O tapa de Will Smith: reflexões

Para quem não viu, ontem, na noite da premiação do Óscar 2022, Will Smith, ao subir ao palco, deu uma grande bofetada no rosto do apresentador, Chris Rock. Acontece que, pouco antes, este havia feito uma piada, associando a esposa de Will, que sofre de perca de cabelos por conta de uma doença, com a protagonista de um filme antigo, onde a protagonista tem os cabelos raspados.

Will se levantou, foi em direção a Chris, se “armou”, como podemos ver no comportamento físico e lhe desferiu um grande tapa no rosto. Não, não parece ter se tratado de encenação, como podemos ver no vídeo ao lado e, mesmo que fosse, a reflexão permaneceria, como poderíamos fazer a respeito de um filme.

E o que é que isso tem a ver com nosso assunto, aqui? Bem, na verdade, muito, assim como acontece com muitos dos acontecimentos cotidianos. Vejamos:

Em primeiro lugar, podemos justificar a ação de Will?

Bem, não estamos aqui para julgar ninguém, mas apenas para analisar ações que possam nos dar balisa para reflexões oportunas. Podemos, à primeira vista, colocar em cena a questão da defesa: Will estaria apenas defendendo a imagem e a honra de sua esposa, o que justificaria o ato.

Fosse há pouco mais de um século, o caso daria um belo duelo: haveria um desafio de onde, provavelmente, apenas um deles sairia vivo. Aliás, o “tapa na cara” vem justamente desse hábito passado: o desafiador, atingido em sua honra, com a mão ou com uma luva, batia no rosto do ofensor, desafiando-o para um duelo de armas.

757. Pode-se considerar o duelo como um caso de legítima defesa?

“Não; é um assassínio e um costume absurdo, digno dos bárbaros. Com uma civilização mais adiantada e mais moral, o homem compreenderá que o duelo é tão ridículo quanto os combates que outrora se consideravam como o juízo de Deus.”

O Livro dos Espíritos

Duelar, seja como for, é algo que torna o homem ridículo. Desperdiçam-se vidas e desenrolam-se sofrimentos em matéria de disputas banais que tem, aliás, quase sempre, a honra como ponto central da contenda.

759. Que valor tem o que se chama ponto de honra, em matéria de duelo?

“Orgulho e vaidade: dupla chaga da humanidade.”

Os dois trechos acima foram extraídos de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Claro, não estamos aqui falando de um duelo até a morte — coisa que, de formas diferentes, ainda acontece — mas podemos recorrer ao Livro dos Espíritos, em matéria da opinião concordante dos Espíritos a esse respeito. Se você não sabe do que se trata o Espiritismo, que é uma ciência cuja teoria nasceu da observação racional e metodológica das manifestações e das comunicações espirituais, clique aqui para acessar uma dissertação de mestrado sobre o assunto.

Lembrando: não estamos aqui tomando essa obra como um código sagrado, mas, sim, trazendo-a para dar suporte, através da Doutrina dos Espíritos, à nossa reflexão. E vemos, afinal, aquilo que racionalmente se torna escancarado aos nossos olhos, mas que raramente queremos admitir: por trás de tudo está o orgulho ferido e a vaidade ameaçada. Afinal, no caso em questão, a resposta poderia ter sido superior: Will poderia ter aproveitado o ensejo para dar diversas lições morais sobre as questões ali envolvidas. Mas existem mais dos aspectos encerrados na questão; vamos a eles:

As paixões

No passado, lá no século XIX, era muito comum e claro o uso do termo paixão para designar o forte apego humano a um objeto, tema, pessoa ou sentimento. Assim, um homem apaixonado, naquela época, seria um homem desvairado no apego a determinada questão.

Hoje, é mais comum estar a palavra emoção associada a esse contexto. Contudo, entendendo o significado da primeira, julgo que a segunda não representa tão bem o grau elevado de apego, quanto a primeira. Por exemplo: um homem pode estar sentindo a emoção da raiva, mas essa emoção pode estar em diversos graus, sendo que, em até certo limite, essa emoção, que emana do instinto, é útil e benéfica (e.g.: quando sentimos raiva ao tentar abrir uma tampa rosqueada que não se solta: a raiva nos dá ainda mais força para abri-la, porém, se incontida, muitas vezes nos machuca no processo). Por outro lado, ao dizer que o homem está vivenciando a paixão da raiva, entende-se muito bem que ele esta num grau de apego muito elevado a essa emoção que, apesar de emanar do instinto, que é sempre útil e equilibrado, chegou num estado de loucura e incontenção.

E, então, segue, na mesma sequência, um complemento de Kardec à pergunta anterior, em OLE:

[759] a) — Mas não há casos em que a honra se acha verdadeiramente empenhada e em que uma recusa seria covardia?

“Isso depende dos usos e costumes. Cada país e cada século tem a esse respeito um modo de ver diferente. Quando os homens forem melhores e estiverem mais adiantados em moral, compreenderão que o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos.”

É “bonito” ver que os próprios Espíritos, quando superiores, não nos julgam com desprezo. Eles denotam, sempre, que tudo está de acordo com a nossa evolução, isto é, com o nosso tempo e os costumes de cada povo. Um exemplo simples: antigamente, os samurais japoneses tiravam a própria vida, com uma adaga, ao se reconhecerem culpados e sem honra.

Mas o ponto principal está no final do parágrafo: “o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos”. É em superando as paixões que encontraremos o verdadeiro ponto de honra, o verdadeiro sentimento, a verdadeira caridade. É através dessa superação que avançaremos para um novo estágio de sociedade, mas isso somente se faz pela vontade e pela escolha individual. Como, então, chegar a esse novo estado das coisas terrenas?

Kardec, em A Gênese (capítulo III), conclui: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.“. Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5a edição dessa obra, que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4a edição, temos o seguinte encerramento:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Muito importante esse encerramento original. Vai justamente mostrar o ponto central: domamos as paixões através de nossa vontade, no esforço realizado através de muitas encarnações, frente às provas e as expiações.

Portanto, aqui, tomando o caso de Will como exemplo, poderíamos dizer: foi um ímpeto de paixões que o levou a agir daquela forma. Provavelmente, agora se arrependa, em alguma parte, pelo que fez. E se tivesse uma arma e, num ímpeto, houvesse tomado a vida de Chris Rock? Bem, talvez, em algum momento, passasse a sentir uma culpa enorme. Essa culpa poderia lhe travar a jornada, por se achar sob um peso enorme do remorso e, principalmente, se acreditar que pecou e merece castigo. Como retomar a caminhada? Entendendo, afinal, que cometeu um erro, justamente por não saber lidar com as paixões. Perguntamos, enfim: que importa mais: castigar-se ou procurar formas de exercitar o aprendizado da contenção dessas paixões? Já que o segundo caso permite aprendizado e evolução, enquanto o primeiro paralisa, ficamos com a segunda opção. Há, então, uma última reflexão:

Quem foi que motivou todo esse desentendimento?

Bem, sabemos, pelo estudo do Espiritismo, que estamos o tempo todo cercados por uma “nuvem de testemunhas”, como diria Kardec. Espíritos estão o tempo todo por toda parte e, por ser um planeta ainda muito atrasado, é natural supor que existam em maioria os Espíritos imperfeitos.

Na Revista Espírita de Outubro de 1858, no artigo “O mal do medo”, Kardec cita um ensinamento de São Luís:

Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também àqueles que o ouvem. Nesse caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, que no entanto não passa de um ignorante. Pensai bem, e compreendereis o que eu vos digo.

Não que estejamos, aqui, afirmando que o apresentador seja um ignorante em qualquer aspecto. Apenas destacamos o trecho pois, muitas vezes, entre gracejos que alegram o público, somos alimentados mentalmente por Espíritos que visam nada mais que se divertir. Quando não estamos atentos a isso e não nos vigiamos, podemos levar muito longe essa identificação, até que, à custa de nossa infelicidade, caímos em ciladas como estas. Ora, seria demais supor que, fôssemos videntes, veríamos uma multidão de Espíritos inferiores, ao lado do ator, se matando de rir após ver a bofetada provocada pela péssima sugestão que possam ter dado, mentalmente, ao apresentador?

