Autonomia, a moral do novo mundo
Vivemos em um mundo até agora dominado pelos conceitos de heteronomia. Para bem entender esse conceito, precisamos analisar a etimologia da palavra: heteronomia é formada do radical grego “hetero” que significa “diferente”, e “nomos” que significa “lei”, portanto, é a aceitação de normas que não são nossas, mas que reconhecemos como válidas para orientar a nossa consciência que vai discernir o valor moral de nossos atos. Esse entendimento é fundamental.
O mundo heterônomo
No mundo heterônomo, nós atribuímos tudo a algo externo: a culpa está no diabo ou no obsessor, o efeito está na ira divina e a reparação está na imposição carmática. Tudo, absolutamente tudo no mundo heterônomo, vem como imposição externa, através de leis que respeitamos por obrigação, e não por entendimento. E na ausência dela ou de seus atores, nos vemos sem limites e sequer sem amor-próprio.
A heteronomia é algo inerente e talvez mesmo necessário a uma condição de pouco avanço espiritual, quando, sem o entendimento mais profundo dos mecanismos da vida e da evolução, somos forçados a atender, por medo, às imposições de leis divinas, humanizadas, ou mesmo das leis humanas, divinizadas. Infelizmente, como já sabemos, também é algo extensamente utilizado pelas religiões para manter o controle sobre seus fieis. Mas isso é algo que, conforme podemos constatar, vai se modificando conforme o avanço do Espírito humano, tanto em ciência quanto em moralidade.
Um grande problema do conceito da heteronomia, ou, antes, da crença nele, é que ele entrava por certo tempo a evolução do Espírito: ora, se o indivíduo acredita que suas dificuldades na vida são um castigo imposto por Deus, ele apenas aceita seus efeitos, de forma submissa (o que, sim, é importante), mas sem fazer nada para se modificar. Aguarda apenas o fim de suas provações. Nem mesmo a caridade pode ser realmente entendida e praticada em um contexto heterônomo, pois o indivíduo pratica a caridade esperando um retorno, sem entender que ela é uma obrigação moral e natural do ser pensante.
Outro ponto muito problemático é que quando o indivíduo acredita no castigo divino — e, pior ainda, no castigo eterno — é muito comum que perca qualquer limite após cometer um erro. Com certeza o leitor já ouviu inúmeras vezes a afirmação: “já vou para o inferno mesmo, então, um pecado a mais, tanto faz”.
Mas nos enganamos se pensamos que o conceito heterônomo se encontra apenas nas religiões. Infelizmente, mesmo no meio espírita, tal conceito também se infiltrou, sobretudo com a adulteração das obras O Céu e o Inferno e A Gênese, de Allan Kardec. Se hoje ouvimos constantemente, da boca de espíritas, as palavras “carma”, “lei de ação e reação”, “resgate”, isso se dá em grande parte por essas adulterações, passadas de geração em geração e que hoje fazem muitos de nós, espíritas, ainda acreditarmos que o “carma” faz eu renascer nessa vida para “resgatar” um erro passado.
Vejamos bem: é justamente uma das mais sérias adulterações em O Céu e o Inferno que incutiu esse pensamento heterônomo, que atrasa o avanço do Espírito, no seio de uma Doutrina que era totalmente voltada à autonomia do ser. No capítulo VII, item 9 da obra citada, vamos ler: “Toda falta cometida, todo mal realizado é uma divida contraída que deverá ser paga; se não for em uma existência, será na seguinte ou seguintes”. Esse item não existia até a morte de Kardec, sendo que só apareceu em novas edições feitas mais de dois anos após a morte do Professor.
Não — insisto em dizer: no Espiritismo não existe carma, nem “lei de ação e reação” e, muito menos, “resgate”. São conceitos que, no fundo, tem o mesmo efeito da crença no castigo divino.
