Deus e o Diabo — a origem do bem e do mal

FONTE DO BEM E DO MAL
Extraído de A Gênese, 4.ª edição, FEAL — Allan Kardec

1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e, sendo esse princípio todo sabedoria, todo
bondade e todo justiça, tudo o que provém dele deve compartilhar esses atributos, pois o
que é infinitamente sábio, justo e bom não pode produzir nada irracional, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter originado dele.

2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, seja ele chamado Ahriman, seja Satã, de duas, uma: ou ele seria igual a Deus e, por consequência, também poderoso e eterno, ou seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, lutando sem cessar, cada uma procurando desfazer o que o outro está fazendo, opondo-se mutuamente. Essa hipótese é inconciliável com a harmonia que se revela, na ordem do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, esse ser estaria subordinado a ele. Não podendo ser eterno como ele sem ser seu igual; só poderia ter sido criado por Deus. Se foi criado, só poderia ter sido por Deus. Nesse caso, Deus teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação de sua infinita bondade.

3. Conforme certa doutrina, o Espírito do mal, criado bom, teria se tornado mau, e Deus,
para puni-lo, teria o condenado a permanecer eternamente mau, dando-lhe a missão de
seduzir os homens para lhes induzir ao mal. Ora, podendo uma única queda((A queda, para as religiões dogmáticas representa um evento no qual o homem, em sua origem, cometendo falta grave contra Deus, perdendo sua santidade, justiça e sabedoria originais, caindo por castigo na condição presente: com sofrimento, ignorância, arrastamento ao pecado e morte. Ou seja, haveria degradação da alma. A Doutrina Espírita, fundada no conceito de evolução da alma desde simples e ignorante por seu esforço, estabelece por essa sólida lógica sua teoria. (N. do E.))) custar-lhes os mais cruéis castigos pela eternidade, sem esperança de perdão, nisso não haveria só uma falta de bondade. Porém, uma crueldade premeditada, porque, para tornar a sedução mais fácil e melhor ocultar a armadilha, Satã estaria autorizado a se transformar em anjo de luz e a simular as obras próprias de Deus, até o ponto de enganar. Assim, haveria mais iniquidade e imprevidência da parte de Deus, porque dando toda a liberdade para Satã emergir das trevas e se entregar aos prazeres mundanos para arrastar os homens, o provocador do mal seria menos punido que as vítimas de suas artimanhas, pois estas, caindo por fraqueza, uma vez no abismo, não mais podem sair. Deus lhes recusa um copo de água para saciar sua sede e, durante toda a eternidade, com os anjos, ouve seus gemidos, sem se deixar comover, ao mesmo tempo que permite a Satã todo o prazer que desejar.

De todas as doutrinas sobre a teoria do mal, esta é, sem dúvida, a mais irracional e a
mais ofensiva para com a divindade. (Ver O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo.
Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.)

4. Entretanto, o mal existe e possui uma causa.

Há várias classes de mal((Na época de Allan Kardec, a Filosofia ensinada na universidade, na escola normal (atual magistério) e nos colégios era o Espiritualismo racional. Na disciplina de moral teórica (uma das Ciências Filosóficas), ensinava-se a diferença entre o mal físico e o moral, para demonstrar uma revolucionária teoria fundamentada na liberdade pessoal, contrária ao dogma da queda e do castigo divino das religiões ancestrais e da coação externa, pelo materialismo: “O mal físico consiste em dor, doença, morte. São consequências inevitáveis da organização dos seres sencientes, estimulante essencial para sua atividade. O mal moral é a condição fundamental da liberdade. Sem o mal, o bem não é possível no mundo, pois, se o homem não pudesse errar, não estaria livre nem seria capaz de fazer o bem. Essa vida é uma época de provação e, sem o mal físico e moral, não há lugar para coragem, paciência, dedicação e demais virtudes”. (Le Mansois-Duprey. Cours de Philosophie Élémentaire em L’école normale: journal de l’enseignement pratique. v. 13. Paris: Larousse et Boyer, 1864. p. 235.) A teoria moral espírita foi um desenvolvimento do Espiritualismo racional: “O Espiritismo repousa, pois, sobre princípios gerais independentes de todas as questões dogmáticas. Ele tem, é verdade, consequências morais como todas as Ciências Filosóficas”. (Revista Espírita, 1859.). (N. do E.))). Em primeiro lugar há o mal físico e o mal moral. Também podemos classificar os males entre aqueles que o homem pode evitar e os que são independentes de sua vontade. Entre estes últimos, é preciso incluir os flagelos naturais.

O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode compreender todos nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista de sua personalidade, dos interesses e das convenções artificiais que criou para si mesmo, não pertencentes à ordem da natureza. É por isso que, em geral, lhe parece prejudicial e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se conhecesse sua causa, seu objetivo e o resultado definitivo. Ao investigar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo tem a marca da sabedoria infinita e se curvará ante a essa sabedoria, mesmo em relação a coisas que não compreenda.

5. O homem recebeu uma inteligência por meio da qual ele pode afastar, ou ao menos
diminuir bastante os efeitos dos flagelos naturais. Quanto mais conhecimento adquire e
avança na civilização, menos essas calamidades são desastrosas. Com sábia organização
social, poderá até mesmo neutralizar seus efeitos, quando não puderem ser totalmente
evitadas. Dessa forma, para os mesmos flagelos que são úteis na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que nos atacam no presente, Deus deu ao homem, com as faculdades com as quais dotou seu Espírito, os meios para paralisar seus efeitos.