E isso tira a responsabilidade desse apresentador? Muito longe disso. Se vamos a um bar e cedemos às más sugestões de “amigos” levianos que nos incitem a uma briga, a culpa é deles ou é nossa? Cremos já estar bem respondida a questão.

É assim, enfim, que tiramos, da teoria espírita, lições diversas para o dia-a-dia, como, aliás, Kardec frequentemente fazia na Revista Espírita. Rogamos que essa teoria possa se espalhar mais e mais, a fim de influenciar positivamente a sociedade que, talvez mais do que nunca, procura tantas respostas para as questões morais e sociais da humanidade.

https://youtube.com/watch?v=u8NtoM5IiCk



Efeitos do suicídio, segundo o Espiritismo

Muito temos falado sobre o suicídio segundo o Espiritismo e, talvez, nem sempre nossas posições tenham sido absolutamente claras e concisas. Em razão disso, cremos necessário realizar nova abordagem, de forma sucinta e clara.

por Paulo Degering R. Jr.

Leia até o fim

O suicida, desde que tenha consciência do que faz, terá algum sofrimento moral ao constatar a perda de tempo que foi interromper a própria vida. Disse “desde que tenha consciência do que faz” porque, algumas vezes, não há essa consciência. Outrossim, quase sempre terá uma dificuldade maior de se desprender do corpo, que, longe de estar enfraquecido, encontrava-se na plenitude de suas forças.

Kardec assim se expressou, em O Livro dos Espíritos:

Não é geral este efeito; mas, em caso algum, o suicida fica isento das consequências da sua falta de coragem e, cedo ou tarde, expia, de um modo ou de outro, a culpa em que incorreu. Assim é que certos Espíritos, que foram muito desgraçados na Terra, disseram ter-se suicidado na existência precedente e submetido voluntariamente a novas provas, para tentarem suportá-las com mais resignação.

Note a palavra destacada: voluntariamente. O suicida pode, em uma nova encarnação, escolher provas rudes a fim de tentar vencê-las, aprendendo a suportar as vicissitudes com maior resignação.

Mas aí vão te dizer: leia o livro “Memórias de um suicida”

O livro “Memórias de um suicida”

Nesse livro, de forma muito resumida, um Espírito fala de seus extremos padecimentos após a morte. Foi nele que foi criada a imagem do “vale dos suicidas”, algo como um “local” onde os Espíritos suicidas ficariam “purgando” suas faltas.

Acontece que Espíritos não buscam locais. Espíritos buscam Espíritos ou situações, de acordo com suas crenças e suas ideias — conscientemente ou não. Os Espíritos — todos eles — se atraem por afinidade e por sentimentos, como, por exemplo, pelo amor ou pelo ódio, mas também pela mesma sintonia de pensamentos. Espíritos que se julguem culpados, muitas vezes, se jogam num verdadeiro inferno mental, numa situação que é muitas vezes partilhada por outros Espíritos em situação semelhante, que, então, juntos, podem formar verdadeiras paisagens de sofrimento, através da ação mental sobre a matéria fluídica.

Então Yvonne do Amaral Pereira errou ou mentiu?

Não necessariamente. Em se tratando de Espíritos, sabemos que são como nós — com as mesmas virtudes e imperfeições. Assim, podem falar com sabedoria real, ou com falsas ideias, nas quais acreditam. Muitas vezes podem até mesmo enganar. Não sabemos quem foi esse Espírito que psicografou através de Yvonne. Provavelmente era um Espírito sofredor, com as ideias bastante limitadas sobre o mundo espiritual. O que sabemos é que, sem sombra de dúvidas, não podemos desrespeitar o princípio básico da ciência espírita: o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos. Diria Kardec, em A Gênese, logo nas primeiras linhas:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Os problemas dos falsos conceitos no Movimento Espírita

No meio espírita é lugar-comum, hoje em dia, ouvir afirmações do tipo “o suicida vai para o vale dos suicidas”, ou “o suicida encontrará enorme sofrimento, pois ficará preso ao corpo e sentirá os vermes o roendo” ou, ainda, “o suicida, na próxima encarnação, virá com um corpo defeituoso, para ‘resgatar’ suas faltas”. Nada disso reflete a realidade do suicídio segundo o Espiritismo, de forma genérica.

O movimento espírita atual passou a adotar diversos falsos conceitos e meias verdades, obtidas através de relatos individuais e isolados de alguns Espíritos, como se fosse a verdade inquestionável sobre todas as situações. Diria uma colega nossa: os espíritas modernos passaram a colocar todo um universo de possibilidades variáveis em “caixinhas”. Por exemplo: se matou? Vai para a “caixinha” do vale dos suicidas. Queimou uma pessoa? Vai para a “caixinha” de “morte em incêndio na próxima vida”. Tudo isso, como regra geral, não é uma verdade.

Infelizmente, muitos de nós — eu inclusive — por falta de estudos prévios e, muitas vezes, de bom grado, querendo auxiliar, soltamos essas frases que, muitas vezes, causam revolta e afastamento das pessoas que vem buscar, justamente no Espiritismo, uma resposta diferente daquilo que tanto se diz por aí.

Acontece que, no último ano, após o início dos nossos estudos sobre a Revista Espírita, muitos conceitos se aclararam, outros foram substituídos e outros tantos foram esquecidos. Kardec, já nas primeiras edições da RE, em 1858, faz evocações de pelo menos três espíritos suicidas, analisando seus casos individuais. Outros que foram feitos em outras ocasiões constam também em números posteriores, bem como no livro O Céu e o Inferno (da Editora FEAL, correspondente ao original, não adulterado). E, analisando essas comunicações, fica uma lição muito grande, que tentaremos explicar objetivamente a seguir.

Importa, antes, lembrar que o Espiritismo, como Doutrina Científica, não vem frear o homem pela imposição do medo, pois o freio das paixões por esse tipo de dispositivo é apenas temporário e sem grandes resultados. Não: o Espiritismo vem apresentar a verdade baseada na análise dos fatos, através do estudo racional e concordante das comunicações dos Espíritos dadas por todas as partes e por todos os tempos. Ao estudar o Espiritismo, não é mais pelo medo que somos guiados, mas pela razão, e é apenas quando o Espírito entra no estado da razão que ele realmente toma decisões melhores e mais claras.

Pois, bem: quanto ao assunto do suicídio, repetimos que, pautados nesses estudos, os resultados inicialmente destacados não podem ser tomados como regra geral. Sim, existem Espíritos em enorme perturbação que acreditam estar sendo roídos pelos vermes, pois sua mente ficou parada sobre a visão do corpo dilacerado. Existem também aqueles que se veem em locais infernais, por acreditarem que assim devem ser e por se lançarem em situações mentais infernais, onde, sozinhos ou em grupo, criam verdadeiros cenários diabólicos ou purgatoriais. Além destes, existem aqueles que acreditam piamente que a morte é o encerrar da vida e, então, entram em sono mais ou menos prolongado, como também existem aqueles raros que, depois do ato fatídico, momentaneamente se veem libertos da dor física, crendo-se, então, livres da dor moral, que ainda não sabem distinguir da primeira.

Portanto, a situação de cada um, após a morte por suicídio, vai variar muito, de caso a caso e conforme o — grau de consciência sobre aquilo que fazem. É por isso que um Espírito que tira a vida num ímpeto de desespero quase sempre tem um grau de culpa — perante a própria consciência — muito menor do que aquele que, conhecendo o Espiritismo e a doutrina da escolha das provas e expiações, após tirar a vida do próprio corpo, cai em profunda sensação de culpa e em pesadas lamentações, pois se arrepende de ter desistido das provas oportunas para seu próprio adiantamento. Além disso, importa dizer que, quase sempre, esses atos causam dor naqueles que nos amam, o que aumenta a amargura do Espírito ao avaliar a extensão dos resultados de seu ato.

