Chico estava constantemente cercado de milhares de pessoas em busca de uma mensagem de seus entes queridos já falecidos. Chico não podia garantir que poderia atender a todas, sendo levado a dizer, em minhas palavras: “irmãos, eu sou apenas um intermediário e não consigo, sozinho, atender a todos. Por isso, me coloco à disposição deles, permitindo suas comunicações, conforme os bons Espíritos julgarem melhor”.

Essa opinião, contudo, de que não devemos evocar os Espíritos, vêm de muito longe e, aliás, foi muito agradável àqueles que, após Kardec, não desejavam que o método da concordância universal dos ensinos dos Espíritos se mantivesse de pé, posto que colocaria abaixo suas opiniões pessoais. Isso é bem conhecido.

Allan Kardec, na Revista Espírita de Janeiro de 1866, em artigo de título idêntico ao nosso, faz a seguinte observação:

Examinemos agora a questão sob outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo mundo sabe o contrário. O Espiritismo é o resultado do ensinamento dos Espíritos, de tal sorte que sem as comunicações dos Espíritos não haveria Espiritismo. Se a Doutrina Espírita fosse uma simples teoria filosófica nascida de um cérebro humano, ela não teria senão o valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, tem o valor de uma obra coletiva, e é por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.

E segue, criticando os inimigos da Doutrina que, por verem na universalidade do ensino dos Espíritos, um grande inimigo às suas ideias próprias:

Pois bem! É em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não as atacariam, e que é a prodigiosa vulgarização dessas ideias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Os que hoje rejeitam as comunicações não parecem essas crianças ingratas que negam e desprezam os seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem?

Onde o Movimento Espírita tomou um desvio

Após Kardec, como já sabemos, o Movimento Espírita sofreu enorme desvio, praticamente colocando o mestre lionês e seu método de estudo no esquecimento. Depois disso, chegado ao Brasil, já se encontrava o Movimento bastante alterado em suas bases, esquecido de que o Espiritismo sem os Espíritos é apenas sistema de ideias pessoais, ideias essas que se proliferaram dentre os Espíritas através de mais de um século.

Roustaing, um dos primeiros maiores adversários do Espiritismo, contemporâneo de Kardec, movido por enorme vaidade, através principalmente de Pierre-Gaëtan Leymarie, inseriu seus conteúdos no meio espírita que, se não bastassem serem contrários à Doutrina Espírita em muitos pontos, eram obtidos através de apenas um Espírito – ou seja, nada de universalidade de ensinos. Se houvessem estimulado tal método, veriam tais teorias desmentidas pelos próprios Espíritos, o que não seria interessante à vaidade pessoal do “escolhido”.

Estupefato, descobri, recentemente, que a própria FEB, no início do século XX, defendia as ideias roustainguistas como um complemento a Allan Kardec:

E foi por compreender a sua preponderante utilidade [do Evangelho] que a Federação instituiu o seu estudo nas sessões das terças-feiras, preferindo-o ao Evangelho segundo o Espiritismo [por Allan Kardec], que apenas contém os ensinos morais, Os quatro Evangelhos (Revelação da revelação), ditados a J.-B. Roustaing, por ser completa essa revelação, contendo, não somente o desenvolvimento daqueles ensinos, mas a explicação de todos os atos da vida de Jesus, com uma nova e esclarecedora orientação acerca da natureza e da sua missão messiânica.

(FEB, 1902, p. 1)

Vemos, portanto, desde quando tais ideias danosas se infiltraram no Espiritismo, sobretudo no Brasil, onde diversos médiuns – não questionando seus propósitos e seus valores – passaram a serem tomados como oráculos ou profetas – mais uma vez, nada de universalidade dos ensinos.

Mas será que precisamos disso, hoje?

Muitos, contudo, vão dizer: esse método de Kardec, baseado nas evocações, somente foi útil para o nascimento do Espiritismo. Hoje, não precisamos mais disso, pois já temos muito conteúdo que nos servem de base de ensinamento.

Sim, inquestionavelmente temos, hoje, tanta base de ensinamento moral que, se realmente os compreendêssemos, estaríamos anos-luz à frente em nossa evolução espiritual. Contudo, não se deu o mesmo com os ensinamentos do Cristo que, mesmo assim, nos enviou o Consolador Prometido – a Doutrina dos Espíritos. Por quê? Porque o Espírito avança primeiro em intelectualidade, para apenas depois avançar em moralidade. Como, então, diminuir essa distância? Apenas através da união da fé à ciência. E foi essa a missão de Kardec, tão bem realizada no estudo da Doutrina dos Espíritos.