A Autonomia
Oposta ao conceito da heteronomia, a autonomia (auto — de si mesmo) coloca o indivíduo como peça central em sua evolução. Depende de sua vontade, única e exclusivamente, tanto suas ações, quanto seus pensamentos e os Espíritos atraídos ou repelidos por estes.
No conceito da autonomia, que não nasceu com o Espiritismo, mas que foi por essa Doutrina ampliado — e demonstrado — o Espírito é senhor de si mesmo e de suas escolhas desde o momento em que desenvolve a consciência e, com isso, passa a ter o livre-arbítrio. Escolhe, assim, entre bem e mau, ou melhor, escolhe sobre formas de agir frente às situações e se felicita ou não com seus efeitos. Contudo, quando o efeito é negativo, não significa que está sendo efetivamente castigado por um Deus punitivo, mas sim que está sofrendo as consequências morais de suas ações. E essas consequências morais só existem para o Espírito que já tem consciência de sua existência, razão pela qual os animais, por exemplo, não as tem.
É assim que, avaliando as consequências de nossos atos e, quando mais conscientes, as imperfeições morais que nos levam a cometer erros, nos impomos, a nós mesmos, vidas cheias de provas e de expiações, com o fim de tentar nos livrarmos dessas imperfeições, a partir do aprendizado:
“Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem”, quando desejam conquistar paciência, resignação ou saber agir com poucos recursos. Outros desejam testar se já superaram as paixões inferiores e então “preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar”. Aqueles que lutam contra os abusos que cometeram, “decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício” (O Livro dos Espíritos, p.220).
É claro: ao praticar o mal contra Espíritos Inferiores, teremos uma hipótese quase garantida de recebermos, em troca, a vingança; mas essa vingança, se houver, é efeito da escolha do outro Espírito, e não de uma reação “carmática” de uma suposta “lei de ação e reação” — que, aliás, é uma lei da Física Newtoniana, e não divina. Ao praticar a vingança, o outro Espírito também erra, pois dá margem ao hábito de suas imperfeições e, por isso, pode entrar em um círculo de erro e vingança com o outro que pode durar séculos. Quando isso não ocorre — e esse é o ponto-chave — o efeito é apenas o Espírito que erra permanecer por mais tempo afastado da felicidade dos bons Espíritos, por conta de suas próprias imperfeições.
Não existe “lei de ação e reação” no Espiritismo
Muitas pessoas, apegadas a velhos conceitos do passado, se sentem perplexas com tal afirmação, mas qualquer um que se tenha colocado dedicadamente a estudar o Espiritismo consegue perceber que a moral autônoma, em tudo, é colocada bastante clara aos nossos olhos, através da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos. O que ganhamos ao fazer o bem? Avançaremos mais rápido. E o que sofreremos ao praticar o mal? Ficaremos mais tempo retidos à inferioridade espiritual e à roda das sucessivas encarnações em mundos inferiores.
O Espiritismo nos demonstra que, ao entrarmos no círculo da consciência, passamos a versar sobre nossos próprios destinos, sendo que as provas e as expiações que enfrentamos na atual encarnação se devem às nossas próprias escolhas, realizadas antes de encarnarmos, ainda que muito difíceis, posto que, em estado de Espírito errante (libertos do corpo), avaliamos de forma muito mais clara nossas imperfeições e, assim, escolhemos oportunidades, ainda que sofridas, para aprendermos e nos elevarmos. O Espiritismo, aliás, quando bem compreendido, favorece muito a que tomemos melhores escolhas, pois paramos apenas de desejar a expiação de erros passados, numa mecânica de pecado e castigo, e passamos a escolher oportunidades que nos levem mais a fundo a aprender e a desenvolver melhores hábitos, abafando as imperfeições que tenhamos transformado em hábitos.
Já abordamos um caso bem típico, extraído da Revista Espírita, que trata da questão das escolhas do Espírito quanto às suas provas, tratado por Kardec na evocação do assassino Lemaire, na edição de março de 1858.