O que buscamos dizer, afinal, é que o Espírito não sofre materialmente, de forma alguma. Pode acreditar que sofre e, mentalmente, criar uma falsa sensação de dor física, mas, na verdade, o sofrimento é moral e condizente com o grau de consciência e de culpa que tem, perante a si próprio, quanto ao mal realizado contra si próprio. Diríamos que, sendo o suicídio o abandono das provas escolhidas por si próprio, quase sempre acompanhará um sofrimento moral menor ou maior, mas nunca representará um termo nas oportunidades concedidas por Deus para nossa evolução, nem tampouco ocasionará, via-de-regra, um sofrimento expiatório na próxima encarnação. Uma vez mais, depende da mentalidade, das crenças e do conhecimento de cada um.

Mas, afinal, adianta se matar?

Sabemos que, quase sempre, o suicídio é uma tentativa de fuga para uma dor ou desespero com os quais não se sabe lidar. Veja, porém: o fato de aquela situação estar acontecendo é justamente uma oportunidade importante de aprendizado, de modo a lidar com essas situações. Se não sabemos lidar, é porque ainda temos imperfeições adquiridas ou paixões, isto é, emoções com as quais ainda não sabemos completamente lidar. Chegar ao ato extremo de tirar a vida do corpo apenas prolongará esse estado de ignorância ou de imperfeição, com um consequente sofrimento moral, já que não vencemos a prova, isto é, não adquirimos experiência e força para superá-la.

Onde, então, encontrar forças? Ora, estamos encarnados por um motivo: para aprender e para desapegar de possíveis imperfeições criadas por nós mesmos. No mundo dos Espíritos — o Espaço — o tempo não existe, de modo que o Espírito que tenha desenvolvido imperfeições fica incessantemente ocupado delas, seja em uma ilusão de prazeres, seja em uma autoperseguição causada por remorso. Assim, se tivermos desenvolvido uma imperfeição qualquer, essa imperfeição será, para nós, motivo de inquietações que parecem intermináveis — eis a explicação do porquê certos Espíritos, em estado de sofrimento, dizerem que tal situação lhes parece não ter fim.

Bem, dizia eu do motivo da encarnação, que, longe da falsa ideia de ser um castigo, é, pelo contrário, uma bênção divina, pois oferece oportunidade de aprendizado comum e de desapego às imperfeições adquiridas. Aqui, é possível nos colocar em contato com pessoas de todo tipo, exercitar diversas atividades, etc., tudo o que nos leva a sair, ou, pelo menos, quebrar o ciclo, dessas situações de sofrimento moral. Qual é, porém, o primeiro e maior erro que aquele que sofre moralmente costuma fazer — induzido também por Espíritos imperfeitos? Isolar-se. Aí está o primeiro passo para a queda, pois o isolamento causará justamente esse cenário de autoperseguição interminável. Não cometa esse erro, e busque ajudar quem o cometa, se possível traçando o raciocínio acima.

Ante uma prova difícil, quem disse que precisamos atravessá-la sozinha? Muitas vezes, esse pensamento de enfrentamento solitário é também originado de falsas ideias ou mesmo de um certo orgulho, que se transforma numa carapaça, por medo de se expor. Decerto não sairemos à rua contando de nossas dificuldades para qualquer um que passe, mas, com certeza, havendo o propósito de buscar auxílio, você o encontrará, talvez não no primeiro psicólogo, talvez não no primeiro amigo, talvez não no primeiro grupo de atividades qualquer, mas você o encontrará, porque você não está sozinho: ao seu lado, te conduzindo para o bem, existe um bom Espírito, mais elevado que você — seu anjo da guarda ou Espírito protetor. O importante é não se isolar, nem se isolar em si mesmo. Busque. Busque um grupo de atividades de caridade, busque um grupo de caminhada matinal, busque, sobretudo, ser útil, e isso te fará gravitar para situações e pessoas que poderão, lenta e progressivamente, auxiliar na sua construção.

Cabe a cada um de nós a vontade por se modificar ou não, por aprender ou não, mas esse trabalho é muito favorecido pelo desenvolvimento da razão — eis o motivo de tanto defendermos o estudo do Espiritismo. Através de nossa modificação, nos tornaremos mais fortes e avançaremos vários degraus em uma só vida e, quem sabe, amanhã não necessitemos de voltar para este mesmo gênero de situação dolorida, talvez conquistado a felicidade de poder viver em mundos melhores ou que, se aqui reencarnarmos, estejamos muito mais fortalecidos e preparados.

Não estou, aqui, falando da boca para fora: falo daquilo que eu mesmo vivi e aprendi. Passei por uma inquietação do tipo, passei pelo isolamento, passei pela autoperseguição. Me permiti, porém, ser influenciado por bons Espíritos, e isso me moveu a várias situações que, lenta e progressivamente, me trouxeram até aqui. Uma dessas situações foi muito interessante: resolvi visitar um asilo próximo de minha casa, onde tive contato com vários idosos que muito me ensinaram sobre a perseverança; fui acolhido com muito carinho por um grupo católico de orações, cuja dirigente era médium e, provavelmente, não sabia; mas o mais interessante, é que, na prateleira dessa instituição, onde havia o predomínio do catolicismo, estavam, na estante da sala comum, dispostos alguns exemplares da Revista Espírita, que eu cheguei a pegar em mãos, cheguei a folhear, por cima, mas acabei não lendo naquele momento. Somente vim conhecer a Revista cerca de um ano depois. Avalie por si mesmo os caminhos pelos quais os bons Espíritos nos conduzem, nos deixando a liberdade de seguir adiante ou não, abrir a porta ou mantê-la fechada.

Lembre-se, afinal: ninguém pode nos fazer o mal, senão nós mesmos. Interromper a própria vida é perda de tempo, que gera culpa e remorso e não interrompe o sofrimento moral causado pelas imperfeições que ainda possam existir em nós((Lembrando que ignorância e imperfeição são coisas diferentes. A imperfeição é adquirida pelo hábito em repetir um erro; já a ignorância pode conduzir ao erro, mas, desde que o superemos, é apenas um erro)).

E se alguém próximo a você está pensando em se matar, leve a ele esse tipo de pensamento. Se alguém já tirou a própria vida, nas suas preces por essa pessoa, converse com esse Espírito, de modo que ele possa deixar a sensação de impotência ante a culpa, se levantar e retomar o caminho evolutivo.

Estudemos, justamente, a fim de tirar, da cabeça das pessoas e do movimento Espírita, as falsas ideias que mais atrapalham do que ajudam. Um Espírito que não quer sair de dentro do caixão, o faz porque acredita que somente o próprio Jesus virá pegá-lo pela mão, no dia do juízo final. Não façamos como esses aprisionadores de consciências, não criemos falsas concepções no pensamento das pessoas. A matéria e as sensações, depois da morte, não são nada. Tudo o que importa é o pensamento, a vontade e a razão. E, por fim, não tomemos a opinião de Espíritos isolados como se fossem a pura verdade — independentemente do médium que a tenha possibilitado.

Recomendamos os vídeos seguintes:




Espiritismo e o mundo de regeneração: como chegaremos a ele?