Ora, não podemos esquecer: o Espiritismo é uma ciência de aspecto moral e filosófico, nascida do estudo e da observação das manifestações espíritas, obtendo, delas, o conhecimento, baseado na universalidade dos ensinamentos dos Espíritos – ou seja, a distribuição dos ensinamentos dos Espíritos por toda a parte, obtendo, desses ensinamentos, a concordância, sob a luz da razão. Chegamos, assim, em uma constatação:

Retirar, do Espiritismo, as evocações, é retirar dele a característica principal: o de uma ciência que, como sempre demonstrou e defendeu Kardec, deveria andar de mãos dadas com a ciência humana.

Então, somos forçados a constatar, também, que as evocações, com finalidade séria, são ainda necessárias e, talvez, sempre serão. Ou será que já sabemos de tudo a respeito das nossas relações com os Espíritos e do mundo dos Espíritos? Ou será que o avanço da ciência humana não trouxe, de um lado, tantas confirmações e, de outro, novas dúvidas, a respeito dessas relações e da nossa natureza espiritual? Ou será que as mistificações não passaram a inundar o Movimento Espírita?

Vamos ver, a respeito da última questão, o pensamento de Cláudio Bueno da Silva no portal O Consolador:

Quando se fala em mistificação, em desvios de rota do movimento espírita, impossível não citar os célebres e traumáticos “ismos”, que causaram tantas controvérsias: o Ubaldismo, de Pietro Ubaldi; o Ramatisismo, de Ramatis; o Roustainguismo, de J. B. Roustaing; o Armondismo, de Edgar Armond; o Divinismo, de Oswaldo Polidoro, e outros “ismos”. Todos eles com uma curiosa característica: em meio a verdades, muitos equívocos destoantes da Revelação Espírita, codificada por Allan Kardec. Embora algumas dessas proposições não tenham surgido propriamente dentro do movimento espírita, nele se infiltraram, deixando resquícios que perduram ainda em muitos centros e federações pelo país.

Mas as investidas das sombras não param. Há algum tempo, muitas casas espíritas foram “invadidas” pela teoria das crianças índigo, versão importada sobre a reencarnação de muitos “anjinhos” inteligentes, cheios de independência e malícia, mas cheios também de rebeldia e agressividade que, segundo a fantasia dos seus “criadores” norte-americanos, têm a missão de renovar (?) a Terra. Muitos espíritas ficaram encantados com a novidade e durante bom tempo não se falou de outra coisa dentro da casa espírita.

CLÁUDIO BUENO DA SILVA – http://www.oconsolador.com.br/ano6/285/claudio_bueno.html

Os próprios Espíritos defendem a nossa comunicação com eles

A leitura e o estudo da obra de Allan Kardec nos demonstra, sem cessar, que os Espíritos vêm de bom grado, sempre que possível, responder às evocações realizadas. Quando Espíritos bondosos ou sábios ficam felizes em transmitir bons ensinamentos; quando Espíritos, ainda inferiores, encontram alívio em exporem suas dificuldades ou em transmitir alguma palavra de conforto aos seus familiares. Outras vezes, conforme permitido, transmitem conselhos importantes, como podemos ver no artigo “Mamãe, aqui estou”, da R.E. de Janeiro de 1858:

Júlia: Mãe, por que te afliges? Sou feliz, muito feliz. Não sofro mais e vejo-te sempre.

A mãe: Mas eu não te vejo! Onde estás?

Júlia: Aqui ao teu lado, com a minha mão sobre a Sra. X (a médium) para que escreva o que te digo. Vê a minha letra (a letra era realmente a da moça).

A mãe: Dizes: minha mão. Então tens corpo?

Júlia: Não tenho mais o corpo que tanto me fez sofrer, mas tenho a sua aparência. Não estás contente porque não sofro mais e porque posso conversar contigo?

A mãe: Se eu te visse, te reconheceria, então?

Júlia: Sim, sem dúvida; e já me viste muitas vezes em teus sonhos.

A mãe: Eu realmente te revi nos meus sonhos, mas pensei que fosse efeito da imaginação, uma lembrança.

Júlia: Não. Sou eu mesma que estou sempre contigo e te procuro consolar; fui eu quem te inspirou a ideia de me evocar. Tenho muitas coisas a te dizer. Desconfia do Sr. Z… Ele não é sincero.

(Esse senhor, conhecido apenas da mãe, citado assim espontaneamente, era uma nova prova de identidade do Espírito que se manifestava.)

A mãe: Que pode fazer contra mim o Sr. Z?

Júlia: Não te posso dizer. Isto me é vedado. Posso apenas te advertir que desconfies dele.

