Letargia Extática – EQM – Experiência de quase Morte

Aqui, Kardec publica a conversa alem-túmulo da Senha Schwabenhaus. Ela entrou em EQM dias antes de desencarnar. O artigo abre campo para, uma vez mais, falar sobre o fenômeno do êxtase e do sonambulismo, sendo o primeiro uma classe especial do segundo.

O êxtase é o estado em que a independência da alma, com relação ao corpo, se manifesta de modo mais sensível e se torna, de certa forma, palpável.

No sonho e no sonambulismo, a alma vaga pelas regiões terrestres. No êxtase, penetra em um mundo desconhecido, o dos Espíritos etéreos, com os quais entra em comunicação […].

No estado de êxtase, o aniquilamento do corpo é quase completo. Fica-lhe somente, pode-se dizer, a vida orgânica. Sente-se que a alma se lhe acha presa unicamente por um fio, que mais um pequenino esforço quebraria sem remissão.

Kardec, O Livro dos Espíritos

“Muitos extáticos são joguetes da própria imaginação e de Espíritos zombeteiros que se aproveitam da exaltação deles. São raríssimos os que mereçam inteira confiança.”

O Livro dos Médiuns, Kardec

444. Que confiança se pode depositar nas revelações dos extáticos?

“O extático está sujeito a enganar-se muito frequentemente, sobretudo quando pretende penetrar no que deva continuar a ser mistério para o homem, porque, então, se deixa levar pela corrente das suas próprias ideias, ou se torna joguete de Espíritos mistificadores, que se aproveitam de seu entusiasmo para fasciná-lo.”

O Livro dos Espíritos, Kardec

Brevemente: a Sra. Schwabenhaus entrou em estado cataléptico (ou letárgico) e foi julgada morta. Deu-se então o funeral, enquanto, na verdade, ela se encontrava em estado de êxtase e vislumbrava toda uma verdade espiritual consoladora, junto à sua filha, morta aos 7 anos de idade. Foi-lhe concedida a dádiva de voltar e se despedir dos seus entes queridos, ao que atendeu com extrema felicidade. Pouco após, desencarnou definitivamente. Na época não existia o conhecimento sobre esses estados do corpo.

Na letargia, as forças vitais são dissipadas e o corpo adquire a aparência da morte, num sono profundo. Na catalepsia, essa suspensão das forças vitais, às vezes, fica localizada. Os letárgicos e catalépticos em geral observam o que acontece ao derredor. A alma tem consciência de si, mas não pode comunicar-se. Seria uma quase morte.

Kardec a evoca em 27 de abril de 1858 e esclarece algumas dúvidas, reforçando a tese de seu êxtase e outros pontos interessantes, em concordância doutrinária:

3. ─ Durante a vossa morte aparente ouvíeis o que se passava em torno e víeis o aparato dos funerais? ─ Minha alma estava muito preocupada com a sua felicidade próxima.

OBSERVAÇÃO: Sabe-se que em geral os letárgicos veem e ouvem o que se passa em volta de si e ao despertar conservam a lembrança. O fato que retratamos oferece a particularidade de ser o sono letárgico acompanhado de êxtase, o que explica o desvio da atenção da paciente.

5. ─ Podeis dizer-nos qual a diferença entre o sono natural e o sono letárgico? ─ O sono natural é o repouso do corpo; o letárgico é a exaltação da alma.

7. ─ Como se operou vosso retorno à vida?  ─ Deus permitiu que eu voltasse para consolar os corações aflitos que me rodeavam.

8. ─ Desejaríamos uma explicação mais material.  ─ Aquilo a que chamais perispírito ainda animava o meu envoltório terrestre.

OBSERVAÇÃO: Significa dizer que enquanto a vida do corpo permanece, o perispírito está ligado às células. Em OLE, veremos: 155. Como se opera a separação da alma e do corpo? “Rotos os laços que a retinham, ela se desprende.” (é a morte do corpo que causa a “saída” do Espírito): a) – A separação se dá instantaneamente por brusca transição? Haverá alguma linha de demarcação nitidamente traçada entre a vida e a morte? “Não; a alma se desprende gradualmente, não se escapa como um pássaro cativo a que se restitua subitamente a liberdade. Aqueles dois estados se tocam e confundem, de sorte que o Espírito se solta pouco a pouco dos laços que o prendiam. Estes laços se desatam, não se quebram.”

Kardec comenta a resposta da Sra. S., quando diz que sua filha seria um Espírito puro. É claro que ela deveria ser mais elevado, mas puro, aqui, é relativo.

Na pergunta 16, Kardec continua investigando a forma pela qual os Espíritos se vêem entre si. É interessante como a resposta de um Espírito mais elevado condiz com a resposta do Espírito citado no artigo “O Tambor de Beresina”, em julho de 1858. Vejamos a resposta da Sra. S.:

16. ─ Vós a reconhecestes [a filha] sob uma forma qualquer?  ─ Só a vi como Espírito.

No artigo do Tambor de Beresina:

29. ─ Como sabes que são Espíritos [os outros que vê]? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

Pergunta 31 (no artigo presente):

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

RE setembro /1858, Kardec

Essa afirmação do Espírito evocado é uma das conclusões que Kardec chega a respeito da forma dos Espiritos:

88. Os Espíritos têm forma determinada, limitada e constante?

“Para vós, não; para nós, sim. O Espírito é, se quiserdes, uma chama, um clarão, ou uma centelha etérea.”

a) – Essa chama ou centelha tem cor?

“Tem uma coloração que, para vós, vai do colorido escuro e opaco a uma cor brilhante, qual a do rubi, conforme o Espírito seja mais ou menos puro.”

Representam-se de ordinário os gênios com uma chama ou estrela na fronte. É uma alegoria, que lembra a natureza essencial dos Espíritos. Colocam-na no alto da cabeça, porque aí está a sede da inteligência.

Livro dos Espiritos, Kardec




Os gritos na noite de São Bartolomeu

Mais um causo de interesse na época, embora ele tenha acontecido em 1572. O massacre da noite de São Bartolomeu ou a noite de São Bartolomeu, foi um episódio, da história da França, na repressão ao protestantismo, engendrado pelos reis franceses, que eram católicos. Esses assassinatos aconteceram em 23 e 24 de agosto de 1572, em Paris, no dia de São Bartolomeu.[1] Estima-se que entre 5 000 e 30 000 pessoas tenham sido mortas, dependendo da fonte atribuída.

Oito dias após o Massacre de São Bartolomeu, gritos e gemidos terrificantes foram ouvidos “no ar”, por inúmeras testemunhas. O barulho durou cerca de meia hora, e depois cessou. O próprio rei Carlo IX deve ter ouvido, pois apresentava ar sombrio, pensativo e desvairado.

Kardec traz o relato apenas para demonstrar a similaridade com o caso de Mademoiselle Clairon (fev/58) e e para demonstrar, mais uma vez, que os fatos espíritas sempre estiveram na nossa história.




DETALHES DE SEU ASSASSINATO

Nesse quadro que, fosse escrito no contexto brasileiro, provavelmente se chamaria “causos espíritas”, Kardec cita o causo relatado pelo Patrie, em 15 de agosto de 1858:

Um oficial do Diretório Francês(Nome dado ao Governo da França), em viagem, se hospedou num casebre. Durante o sono, viu uma terrível aparição: um “espectro” que saiu das sombras, cabelos vermelhos de sangue, garganta cortada, etc, foi até ele e lhe deu detalhes de de seu próprio assassinato, indicando o local onde foi enterrado seu corpo e os autores do crime. Evocava a ajuda do oficial para chamar a polícia e solucionar o caso.

O oficial não deu ouvidos, pois considerou ser sua imaginação. No dia seguinte, ao adormecer, teve novamente a visão do Espírito, dessa vez mais triste e ameaçador. Tende ignorado-a novamente, no dia posterior voltou a ver o Espírito, no sono, agora mais irritado e ameaçador ainda. O oficial achou melhor não ignorar dessa vez: voltou ao local indicado, chamou os oficiais e solucionou o caso. Isso mostra que esse Espírito se prendia muito aos conceitos materiais, ainda, e que tinha muitas imperfeições, pois buscava vingança.

Nova aparição, dessa vez com contentamento do Espírito, mais “bondoso” e afável. Disse que voltaria a se mostrar duas horas antes da morte do oficial, o que se cumpriu anos depois.




Platão e a Doutrina das Escolhas de Provas

Como todo ensinamento, ele é progressivo. Conforme a humanidade evolui  seu entendimento vai mudando. Esse artigo sobre Platão e Sócrates é sobre isso.

Recordam dos ensinamentos de São Vicente de Paula da semana passada? Então, São Vicente de Paula falava do Evangelho, que deveríamos estuda-lo .  Agora, a RE nos mostra algo anterior a Jesus, do século V e IV a.c., de Platão e seu mentor Sócrates (lembrando que era Platão quem escrevia).