Hoje estive “filosofando” sobre esse assunto, e cheguei nas seguintes ideias que, destaco, são baseadas na minha forma de ver o tema e no conhecimento que tenho do Espiritismo – o que pode não refletir a mais completa realidade. A seguir, estão expostas as minhas considerações:

Reflitamos: a modificação não vem de cima para baixo, como imposição, mas de baixo para cima, do indivíduo para a sociedade, como escolha. Portanto, o planeta não será transformando senão pela mudança dos seus habitantes. E quando falamos em regeneração, o que é um Espírito que se regenera, deixando de passar por provas e expiações? No meu entendimento, é o Espírito que passa a olhar para dentro de si mesmo, deixando de planejar vidas que visem apenas trazer “sofrimentos reparadores”, para planejar vidas que lhes dêem mais oportunidades de aprendizado para abafar suas imperfeições. E de que forma isso se dá? Apenas pela vontade, alimentada pela razão. Portanto, como entendo, é justamente o conhecimento reforçado pelo Espiritismo que vai nos possibilitar conquistar um novo “ambiente” terrestre.

Enquanto os Espíritos continuarem agrilhoados às velhas concepções aprisionantes da consciência, continuarão errando e, por uma errada concepção de pecado e castigo, continuarão buscando expiar os erros, através do sofrimento material, apenas, aplicando muitas vezes a si mesmo a “lei de Talião” – olho por olho, dente por dente. Contudo, à medida que entendam que o que realmente precisam é se fortalecerem pelo aprendizado e pela razão, em contato com conhecimentos valorosos, para assim lidarem com suas imperfeições, passarão a planejar, ao meu ver, com mais sabedoria suas vidas.

Afinal, o que é que causa mais sofrimento: uma dor física, que termina com a morte, ou uma dor moral, que se estende enquanto o fator que a originou não for resolvido? Não é como agimos aqui? Quando cometemos um erro, muitas vezes queremos ser castigados a fim de aliviar nossa consciência, de forma a querer deixar de lado o verdadeiro problema, que é nossa imperfeição e o sofrimento moral que dela se origina, pelos erros. O indivíduo mais maduro, porém, sabe que o castigo não resolve, e busca encarar de frente seus próprios problemas, que o fizeram errar.

Por exemplo: naquele caso do Assassino Lemaire (RE – Março de 1858) ele sabia que tinha que lidar com suas imperfeições. De que forma pensou em fazer isso? Planejou nascer em meio ao crime, mas malogrou em sua tentativa, pois o ambiente foi mais forte que ele, que ainda não tinha a vontade e a razão muito fortalecidas. Ao falhar em sua tentativa, foi mais um a espalahar a criminalidade, aliando outros Espíritos às suas intenções. E se – e se! – ele, mais consciente, tivesse planejado uma vida diferente? E se, em vez de se colocar sob o ambiente do crime, para lutar com suas paixões, ele tivesse escolhido uma família firme e bondosa, que lhe desse uma educação melhor e lhe colocasse em contato com conteúdos que pudessem lhe ajudar a reforçar a vontade de vencer suas imperfeições, através da razão? Talvez ele tivesse conseguido vencer muitas de suas imperfeições, além de não ser mais um a avolumar a criminalidade.

Não seria isso, como um entendimento geral, gerando decisões melhores, ótimo para o planeta? Não causaria uma enorme mudança à sociedade? Penso que sim. Mas isso requer, em primeiro plano, que o Espírito SE enfrente: que ele se coloque sob a ótica crítica e que enfrente seus próprios “demônios”. Ora, numa sociedade que insiste em acreditar, porque é mais fácil, na imposição de castigos divinos, vemos o quão longe ainda estamos dessa nova era neste planeta… O que não nos impede de, em nós, fazermos um esforço hercúleo para domar nossas paixões, desenvolver nossas virtudes e buscarmos nos elevarmos, no bem, a fim de que possamos conquistar a possibilidade de encarnar em mundos mais felizes.

Quem sabe….

Finalizo com Kardec, em A Gênese (4a edição, original – o trecho foi suprimido na 5a edição, que muitos dizem não ter sido adulterada):

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal – ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas, e por isso dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

Kardec, A Gênese, 4a Edição – FEAL




Envenenamento do Duque de Guyenne

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Junho > Confissões de Luis XI – Extraídas da vida de Luis XI.

Envenenamento do Duque de Guyenne

…Ocupei-me depois da Guyenne. Odet d’Aidies, senhor de Lescun, que se tinha desentendido comigo, conduzia os preparativos da guerra com uma vivacidade maravilhosa. Era com muito esforço que alimentava o ardor belicoso de meu irmão, o Duque de Guyenne. Ele tinha de combater um adversário temível no espírito de meu irmão: a Senhora Thouars, amante de Carlos, Duque de Guyenne.

Essa mulher não procurava senão tirar partido do poder que exercia sobre o jovem duque, a fim de desviá-lo da guerra, pois não ignorava que a guerra tinha por objetivo o casamento do seu amante. Seus inimigos secretos tinham afetado, em sua presença, louvar a beleza e as brilhantes qualidades da noiva. Isto foi suficiente para persuadi-la de que sua desgraça seria certa se aquela princesa desposasse o Duque de Guyenne. Certa da paixão de meu irmão, recorreu às lágrimas, às preces e a todas as extravagâncias de uma mulher perdida em semelhante situação. O pusilânime Carlos cedeu e comunicou suas novas resoluções a Lescun. Lescun imediatamente preveniu o Duque de Bretanha e os interessados, os quais, alarmados, mandaram representações a meu irmão. Estas, porém, não surtiram senão o efeito de mergulhá-lo novamente em suas dúvidas.

Entretanto, a favorita conseguiu, não sem dificuldade, dissuadi-lo novamente da guerra e do casamento. A partir de então, a morte da favorita foi decidida por todos os príncipes.

Com receio de que meu irmão viesse atribuí-la a Lescun, cuja antipatia pela Senhora Thouars lhe era conhecida, decidiram conquistar Jean Faure Duversois, monge beneditino, confessor de meu irmão e abade de Saint-Jean d’Angély. Esse homem era um dos maiores entusiastas da Senhora de Thouars e ninguém ignorava o ódio que votava a Lescun, cuja influência política invejava. Não era provável que meu irmão lhe atribuísse a morte da amante, pois aquele sacerdote era um dos favoritos que maior confiança lhe mereciam. Desde que apenas a sede de grandeza o ligava à favorita, deixou-se facilmente corromper.

Durante muito tempo eu tentei seduzir o abade, mas ele sempre repelia minhas ofertas. Entretanto, deixava-me a esperança de atingir o meu objetivo.

Ele facilmente percebeu a situação em que se meteria prestando aos príncipes o serviço que lhe pediam, pois sabia que não lhes era difícil desembaraçar-se de um cúmplice. Por outro lado, conhecia a inconstância de meu irmão e temia tornar-se sua vítima.

Para conciliar sua segurança com seus interesses, resolveu sacrificar seu jovem senhor. Tomando tal partido, tinha tantas chances de êxito quantas de fracasso. Para os príncipes, a morte do jovem Duque de Guyenne deveria ser o resultado de um erro ou de um incidente imprevisto. Mesmo quando imputada ao Duque da Bretanha e seus comparsas, a morte da favorita teria passado despercebida, por assim dizer, pois que ninguém teria descoberto os motivos que lhe emprestavam uma importância real, do ponto de vista político.

Admitindo que pudessem ser acusados pela morte de meu irmão, achar-se-iam eles expostos aos maiores perigos, porque teria sido meu dever castigá-los rigorosamente. Sabiam que não era boa vontade que me faltava e que no caso o povo poderia voltar-se contra eles. Então o próprio Duque de Borgonha, alheio ao que se tramava em Guyenne, teria sido forçado a aliar-se a mim, sob pena de se ver acusado de cumplicidade. Mesmo nesta última hipótese, tudo teria resultado em meu favor. Eu poderia fazer que Carlos, o Temerário, fosse declarado criminoso de lesa majestade e levar o Parlamento a condená-lo à morte, pelo assassinato de meu irmão. Tais condenações, pronunciadas por aquele alto tribunal, tinham sempre grandes resultados, sobretudo quando eram de uma incontestável legitimidade.