Precisamos, portanto, lembrar que a mediunidade serve justamente para isso: intercâmbio entre os “dois planos”. Se não fosse assim, Deus não nos daria essa capacidade. Sim, é fato que devemos buscar caminhar com nossos próprios pés, sem ceder ao ímpeto de perguntar aos Espíritos sobre tudo. Mas também é fato de que, com seriedade e bom propósito, eles tem muito a nos ajudar, tanto nos assuntos pessoais quanto nos assuntos de importância geral. E isso, aliás, eles fazem constantemente, através da nossa intuição.

Mas, então, se julgamos precisar de comunicações mais claras, que fazer? Viver na dúvida?

Penso que, sobre isso, precisamos pensar com muito cuidado, a fim de realmente não ocuparmos médiuns e Espíritos com algo que nós mesmos podemos entender ou fazer, inclusive galgados nos ensinamentos já existentes no Espiritismo. Deveríamos agir como o estudante que, antes de fazer perguntas tolas, deveria sempre pesquisar o conhecimento já existente, caso contrário poderá ser mesmo repreendido pelo professor: “você não estudou com atenção. O conhecimento está lá; volte e releia”.

Sobre o resto, se há propósito sério, eles nos responderão dentro dos limites permitidos. Se, por outro lado, não houver propósito sério, poderão os bons Espíritos nos dar um belo puxão de orelha, no melhor dos casos; nos outros, poderão responder Espíritos maliciosos, com o intuito de nos provocar dificuldades e desvios, ou apenas de debocharem de nós.

Conclusão

Sendo data memorável, enfim, da vida desse Espírito que conhecemos por Allan Kardec, precisamos, em reconhecendo seu trabalho tão bem realizado e tão dedicado, recuperar a história real do Espiritismo, restaurando sua essência e afastando os escolhos que dela tomaram tão grande parte.

Espiritismo sem Espíritos, isto é, Espiritismo sem concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos e, por conseguinte, sem a nossa busca pela comunicação com eles, não é Espiritismo: é apenas opinião pessoal.


  1. Entre os papéis de próprio punho de Allan Kardec há um esboço autobiográfico no qual ele corrige seu primeiro nome, normalmente grafado como Hippolyte, para a verdadeira grafia Hypolite. Canuto Abreu teceu considerações num artigo, que pode ser acessado pelo endereço em https://espirito.org.br/autonomia/allan-kardec-data-e-nome. assim como o manuscrito de Kardec. Também o ano de seu nascimento foi corrigido nesse mesmo documento, tendo nascido em 1803 e não em 1804 como as biografias posteriores registraram equivocadamente. [Paulo Henrique de Figueiredo- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo]



O Sr. Home

O Sr. Home foi personalidade muito conhecida à época de Kardec. Médium de efeitos físicos poderoso, atesta Kardec sua integridade moral, sua seriedade e sua introspecção no trato do assunto. Quanto à sua fortuna, não se faz crítica, pois é algo que apenas a ele diz respeito.

Nota-se com facilidade, pela leitura do artigo, que a ida do Sr. Home não se deu por acaso, mas por planejamento superior. Tendo lá ido parar por motivos de saúde, apresentou, aí, o “golpe fatal” contra a dúvida que existia a respeito das manifestações espíritas – algo muito semelhante àquilo que, anos antes, deu lugar nos Estados Unidos, como relata Ernesto Bozzano em “O Espiritismo e as Manifestações Supranormais”. Citando Kardec,

A França, ainda em dúvida no que concerne às manifestações espíritas, precisava que lhe fosse desferido um grande golpe; foi o Sr. Home quem teve esta missão e, quanto mais alto foi o golpe, maior foi a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que se convenceram pela evidência dos fatos, abalaram as convicções de muita gente, mesmo entre as pessoas que foram testemunhas oculares.

Após comentar sobre alguns fatos da vida do Sr. Home, evidenciando os diversos indícios que denotam suas seriedade e honradez, Kardec fala sobre o gênero de mediunidade desse senhor, muito semelhantes àqueles obtidos por Jonathan Koons, conforme conta Bozzano na obra supracitada:

O Sr. Home é um médium do gênero dos que produzem manifestações ostensivas, sem excluir por isto as comunicações inteligentes, mas as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão toda especial. Sob sua influência ouvem-se os mais estranhos ruídos; o ar se agita; os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lado a outro, através do espaço; instrumentos de música produzem sons melodiosos; aparecem seres do mundo extracorpóreo que falam, que escrevem e que por vezes nos abraçam até produzir dor. Muitas vezes ele próprio se viu, em presença de testemunhas oculares, elevado, sem apoio, a vários metros de altura.