Outro caso bastante interessante é o de Antônio B, que, tendo emparedado viva sua esposa na vida anterior, não sabendo lidar com essa culpa, planejou uma encarnação onde terminou enterrado vivo, após ser pensado morto. Acordou no caixão e lá dentro padeceu horrivelmente até sua morte, como se tivesse “pagado” aquela dívida com sua própria consciência. O que realmente interessa nesse caso é que, efetivamente, em vida, foi um homem probo e bom, e não precisaria desse fim trágico para “quitar” qualquer coisa.
Uma prova racional de que não existe tal “lei”: se um Espírito inferior praticar o mal contra um Espírito superior, o que ele receberá em troca? Nada além de compreensão e amor. O próprio exemplo do assassino Lemaire nos demonstra isso. Onde estaria então o retorno? Num outro Espírito que Deus designaria para sua “vingança”, para “cobrar uma dívida”, tornando-o, assim então, também um Espírito em débito para com a Lei?
Não, prezado irmão: não existe retorno senão na constatação, cedo ou tarde, por parte do próprio Espírito, de que ele não é feliz enquanto for imperfeito. Claro, precisamos também lembrar: o Espírito se encontra no meio em que se apraz, e atrai para si os Espíritos de mesma vibração. Portanto, poderá até se sentir alegre, mas jamais será feliz o Espírito que, por suas predisposições, só atrai para si Espíritos inferiores. Nisso também consiste uma espécie de castigo.
A razão explica, conduz e conforta
A maior característica do Espiritismo é ser uma Doutrina científica racional, cuja teoria nasceu da observação lógica dos fatos e dos ensinamentos dos Espíritos. Ora, em se tratando de Deus, qual seria a razão de ele nos punir com castigos, sendo que ele nos criou e sabe que nossos erros nascem de nossas imperfeições? Não há racionalidade nisso. É como se puníssemos nossas crianças por errarem contas de matemática ou por colocarem o dedo na tomada: em ambos os casos, a dor ou a sensação de ficar para trás é a punição em si mesma e, ao adicionarmos a isso uma punição adicional, estamos apenas condicionando o ser a não pensar e apenas a ter medo de errar — e, portanto, a ter o medo de tentar.
Falávamos da razão: pois é por ela, principalmente, que o Espiritismo nos conduz a melhores escolhas evolutivas. Ao entender profundamente a Doutrina, deixamos de fazer escolhas por conta de imposições ou expectativas externas, seja porque “Deus quer”, porque “Jesus espera”, ou porque “o diabo assombra”. Passamos a fazer melhores escolhas, com uma vontade mais ativa, quando entendemos que, quanto mais tempo dermos margem às nossas imperfeições ou à nossa materialidade, mais tempo demoraremos para sair dessa “roda de encarnações” dolorosas e embrutecidas.
Também esse entendimento é um grande remédio contra o suicídio: não mais o vemos com as concepções de pecado e castigo — que ainda são divulgados e defendidos até no meio espírita — mas, sim, com o entendimento racional: se sou Espírito inferior, cheio de imperfeições, significa que a vida é rica oportunidade de aprendizado. Encurtá-la por minha escolha, além de ser uma enorme oportunidade perdida, será apenas perda de tempo, pois me verei, em Espírito, imperfeito como sou, talvez de forma ainda mais escancarada, e terei que voltar e recomeçar uma nova existência para poder aprender e me livrar das imperfeições que me impossibilitam de me tornar mais feliz.
A expiação explicada à luz da Doutrina Espírita
Define assim Kardec, em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, de 1858:
EXPIAÇÃO — pena que sofrem os Espíritos em punição de faltas cometidas durante a vida corpórea. Como sofrimento moral, a expiação se verifica no estado errante; como sofrimento físico, no estado de encarnado. As vicissitudes e os tormentos da vida corpórea são, ao mesmo tempo, provas para o futuro e expiação para o passado.
