Nosso Lar e a Doutrina Espírita

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Como pode Nosso Lar? Como seria possível, frente ao conhecimento doutrinário trazidos à luz com tanto cuidado, com metodologia adequada, colhido sobre o estudo de uma multidão de Espíritos, de todos os graus evolutivos, a se comunicarem por toda a parte? Não faz sentido.

Segundo diz o Espírito de André Luiz, o próprio Governador da “cidade astral” assevera:

Somos, em “Nosso Lar”, mais de um milhão de criaturas devotadas aos desígnios superiores e ao melhoramento moral de nós mesmos.

Como conciliar, porém, a ideia de milhões de “criaturas”, devotadas aos desígnios superiores, mas ainda tão absurdamente apegadas ao materialismo terrestre? Não faz sentido. Não objetamos a ideia de que os Espíritos inferiores, apegados ao materialismo, ao deixarem o corpo, mantenham-se apegados a falsas necessidades e a falsas ideias da personalidade terrestre. Na verdade, isso está fartamente demonstrado pela Doutrina Espírita. Aqui, porém — em tese — falamos de Espíritos devotados os desígnios superiores.

Pergunto: como podemos admitir uma organização hierárquica de Espíritos supostamente superiores devotando-se à sistematização e ao cultivo das falsas ideias? Bônus-hora? Afinal, a Doutrina Espírita não nos ensina que a caridade é um dever moral, que se pratica sem aguardar retorno? Em Nosso Lar, pelo que conta André Luiz, o Espírito de Narcisa trabalhava por obrigação, para conquistar o direito de reencarnar:

Preciso encontrar alguns espíritos amados, na Terra, para serviços de elevação em conjunto. Por muito
tempo, em razão de meus desvios passados, roguei, em vão, a possibilidade necessária aos meus fins. Vivia perturbada, aflita. Aconselharam-me, porém, recorrer à Ministra Veneranda, e nossa benfeitora da Regeneração
prometeu que endossaria meus propósitos no Ministério do Auxílio, mas exigiu dez anos consecutivos de trabalho aqui, para que eu possa corrigir certos desequilíbrios do sentimento. No primeiro instante, quis recusar, considerando demasiada a exigência; depois, reconheci que ela estava com a razão. Afinal, o conselho não visava interesses dela e sim o meu próprio benefício. E ganhei muito aceitando-lhe o parecer . Sinto-me mais equilibrada e mais humana e creio viverei com dignidade espiritual minha futura experiência na Terra.

Ora, além de um Espírito superior se interpondo ao livre-arbítrio desse Espírito, exigiu, contra a vontade deste, o cumprimento de uma “sentença”, para que depois ela pudesse reencarnar. Fico me perguntando onde estaria Nosso Lar ou qualquer outra colônia espiritual, que não se interpôs à escolha de Espíritos como o do Assassino Lemaire (Revista Espírita, março de 1858) que julgou ser forte o suficiente para se desafiar em um gênero de provas ante à qual sucumbiu. E quanto ao Espírito de Charles Dupont (O Espírito de Castelnaudary, RE60), que, tendo vivido anteriormente entre selvagens, em outro mundo, escolheu encarnar na Terra, onde, sem ter domínio ainda sobre seus instintos e suas emoções, acabou por matar seu irmão e sua esposa?

Não, não é possível. Nosso Lar, com suas grandes muralhas, reproduz fielmente as falsas ideias terrenas, onde os não “eleitos” são mantidos para fora dos muros. Nosso Lar, com sua plêiade de milhões de Espíritos “devotados aos desígnios superiores”, seria o retrato do egoísmo distraído pelo materialismo pujante.

Quanta diferença com as comunicações frequentemente apresentadas por Kardec de Espíritos superiores! Não há apego à materialidade em suas descrições: suas ocupações são trabalhar pelo Espaço infinito, atuando na Criação:

O que são os vossos palácios e os vossos salões dourados ante as moradas aéreas, o vasto campo do espaço matizado de cores que fariam empalidecer o arco-íris? Que são os vossos passeios passo a passo nos parques, ante a viagens através da imensidão, mais rápidas do que o relâmpago? O que são os vossos horizontes limitados e carregados de nuvens, ante o grandioso espetáculo dos mundos a se moverem no universo sem limites, sob a poderosa mão do Altíssimo?

Como os vossos concertos mais melodiosos são tristes e ruidosos, ante esta harmonia que faz vibrar os fluidos do éter e todas as fibras da alma? Como as vossas grandes alegrias são tristes e insípidas ante a inefável sensação de felicidade que incessantemente satura o nosso ser à maneira de um eflúvio benfazejo, sem nenhuma mescla de inquietação, nenhuma preocupação, nenhum sofrimento! Aqui tudo respira amor e confiança e sinceridade. Por toda parte corações amantes, por toda parte vemos amigos, nada de invejosos e ciumentos. Esse é o mundo em que me encontro, meu amigo, e todos vós o atingireis infalivelmente seguindo o caminho certo.