A faculdade de Home não exclui o contato com os Bons Espíritos. Contudo, através da ação dos Espíritos inferiores, ele se torna uma ferramenta de divulgação do Espiritismo, tarefa muito valorosa, mas não sem perigos e tribulações, que ele realizou com muita resignação e perseverança.

A faculdade do Sr. Home é inata e se manifestou desde seus primeiros meses de vida, quando seu berço balançava sozinho e mudava de lugar. “Em seus primeiros anos era tão débil que mal se sustinha; sentado no tapete, quando não alcançava os brinquedos, estes vinham pôr-se ao seu alcance“. Kardec reitera a índole de Home:

Se o Sr. Home fosse, como o pretendem os que julgam sem ver, somente um hábil prestidigitador, teria sempre, sem a menor dúvida, mágicas prontas em sua sacola. Entretanto, não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, no momento exato em que tivesse necessidade de sua faculdade, esta poderia faltar. Por vezes, os fenômenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que doutras vezes não é possível provocá-los, o que é uma circunstância pouco favorável para quem quisesse fazer exibições com hora marcada.

Por fim, Allan Kardec encerra mencionando um fato ocorrido a portas fechadas, de forma espontânea e sem as diversas testemunhas possíveis, senão seu criado e um amigo, fato que demonstra, ao olhar de Kardec, que não o Sr. Home não buscava alarido e não tinha motivos para enganar a apenas duas pessoas.




Revista Espírita – Fev/1858 – Espíritos errantes ou encarnados

São os estados do Espírito, que pode estar encarnado, isto é, ligado a um corpo físico, ou em estado errante ou de erraticidade, isto é, no intervalo entre uma encarnação e outra.

Errar, neste contexto, significa “estar sem rumo certo”. É claro que o Espírito tem um rumo, traçado por Deus, mas, como de sua imperfeição ele não conhece esse rumo, apenas vivencia o aprendizado de aperfeiçoamento, diz-se que erra ou que está em estado de erraticidade enquanto está livre da matéria, mas esperando uma nova encarnação.

Os Espíritos Puros, é claro, não se enquadram nessa classificação, pois já não precisam reencarnar, visto que já percorreram, teoricamente, toda a escala evolutiva.




Mademoiselle Clairon e o fantasma

https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/20/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1858/4367/fevereiro/mademoiselle-clairon-e-o-fantasma

Kardec traz a história de uma atriz, escrita por ela mesma, já em seus 60 anos de idade. Nela, Clairon conta que, um homem que por ela se apaixonou, após morrer, passou a assombrá-la por dois longos anos – por raiva de sua indiferença.

Conta ela que, dia após dia, e testemunhado por muitas outras pessoas, inclusive policiais, passou a sofrer diversos episódios bastante singulares:

  • Gritos lancinantes sob sua janela, quase todas as noites, às 23 horas.
  • A certa altura, os gritos se transformaram em “tiros de fuzil” que, embora não atingissem materialmente a nada, nem mesmo aos vidros, promoviam distúrbios sonoros e luminosos, acreditando-se, quem os presenciava, alvo de um atirador.
  • Certa feita, teriam eles sido “atingidos” por uma bofetada, proferida pelo fantasma:

“Acostumada ao meu fantasma, que eu considerava um pobre diabo que se limitava a fazer estripulias, não me apercebi da hora. Como fazia calor, abri a janela malsinada e, com o intendente, nos debruçamos no balcão. Batem as onze horas, ouve-se o tiro e ambos somos atirados ao meio da sala, onde caímos como mortos. Tornando a nós mesmos e sentindo que tudo havia passado, examinando-nos para constatar que ambos havíamos recebido ─ ele na face esquerda e eu na face direita ─ a mais terrível bofetada que jamais poderia ser aplicada, nos pusemos a rir como dois loucos”

Um escritor anônimo teceu comentário atribuindo os relatos à imaginação da moça, posto que tudo teria acontecido na época em que “ela tinha de vinte e dois anos e meio a vinte e cinco anos, que é a idade da inspiração e que esta faculdade nela era continuamente exercitada e exaltada pelo gênero de vida que levava, no teatro e fora dele”. Segue o autor: “É preciso ainda lembrar que ela disse, no começo de suas memórias, que na infância foi entretida apenas com aventuras de aparições e de feiticeiros, que lhe diziam tratar-se de histórias verídicas.”.