Na Sociedade Espírita, eles nunca tinham imaginado antes:

“Não discutiremos hoje essa teoria, que estava tão longe de nosso pensamento quando os Espíritos no-la revelaram, que nos surpreendeu estranhamente, porque — confessamos humildemente — o que Platão escrevera sobre esse assunto especial nos era então completamente desconhecido, nova evidência, entre tantas outras, de que as comunicações que nos foram dadas não refletem absolutamente a nossa opinião pessoal. Quanto à de Platão, apenas constatamos a ideia principal, cabendo facilmente a cada um a forma sob a qual é apresentada e julgar os pontos de contato que, em certos detalhes, possa ter com a nossa teoria atual.”

Kardec, Allan. Revista Espírita: ano primeiro: setembrto/1858

Os ensinamentos de Sócrates e Platão realmente carregam os preceitos de Jesus e são similares aos dos Espíritos comunicantes do século de Kardec.

Nesse artigo, a RE apresenta como ideias principais vindos de Platão: a imortalidade da alma, a sucessão das existências, a escolha das existências por efeito do livre arbítrio, enfim, as consequências felizes e infelizes. Claro que Sócrates, descrito por Platão, usou de parábolas  para explicar,  pois era assim que entendiam as lições naquela época. 

Em sua alegoria do Fuso da Necessidade, Platão imagina um diálogo entre Sócrates e Glauco, atribuindo ao primeiro o discurso da RE, sobre as revelações do armênio Er, personagem fictício, segundo toda probabilidade, embora alguns o tomem por Zoroastro. Vale a leitura.

Kardec apresenta a essência de uma alegoria de Platão, onde um homem teria tido uma EQM e voltou contando “o lado de lá”. Ela é bastante figurativa, e mostra a ideia das Escolhas de Provas antes de reencarnarmos.

Nestes ensinamentos, quando Platão cita as Filhas da Necessidade, ele está falando sobre as leis divinas. Veja o que ele fala:

Almas passageiras, ireis iniciar uma nova carreira e renasce( reencarnar) na condição mortal. Não se vos assinalará o gênio; vós mesmas o escolhereis. Escolherá aquela que a sorte chamar em primeiro lugar, e essa escolha será irrevogável. A virtude não pertence a ninguém: alia-se àquele que a dignifica e abandona quem a despreza. Cada um é responsável pela escolha que faz, Deus é inocente.’

Kardec, RE setembro/1858

Depois segue descrevendo como se dá o renascimento que é muito parecido com que os Espíritos nos tempos de Kardec explicam.

Portanto, cada um é responsável pela escolha! Deus é inocente no seu livre arbítrio!

Em OLE, essas questões são abordadas em profundidade, como na  Parte segunda — Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos, Capítulo VI — Da vida espírita, Escolha de provas, bem como nas questões 337 e 975

Esse artigo da RE é a semente de Kardec para a elaboração do Evangelho Segundo o Espiritismo (abril de 1864). Em sua introdução expõe a relação com as ideias do cristianismo e logo depois a moral de Sócrates e Platão.

Observação: indicamos, também, esse ótimo video sobre a Moral de Sócrates e Platão do canal Espiritismo Para Todos




Em defesa de Allan Kardec: sobre as adulterações

Estou me afastando totalmente da discussão a respeito de provas e evidências das adulterações em suas obras. É minha opinião de que se tornaram uma enorme perda de tempo. Explico:

De início, ao meu ver, provas e evidências da adulteração foram muito contundentes((Fatos detalhadamente apresentados em “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Nem céu, nem inferno”, de Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio.)).

Depois, surgiram evidências que poderiam indicar que não ocorreram adulterações e que tudo foi fruto do trabalho do próprio Kardec, segundo a interpretação de alguns, e isso levado por indícios e evidências de que ele, Kardec, tinha a clara intenção de publicar novas edições, com alterações, de O Céu e o Inferno e de A Gênese. Eu destaco que, a meu ver, até o momento, todas as evidências apontam que Kardec, ao menos em A Gênese, teria iniciado um trabalho nesse sentido, trabalho esse que nunca foi concluído e que deu espaço, justamente, a quem quer que teria a intenção de causar estragos da única forma possível em uma Doutrina inatacável: adulterando-se seus postulados, em sua origem.

Há quem discorde, claro. Mas tem um grande porém, nesse assunto, que não consigo ignorar: a questão justamente ligada à ciência espírita e a Allan Kardec como o probo, perspicaz, paciente, cuidadoso e honesto cientista que foi. De duas, uma: ou ele escreveu coisas muito importantes e sérias sob uma ansiedade que ele nunca teve, tendo depois retrocedido em suas opiniões — o que demonstraria uma grave falha em seu método e representaria um grande perigo para toda a Doutrina Espírita — ou ele foi muito cuidadoso, até o fim, e só concluiu o que deveria ser concluído, após anos de pesquisa e sob a orientação dos Espíritos superiores, como ele sempre buscou fazer.

Ora, ele mesmo disse, anos antes da publicação dessas obras, que certos assuntos doutrinários precisavam ainda aguardar alguns anos e que ele não publicaria nada muito cedo, sem que o desenvolvimento da Doutrina desse lugar a isso. O Céu e o Inferno e A Gênese foram, justamente, essa conclusão. Não vejo como, portanto, principalmente na primeira obra, fazer mudanças que, em certos pontos, alteram completamente o entendimento da ideia e que, em A Gênese, fazem o conceito ou postulado doutrinário ficarem incompletos ou mal entendidos. Mas não é só: Kardec foi muito austero nessas duas obras, justamente no que tange aos pontos mais sensíveis, e que davam motivo a temer nos adversários do Espiritismo, e foi justamente nesses pontos onde houveram as “alterações”.

Vamos a alguns exemplos:

Em A Gênese, capítulo III, item 19, a partir da 5.ª edição, o texto encontra-se assim:

“O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.

Contudo, na 4.ª edição, hoje recuperada e traduzia para o português pela editora FEAL, existe o seguinte complemento:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Ora, parece crível que Kardec tirasse essa conclusão tão importante, profunda e libertadora desse postulado?

Um pouco mais adiante, no capítulo XVIII, “Os tempos são chegados”, o seguinte trecho foi suprimido (removido) a partir da 5.ª edição da obra. Leia com atenção:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal — ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas e, por isso, dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Se a supressão desse trecho não parece algo realizado justamente por um adversário da Doutrina, não sei o que mais pareceria.

Já em O Céu e o Inferno, a partir da 4.ª edição, temos, dentre outras coisas, a supressão de importantes postulados, como estes (cap. VIII):

Pelos exemplos que o Espiritismo coloca diante de nossos olhos, ensina-nos que a alma no mundo invisível sofre por todo o mal que fez, assim como por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre. Que a alma não é condenada a uma penalidade absoluta, uniforme e por um tempo determinado, mas que sofre as consequências naturais de todas as suas más ações, até que se tenha melhorado pelos esforços da sua própria vontade. Ela carrega em si mesma seu próprio castigo, e isso onde quer se encontre, para o que não há necessidade de um lugar circunscrito. O Inferno, então, está onde quer que existam almas sofredoras, como o Céu está em toda parte onde existam almas felizes, o que não impede que umas e outras se agrupem, por afinidade de posição, ao redor de certos pontos.

O Céu e o Inferno, Cap. IV, item 6.º, parágrafo suprimido na adulteração, p. 85

Sendo todos os espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento.

Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 3.ª edição — Editora FEAL

Constatamos, então, uma grande perda, pela supressão desses postulados. Há diversos outros pontos, que, de acordo com certo entendimento, podem até ser ressignificados sob uma possível autoria de Allan Kardec, mas o fato é que existem, também nessa obra, alterações estranhas e que não fazem sentido. Basta comparar o capítulo “As penas futuras segundo o Espiritismo“, de O Céu e o Inferno, completamente desfigurado na “alteração”.

Tem mais: admitir que as todas as alterações existentes nessas obras foram realizadas por Kardec, significa dizer que ele teria realizado um erro grotesco, e não apenas uma vez, mas duas: não ter obtido a permissão necessária, do governo, para a impressão de novas edições dessas obras. Nunca conheci esse Kardec descuidado e afoito que têm apresentado por aí.

Conhecendo um pouquinho da face extremamente séria, conscienciosa e cuidadosa do professor Rivail quanto a essa ciência (como com as outras), não posso admitir as teorias das alterações por seu próprio punho, sobretudo das supressões, e, do ponto de vista científico, tudo o que vi até agora, sem contar as conclusões forçadas sob cadeias de lógica com alguns problemas, no máximo, indica uma intenção de editar uma nova edição, o que nunca foi concluído e que, justamente, deu lugar às adulterações posteriores à sua morte, através da alteração do tipos móveis((peças utilizadas para realizar impressões prévias, naquele tempo. Essas impressões eram analisadas e corrigidas, através da alteração dos tipos (letras, pontuações, etc.) e, quando se verificava que a obra estava finalizada, eram utilizadas para a impressão da matriz, sendo esta utilizada para a impressão em larga escala)) existentes.