Entretanto, uma felicidade uniforme logo aborreceria. Não penses que a nossa felicidade esteja livre de vicissitudes. Não se trata de um concerto perpétuo, nem de uma festa sem fim, nem de beatífica contemplação através da eternidade. Não. É o movimento, a vida, a atividade. As ocupações, embora isentas de fadigas, apresentam incessante variedade de aspectos e de emoções, pelos mil incidentes que as continham. Cada qual tem a sua missão a cumprir, seus protegidos a assistir, amigos da Terra a visitar, processos da Natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar. Há um vaivém, não de uma rua para outra, mas de um mundo para outro. As criaturas se reúnem, se separam para novamente se juntarem; encontram-se aqui e ali, conversam sobre o que fazem, felicitam-se pelos sucessos obtidos; entendem-se, assistem-se mutuamente nos casos difíceis. Enfim, asseguro-te que ninguém dispõe de um segundo de tempo para se enfadar.

Espírito de Condessa Paula, O Céu e o Inferno

Basta a leitura atenta para perceber que esse Espírito usa figurativamente o termo “moradas aéreas”. Que beleza, que cenário completamente diferente daquele mundo de apego material e falsas necessidades fisiológicas apresentados por André Luiz em sua primeira obra, cuja disparidade lógica com a Doutrina e o bom-senso não podemos explicar até que a metodologia de Kardec, com o uso das evocações, seja recuperada.

Pela mudança de mentalidade, deixaremos o apego ao materialismo para sermos úteis, atuando, conforme nossas possibilidades, no Bem, na Criação Divina. Podemos aprender e ensinar, sempre. Desapegados, no mundo dos Espíritos, não nos ligamos a coisas, nem a formas. Basta-nos a própria criação divina universal: os Universos a percorrer, os processos da Natureza a participar, os planetas a visitar, as almas a socorrer e as com quem aprender. Mas a ideia de Nosso Lar é de um local em que precisamos trabalhar para ganhar “dinheiro espiritual” para, então, podermos comprar uma casinha, onde poderemos ter “utilidades”, como uma cama confortável, uma bonita mesa com cadeiras de mogno espiritual, onde poderemos nos sentar confortavelmente para tomar uma sopinha fluídica (sic). Desculpem o sarcasmo.

Tal como se dá na Terra, a propriedade aqui é relativa. Nossas aquisições são feitas à base de horas de trabalho. O bônus-hora, no fundo, é o nosso dinheiro. Quaisquer utilidades são adquiridas com esses cupons, obtidos por nós mesmos, a custa de esforço e dedicação.

Nosso Lar

Ora, para que uma moradia, se o Espaço infinito nos serve de Lar? Para que uma casa, se o Espírito não sente nenhuma necessidade material? Para que proteção, se não sente medo, nem dor? Para que sopinha ou água, se o Espírito não sente sede? Pra quê “aeróbus“, oh, meu Deus, se o Espírito se transporta pelo pensamento — mesmo os menos elevados?

Não, os Espíritos não precisam de nada disso, e apenas os Espíritos ainda muito perturbados, muito apegados às ideias terrenas, confundem-se ao corpo que deixaram e creem necessitar de descanso, repasto, proteção, etc.

39. Poderíeis dizer-nos quais são as vossas ocupações?

– R. Tenho-as como vós; trato primeiro de me instruir e, por isso, misturo-me às sociedades melhores do que eu; como lazer faço o bem, e minha vida se passa na esperança de alcançar maior felicidade. Não temos nenhuma necessidade material a satisfazer e, por conseguinte, toda a nossa atividade se dirige para o nosso progresso moral.

Espírito da Sra Reynaud, RE59

Há sensações que têm por fonte o próprio estado dos nossos órgãos. Ora, as necessidades inerentes ao corpo não se podem verificar desde que não exista mais corpo. Assim, pois, o Espírito não experimenta fadiga, nem necessidade de repouso ou de alimentação, porque não tem nenhuma perda a reparar. Ele não é acometido por nenhuma de nossas enfermidades. As necessidades do corpo determinam necessidades sociais, que para eles não existem. Assim não mais existem as preocupações dos negócios, as discórdias, as mil e umas tribulações do mundo e os tormentos a que nos entregamos para suprirmos as nossas necessidades ou as superfluidades da vida. Eles têm pena do esforço que fazemos por causa de futilidades. Entretanto, quanto mais felizes são os Espíritos elevados, tanto mais sofrem os inferiores, mas esses sofrimentos se constituem principalmente de angústias que embora nada tenham de físico, nem por isso são menos pungentes.

KARDEC, ibidem.

O caso aqui não é de acusar Chico de falta de cuidado. Chico era a ferramenta de comunicação, como um lápis na mão de um escritor. Não, haveríamos de ter questionado o Espírito que se comunicava, de posse do conhecimento de todos os problemas e todos os cuidados que giram ao redor da mediunidade e da comunicação dos Espíritos. Não foi o que fizemos: simplesmente aceitando, colocando na conta de Chico Xavier o peso da responsabilidade por comunicações que nós deveríamos ter avaliado.

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