O comentário sem assinatura parece remeter ao fato de que Clairon demonstrava, em tudo, que apenas exagerava uma imaginação fértil. Contudo, Kardec contrapõe:

“Só conhecemos o fato através do relato de Mademoiselle Clairon. Assim, só podemos julgar por indução. Ora, nosso raciocínio é o seguinte: Descrito pela mesma Mademoiselle Clairon nos seus mais minuciosos detalhes, o fato tem mais autenticidade do que se fora relatado por terceiros. Acrescente-se que quando escreveu a carta onde o fato vem descrito, contava cerca de sessenta anos e, pois, havia passado da idade da credulidade, de que fala o autor da nota. Esse autor não põe em dúvida a boa-fé de Mademoiselle Clairon quanto à sua aventura: apenas admite tenha ela sido vítima de uma ilusão. Que o tivesse sido uma vez, nada tem de extraordinário, mas que o tivesse sido durante dois anos e meio já se nos afigura mais difícil. Mais difícil ainda é supor que tal ilusão tenha sido partilhada por tantas pessoas, testemunhas auriculares e oculares dos fatos, inclusive pela própria polícia.”

Kardec segue, dizendo que o relato parece provável, mas, como bom pesquisador, não a aceita como absoluta verdade, posto que não a pôde analisar mais de perto. Sobre os fatos, lembramos que não estão em desacordo com os ensinamentos espíritas e os fatos já conhecidos, tais como os de efeitos físicos diversos. Aliás, lembramos que existem estudos bastante sérios sobre tais fatos, conforme relatados e analisados, com muita seriedade, pelo pesquisador Espírita Ernesto Bozzano. Citamos as obras “Fenômenos de Transporte” e “O Espiritismo e as Manifestações Supranormais”, recomendando a leitura, além de O Livro dos Médiuns, que apresenta importante introdução teórica aos fenômenos do tipo.

Sobre o fantasma, nota-se, diz Kardec, que se trata não de um Espírito necessariamente mau, mas, sim, de um Espírito inferior (palavra nossa), cheio de paixões e imperfeições:

A paixão violenta sob a qual sucumbiu como homem, prova que nele predominavam as ideias terrenas. Os traços profundos dessa paixão, que sobreviveu à destruição do corpo, provam que, como Espírito, ainda se achava sob a influência da matéria. Sua vingança, por mais inofensiva que fosse, denota sentimentos pouco elevados. Se, pois, nos reportarmos ao nosso quadro da classificação dos Espíritos, não será difícil determinar-lhe a classe: a ausência de maldade real o afasta naturalmente da última classe, a dos Espíritos impuros, mas evidentemente tinha muito das outras classes da mesma ordem, pois nada nele poderia justificar uma posição superior.

Sugestões de Leitura

  • “Fenômenos de Transporte”, por Ernesto Bozzano
  • “O Espiritismo e as Manifestações Supranormais”, idem
  • O Livro dos Médiuns, por Allan Kardec



Isolamento dos corpos pesados

O movimento imprimido aos corpos inertes pela vontade é hoje de tal modo conhecido que seria quase pueril relatar fatos do gênero.

Kardec inicia assim esse artigo, dizendo algo mais ou menos assim: “que as mesas podem ser elevadas do chão pela força psíquica, isso já é fato conhecido”. Hoje nos parece muito estranho pensar dessa forma. Por quê?

O fenômeno já era amplamente aceito – e estudado

Precisamos compreender que o Espiritismo surgiu em meio ao movimento chamado Espiritualismo Racional, adotado, na França, principalmente, como oposição ao movimento materialista e às velhas religiões escravizadoras do pensamento. Segundo FIGUEIREDO, 2019, o Movimento, “caracteriza- se pela adoção de metodologia científica, buscando fazer com o ser humano o que se conquistou com sucesso ao estudar a matéria: a compreensão das leis naturais que o fundamentam. Ou seja, substituiu a fé cega por uma fé racional, exigência dos novos tempos”¹. 

Naquela época e naquele contexto, as ciências morais estudavam tudo o que nascesse da ação humana, e isso incluía o estudo dos fenômenos psicológicos¹ do magnetismo e do sonambulismo, dentre tantos outros. Pois bem: o Espiritismo, tendo nascido em momento tão favorável, se desenrolou facilmente e, justamente por isso, conquistou rapidamente incontáveis adeptos, dentre os quais muitos, talvez a maioria, eram pessoas cultas, sérias e dedicadas às ciências. Tudo isso para trazer o relevante entendimento de que o Espiritualismo Racional já se ocupava, antes do nascimento do Espiritismo, dos fenômenos “supranormais”, como chama Bozzano, dentre os quais a magnetização de um objeto pesado, como uma mesa, que então se movia e se levantava, contra as leis conhecidas da Física, era fato conhecido e estudado.