Aliás, de posse dos manuscritos de Kardec, disponibilizados pelo CDOR, da FEAL, foi possível identificar que:

Algumas cartas manuscritas demonstram que, em fevereiro de 1868, Kardec estava interessado em acrescentar trechos em A Gênese, pois era de seu costume, depois de um tempo do lançamento, revisar suas obras. Para isso, pediu conselhos aos espíritos para organizar esse trabalho.

Alguns amigos espirituais deram orientações para uma revisão da obra, com a expressa indicação para não alterar em nada as questões doutrinárias, como se percebe pelos seguintes trechos desta comunicação:

Minha opinião é que não há absolutamente nada de doutrina a ser retirado; tudo aí é útil e satisfatório sob todos os aspectos” e

É necessário deixar intactas todas as teorias que aparecem pela primeira vez aos olhos do público”.

No caso, além da demonstração jurídica da adulteração de A Gênese, também esta comunicação reforça o fato em razão das alterações doutrinárias identificadas na obra, com a supressão de diversos trechos em que Kardec critica a moral heterônoma do fanatismo religioso, dentre outras manipulações.

Ainda nesta comunicação, o espírito sugeriu também que ele trabalhasse sem pressa e sem dedicar muito tempo:

Sobretudo, não se apresse demais. (…) Comece a trabalhar imediatamente, mas não de forma exagerada. Não se apresse”.

https://espirito.org.br/autonomia/ncni-conselhos-sobre-a-genese/

Ora, o que observamos nas alterações de A Gênese, senão pressa e descuido?

Essa recomendação era justificada porque Kardec, em meio a sua difícil condição de saúde, tinha questões prioritárias para se preocupar, como a Revista Espírita e o projeto para a continuidade do Espiritismo através da fase de direção coletiva.

Essa é minha conclusão. Contudo, podemos até chegar a dizer que essas questões de adulteração ou não são um mero “detalhe”, um “tropeço” mesmo, que será superado quando a ciência for restaurada em sua essência. Ora, essa essência segue inalterada e está disponível para o nosso estudo. Basta estudá-la, de forma honesta, pois o homem honesto e humilde se rende frente aos resultados da investigação científica. Mas, finalizo, esse estudo precisa ser contextualizado, e um dos maiores pesquisadores desse contexto, Paulo Henrique de Figueiredo, está sendo colocado para baixo do tapete, por muitos, apenas porque ele compartilha da opinião da adulteração. E essa atitude, definitivamente, não é ciência.




As cisões e a busca por unidade no movimento espírita

Este é um artigo sucinto, trazendo uma reflexão, creio eu, importante.

É de longa data o assunto em questão: a busca por uma unificação do Movimento Espírita. Sabemos que, principalmente no Brasil, desde o início do movimento espírita, existem as cisões, ou seja, as divisões em grupos de ideologias. Há, inclusive, dentro do movimento, as cisões políticas, algo que jamais deveria existir, já que o Espiritismo visa, antes de tudo, a transformação do indivíduo, pela própria vontade e pela razão, e não por força maior, ou seja, uma modificação social através da modificação individual. A política (vista pelo viés simplista, conforme o que é feito geralmente), por outro lado, visa essa transformação de cima para baixo, por força de lei.

Devemos observar: isso, é claro, não significa dizer que o espírita não pode se envolver com a política. Muito pelo contrário: deveria. Mas com quais olhos? Certamente, não os da vaidade e do orgulho das opiniões, mas baseado na Doutrina Espírita. Imaginemos o que poderia fazer, com a força política, pessoas bem compenetradas da essência científica, moral e filosófica do Espiritismo, da transformação pela base, da pedagogia da autonomia, desde a escola infantil e, enfim, aqueles que entendam, profundamente, o bem e seu poder de transformação social, respeitando, porém, SEMPRE (desde que o ato não implique o mal direto para outros e respeitando as leis vigentes) o livre-arbítrio de cada um, que é um princípio fundamental do Espiritismo? Ora, o grande problema, sempre, tem sido as opiniões reservadas, quando, de um lado, alguns pensam que resolverão tudo com as armas e, do outro, alguns acham que resolverão tudo à base da força, tomando de uns para dar aos outros.

Mas voltemos ao ponto fundamental: havendo as cisões sob uma mesma bandeira, é natural, então, nascerem as diversas propostas de unificação, inspiradas mesmo naquela célebre e justa recomendação do Espírito de Verdade, em O Evangelho Segundo o Espiritismo — “Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo”. Como, então, alcançar esse objetivo?

Ora, reconhecendo-nos Espíritos em diferentes graus de evolução, com diferentes formas de entendimento, com diferentes conhecimentos e diferentes formas de ver o mundo — enfim, cada um, em si, um verdadeiro universo — é claro que não podemos supor que uma unificação signifique uma igualação de ideias. Isso seria impossível. Também seria impossível e mesmo errôneo supor que essa unificação seria a irmanação de todos os espíritas sob uma mesma entidade reguladora, tal qual se tem tentado fazer desde há muito, pois o Espiritismo não pode estar encerrado sob hierarquias, entidades ou mesmo pessoas. O próprio Kardec, que tão conscienciosamente conduziu os primeiros anos da formação da Doutrina, sabia disso: depois de sua morte, quem assumiria o seu posto? Quem tomaria esse direito? Não. Desde o início, Kardec propôs as diretrizes daquilo que muito bem conduziria o Espiritismo após sua morte, que, em resumo, seria:

1. Como princípio básico de uma ciência, o Espiritismo jamais estaria fechado ao questionamento, desde que este nasça do propósito honesto do indivíduo que não aceita a nada sem raciocinar, nem à curiosidade, desde que esta nasça do princípio investigativo da busca pelo conhecimento; porém, desde o momento em que o indivíduo não se renda à lógica dos fatos e das evidências, fartamente sustentados pela razão e pelo método científico, não pode ser considerado a sério e, gastar tempo com este, significaria perder tempo com aquele que, apresentando-se uma maçã, dirá que se trata de um limão, simplesmente por desejar cultivar o orgulho, e não a humildade.

2. Do ponto de vista da organização doutrinária, Kardec, junto a seus colaboradores, propôs, conforme apresentado na Revista Espírita de dezembro de 1868 (cerca de apenas quatro meses antes de sua morte) a “Constituição transitória do Espiritismo” (leia clicando aqui) que, em resumo, recomendava que o Espiritismo passasse a se constituir não mais sob nenhuma figura ou entidade centralizadora, mas através de inúmeros grupos de estudos e pesquisa, constituídos pelo mundo, e coordenados, mas não regulados, por um comitê central, que, segundo Kardec…

… será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo que nada pode sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer pela discussão, não o será bastante para que aí haja confusão.

[…]

É claro que aqui se trata de uma autoridade moral, no que concerne à interpretação e à aplicação dos princípios da doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma Academia em matéria de ciência.

O brilhantismo, a racionalidade, a genialidade mesmo do Professor Rivail é, realmente, digna de um Espírito que se preparou para a missão que tinha à frente. A unidade do Espiritismo, portanto, não estaria representada pela força deste ou daquele indivíduo, ou grupo, desta ou daquela entidade: estaria no todo, nos princípios básicos da ciência e da doutrina espíritas. Não caberia a ninguém, individualmente, dar regras, aceitar ou rejeitar a adoção de novos princípios e mesmo de novos adeptos.