Parece, por esse texto, que Kardec então defendia que, sim, pagamos na vida atual pelos erros passados? Não exatamente. Não podemos esquecer que, para a Doutrina Espírita, a autonomia, ou o Espírito como ator central de tudo, é a peça-chave de tudo. Portanto, mesmo no caso da expiação, é algo que consiste na escolha do próprio Espírito, com o intuito de buscar superar uma imperfeição adquirida:
A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Editora FEAL, 2021.
E, para bem entender o uso dos termos castigo e punição, por Allan Kardec, é necessário entender o contexto filosófico do Espiritualismo Racional, no qual ele estava inserido. Já falamos sobre isso no artigo “Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec“.
Contudo, bem sabemos que “os tempos são chegados” e que o planeta Terra deixará, lentamente, de ser um planeta de provas e expiações para ser um mundo de regeneração, onde deverá haver encarnações um pouco mais felizes do que as atuais. Usemos, um momento, a razão para avaliar tudo isso que temos exposto até aqui:
Se a Doutrina Espírita, nos ensinando a moral autônoma, nos traça melhores rumos e melhores escolhas, pensemos: o que ensina mais ao indivíduo? Um sofrimento de mesmo gênero e mesmo grau, como no caso de Antônio B, acima, ou, entendendo as imperfeições que nos levaram a praticar o mal, em primeiro lugar, uma vida cheia de oportunidades, muitas vezes bastante desafiadores e trabalhosas, de exercitarmos o aprendizado e a prática do bem?
Entende onde estamos chegando? Tudo, absolutamente tudo, depende de nossas escolhas frente à nossa capacidade de entendimento consciente de nós mesmos, e, nisso, o estudo do Espiritismo nos alavanca em vários degraus.
É por isso que o mundo vai deixar de ser um mundo de provas e expiações: porque os Espíritos que aqui encarnam passarão a escolher melhor suas encarnações, deixando de aplicar a si mesmos a lei de talião (olho por olho, dente por dente) para, então, cuidarem de desenvolver hábitos morais mais saudáveis. Até nisso contatamos que tudo parte do indivíduo para fora, e não o contrário.
Conclusão
Portanto, irmãos, avante: estudemos o Espiritismo de forma aprofundada e, hoje sabendo das adulterações em O Céu e o Inferno e A Gênese, estudemos as versões originais (já disponibilizadas pela FEAL) de modo a não mais perdermos tempo com conceitos heterônomos e, sobretudo, de modo a não mais repetirmos, no meio Espírita, as lastimáveis afirmações como aquelas que dizem que “fulano nasceu com problemas mentais porque está pagando por um erro na vida passada”. Isso, além de ser um erro absurdo, afasta as pessoas do Espiritismo.
Veja um exemplo:
Pasmemos: essa frase não é de Kardec. Nem parece ser sua, nem pode ser encontrada em NENHUMA de suas obras. Essa é uma prova a mais do quanto o Espiritismo foi invadido por falsas ideias, quase sempre antidoutrinárias.
Nossas provas são ricas oportunidades, quase sempre escolhidas por nós mesmos, sendo impostas apenas nos casos em que não temos condições conscienciais para tais escolhas e, mesmo assim, se dão por ação de benevolência de Espíritos superiores, e não como castigo divino.
A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. (O céu e o inferno).
O maior castigo que há está em continuarmos por eras incontáveis nos arrastando na lama de nossas imperfeições. Isso já é o bastante.
Nota: o nome do artigo vem do texto de mesmo título, que serviu de inspiração a este, do livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.
Sugestões de estudos
Sugerimos ao leitor os seguintes conteúdos complementares:
- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo.
- Artigo “A verdadeira lei que rege a nossa vida!“, de Paulo Henrique de Figueiredo
- Artigo “Para o espiritismo não existe carma nem causa e efeito“, de Paulo Henrique de Figueiredo
- O Céu e o Inferno, de Allan Kardec (procure pelas publicações recentes da FEAL, baseadas na primeira edição francesa)
- Canal Espiritismo para Todos