As ciências psicológicas tratam das leis naturais que regem a natureza humana. E essas leis são de duas espécies, as experimentais ou empíricas, exprimindo os resultados da experiência do espírito humano tal como ele é, e as outras são ideais, representando o fim para o qual devemos encaminhar nossas faculdades por meio da evolução, ou tal qual elas deveriam ser. O estudo do ser humano em seu estado real é a psicologia experimental propriamente dita. (FIGUEIREDO, 2019)

Kardec, o Sr Fortier e as mesas girantes

Aliás, neste momento, interrompemos para voltar a Kardec, que conta sobre seu contato com o Sr. Fortier, conhecido magnetizador:

Foi em 1854 que pela primeira vez ouvi falar das mesas girantes. Encontrei um dia o Senhor Fortier a quem eu conhecia desde muito e que me disse: Já sabe da singular propriedade que se acaba de descobrir no Magnetismo? Parece que já não são somente as pessoas que se podem magnetizar, mas também as mesas, conseguindo-se que elas girem e caminhem à vontade. – ‘É, com efeito, muito singular, respondi; mas, a rigor, isso não me parece radicalmente impossível. O fluido magnético, que é uma espécie de eletricidade, pode perfeitamente atuar sobre os corpos inertes e fazer que eles se movam’. Os relatos, que os jornais publicaram, de experiências feitas em Nantes, em Marselha, e em algumas outras cidades, não permitiam dúvidas acerca da realidade do fenômeno.

Kardec, A., Obras Póstumas, Rio: FEB, 1964. p. 237

Nota-se que Kardec aceitava tranquilamente os fenômenos em questão, sendo que a mesa girante não foi seu primeiro contato com o magnetismo. Contudo, pouco tempo depois, um novo episódio vai marcar para sempre sua história com o Espiritismo nascente: 

Algum tempo depois, encontrei-me novamente com o Sr. Fortier, que me disse: Temos uma coisa muito mais extraordinária; não só se consegue que uma mesa se mova, magnetizando-a, como também que fale. Interrogada, ela responde. – Isto agora, repliquei-lhe, é outra questão. Só acreditarei quando o ver e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que possa tornar-se sonâmbula. Até lá, permita que eu não veja no caso mais do que um conto para fazer-nos dormir em pé.” [grifos nossos]

ibidem

Voltando ao artigo em questão…

Tudo que foi acima exposto nos serve para possamos compreender, racionalmente, a lógica que levava Kardec a aceitar tão tranquilamente isolamento (e o movimento) dos corpos pesados. Segue ele fazendo análise parecida com aquela feita ante ao relato do sr Fortier, quando dissera que as mesas respondiam inteligentemente: se há inteligência, há uma causa inteligente. Onde, pois, estará essa causa?

É importante destacar, conforme Kardec demonstra no artigo, que precisamos ter muita calma para analisar tais fatos e seus relatos, a fim de que a imaginação sobreexcitada não faça o fenômeno parecer “passe de mágica”: para se chegar ao levantamento de um corpo pesado, são necessárias muita concentração e diversas investidas, com as quais o fenômeno parece ganhar cada vez mais força, não acontecendo num estalar de dedos.

Também é digno de nota que Kardec menciona que os fatos obtidos “em casa do Sr. B…” se deram repetidamente, mesmo sem o contato das mãos e na presença de diversas testemunhas, inclusive daquelas “muito pouco simpáticas” e que não deixariam de levantar suspeita se tivessem motivo para tal. O mesmo tipo de fenômeno também ocorria facilmente em diversas outras casas.

Recomendações de Leitura

Para aprofundar o estudo, recomendamos, além das obras “Fenômenos de Transporte” e “O Espiritismo e as Manifestações Supranormais”, de Ernesto Bozzano, o estudo de O Livro dos Médiuns, onde, nos capítulos I, II, III, IV e V da Segunda  Parte, uma extensa abordagem teórica sobre o assunto é realizada.

Também recomendamos o livro “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo“, por Paulo Henrique de Figueiredo


  1. É por isso que a Revista Espírita recebe o nome “Jornal de Estudos Psicológicos”, em perfeita concordância com o entendimento das ciências morais no contexto histórico e social de Allan Kardec.
  2. FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, 2019, editora FEAL



A floresta de Dodona e a estátua de Memnon

Kardec inicia esse artigo contextualizando o leitor no ambiente de uma sala, como em inúmeras outras, onde ocorriam os fenômenos tiptológicos tão comuns naquela época. Afastando a possibilidade de fraude, por conhecer o meio em que se encontrava, para procurar hipóteses válidas para a causa desses fenômenos, segue desenrolando uma sequência lógica e racional de ideias, a fim de demonstrar a necessidade de nunca aceitar qualquer ideia, positiva ou negativa, de forma cega:

Um jovem bacharelando estava em seu quarto, estudando pontos do exame de Retórica, quando bateram à porta. Penso que todos admitem ser possível distinguir a natureza do ruído, e sobretudo na sua repetição, se é causado por um estalo da madeira, pela agitação do vento ou por qualquer outra causa fortuita, ou se é alguém que bate, querendo entrar. Neste último caso o ruído tem um caráter intencional, que não pode ser confundido. É o que pensa o nosso estudante. Entretanto, para não se incomodar inutilmente, quis certificar-se, pondo à prova o visitante. Se for alguém, diz ele, bata uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes; bata no alto, em baixo, à direita ou à esquerda; bata o compasso musical; bata a chamada militar, etc., e a cada um desses pedidos, o ruído obedece com a mais perfeita exatidão. Com certeza, pensa ele, não pode ser o estalo da madeira, nem o vento, nem mesmo um gato, por mais inteligente que seja. Eis um fato. Vejamos a que consequências seremos conduzidos pelos argumentos silogísticos.

Assim, ele fez o seguinte raciocínio: Ouço um barulho, logo, é alguma coisa que o produz. Esse barulho obedece às minhas ordens, portanto, a causa que o produz me compreende. Ora, o que compreende tem inteligência, portanto a causa desse barulho é inteligente. Se é inteligente, não é a madeira nem o vento; se, pois, não é a madeira nem o vento, é alguém. Então foi abrir a porta. Vejamos que não é preciso ser doutor para chegar a esta conclusão e julgamos nosso futuro bacharel suficientemente aferrado aos seus princípios para concluir do seguinte modo:

Suponhamos que ao abrir a porta ele não encontre ninguém, e que o barulho continue exatamente como antes. Ele seguira o seu sorites¹: “Acabo de provar a mim mesmo, sem contestação, que o barulho é produzido por um ser inteligente, uma vez que responde ao meu pensamento. Ouço sempre esse barulho à minha frente e é certo que não sou eu quem bate, portanto, é um outro. Ora, se esse outro eu não vejo, claro que ele é invisível. Os seres corporais que pertencem à Humanidade são perfeitamente visíveis. Este que bate, sendo invisível, não é um ser humano corpóreo. Ora, desde que chamamos Espíritos os seres incorpóreos, aquele que bate, não sendo corpóreo, é pois um Espírito”.

Embora Kardec tenha feito uma simplificação, pois não abordou a necessidade de procurar possíveis causas escondidas, responsáveis pelas “batidas na porta” (o que ele sempre buscava fazer) fica evidente uma linha de pensamentos lógicos bastante clara e simples que, se fosse seguida, faria muitos deixarem de cair em contradições e negações ante àquilo que é tão claro e evidente.

Era dessa forma, quando dos fenômenos de tiptologia, que se obtinham as respostas sobre os questionamentos feitos aos Espíritos: através de pancadas, de forma ou número definidos, indicava-se letras, números, respostas binárias e etc, além de, para uma comunicação mais desenvolvida, muitas vezes indicarem, por um sinal particular, que desejava escrever; “então o médium escrevente tomava o lápis e transmitia seu pensamento por escrito”.

Entre os assistentes, não falando dos que estavam em volta da mesa, mas de todas as pessoas que enchiam o salão, havia incrédulos autênticos, meio crentes e crentes fervorosos que, como se sabe, constituem uma mistura pouco favorável. Os primeiros, nós os deixamos à vontade, esperando que a luz se faça para eles. Respeitamos todas as crenças, mesmo a incredulidade, que constitui uma espécie de crença, quando essa se respeita suficientemente para não chocar as opiniões contrárias. Assim, pois, não diremos que suas observações sejam destituídas de utilidade. Seu raciocínio, muito menos prolixo que o do nosso estudante, geralmente pode ser assim resumido: Eu não creio em Espíritos, portanto, não podem ser Espíritos, e como não são Espíritos, é um truque. Tal suposição os leva a admitir que a mesa teria um maquinismo, à maneira de Robert Houdin.

Kardec cita os assistentes, ou testemunhas, destacando aqueles que estavam convencidos de que tudo era uma farsa, apresentando sua lógica de pensamento. Segue apresentando a resposta:

Primeiro, seria preciso que todas as mesas e todos os móveis tivessem maquinismos, uma vez que não os há privilegiados; segundo, não se conhece qualquer mecanismo suficientemente engenhoso para produzir à vontade todos os efeitos que acabamos de descrever; em terceiro lugar, seria necessário que a Sra. B… tivesse preparado propositalmente paredes e portas de seu apartamento, o que é pouco provável; em quarto lugar, enfim, teria sido necessário preparar ainda as mesas, as portas, as paredes de todas as casas onde semelhantes fenômenos se produzem diariamente, o que também não é de presumir-se, porque então seria conhecido o hábil construtor de tantas maravilhas.