Ora, se isso chegou a ser publicado, de seu próprio punho, quando ainda estava em vida, perguntamos: o que é que aconteceu com o movimento espírita para chegarmos no cenário atual, onde as dissidências se dão, por toda parte, basicamente pelo desrespeito aos princípios básicos da Doutrina e dessa organização sabiamente proposta por Allan Kardec, pouco antes de sua morte? Bem, são quatro os pontos principais:

  1. Desvios doutrinários após sua morte, por aqueles que deveriam ter dado continuidade em seu trabalho. Isso se deu por interesses pessoais, como o dinheiro, a fama (vaidade) e o orgulho. Os Espíritos contrários ao bem, por serem ignorantes dele, encontraram nas imperfeições humanas a brecha necessária para a realizarem a única coisa que poderiam contra uma doutrina tão fortemente estabelecida. Assim, obtiveram, por Pierre Leymarie ou por outros ((Leymarie não se encontrava à frente da Sociedade Anônima, que substituiu a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, senão a partir de 1872, ano no qual foi lançada a edição adulterada de O Céu e o Inferno)): as adulterações de O Céu e o Inferno e A Gênese((Fatos detalhadamente apresentados em “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Nem céu, nem inferno”, de Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio.)), as duas obras finais de Kardec que encerravam os princípios doutrinários de mais de 15 anos de aprendizados e investigações; os fatos que mancharam e ensombrearam a Doutrina Espírita, como o “Processo dos Espíritas“, a frequente veiculação de ideias antidoutrinárias, na Revista Espírita, dentre outros((Fatos largamente detalhados nas obras supracitadas e também em “Muita Luz” (Beacoup de Lumiere), de Berthe Fropo. O PDF pode ser facilmente encontrado no Google.)).
  2. As guerras que se seguiram poucas décadas depois e que lançaram o mundo no materialismo, quer pelas dificuldades e desgraças do povo, quer pelas lutas armadas.
  3. Os interesses pessoais ou a incapacidade de compreensão da verdadeira essência do Espiritismo por parte daqueles que tomaram as rédeas do movimento espírita nascente no Brasil e que encontraram, em Roustaing, uma teoria mais próxima de seus propósitos ou de suas capacidades de compreensão. Estes, ligados à política — vejam só, uma vez mais a política — e/ou à imprensa e com capacidade de penetração, fizeram essas ideias se propagarem a fartamente pelo país.
  4. O desinteresse pelos estudos dos adeptos do Espiritismo que, se houvessem se dedicado a essa necessidade, teriam encontrado isto mesmo que acabamos de apresentar.

Eu diria que, de todos, o quarto e último tópico é o mais sério de todos, pois quaisquer tropeços, conscientes ou não, seriam muitas vezes corrigidos por um estudo dedicado dos conteúdos doutrinários existentes ou pela investigação científica junto aos Espíritos, assim como Kardec fazia.

Constatamos, enfim, que as cisões existentes no movimento Espírita se dão muito menos por ideologia doutrinária, e muito mais por ausência ou presença dos princípios científicos necessários, seguindo os passos de Allan Kardec. De um lado, estão aqueles que compreendem a necessidade do método, do princípio da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos, do não aceitar uma opinião isolada, seja de quem for, como se fosse a expressão da verdade e da sabedoria e, por isso, parte da Doutrina e da importância, da utilidade e da necessidade das evocações espíritas, com todos os devidos cuidados sempre destacados por Kardec; do outro, estão aqueles que pensam que Kardec está superado pelo tempo, que os Espíritos têm que ser deixados em paz e que cabe a este ou aquele a tarefa de profeta da revelação.

A unidade, então, no Espiritismo, não é impossível. Contudo, como fica claro, para ela existir, é necessário respeitar a constituição, o método e os postulados dessa ciência. As divergências de opinião e de interpretações sempre existirão, mas, desde que se cumpra os princípios básicos dessa ciência, elas serão progressivamente superadas ou afastadas.

De tudo, tiramos o seguinte: a unidade não deve ser procurada naquele que insiste em dizer que a maçã é um limão, mas sim naquele que, mesmo supondo que seja um limão, frente à razão, entenda e concorde: sim, é uma maçã. Em outras palavras: o Espiritismo é uma ciência muito bem estabelecida e fundamentada. Procuremos a unidade, baseados nesta ciência, em todos aqueles que queiram estudá-la e pesquisá-la como necessário, sem a pretensão de unir a todos sob uma mesma entidade ou um só líder, mas espalhando, pelos quatro cantos do mundo, a necessidade da formação de grupos de estudos aplicados sobre essa ciência. Com o tempo, quando estivermos prontos, isso dará espaço à retomada dos estudos, instigados pelos próprios Espíritos, dos princípios novos da Doutrina, com a coordenação de um comitê central ou mais.

Não se enganem: não procuramos números, mas qualidade. Os verdadeiros espalhadores dessa Doutrina não serão a maioria, em princípio, mas serão aqueles que auxiliarão no processo de retomada da essência do Espiritismo, divulgando-a a todos que puderem. Embora poucos, eles se encontram por toda a parte, muitas vezes esperando um pequeno empurrão para retomar a caminhada. Quanto àqueles que insistem no espiritismo sem os Espíritos, ou no espiritismo à Roustaing, entendamos que eles praticam uma nova religião, e não a Doutrina Espírita. Como diria Kardec, deixemo-los, pois a razão prevalecerá, e as opiniões divergentes serão abafadas pelo tempo e pela ciência, como sempre aconteceu na história da humanidade.

Em “espíritas, amai-vos”, temos a necessidade do respeito e da compreensão que somente podem nascer da humildade que surge da exploração científica e da razão, que leva o indivíduo ao aperfeiçoamento; em “instruí-vos”, temos reforçada a necessidade de estudar a Doutrina, de modo que possamos parar de ser comandados cegamente pelas opiniões.




31 de Março: Aniversário de morte de Allan Kardec

Dia 31 de março. Data pouco conhecida ou pouco lembrada no meio Espírita, é o dia em que morreu, em 1869, o querido e emérito professor, cientista, filósofo e estudioso dos fenômenos espíritas, Hypolite Leon Denizard Rivail – grafado dessa forma, mesmo, conforme ele próprio corrigiu, em documento de punho próprio, disponibilizado pelo CDOR. Esse foi Allan Kardec, aquele que dedicou seus últimos anos de vida e fez, em pouco mais de uma década, aquilo que poucos fazem em uma vida: obteve, pela observação racional e metodológica dos fenômenos espíritas, naturais e inteligentes, toda uma Doutrina, consoladora em sua essência e que, um dia, será reconhecida como a grande revolução no pensamento humano a respeito da vida, da sociedade, da caridade e da verdade sobre o bem.

O triste dia

Com uma beleza poética, Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, assim se expressa, sobre a morte de Kardec:

Como sentia que sua encarnação passava de maneira célere e constatava que suas tarefas doutrinárias continuavam aumentando, Allan Kardec evitava perder tempo. […] Ali [na Passagem Sainte-Anne] trabalhava desde a manhã até a noite e, frequentemente, desde a noite até a manhã, sem ao menos poder descansar, uma vez que estava só para ocupar-se de um trabalho cuja dimensão dificilmente se pode imaginar e que aumentava à medida que o espiritismo se difundia.

Como o contrato de aluguel do imóvel na Passagem Sainte-Anne estava para vencer, Allan Kardec pretendia deixá-lo no dia 1º de abril de 1869 e retirar-se para a Villa Ségur, onde tinha a intenção de concentrar-se mais na elaboração de textos doutrinários. Nessa mesma data, o escritório para assinatura e expedição da Revista Espírita, bem como a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seriam transferidos da Passagem Sainte-Anne para a sede da Livraria Espírita, na rua de Lille, nº 72.

Na quarta-feira, 31 de março, Allan Kardec encontrava-se na Passagem Sainte-Anne organizando seus livros e papéis para a mudança, que já havia começado e que deveria terminar no dia seguinte. Durante a manhã, recebeu um funcionário de uma livraria que desejava adquirir um número da Revista Espírita. Ao lhe entregar o exemplar, subitamente Allan Kardec perdeu os sentidos e tombou no solo sem haver dito sequer uma palavra.

[…]

Até o último instante de sua existência física, Allan Kardec deixou profundos ensinamentos. Morreu como viveu: trabalhando pelo Espiritismo. Suas mãos laboriosas despediram-se deste mundo entregando a Revista Espírita — periódico no qual deixou registrados seus ensinamentos, suas lutas, suas vitórias e, naquele último momento, sua imortalidade.

[…]

No cemitério, os curiosos procuravam posicionar-se nos lugares de onde podiam escutar os discursos. No entanto, quando o ataúde desceu para o fundo da cova, a emoção calou as palavras; fez-se um grande silêncio.

E esse silêncio parece ter se arrastado até os dias atuais, em que a grande parte do movimento espírita, em realidade, não conhece Allan Kardec e, muito menos, seu trabalho na formação da Doutrina Espírita — o Espiritismo.

Allan Kardec esquecido

Com grande tristeza, podemos averiguar que, nos pontos históricos que envolvem esse grande trabalho, o nome de Kardec não existe, nem como Allan Kardec, nem como Rivail: foi apagado pelo tempo, assim como fizeram com todos os cientistas que se dedicaram a estudar o Espiritismo e o Magnetismo. Não há uma placa dedicatória a Kardec. Não há um busto. Não há uma inscrição na parede ou na calçada, quando, por muito menos, personalidades do satirismo ou do horror merecem uma gravação dedicada, sob a luz dos holofotes, nas calçadas da fama que existem, mundo afora. Não. Nas ruas da França, parece que o único lugar em que o querido professor merece uma lembrança é no cemitério, como que por obrigação, e onde, morto e enterrado, não chama a atenção de ninguém com suas ideias “subversivas”.