Vê-se facilmente que interesse tinham os príncipes em manejar o abade. Por outro lado, nada mais fácil do que desfazer-se dele em segredo.

Mas comigo o abade de Saint-Jean tinha maiores chances de impunidade. O serviço que prestava era-me da maior importância, sobretudo naquele momento, porque a liga formidável que se formava e da qual o Duque de Guyenne era o centro deveria perder-me infalivelmente. O único meio de destruí-la seria a morte de meu irmão, o que representava a minha salvação. Ele aspirava o favor de Tristão, o Eremita, pensando que, por esse meio, elevar-se-ia acima dele ou pelo menos partilharia minhas boas graças e minha confiança nele. Aliás, os príncipes tinham cometido a imprudência de lhe deixar em mãos provas incontestes de sua culpabilidade: eram diversos escritos, e como estavam redigidos em termos muito vagos, não era difícil substituir a pessoa de meu irmão pela de sua favorita, ali designada nas entrelinhas. Entregando-me esses documentos, ele afastava de mim qualquer dúvida relativa à minha inocência; por isto subtraía-se ao único perigo que corria ao lado dos príncipes e, provando que de nenhum modo eu me achava envolvido no envenenamento, deixava de ser meu cúmplice e me isentava de qualquer interesse em mandar matá-lo.

Restava provar que ele próprio não estava metido nisso. Esta era uma dificuldade menor. Para começar, ele estava seguro de minha proteção; depois, os príncipes não tinham provas de sua culpabilidade, e ele poderia devolver-lhes as acusações, a título de calúnias.

Envenenamento com Pêssego
Um apetitoso pêssego é usado como ferramenta de envenamento.

O Abade concorda em praticar o envenenamento

Tudo bem ponderado, enviou-me um emissário que fingiu ter vindo espontaneamente dizer-me que o Abade de Saint-Jean estava descontente com meu irmão. Vi imediatamente todo o partido que poderia tirar de tal disposição e caí na armadilha preparada pelo astuto abade. Não suspeitando que aquele homem tivesse sido enviado por ele, despachei um de meus espiões de confiança. Saint-Jean representou tão bem o seu papel, que o emissário foi enganado. Baseado em seu relatório, escrevi ao abade, a fim de conquistá-lo. Ele aparentou muitos escrúpulos, mas eu triunfei, embora com alguma dificuldade. Concordou em ficar encarregado do envenenamento de meu jovem irmão. Eu estava tão pervertido que não hesitei em cometer esse crime horrível.

Henri de la Roche, escudeiro da repostaria do duque, ficou encarregado de preparar um pêssego que seria oferecido pelo próprio abade à Sra. de Thouars, enquanto merendava à mesa de meu irmão. A beleza desse fruto era notável. Ela chamou a atenção do príncipe e o partilhou com ele. Apenas tinham ambos comido, a favorita sentiu dores violentas nas entranhas e dentro em pouco expirou no meio de atrozes sofrimentos. Meu irmão experimentou os mesmos sintomas, mas com muito menor violência.

Talvez pareça estranho que o abade se tivesse servido de tal meio para envenenar o seu jovem senhor. Na verdade, o menor incidente poderia prejudicar o seu plano. Era, entretanto, o único que a prudência poderia autorizar: ele admitia a possibilidade de um engano. Tocada pela beleza do pêssego, era muito natural que a Sra. de Thouars chamasse a atenção de seu amante e lhe oferecesse a metade; ele não poderia deixar de aceitá-la e de comer um pouco, ainda que por consideração. Admitindo que comesse apenas um pedacinho, isto seria suficiente para provocar os primeiros sintomas necessários; um envenenamento posterior poderia determinar a morte, como consequência do primeiro.

Os príncipes ficaram tomados de terror assim que souberam das consequências funestas do envenenamento da favorita. Eles não tiveram a menor suspeita da premeditação do abade. Pensaram apenas em dar todas as aparências de naturalidade à morte da jovem senhora e à doença de seu amante. Nenhum deles tomou a iniciativa de oferecer um contra-veneno ao infeliz príncipe, com receio de se comprometer. Realmente tal atitude daria a entender que o veneno era conhecido e, consequentemente, que alguém era cúmplice do crime.

Graças à sua juventude e à força de seu temperamento, Carlos resistiu ao veneno por algum tempo. Seus sofrimentos físicos não fizeram outra coisa senão reconduzi-lo aos antigos projetos com mais ardor. Temendo que a doença diminuísse o zelo de seus oficiais, quis que esses renovassem o juramento de fidelidade. Como ele exigia que eles se engajassem a seu serviço, contra tudo e contra todos, mesmo contra mim, alguns dentre eles, temerosos de sua morte, que parecia próxima, recusaram-se a fazê-lo e passaram para a minha corte.

Conclusão

No número anterior vimos os detalhes interessantes, dados por Luís XI, relativamente à sua morte. O fato que acabamos de relatar não é menos notável sob o duplo ponto de vista da História e do fenômeno das manifestações. Aliás, só tínhamos dificuldades quanto à escolha: a vida desse rei, tal qual foi ditada por ele próprio, é incontestavelmente a mais completa que possuímos e, podemos dizer, a mais imparcial. O estado do espírito de Luís XI lhe permite hoje apreciar as coisas em seu justo valor. Pelos três fragmentos escolhidos, pode-se ver como faz o próprio julgamento. Ele explica sua política melhor que qualquer de seus historiadores. Não se absolve de sua conduta e, em sua morte, tão triste e tão vulgar para um monarca algumas horas antes todo-poderoso, vê um castigo antecipado.

Como fenômeno de manifestações, este trabalho oferece um interesse especial. Ele prova que as comunicações espíritas podem esclarecer-nos sobre a História, desde que nos saibamos colocar em condições favoráveis. Fazemos votos para que a publicação da vida de Luís XI, bem como a não menos interessante de Carlos VIII, igualmente concluída, venham em breve colocar-se ao lado da de Joana d’Arc.

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Artigo anterior:Teles de Menezes – Pré-história do Espiritismo no Brasil




Contradições na linguagem dos Espíritos

Esse artigo tece um complemento importante ao artigo “Espíritos impostores – O falso padre Ambrósio”, de Julho de 1858, o qual nos serviu de base para o artigo chamado “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos“. Clique aqui para ler.

Nessa edição, Kardec inicia abordando o problema de certas contradições nas comunicações espíritas: “À primeira vista essas contradições parecem realmente uma das principais pedras de tropeço da Ciência Espírita

Lembrando que o Espiritismo é uma ciência, e não uma religião, por alguns fatores:

  • Ele é um desenvolvimento do Espiritualismo Racional[1]
  • Ele é, objetivamente, uma ciência positiva – expressão sempre usada por Kardec – no sentido de um conhecimento formado a partir dos métodos de observação e experimentação dos fatos.
  • Ele somente pode ser visto como religião do ponto de vista da religião natural, conforme abordada pelo ER, e o aspecto “moral” vem justamente sob essa mesma origem!

Kardec destaca que toda ciência, em seu início, tem suas contradições, que somente vão sumindo conforme essa ciência se desenvolve e se passa a entender aquilo que, antes, não se entendia.

“Aliás, os Espíritos sempre nos disseram que não nos inquietássemos com essas pequenas divergências e que em pouco tempo todos seriam levados à unidade de crença. Com efeito, esta predição se realiza diariamente, à medida que mais e mais penetramos nas causas desses fenômenos misteriosos e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências manifestadas na origem tendem evidentemente a um enfraquecimento. Pode-se mesmo dizer que atualmente não passam de opiniões pessoais isoladas[2].”

Embora o Espiritismo esteja na Natureza e tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta Antiguidade, é um fato que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto em nossos dias.