Vê-se que esses não querem tomar o caminho do bacharelando e, de antemão, já se decidiram por desacreditar.

Temos, também os “meio-crentes”, aos quais Kardec recomenda que voltem aos argumentos do futuro bacharel.

E, dentre os crentes, há ainda três nuances, outros três tipos de crentes: os curiosos, que não tiram proveito moral dos fenômenos em questão; os instruídos e sérios, que o fazem; e os crentes de fé cega, que creem na mesa como creriam num oráculo (sacerdote encarregado da consulta à divindade e transmissão de suas respostas), sem refletir sobre suas respostas, aceitando-as sem submetê-las ao crivo da razão e da concordância.

Finalizando o artigo, Kardec volta vinte e cinco séculos no passado, na floresta sagrada existente no Épiro (Grécia), onde os carvalhos preferiam oráculos e onde, acrescentando-se “o prestígio do culto e a pompa religiosa”, facilmente se entende a veneração de um povo ignorante e crédulo. O sibilar do vento entre as folhas, os sons emitidos pelas estátuas e outros fenômenos, quando verdadeiros, eram os primórdios das comunicações espíritas que, contudo, eram tomadas como verdade absolutas e seguidas cegamente.


  1. Lógica ou raciocínio composto de uma série de proposições ligadas entre si de maneira que o predicado de uma torna-se o sujeito da seguinte, e assim até a conclusão, que tem como sujeito o sujeito da primeira e como predicado o predicado da última proposição anterior à conclusão.



Palestras de além-túmulo – Senhorita Clary D… – Evocação

Digno de nota, o artigo em questão, que resolvemos abordar de forma anacrônica, ou seja, fora da ordem original, traz alguns temas interessantes, na palestra com o Espírito da Srta Clary, falecida aos 13 anos de idade e que passou a ser o gênio, isto é, o Espírito protetor da família. Dentre eles, destaca-se a sua reencarnação, sem data definida, em outro mundo, a sensação do corpo, causada pela lembrança, o deslocamento do Espírito pelo espaço, com a velocidade do pensamento, a questão intrínseca do perispírito nesse deslocamento e, finalmente, o desfecho do artigo, quando, perguntada se poderiam ver, ali, seu “corpo” (perispírito) tal como é atualmente, são respondidos que, para isso, dependeria não dela, mas deles, sob as seguintes condições: “vocês se recolherem por algum tempo, com fé e fervor; estarem em menor número; isolarem-se um pouco e arranjarem um médium do gênero de Home”.

Entendendo, agora, que o Sr. Home era poderoso médium de efeitos físicos, doador dos fluidos necessários para tais fenômenos, entendemos muito bem o porque dessa necessidade.




Nossas considerações sobre os fenômenos materiais

Achamos importante destacar nossas próprias considerações a respeito dos fenômenos materiais, posto que ainda suscitam muitas dúvidas e descrédito, principalmente após o Espiritismo ter atravessado quase 150 anos de deturpações e falsos entendimentos.

Os fenômenos materiais ainda existem, assim como ainda existem os médiuns que os produzem, isto é lógico. Contudo, cremos que tais fenômenos, hoje, talvez não tenham tanta expressividade por conta de que, quando se davam, eram motivados para chamar a atenção para os fenômenos espíritas, o que, alguns apregoam, hoje não tem mais necessidade.

Essa é uma forma de ver. A outra seria a de que esses fenômenos apenas diminuíram após o desenrolar dos estudos de Kardec porque, então, já não eram mais necessários, posto que era muito mais fácil comunicar-se através da psicografia, principalmente, do que através de pancadas. Mas, mesmo então, esses fenômenos não interromperam totalmente, como podemos ver a exemplo do Sr Home e, mais tarde, a exemplo da conhecidíssima médium Eusápia Palladino, estudada por Cesare Lombroso com muita seriedade e dedicação.

Ora, tendo o Espiritismo ficado tão incompreendido através do tempo e tendo os estudos metodológicos sendo esquecidos no passado, deixando espaço para as mistificações e para o crescimento desenfreado do materialismo, mesmo dentre os espiritualistas, perguntamos: será que, hoje, tais fenômenos não viriam trazer novamente a atenção para os fatos espíritas? Não ousamos responder categoricamente, mas apenas relembramos os diversos relatos que todos os dias são colocados aos nossos olhos, nos diversos grupos sobre o tema, nas redes sociais, e sobre os quais, de momento, apenas destacamos: “e se?”