Passage Sanite-Anne, lugar que dava acesso àquela que foi a primeira sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Rue des Martyrs, 8 (porta rosê), onde Kardec viveu com sua esposa, Amélie, no 2° andar

Mas a grande questão aqui não é apenas o esquecimento da figura de Allan Kardec, mas do seu papel como cientista espírita e da sua metodologia, da sua honestidade, da sua humildade e da sua seriedade no estudo do Espiritismo. Não cultuamos Kardec, mas reconhecemos seu trabalho e sua dedicação. Em uma paródia muito pertinente, há quem acredite, hoje, que a gravidade é uma grande farsa, por não ter estudado e compreendido o estudo de Isaac Newton, que principiou as ciências físicas, como hoje as conhecemos. Dá-se o mesmo com o Espiritismo.

Uma Doutrina desconhecida

Dizíamos que o Movimento Espírita desconhece Kardec e seu trabalho. Sim, de tal forma que, de fato, em grande parte, desconhecem a própria Doutrina que dizem professar. Poucos sabem do enorme desvio que a Doutrina, ou, antes, o Movimento Espírita, sofreu após a morte de Kardec, pelas mãos de Leymarie e com a influência de Roustaing e seus seguidores; poucos sabem que as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” foram adulteradas, respectivamente nas edições 5.ª e 4.ª; poucos sabem que essa influência se espalhou e se instalou no Movimento Espírita nascente, aqui no Brasil, logo em seus primeiros passos; poucos sabem que o próprio Bezerra de Menezes, por suas inclinações religiosas, preferiu as ideias roustainguistas sobre as espiritistas e que, por isso, as difundiu no Brasil; poucos sabem, ainda, que Kardec planejava dar início, a partir de abril de 1869, a uma nova fase do Espiritismo, sem figuras ou entidades centralizadoras e sem hierarquias, de modo que ninguém pudesse ditar regras — cenário totalmente diferente do que vivemos em nosso país, onde, desde os primórdios do Movimento Espírita, uma Federação se autointitulou centralizadora e regradora — a mesma Federação que chegou a colocar, também, Roustaing acima de Kardec.

No Brasil, país onde o Espiritismo parece ter conquistado o maior número de adeptos, vivemos um movimento espiritista religioso, com rituais e paramentos, onde “o telefone só toca de lá para cá” virou lei e, pior, onde as ideias de pecado e castigo, carma, “lei de causa e efeito” ou “lei de ação e reação”, que nunca fizeram parte dessa Doutrina, passaram a ser tomadas como doutrinárias.

Que me desculpe o querido Chico, mas, na afirmação sobre o telefone, ele errou, ou foi mal entendido. Contudo, erram ainda mais os adeptos, que, por falta de estudo e de forma irrefletida, passaram a tomar opiniões de médiuns e de Espíritos como se fossem a lei ou a expressão inquestionável da verdade e da sabedoria. É por isso que reafirmamos: o Movimento Espírita desconhece o Espiritismo, pois o ponto fundamental da Doutrina é aquele com o qual Kardec inicia sua última obra, A Gênese, apresentando, logo na primeira página:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

O Movimento desconhece, muito mais, a formação da Doutrina, apresentada largamente na Revista Espírita (leia este artigo), onde Kardec, número após número, demonstra várias evocações de Espíritos das mais diversas categorias (conforme a escala espírita), afirmando sua utilidade. Kardec evocou assassinos e cientistas, sábios e ignorantes, suicidas há poucos dias de sua morte, reis e rainhas e, de todos, sempre obteve ensinamentos importantes, que, progressivamente, através do método da busca pela concordância universal, sob o julgamento da razão, do bom-senso e da ciência humana, foram constituindo toda uma Doutrina e que, depois, serviram de base para a formação das demais obras e para a complementação de O Livro dos Espíritos.

As adulterações desconhecidas

Mas não podemos culpar, de todo, apenas a falta de empenho no estudo, pois muitos estudaram, mas estudaram sem saber que estudavam algo adulterado, como foi o caso de A Gênese e O Céu e o Inferno[1]. Ora, um dos pontos mais controversos de OCI nasceu de uma adulteração, pois a seguinte frase não existia na obra original, escrita por Kardec:

Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.

Texto inserido na versão adulterada de OCI, a partir da 4a edição

Sabemos hoje, por documentos históricos, que não apenas essas obras, mas todo o movimento espírita, sob as mãos de Leymarie, foi adulterado e subvertido, em nome do dinheiro e da vaidade. Um dos piores casos foi aquele conhecido como “O processo dos espíritas“, que manchou a reputação do Espiritismo na sociedade francesa.

O contexto de Allan Kardec

Também não conhecíamos o contexto de Kardec, onde O Espiritualismo Racional e as Ciências Morais davam base à formação educacional francesa, como podemos averiguar largamente em “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, por Paulo Henrique de Figueiredo, obra essa que também apresenta a face puramente autônoma do Espiritismo, completamente afastado de noções como as de carma, largamente presentes no Movimento Espírita atual. Não apenas isso, temos também a questão do Magnetismo, citado constantemente por Kardec como ciência gêmea do Espiritismo, de modo que uma sem a outra ficariam incompletas. Ora, Mesmer, “pai” do Magnetismo, só passou a ser compreendido recentemente, através da recuperação e da tradução de suas obras, culminando no livro Mesmer: A ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.

Enfim: nós precisamos recuperar Kardec. Precisamos estudá-lo em suas obras e na Revista Espírita; precisamos compreender o contexto no qual estava inserido; precisamos conhecer o Magnetismo; precisamos compreender o Espiritismo como ciência, que de fato é, e não como religião, que nunca foi, senão sob a compreensão da religião natural, conforme o entendimento do Espiritualismo Racional. E, entendendo o Espiritismo em sua essência, precisamos fazê-lo sair dos círculos fechados dos centros espíritas, para fazê-lo conquistar a sociedade através de suas ideias renovadoras e verdadeiramente consoladoras. Mas, para isso, a mudança precisa começar pelo indivíduo, se espalhando, então, para a família e para a sociedade.

Kardec superado?

Muitos pensam e afirmam o seguinte: “Kardec está superado no passado, então esqueçamo-lo e sigamos com o estudo dessas novas concepções que temos hoje”, o que é um erro profundo.

Espiritismo é ciência, tanto sob o aspecto das ciências morais francesas, no contexto de seu nascimento, quanto do ponto de vista de uma ciência de observação, que deduz, infere, analisa empiricamente, como fica muito claro para todos que estudam-no em suas fontes. Como ciência, tem uma base, sem a qual não se pode avançar. O Físico Nuclear também precisa passar por Newton, para depois chegar a Einstein e, depois, nos atuais cientistas.

No Espiritismo, tem pelo menos duas coisas que não mudaram, com relação ao nosso estado atual: a moral e os Espíritos. A primeira precisa ser estudada desde Jesus, e mesmo antes, sendo essa uma das propostas centrais do Espiritismo. Já os Espíritos continuam pertencendo a toda aquela escala, proposta por Kardec e refinada pelos Espíritos, e continuam se comunicando conosco, nos influenciando e conduzindo pelas mesmas formas que sempre utilizaram. Desde que, nisso, de forma inegável, há uma ciência, é necessário estudá-la e compreendê-la.

É por esquecer Kardec que, hoje, se aceita no movimento espírita conteúdos perniciosos, irracionais e antidoutrinários.

Se temos muito a aprender? Ora, mas é claro que sim! E os Espíritos nos ensinam aquilo que nós estamos prontos para entender, segundo o progresso da nossa ciência material. Kardec “arranhou” em assuntos científicos tão profundos, mas que ainda não podiam ser entendidos. Imaginem o que ele poderia alcançar se, naquela época, soubéssemos o que conhecemos hoje? Imagine, aliás, o que um pesquisador sério, elevado e honesto como ele poderia obter, segundo a ciência atual, a respeito de tudo aquilo que não pôde ser aprofundado naquela época?

Mas isso, meus caros, somente será feito no momento certo. Por isso, faço minhas as palavras do Paulo Henrique de Figueiredo: estudemos, estudemos, estudemos, até cansar. Entendamos o Espiritismo na Revista Espírita e nos seus complementos. Estudemos as obras de Kardec, as de Bozzano, as que, hoje, estudam o contexto do Espiritismo, inserido no Espiritualismo Racional, e estudemos ainda o magnetismo de Mesmer.

Quando estivermos prontos, como outrora, os próprios Espíritos nos buscarão e, quem sabe, eles precisem voltar a girar mesas e tocar tambores invisíveis de modo a chamar nossa atenção.