[…]

Estava reservado ao nosso século, no qual o progresso recebe um impulso incessante, trazer à plena luz uma ciência que, por assim dizer, apenas existia em estado latente. Só há alguns anos é que os fenômenos foram observados seriamente[3]. Na verdade o Espiritismo é uma ciência nova, que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial.
Em princípio esta ciência pareceu muito simples. Para as criaturas superficiais não passava da arte de mover as mesas. Uma observação mais atenta, entretanto, revelou que era, por suas ramificações e por suas consequências, muito mais complexa do que se imaginava. As mesas girantes são como a maçã de Newton, que na sua queda encerra o sistema do mundo
.

Kardec aponta que, para cada nova descoberta, múltiplas hipóteses surgem, não necessariamente erradas, pois cada um vê segundo suas concepções e seus conhecimentos e raciocínio. A unidade somente pode surgir, numa ciência, quando ela avança através do método científico: se uma hipótese se demonstrar incorreta, pela evidência, ela deve ser abandonada em favor da verdade

De que lado está a verdade?

É o que cabe ao futuro[4] demonstrar. Mas a tendência geral não poderia oscilar. Evidentemente, um princípio domina e reúne pouco a pouco os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva unirá todos a uma origem comum e em breve veremos que em definitivo a divergência será mais acessória que fundamental.

As várias teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas nasceram do cérebro humano; outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanam de homens que, confiando demasiado nas próprias luzes, creem possuir a chave daquilo que buscam, quando o mais das vezes apenas encontraram uma gazua [chave falsa]. Isto nada tem de surpreendente, mas que, entre os Espíritos, uns dissessem uma coisa e outros dissessem outra, era menos concebível. No entanto, agora isto é perfeitamente explicável.

A princípio, fez-se uma ideia absolutamente falsa da natureza dos Espíritos. Eles foram imaginados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo saber tudo. […] À notícia das recentes manifestações, a primeira ideia que em geral veio à mente da maior parte das criaturas foi de que isto era um meio de penetrar todas as coisas ocultas; um novo modo de adivinhação menos sujeito à dúvida que os processos vulgares.

Lembrando que Kardec analisou com profundidade e atenção todas as manifestações e comunicações com as quais teve contato, de onde obteve a Escala Espírita, da qual um simples estudo que a muitos poderia salvar das dificuldades nas quais se metem.

Baseado no estudo feito com muita racionalidade e bom-senso a respeito das comunicações dos diferentes Espíritos, Kardec continua o longo artigo dando exemplos simples de como se expressam os Espíritos das diferentes ordens e classificações. Toda a contradição nasce da inobservância desse ponto fundamental, além da insistência em se obter respostas que não podem ser dadas, a cujas perguntas respondem os Espíritos inferiores, sem escrúpulos quaisquer.

Kardec dá o exemplo da possibilidade de “um dia” o homem chegar à Lua e, lá encontrar seus habitantes: como poderiam esses conhecerem a humanidade através do relato de alguns poucos.

As causas das contradições da linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:

1º. ─ O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;

2º. ─ O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia, ignorância ou malevolência, tomando um nome de empréstimo, dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas pelo Espírito cujo nome usurparam;

3º. ─ As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre as comunicações e alterar ou deformar o pensamento do Espírito;

4º. ─ A insistência por obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que é dada por um Espírito inferior;

5º. ─ A própria vontade do Espírito, que fala conforme o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem tudo dizer a toda gente;

6º. ─ A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;

7º. ─ A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, de acordo com as suas ideias, os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.

São muitas as dificuldades, das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo. Também nunca dissemos que a Ciência espírita é fácil. O observador sério, que tudo aprofunda maduramente, com paciência e perseverança, apreende uma porção de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por tais detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como nos ensina a conhecer os homens.


1 – Desde 1832, na Universidade Sorbonne, Paris, a escola do espiritualismo racional se estabeleceu como filosofia oficial, estruturando as ciências humanas, que na França chamam de ciências morais. Morais porque o objeto de seu estudo são os fatos derivados da ação humana; ciências como historia, direito, filosofia, letras, entre outras. Diferindo das ciências naturais, que se dedicam aos fenômenos da natureza.

Entre as ciências morais, havia o grupo das ciências filosóficas, com a proposta de compreender o ser humano, por meio das seguintes disciplinas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmología racional). (FIGUEIREDO, 2019)

2 – O mesmo que acontece hoje em dia. Apenas pelo método científico honesto essas contradições, que se instalaram largamente no movimento espírita, poderão ser dissipadas

3 – A confiança dos pesquisadores do século XIX no poder da ciência para descrever a realidade propiciou a investigação, por intermédio da observação dos fenômenos mediúnicos, do espiritualismo moderno (o estudo das obras de Paulo Henrique de Figueiredo complementam largamente esse tema). Muitos estudiosos e livres- pensadores, com base na observação das mesas girantes, dançantes e falantes passaram a considerar a possibilidade de investigar cientificamente a sobrevivência post-mortem do ser humano (PIMENTEL, 2014 – clique para ler).

Kardec tem o primeiro contato com o Espiritismo em 1854, quando um amigo seu, o magnetizador Auguste Fortier relata que o “fluido magnético”, empregado por um magnetizador, agora estava fazendo as mesas se moverem. Kardec recebe a notícia com desinteresse, já que supunha que o fluido magnético ou elétrico poderia explicar o fenômeno.

Meses depois, o Sr. Fortier buscava-o novamente, para, desta vez, dizer que as mesas não apenas se moviam, mas respondiam de forma inteligente às perguntas dos assistentes. Kardec, cético, ainda via nisso um “conto para fazer-nos dormir em pé”.

Cerca de um ano depois, em 1855, outro amigo, Sr. Carlotti, fala pela primeira vez da intervenção dos Espíritos nas sessões. O depoimento entusiasmado desse amigo aumentou a desconfiança de Kardec. Foi depois de algum tempo, no mesmo ano, que o Sr. Pâtier, homem instruído, grave, calma e friamente convenceu Rivail a assistir uma sessão mediúnica.

“Utilizando de sua vasta erudição, como professor, escritor e membro de diversas sociedades científicas, ele realizou uma ampla abordagem da causa dos fenômenos psíquicos surgidos a partir das mesas girantes. Kardec propôs uma abordagem empírica e racional para o assunto, até então, considerado metafísico, na qual foram produzidas várias discussões pertinentes sobre aspectos epistemológicos e metodológicos de exploração dos fenômenos mediúnicos” (Ibidem)

4. Vejamos a humildade de Kardec, que nunca disse: “a verdade está comigo”.




Reencarnação compulsória

Assunto recorrente esse. Não basta muito esforço para encontrar tal afirmativa: um Espírito renitente, ou seja, que resiste a avançar, poderia ser “forçado” a uma reencarnação compulsória, compreendendo-se, nesse conceito, que os Espíritos superiores o forçariam a encarar provas e expiações “para seu próprio bem”.

Bem, meus irmãos, “calma lá”! É preciso ter muito cuidado com as afirmações que fazemos por aí, muitas vezes baseadas em conceitos que tem um fundo de verdade, mas que se tornam genericamente aplicados como “lei” — e aqui já abordamos diversos desses casos.

Primeiramente, precisamos recuperar o que aprendemos com o estudo do Espiritismo — aquela ciência que muitos resistem em estudar e que formou, através dos estudos de Kardec, a Doutrina Espírita ou Espiritismo: em primeiro lugar, o Espiritismo tem como fundamento a doutrina da escolha das provas, isto é, afirma que, desde que tenhamos capacidade, nós sempre escolhemos nossas provas e nossas expiações. Não custa lembrar: prova é uma oportunidade de enfrentar uma situação, para aprender com essa situação e vencer uma imperfeição; já a expiação acontece quando o Espírito se impõe um sofrimento qualquer a fim de enfrentar, na própria pele, um mal que impôs a outrem.