Uma motivação a mais para o estudo

E, se te falta ainda uma motivação para se afundar nesses estudos, deixo a seguinte reflexão:

O que nos afasta da felicidade real são nossas imperfeições, nossos vícios morais, nossas paixões desenfreadas. Somente o Espírito que venceu suas imperfeições, através das provas, e que desenvolveu seu raciocínio, através do conhecimento, consegue progredir no caminho da evolução espiritual. Todos nós o faremos, mais cedo ou mais tarde, mas a velocidade depende da vontade de cada um, galgada na razão, pois somente faz a verdadeira mudança o Espírito que realmente entende, racionalmente.

Diz Kardec, em A Gênese: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.

Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra (que deu base a todas as traduções e edições futuras), que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, importantíssimo, omitido pela adulteração:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Tudo o que vivemos, portanto, como nos mostra a Doutrina, jamais se trata de castigo, mas, sim, de oportunidades para a nossa evolução. O Espiritismo é autônomo em sua essência — “Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta” [RE — outubro de 1858].

Se isso tudo não te motiva a estudar Kardec, não sabemos o que mais faria.


1. A editora FEAL já tem as traduções dessas obras, segundo o texto original. O contexto das adulterações de A Gênese pode ser entendido através da leitura da obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; já o das adulterações de O Céu e o Inferno pode ser entendido na obra “Nem céu, nem inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo”, por Lucas Sampaio e Paulo Henrique de Figueiredo




A eutanásia de Alain Delon e o Espiritismo

O ator francês Alain Delon afirmou que praticará eutanásia, segundo informa a matéria da Veja SP. Alain, que considera o suicídio assistido “a coisa mais lógica e natural”, disse, numa postagem no Instagram:

“Tomei a minha decisão há muito tempo, acho que a minha vida foi linda mas também muito difícil. Nunca gostei de envelhecer. Todas essas dores e desafios do cotidiano me deixam paralisado”

Infelizmente o ator não conhece o Espiritismo, o que seria quase cômico, se não fosse trágico, por ser, justamente, nascido na terra onde a Doutrina Espírita nasceu, há mais de 160 anos. Mas não falo, aqui, do Espiritismo-religião do movimento espírita atual, aquele que diz que o suicida sentirá o corpo sendo roído por vermes, ou que ficará sofrendo no “vale dos suicidas”, ou que renascerá em um corpo defeituoso. Já falamos sobre a irrealidade dessas afirmações genéricas neste artigo.

Não: aqui falamos do Espiritismo em sua essência científica, doutrina cuja teoria nasceu da observação racional dos ensinamentos universalmente concordantes dos Espíritos. Essa Doutrina, em sua essência, nos mostra o seguinte: a vida é uma oportunidade de aprendizado e elevação. Terminá-la antes do tempo, por conta própria, é uma grande perda de tempo, pois nos distancia da elevação e do aprendizado possibilitado pelas provas e pelas oportunidades da vida.

Acontece que cada segundo sobre a Terra, por difícil que seja, se bem enfrentado e vencido, nos aproxima do objetivo final, que é a felicidade dos bons e dos justos. Como alcançar, porém, esse estado de felicidade, sem nos livrarmos das imperfeições e das paixões — o que somente se faz através das provas da vida, da vontade e do aprendizado?

Isso, é claro, é totalmente diferente do caso da eutanásia animal.

O ator, infelizmente, não está atento para esse fato da nossa realidade espiritual. Do outro lado, após cometer o ato, provavelmente um dia verá a inutilidade do mesmo… E é isso. Não há punição: há erro, nascido da ignorância. Entender melhor essas questões alavanca nosso progresso, nos permitindo alcançar mais cedo a felicidade, de acordo com nosso empenho em nos elevarmos pelo próprio esforço. Desejamos a ele, e a outros, que possam cedo compreender essas questões.

Encerro deixando para reflexão o assunto, conforme abordagem em O Evangelho Segundo o Espiritismo:

Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura?
28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador. Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim?

Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até à borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar ideias diversas das que tinha? Ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a hora derradeira. A iência não se terá enganado nunca em suas previsões?

Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.

O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no além-túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Minorai os derradeiros sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro.

S. Luís.
Paris, 1860




As religiões e o novo mundo

Este será um artigo muito suscinto, mas de grandes reflexões.

As religiões, por mais que se afastem da verdade por conta de seus dogmas, que visam manter o povo na ignorância, em razão da sede de poder e de controle, tem a sua utilidade. É claro que todas elas avançam – basta comparar, em geral, a Igreja Católica de 150 anos atrás, ou ainda muito menos, com a de hoje – embora avancem a passos muito lentos e apenas quando se veem forçadas a isso, na maioria das vezes. Com tudo isso, elas sempre foram receptáculos de uma certa verdade, transmitida entre os séculos, até o momento em que o homem pudesse entender e avançar sobre essas ideias.

É fato que, por conta dessa sede de controle e domínio, os dogmas criados para esse fim mantiveram por muito tempo as consciências sob a irreflexão do medo e da obediência cega, mas, uma vez mais, os tempos são chegados. Vejamos as fileiras das igrejas: a cada dia mais, vão se esvaziando. Contudo, esses que daí saem, não encontramos quem dê resposta melhor, encontram a única resposta que existe, que é no materialismo.

Vivemos exatamente o mesmo processo enfrentado entre os séculos XVIII e XIX, de onde, em pouco tempo (relativamente falando) veremos surgir um movimento contrário a tudo isso, buscando no espiritualismo a resposta que nem as religiões nem o materialismo podem dar.

Contudo, hoje, temos vantagem. Os estudos importantíssimos sobre o Espiritualismo Racional, por Paulo Henrique de Figueiredo (principalmente), podem alavancar esse processo; o Espiritismo, desta vez, não precisa nascer do zero, mas precisa apenas ser retomado em sua essência original – aquilo que muitos estudos recentes, inclusive os do Paulo, tem auxiliado muito a realizar. Estamos muito mais pertos de uma revolução de ideias, o que não se dará pela política, que é coercitiva, mas pela vontade individual, que responde à razão e ao livre-arbítrio.

Meu amigo leitor, creio que em algumas décadas poderemos ver um novo mundo. Para isso, contudo, há que se abalar as bases sociais – desta vez, não através da força, mas através das ideias da caridade e do bem e, sobretudo, da autonomia através da vontade e da razão – e, para isso, cabe a cada um de nós estudar exaustivamente todas essas fontes de conhecimento a fim de levar adiante, em cada situação possível, e para fora do meio espírita, esse conhecimento consolador e transformador.

E podemos começar desde já, tecendo, por exemplo, propostas de aproximação da educação, hoje predominantemente heterônoma, vivenciada sob os aspectos do pecado e do castigo, com as propostas pestalozziana e espírita, autônomas em toda a sua essência.

Temos muito a fazer. E esse processo não visa derrogar as religiões, como nunca visou: visa, antes de tudo, trazer o fortalecimento da verdade que há nelas e afastar aquilo que há de erros e inverdades.

Recomendamos também a leitura do artigo “Espiritismo e o mundo de regeneração: como chegaremos a ele?




O que é a Revista Espírita e como estudá-la?

No momento em que escrevo este artigo, estamos entrando no estudo da 10.ª edição da Revista Espírita — outubro de 1858. Começamos esse estudo semanal (clique aqui para conhecê-lo), transmitindo-o ao-vivo, sabendo, por uma intuição, que ele seria muito importante e útil, mas, de fato, não sabíamos o que esperar desse estudo. A verdade é que, senão pela leitura de algumas citações de trechos dessa obra, não sabíamos nem sequer do que se tratava a Revista Espírita.

Ouça ao podcast:

Hoje, então, passadas nove edições dessa publicação, dentre as 136 das quais o próprio Kardec esteve à frente, de janeiro de 1858 a abril de 1869 (ele morreu em março, mas já havia deixado pronta essa última e importante edição, da qual falaremos mais adiante) — e continuamos nos perguntando onde é que ele arrumava tempo e disposição para isso, coisa digna de missionário — já conseguimos vislumbrar um pouco do brilhantismo de Rivail no encadeamento lógico do desenvolvimento dos temas que, agora compreendemos um pouco, dão base e rumo ao crescimento e ao fortalecimento da Doutrina Espírita — lembremos que as próximas obras foram produzidas, em grande parte, justamente a partir de muitos dos temas e estudos desenvolvidos na Revista Espírita.

Importa dizer, antes de tudo, que a Revista Espírita, como demonstra o nome, foi um periódico mensal, onde Allan Kardec apresentava diversos temas, sendo alguns deles totalmente doutrinários, outros deles ligados às questões sociais, histórias e científicas e outros nos quais percebemos uma crescente e ininterrupta elaboração de pesquisas e conhecimentos que foram dando cada vez mais base à Doutrina Espírita.

Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos

Muitos não sabem, mas esse é o subtítulo completo desse periódico: jornal de estudos psicológicos. E isso é importante ser destacado, pois, pelos olhos de hoje, não parece que psicologia tem muito a ver com um jornal espírita, não é mesmo? É aqui que entra o valoroso e importante trabalho de Paulo Henrique de Figueiredo, um dos mais expoentes pesquisadores espíritas da atualidade, que foi buscar, no passado, um conhecimento esquecido, varrido para baixo do tapete: em resumo, aquele que se encerrava no contexto do Espiritualismo Racional, sobre o qual já falamos um pouco aqui. É somente através do estudo desse conhecimento esquecido que poderemos, adiantamos, contextualizar muito do que se fala na R.E. e, sobre isso, destacamos a importância da obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, desse mesmo autor.

No contexto de Kardec, a Psicologia não tinha a característica terapêutica materialista de hoje: ela era uma ciência moral, espiritualista, inserida no contexto do Espiritualismo Racional, e seu principal objetivo era investigar e analisar as leis naturais que regem a natureza humana, inclusive de forma experimental.

Nesse contexto, a Psicologia compreendia o ser humano como um ser constituído de corpo e de alma. A alma, que sobreviveria ao corpo, era a causa primária da psique, não sendo esta um efeito apenas material de química e estímulos. Tratamos um pouco disso nos estudos baseados no artigo “O Período Psicológico”, que você pode ler aqui.

O nascimento da Revista e sua finalidade

Kardec criou a Revista Espírita baseado, em parte, nas sugestões de um Espírito que se comunicou através da Srta. Hermance Dufaux (é com H, mesmo) que, segundo Canuto de Abreu, cooperou para a transmissão de valiosas orientações para esse periódico:

No final de 1857, Kardec teve a ideia de publicar um periódico espírita e quis ouvir a opinião dos guias espirituais. Hermance foi a médium escolhida e, através dela, um Espírito deu várias e ótimas orientações ao Mestre de Lion. O órgão ganhou o nome de “Revista Espírita” e foi lançado em janeiro do ano seguinte.

Um dos maiores interesses de Kardec era o de se corresponder, de forma facilitada, com os adeptos do Espiritismo espalhados pela Europa. Através da Revista, uma publicação de fácil circulação e de interesse geral — Kardec, nela, abordava até os fatos cotidianos e de grande interesse, envolvendo os Espíritos — a Doutrina foi rapidamente permeando as massas, que liam avidamente suas folhas. Não faltaram as cartas de assinantes, milhares delas, muitas das quais Kardec sequer encontrava tempo para responder.

Destacamos a palavra “assinantes” de propósito: Kardec, ou melhor, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cobrava por uma assinatura desse periódico, mas jamais para enriquecimento próprio, e sim com a finalidade de obter recursos para baratear custos das obras, fornecer apoio social, etc. Fizemos uma citação a esse respeito no artigo Propagação do Espiritismo.

Dizíamos dos propósitos da Revista. Bem sabemos que Kardec identificou, logo de início, com sua perspicácia de pesquisador formado, desde criança, pelo método investigativo da Natureza, de Pestalozzi, que…

… A opinião isolada de um Espírito não passa disso — uma opinião — portanto, não pode ser tomada, isoladamente, como se fosse fonte inquestionável da verdade, já que Espíritos de todos os tipos podem se comunicar, sendo que os Espíritos enganadores tomam os nomes até mesmo dos santos e de Jesus, sem pudor, principalmente quando percebem que não são questionados.

Portanto, Kardec buscava um meio de fortalecer o princípio básico e inexorável da Doutrina, que é o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos, que deve, além disso, atender à lógica, à razão, ao bom-senso e à ciência já formada, tanto da parte dos homens, quanto da parte dos Espíritos, pelo mesmo método. Ora, como já podemos perceber, através da Revista Espírita, onde recebia os diversos relatos de várias partes do mundo, através de seus correspondentes, o mestre lionês obteve justamente isso, em grande parte! Vemos um exemplo disso na carta do Sr. Jobard, em julho de 1858, e nas observações de um correspondente em setembro de 1858.

As evocações de Kardec

Há também um aspecto ainda mais importante apresentado na Revista, que demonstra claramente uma face pouquíssimo conhecida do Espiritismo, no atual movimento espírita: o da natureza e da utilidade das evocações de Espíritos. Ora, num momento onde virou lei a famosa frase do querido Chico Xavier — “o telefone só toca de lá para cá” — sobre a qual já fizemos uma análise no artigo “O Espiritismo sem os Espíritos” — qual não foi nosso espanto (pelo menos para aqueles que não conhecíamos essa realidade) ao verificarmos que Kardec fazia uso das evocações com tanta naturalidade — mas com a necessária seriedade — como aquela que usamos para conversar com as pessoas ao nosso redor.

Em praticamente todas as edições, Kardec apresenta evocações de Espíritos, as quais realizava com a finalidade de obter melhores compreensões a respeito da moral compreendida em certos acontecimentos, bem como o de tentar sondar alguns fatos científicos envolvendo fenômenos Espíritas, como se deu em “Uma nova descoberta fotográfica“, de julho de 1858.

Foi assim que, número após número, Kardec apresentou as mais diversas evocações, algumas feitas por ele mesmo e outras feitas por correspondentes seus. Evocaram-se Espíritos de suicidas, de loucos, de assassinos, de reis, de plebeus, de gente de grande moral e benevolência e de Espíritos inferiores. Muitos desses, diga-se de passagem, a pouquíssimos dias de sua morte, o que contraria aquilo que grande parte do movimento espírita atual tem dito.

Importa destacar, é claro, que as evocações não tinham a finalidade de atenderem à curiosidade vazia e inferior ou à diversão de ninguém: além dos ensinamentos que se podiam colher de todas elas, para os Espíritos superiores sempre foi uma felicidade nos ajudar e, para os inferiores, muitas vezes forneceram preciosos momentos de reflexão e de reequilíbrio.

Fortalecimento da Doutrina e descontrução de falsos ou inconpletos conceitos

A forma para o Espírito

Para dar um exemplo prático, nessas desconstruções de ideias fartamente enraizadas atualmente, temos, ainda que em primórdios, uma delas que começou a chamar nossa atenção: a questão da forma para o Espírito errante (entre as encarnações). É de praxe, hoje em dia, a concepção de todo um mundo fantástico e cheio até mesmo de automóveis no plano espiritual… Contudo, Kardec, a partir de certa edição, passa a sondar o que é a forma para os Espíritos, através de perguntas como “de que forma lhe veríamos se pudéssemos vê-lo com nossos olhos?” ou “vê outros Espíritos? De que forma?”.

Foi assim que, em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei natural, apenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”. É, portanto, matéria, mas uma matéria muito sutil, extraída do fluido cósmico universal[1]).

Significa então que os estudos de Kardec desmentem André Luiz? Bem, apesar de a metodologia de Kardec ser bastante lógica, deixando pouco espaço para erro, seria talvez precipitado tirar conclusões baseados apenas nesses dois Espíritos — ainda não sabemos se existem, mais adiante, mais evocações que deem suporte a essa tese — mas também não estamos dizendo que Chico Xavier errou, já que ele foi uma ferramenta dos Espíritos, nem que André Luiz mentiu, mas sim que ele falou segundo suas concepções e seus entendimentos. Quem sabe, ele poderia estar falando de uma situação de “encarnação” de Espíritos, em matéria mais sutil? Também não descartamos a existência de verdadeiras cidades, formadas pelos Espíritos ainda muito dependentes da matéria e da forma — o que, em suma, não é nada bom, mas compreendemos que seja uma fase.

O suicídio

Outro tema que foi fartamente desconstruído de suas concepções modernas é aquele a respeito do suicídio. Reinam, hoje, no meio espírita, as afirmações de que o suicida fica no “umbral” ou no “vale dos suicidas”; o de que ele ficará preso ao corpo, “sentindo-o” ser roído pelos vermes; o de que ele ficará anos em perturbação extrema, sendo impossível se comunicar; e, ainda, o de que o suicida amanhã nascerá com defeitos físicos de modo a “resgatar um débito cármico” (esse último trecho causa aversão até para escrever).

Bem, até o momento, Kardec já fez a evocação de dois suicidas: O Suicida da Samaritana, em junho de 1858, e Suicídio por Amor — setembro de 1858 — onde um rapaz se matou à porta da namorada, num ápice das emoções, pois ela se obstinara em não aceitá-lo de volta, após uma grande discussão.

O primeiro é evocado cerca de dois meses após o episódio fatídico: “Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco” — notem a simplicidade na evocação. Esse Espírito denotou um grande sofrimento moral, que vinha desde antes de sua morte, a qual buscou por um desespero em não saber lidar com os desgostos e as provações da vida. São Luís encerra a comunicação dizendo apenas que o suicídio interrompe a vida bruscamente, o que pode provocar uma certa dificuldade momentânea de se desapegar do corpo.

O segundo é evocado sete ou oito meses após o suicídio. Esse espírito já não sofre tanto, pois entendeu a falta de utilidade no que fez, e que o fez por um ato irrefletido levado pelas paixões (emoções) incontidas. Nesse, há apenas um “aprisionamento mental” ao momento do ato, que ficava se repetindo na mente desse Espírito, já que a ele se ligava com arrependimento.

Em nenhum deles, nenhuma menção àquilo que se tornou lugar-comum no meio Espírita, que, na verdade, são meias-verdades: existem as diversas possibilidades, segundo a mentalidade de cada um, mas o espírita atual insiste em tomar a exceção por regra.

A moral autônoma

Paulo Henrique de Figueiredo muito tem falado e defendido a essência do Espiritismo como moral autônoma. E muito tem sido criticado por alguns poucos que ainda não conseguiram ver isso na Doutrina. Aqui, há mais um conceito atual desconstruído pelo estudo da Revista Espírita. Não vou me aprofundar sobre o assunto, pois neste artigo já apresentei o conceito. Apenas quero destacar que, na própria Revista, nós vemos esse conceito muito bem fundamentado, e não por Kardec, apenas, mas pelos Espíritos.

Logo na primeira edição da RE, em janeiro de 1858, temos o artigo “Uma conversão“, que apresenta a seguinte sequência de perguntas e respostas, feitas ao pai falecido de um rapaz, por esse mesmo rapaz, que buscava acreditar no Espiritismo:

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos? — Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem? — Avançará em seu caminho.

17. — Estou no bom caminho? — Faça o bem e estará.

Observe a profundidade moral desse simples diálogo. Não há castigo e recompensa, mas apenas nós mesmos, diante de nossa própria consciência, segundo nossas escolhas.

Mais adiante, em outubro de 1858, no artigo “Assassinato de cinco crianças por outra de doze anos — Problema moral“, Kardec questiona a São Luís sobre a possibilidade daquele Espírito, do assassino, voltar a encarnar sobre a Terra, e não sobre um planeta ainda mais atrasado:

11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?

─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.

Prezado(a) amigo(a), vê a beleza da Doutrina Espírita, verdadeiramente consoladora e autônoma, transparecida em sua face original? Nada de carma. Nada de “ação e reação”. Nada de “lei do retorno”. Estudemos, estudemos, porque o movimento espírita atual, inundado de conceitos exíguos e contrários à Doutrina dos Espíritos, anda muito afastado de suas essência e realidade originais!

Como estudar a Revista Espírita

Muito bem: já apresentamos a importância inestimável desse periódico de Kardec; já apresentamos, também, a profundidade que ele tem e o encadeamento lógico e racional de algo que vai formando o corpo de uma Doutrina Científica, muito bem estabelecida, que é o Espiritismo. Resta saber: como estudar esses 136 números dessa publicação?

Cremos haver duas formas principais, sobre as quais, aliás, estamos discutindo e nos adequando, no momento, de modo a chegar no melhor método. A primeira delas é aquela que respeita a forma cronológica, edição a edição; a segunda é aquela que “passa a perna”, no bom sentido, em Kardec, e avança por assuntos, de forma mais ou menos cronológica. Explico:

Na primeira modalidade, que é o que fizemos até então, pegamos a Revisa, edição por edição, e nos dedicamos a estudá-la individualmente, em primeiro lugar, a fim de extrair de cada número e assunto o melhor entendimento, enriquecendo o estudo. Isso porque existem, nela, assuntos acessórios, que não apresentam grande ganho em trazer para o estudo em grupo, como é o caso dos fenômenos apresentados por Kardec, no que chamaríamos hoje de “causos espíritas”. Não que não sejam artigos úteis, pois reforçam muito o entendimento a respeito do fato dos fenômenos espíritas, principalmente para aqueles que ainda tem dúvidas sobre eles.

Já outros assuntos são tão importantes e profundos que merecem uma atenção especial, por vezes buscando complementos não só em Kardec, mas também em obras complementares de outros pesquisadores contemporâneos ou não de Kardec. Por diversas vezes já encontramos grande utilidade em abordar não apenas demais obras de Kardec que, se fôssemos nos basear pela cronologia correta, sequer haviam sido publicadas, mas também obras como as de Ernesto Bozzano e aquelas recentes de Paulo Henrique.

Outra forma de realizar esse estudo é, como dissemos, “passar a perna” em Kardec e avançar sobre os assuntos em todos os anos da Revista e da obra completa do Professor. Mas isso no bom sentido: Kardec, cronologicamente, o que é óbvio, vai amadurecendo a própria compreensão a respeito da Doutrina dos Espíritos, através da pesquisa incessante. Assim, podemos ver, por exemplo, Kardec falando em fluido vital, em 1858, mas, em A Gênese, descartando os fluidos e ficando com a tese de Mesmer, do Magnetismo Animal e do princípio vital. Portanto, pode-se desrespeitar a ordem cronológica de modo a estudar os assuntos abordados na Revista, complementando-os e relembrando-os conforme se avança pelos números, na ordem.

No momento, estamos optando por um meio-termo: descartamos o aprofundamento nos assuntos acessórios, nos atendo aos assuntos principais e, deles, fazendo o devido aprofundamento, conforme observamos a necessidade. Talvez passaremos a abordar mais de uma edição num mesmo estudo, quando verificarmos que os assuntos de mais de uma delas é construído e complementado sequencialmente. Apena não julgamos útil avançar a passos grandes demais, pois compreender a construção do pensamento de Kardec, de seu método, dos ensinamentos dos Espíritos nas entrelinhas, é algo que julgamos muito proveitoso e importante.

O fim da Revista Espírita sob a tutela de Kardec

Chegamos, enfim, ao final do artigo, citando o fim da Revista Espírita com a morte de Allan Kardec. “Mas, Paulo, a Revista Espírita continuou sendo veiculada por muitos anos após sua morte”. Sim, continuou… Mas, infelizmente, foi subvertida pelos interesses mesquinhos do dinheiro e da vaidade. Enquanto esteve sob Kardec, foi uma publicação metódica, bem formulada e, sobretudo, impessoal, voltada aos interesses do Espiritismo, isto é, da Doutrina dos Espíritos, que não pertence a nenhum encarnado e nem sai das ideias de nenhum deles, de forma isolada.

Após a morte de Kardec, aqueles que assumiram e subverteram a Sociedade (para mais detalhes leia O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato) passaram a utilizar desse periódico para veicular os mais completos absurdos, dentre eles, sob a direção de Pierre Leymarie, artigos promovendo um falso médium, que dizia obter fotografias dos Espíritos. A promoção era literal, pois, na Revista Espírita, chegou-se a dar a indicação e os valores cobrados para se obter uma suposta fotografia de um parente morto. O caso rendeu um grande processo judicial contra Leymarie e seus associados, naquilo que ficou conhecido como O Processo dos Espíritas e que manchou absurdamente a reputação da Doutrina perante a sociedade.

Mas não parou por aí. A Revista Espírita, depois de 1869, passou a ser constantemente lugar de veiculação de absurdos artigos, muitos contrários à Doutrina até então formada pela metodologia indispensável aplicada por Kardec. É por isso que, juntamente aos demais estragos causados à Doutrina, que, hoje, ficamos com a Revista apenas sob o tempo em que ela esteve sob as conscienciosas mãos de Allan Kardec, e é por todo o exposto, até aqui, que…

… Convidamos a todos a montarem grupos de estudos sobre essa publicação, juntando a isso as pesquisas mais atuais, de modo que o aprendizado do Espiritismo, como Doutrina Científica que é, possa, a cada dia mais, sair dos círculos dos estudiosos espíritas e espalhar suas influências sobre a sociedade, que está desesperada em busca de respostas, uma vez mais.

Para isso, recomendamos observar as obras recomendadas para estudo, bem como acompanhar os estudos do grupo Espiritismo para Todos, no YouTube.


1. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em A Gênese (FEAL, 2018):

“Havia a teoria do fluido cósmico universal, adotada inicialmente por Franz Anton Mesmer (na Ciência do Magnetismo Animal), segundo a qual o Universo seria composto de um só elemento gerador, ocupando plenamente o espaço, dividido em inúmeras fases de densidade, progressivamente, desde a matéria tangível, líquida, gasosa, o éter e demais condições ainda mais sutis, imperceptíveis aos sentidos. Nessa outra teoria, as forças não seriam substâncias, mas estados de vibração em diversos níveis sutis do fluido universal. Por exemplo, a luz seria um estado de vibração do éter. Por analogia, considerando a adoção nessa obra da teoria do único elemento gerador como explicação universal dos fenômenos físicos, os fluidos espirituais estariam entre os estados mais sutis do fluido cósmico universal”. Recomendamos a obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.