Dissemos: “se impõe”, porque ninguém, nem nenhum Espírito, nem mesmo Deus, impõem castigos a ninguém. Quando, no contexto de Kardec, se diz “Deus quis”, “Deus permitiu”, “Deus puniu”, quer dizer que tudo isso se dá como efeito da Criação. Ora, como somos suas criaturas, seres inteligentes e capazes do livre-arbítrio, quando nos impomos uma provação qualquer significa que, indiretamente, Deus o permite, assim como permite que o mal – ou, antes, a ausência do bem – exista.

Bem, apresentamos o conceito de provas e expiações, que visam trazer um aprendizado ao Espírito. Contudo, sabemos que apenas aprendemos algo quando entendemos realmente que erramos, o que nos traz a culpa, o remorso e a vontade de reparar – o que pode se dar ou não com as vítimas de nossos erros. Também relembramos que a escolha das provas e expiações é um princípio primordial, conforme ensinado pelos Espíritos. Aliás, isso está exposto claramente em O Livro dos Espíritos:

258. Quando na erraticidade, antes de começar nova existência corporal, tem o Espírito consciência e previsão do que lhe sucederá no curso da vida terrena?

“Ele próprio escolhe o gênero de provas por que há de passar, e nisso consiste o seu livre-arbítrio.”

a) – Não é Deus, então, que lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?

“Nada ocorre sem a permissão de Deus, porquanto foi Deus que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Ide agora perguntar por que decretou ele esta lei e não aquela! Dando ao Espírito a liberdade de escolher, Deus lhe deixa a inteira responsabilidade de seus atos e das consequências que estes tiverem. Nada lhe estorva o futuro; abertos se lhe acham, assim, o caminho do bem, como o do mal. Se vier a sucumbir, restar-lhe-á a consolação de que nem tudo se lhe acabou, e que a bondade divina lhe concede a liberdade de recomeçar o que foi mal feito. Ademais, cumpre se distinga o que é obra da vontade de Deus do que o é da do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós quem o criou e sim Deus. Vosso, porém, foi o desejo de a ele vos expordes, por haverdes visto nisso um meio de progredirdes, e Deus o permitiu.”

Onde fica, então, a tal da “reencarnação forçada”?

Vamos ver, na questão 262, o que segue:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”

a) – Quando o Espírito goza do livre-arbítrio, a escolha da existência corporal dependerá sempre exclusivamente de sua vontade, ou essa existência lhe pode ser imposta ((Reencarnação compulsória)), como expiação, pela vontade de Deus?

“Deus sabe esperar, não apressa a expiação. Todavia, pode impor certa existência a um Espírito, quando este, pela sua inferioridade ou má vontade, não se mostra apto a compreender o que lhe seria mais benéfico, e quando vê que tal existência servirá para a purificação e o progresso do Espírito, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.”

Ora, Deus então impõe a expiação? Não é bem isso. O que acontece é que quando o Espírito está em negação ou resistência, ele não consegue ver o bem que lhe proporcionaria o enfrentamento de suas imperfeições através das provas e das expiações. Não pode, portanto, escolher lucidamente…. Mas continua reencarnando. Vejamos, ainda em OLE:

167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?

“Expiação, melhoria progressiva da humanidade. Sem isto, onde a justiça?”

Entendemos facilmente que a encarnação é uma necessidade para o avanço do Espírito e que, quando ainda é simples e ignorante, o que facilmente lhe dá o estado de resistência, pode facilmente resistir a enfrentar suas próprias imperfeições. É aí, portanto, que a mecânica da Lei Divina supre sua inexperiência: através de uma encarnação “forçada”, isto é, uma encarnação “comum”, mas sem escolhas de provas e expiações, o Espírito enfrentará a escola da vida material, que o colocará, de uma forma ou de outra, frente às suas imperfeições, de acordo com a forma como escolher agir na matéria. Assim, poderá escolher – no fundo, sempre há a escolha, a partir do momento em que o Espírito entra na idade da consciência – continuar cedendo às paixões, prática da qual colherá resultados amargos (e nisso consiste as expiações involuntárias), até que, um dia, esse sofrimento moral lhe motive a dizer: “chega! Cansei de agir assim! Cansei de sofrer por ser imperfeito! Preciso me livrar dessas imperfeições!”. É nesse momento que, então, esse Espírito volta a escolher provas e expiações.

Lembramos, para terminar, que o conhecimento trazido pelo Espiritismo é de substancial importância para alavancar o processo de evolução do Espírito, pois, no momento em que, pela ciência, isto é, pela razão, ele entende que tem que ter vontade firme para vencer suas imperfeições, pode avançar em anos o que não avançou em sucessivas encarnações.




Habitações em Júpiter, por V. Sardou

Hoje e outrora, muitos desdenham das menções a habitações em outros planetas, como em Júpiter. Nós, antes, podemos ter desdenhado das descrições de mesas correndo pelo salão. Honestamente, é apenas quando nos reportamos à Ciência que não podemos negar o que se apresenta de forma clara, lúcida e racional.

Este artigo é uma das cartas recebidas de Victorien Sardou a respeito de Júpiter.

Imagem da Nasa de Júpiter de 2 de junho de 2020

Se aqui, na verossimilhança das explicações, não encontra o leitor uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância entre estas revelações dos Espíritos e os dados mais positivos da Astronomia; se, numa palavra, não vê mais que hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a se explicar com os Espíritos, de quem apenas sou eco fiel e instrumento”.

O autor convida os críticos para que eles mesmos evoquem os Espíritos e discutam com eles.

Sardou segue o artigo dando algumas descrições a respeito das moradias e dos habitantes de Júpiter. Segundo ele conta – e cuja fonte de informação é, claro, os Espíritos – a conformação corpórea desses seres seria como a de um vapor, embora muito mais sutil que isso, intangível e luminoso, principalmente nos contornos do rosto e da cabeça, “pois aí a inteligência e a vida irradiam como um foco muito ardente”.

É dessa visão, diz Sardou, que os visionários cristãos teriam tirado as imagens das auréolas dos santos.

Segundo ele, os Espíritos nesse planeta encontram-se encarnado em matéria tão sutil que se movimentam muito rapidamente e se desprendem facilmente da atração planetária (gravidade), segundo a ação de sua própria vontade.

Assim, alguns personagens que Palissy houve por bem fazer-me desenhar são representados rasando o solo ou na superfície das águas ou ainda muito elevados no ar, com toda a liberdade de ação e de movimento que nós atribuímos aos anjos. Essa locomoção é tanto mais fácil quanto mais depurado é o Espírito, o que se compreende sem esforço. Assim, nada é mais fácil aos habitantes do planeta do que determinar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa. Dois sinais o delatam: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.

Sardou diz que os Espíritos menos avançados deste planeta, quando evocados, respondem de forma lacônica e com certa pressa, como se tivessem muito o que fazer: é que eles ainda não tem o poder de se irradiar simultaneamente sobre dois pontos.

Sobre os animais, ele diz que nem mesmo os habitantes de Júpiter apresentam consenso sobre seus Espíritos: se são Espíritos à parte ou se são Espíritos que um dia chegarão à humanidade… Parece ser um enigma para esferas acima de Júpiter. 

Seja como for, ele destaca que esses Espíritos vieram de outros planetas inferiores, onde estagiaram por múltiplas encarnações, passando por uma escala de aperfeiçoamento.

Em Júpiter, os animais são os únicos seres operários, trabalhando nas construções e até mesmo no plantio e na colheita. Não são sacrificados, pois já sabemos que todos, aí, são vegetarianos.

Daí em diante, Sardou – ou, antes, o Espírito comunicante – segue tecendo uma série de descrições incríveis a respeito da cidade de Julnius, sobre como ela foi formada, etc. Ele diz que existem partes materiais das cidades, em solo, e partes diáfanas e voadoras, movimentadas pela vontade, que servem de abrigo aos seres humanos desse planeta.

Julnius, segundo os Espiritos descreveram ao medium Sardou

Sardou escreve que Júpiter, segundo os Espíritos, tem um dia e uma noite, ambos, com duração de cinco horas. Dados de hoje apontam que, na verdade, são de pouco mais de nove horas cada um.

É sobre a margem direita desse rio, “cuja água, diz o Espírito, dar-te-ia a impressão da consistência de um vapor muito leve” [sabemos, hoje, que existem verdadeiros rios de amônia, desde as mais altas até as mais baixas atmosferas], que está construída a casa de Mozart, cujo desenho Palissy teve a bondade de me fazer reproduzir sobre cobre.

O artigo, enfim, é de interesse geral. Kardec ressalta a honestidade e a seriedade de Sardou, destacando que o Espiritismo “não recruta entre tolos e ignorantes”.




A Propósito dos Desenhos de Júpiter

Kardec retoma o assunto das gravuras, reproduzidas pelo médium Victorien Sardou, que, segundo Kardec, não sabe desenhar nem gravar, a respeito das moradias de Júpiter.

Supondo mesmo que esse desenho seja uma fantasia do Espírito que o traçou, o simples fato de sua execução não seria um fenômeno menos digno de atenção […] não para satisfazer à curiosidade das pessoas fúteis, mas como assunto de estudo para as pessoas sérias que querem aprofundar-se em todos os mistérios da Ciência Espírita” – Até onde se sabe, apenas através de Sardou se obtiveram esses desenhos.

Seria erro pensar que fazemos da revelação dos mundos desconhecidos o objeto capital da doutrina. Isto nunca será para nós mais que um acessório, que consideramos útil como estudo complementar; o principal será sempre para nós o ensino moral e nas comunicações de além-túmulo buscaremos sobretudo aquilo que pode esclarecer a Humanidade e conduzi-la para o bem, único meio de lhe assegurar a felicidade neste e no outro mundo.




O Espírito Batedor de Dibbelsdorf

ardec apresenta um caso acontecido por volta de dezembro de 1761, na cidade de Dibbelsdorf – Alemanha, cujos documentos foram publicados em 1811. O artigo original, escrito pelo Dr. Kerner, foi traduzido para o francês por Alfred Pireaux.

É mais um artigo de interesse a respeito dos fatos espíritas, que sempre ocorreram por toda a parte e por todo o tempo. Contudo, a ciência ainda não estava pronta para analisá-los seriamente, ainda menos no caso da Alemanha daquele tempo. 

Apesar de os fatos – batidas inteligentes em um canto da casa do casal Kettelhut – terem sido analisados por todos os aspectos possíveis, tendo-se chegado ao ponto de demolir paredes e um fundo buraco, além de confinarem todos os moradores às suas casas e colocarem em observação os suspeitos, nada foi encontrado. A única resposta possível jamais foi aceita, e terminaram por julgar e condenar, sob uma confissão coercitiva, o casal Kettelhut.

Destacamos a observação de Kardec, sempre cirúrgico em suas palavras:

OBSERVAÇÃO: Se prestarmos atenção à data em que tais coisas se passaram e as compararmos com as que ocorrem em nossos dias, nelas encontraremos perfeita identidade no modo da manifestação e até na natureza das perguntas e respostas. Nem a América nem a nossa época descobriram os Espíritos batedores, como não descobriram os outros, como o demonstraremos por inúmeros fatos autênticos e mais ou menos antigos.

KARDEC, RE ago/1858

Há, entretanto, entre os fenômenos atuais e os de outrora uma diferença capital: é que esses últimos eram quase todos espontâneos, enquanto que os nossos se produzem quase que à vontade de certos médiuns especiais. Esta circunstância permitiu que fossem mais bem estudados e sua causa mais aprofundada. À conclusão dos juízes de que “talvez o futuro nos esclareça a respeito”, hoje o autor não responderia: “o futuro ainda não ensinou nada.” Se esse autor ainda vivesse, saberia, ao contrário, que o futuro tudo ensinou e que a justiça de nossos dias, mais esclarecida do que há um século atrás, não cometeria, em relação às manifestações espíritas, erros que lembram os da Idade Média. Os nossos próprios sábios já penetraram muito nos mistérios da Natureza para não jogar com causas desconhecidas. Eles são bastante sagazes e não se expõem, como os seus predecessores, a um desmentido da posteridade, em detrimento de sua reputação. Se algo aparece no horizonte, eles não correm a proclamar: “Isto não é nada”, com receio de que seja um navio. Se não o veem, calam e esperam. Isto é a verdadeira sabedoria.




A Caridade pelo Espírito de São Vicente de Paulo

Nesse artigo, São Vicente de Paulo traz uma grande reflexão sobre a caridade.

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Analisemos, além da necessária aplicação moral que esse texto vem trazer, a sua forma e seu conteúdo, já que se trata de uma comunicação atribuída a esse Espírito. Que há nessas, senão elevação espiritual? 

“Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves?

Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam ao esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes.”

A caridade, no contexto de Kardec, era compreendida de forma diferente:

[…] a moral racional se fundamenta na psicologia e na definição de um ser humano ativo. Ou seja, o ato moral é caracterizado por um ato livre e consciente, que se definiu como sendo o ato do dever. É a moral da liberdade, portanto absolutamente livre, por definição, de qualquer recompensa ou castigo. Desse modo, como definiram os pensadores do Espiritualismo Racional, o dever fundamenta a caridade como ação livre e desinteressada. A beleza da caridade está justamente em sua liberdade, afirmava Victor Cousin, principal líder dessa escola na Universidade Sorbonne, em Paris. (Figueiredo 2019)

Isso quer dizer que precisamos apenas do Evangelho?

Supondo o Evangelho de Jesus muito bem entendido, sem sofismas e adulterações, sim, precisamos apenas dele. Contudo é necessário levar em conta que seus ensinamentos, mesmo que científicos, têm aspecto moral, segundo as Ciências Morais. Portanto, é um erro abandonar esse estudo para cair apenas no estudo Evangélico, dadas as presente necessidades de Espíritos de nossa categoria.

Seguindo no artigo sobre Caridade, segundo São Vicente: “Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas de vossa doçura e de vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação de vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e de vossa própria vontade

Isso quer dizer que não necessitamos do Espiritismo?

Moralmente falando, se nós soubéssemos aplicar todas as lições já apresentadas até hoje, sequer estaríamos falando disso agora. Mas não é assim que o progresso espiritual acontece – a solavancos. Ele é lento e gradual e, pelo que sabemos, é assim por toda a parte do Universo. Portanto, a Ciência Espírita, que, no limite, é a ciência da Criação, é parte necessária de nosso progresso, pois o conhecimento desenvolve a moral.

Vamos analisar de forma um pouco mais crítica, o conteúdo dessa mensagem. Chamou muito nossa atenção o seguinte trecho:

Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem se perguntar se sua miséria é fingida ou se seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade pelo só prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si.

Esse Espírito, que segue dizendo se felicitar pelo início de um movimento (Sociedade de São Vicente de Paulo), movimento esse muito importante e necessário, dá a entender que devemos atender a qualquer súplica, sem verificar se é algo fingido ou não. Em realidade, será que podemos e devemos fazer isso, principalmente hoje em dia?

Não devemos seguir cegamente qualquer Espírito, sobretudo quando não faz sentido à nossa própria razão. Mas Kardec vem ao nosso socorro:

Continuando a conversa com S. Vicente de Paulo, através da psicografia de um médium assistente, Kardec informa-se de que, nesse trecho anterior, esse Espírito fala especificamente da esmola. O professor então pergunta:

“[…] parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos achassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados”

S.V.P. responde:

Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus.”

Kardec continua com algumas questões de interesse:

6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação? ─ Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos.

7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias? ─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca.

8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido? ─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços.

9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve salvar? ─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus há de tomar conta.

Foi consenso que essa ultima pergunta (9.) nos pareceu estranha, mas ela deve ter uma razão de ser para aquele momento.