Assim, o homem limpa regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestilentos, fertiliza
terras não cultivadas, preserva-as de inundações; constroem-se casas mais saudáveis, mais fortes para suportar os ventos, tão necessários para a purificação da atmosfera, e se protege do clima. É assim, finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade o fez criar as Ciências, com a ajuda das quais ele melhora as condições de habitabilidade do globo e amplia o conjunto de seu bem-estar.

Como o homem deve progredir, os males aos quais está exposto constituem um incentivo para o exercício de sua inteligência e de todas as suas faculdades físicas e morais, convidando-o à pesquisa dos meios para evitá-los. Se ele nada tivesse a temer, nenhuma
necessidade o levaria à busca do melhor; ele se entorpeceria na inatividade de sua mente; não inventaria nem descobriria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem a seguir adiante, no caminho do progresso.

6. Mas os males mais numerosos são aqueles que o homem cria pelos próprios vícios;
provenientes de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua ganância, de seus
excessos em todas as coisas. Essa é a causa das guerras e calamidades que causam
desavenças, injustiças, a opressão do fraco pelo forte e, finalmente, a maioria das doenças.

Deus estabeleceu leis cheias de sabedoria, cujo objetivo é o bem. O homem encontra
em si mesmo tudo o que é necessário para segui-las. Seu caminho é traçado por sua
consciência, e a lei divina está gravada em seu coração. Além do mais, Deus o recorda,
constantemente, por seus messias e profetas, por todos os Espíritos encarnados que
receberam missão de esclarecer, moralizar e contribuir para seu aperfeiçoamento, assim
como, nesses últimos tempos, pela multidão de Espíritos desencarnados que se manifestam por todos os lados. Se os homens se conformarem rigorosamente com as leis divinas, não há dúvida de que evitariam os males mais graves, vivendo felizes na Terra. Se não o faz, é em virtude de seu livre-arbítrio, e deve aceitar as consequências.

7. Mas, Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal; quer dizer, do próprio mal faz nascer o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e faz o homem sentir a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, sente-se obrigado a procurar no bem o remédio que precisa, sempre em virtude de livrearbítrio. Quando toma um caminho melhor, é por sua vontade e porque reconheceu as desvantagens da outra estrada. A necessidade o compele a melhorar moralmente para ser mais feliz, pois essa mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais de sua existência.

Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. O mal
não é mais um atributo distinto, assim como o frio não é um fluido especial; um é a
negação do outro. Onde o bem não existe, há necessariamente o mal. Não fazer o mal já é o começo do bem. Deus só quer o bem, o mal somente vem do homem. Se houvesse na Criação um ser encarregado do mal, o homem não poderia evitá-lo. Contudo, tendo a causa do mal em si mesmo e, ao mesmo tempo, tendo seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, ele o evitará quando desejar.

Tomemos um fato comum, por comparação: um proprietário sabe que, na extremidade
de sua terra, há um local perigoso, no qual pode se ferir ou morrer. O que faz para evitar
acidentes? Coloca, próximo do lugar, um aviso para se afastar, por causa do perigo. Essa é a lei; ela é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente ignora o aviso e sofre um acidente, quem poderia ser responsabilizado, senão ele próprio?

Assim acontece em relação ao mal. O homem o evitaria se observasse as leis divinas.
Deus, por exemplo, colocou um limite para a satisfação das necessidades; o homem é
avisado pela saciedade; se ele ultrapassa esse limite, age voluntariamente. As doenças, as fraquezas do corpo, a morte que podem resultar disso são obra sua, e não de Deus.

8. Sendo o mal resultado das imperfeições do homem, e o homem criado por Deus, dirão, que se ele não criou o mal, pelo menos teria criado a causa dele. Se tivesse criado o homem perfeito, o mal não existiria.

Se o homem tivesse sido criado perfeito, estaria fatalmente inclinado ao bem. Agora,
em virtude de seu livre-arbítrio, não tende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Deus quis que ele fosse submetido à lei do progresso, e que esse progresso fosse fruto do próprio trabalho, a fim de que o mérito fosse seu, mesmo tendo a responsabilidade pelo mal que pratica por sua vontade. A questão, portanto, está em saber qual é, no homem, a origem da sua propensão ao mal((O erro consiste em pretender que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando ele, ao contrário, quis que a perfeição fosse o resultado do refinamento gradual do espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude de seu livre-arbítrio, pudesse escolher entre o bem e o mal, chegando aos seus derradeiros fins por uma vida dedicada e pela resistência ao mal. Se tivesse criado a alma com uma perfeição à sua semelhança – e que, saindo de suas mãos, ele a tivesse ligado à sua beatitude eterna –, Deus a teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio, como já dito. Conhecedora de todas as coisas em razão de sua essência e sem ter aprendido nada, mas movida por um sentimento de orgulho nascido da consciência de seus atributos divinos, a alma seria induzida a renegar sua origem, a desconhecer o autor de sua existência, ficando em estado de rebelião contra seu Criador. (Bonnamy, juiz de instrução. A razão do Espiritismo, capítulo VI.) (Nota de Allan Kardec.))).

9. Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos((Na teoria moral espírita, o livre-arbítrio surge após o desenvolvimento da inteligência racional. Desse modo, a responsabilidade moral só aí se inicia e se amplia gradualmente, na proporção direta do desenvolvimento racional. Nos animais e nos seres ainda simples e ignorantes, não surgiu o livre-arbítrio, o senso moral e a responsabilidade pelos seus atos. Esses conceitos psicológicos afastam completamente os dogmas do pecado original, da queda e da encarnação como castigo. Também são falsas as hipóteses científicas do egoísmo e do sentimento antissocial inatos em todos os indivíduos. Traz alento, pois quanto maior a inteligência, maior a responsabilidade. Por fim, para uma evolução moral plena da humanidade é necessário garantir para todos os indivíduos a oportunidade do desenvolvimento racional pela educação. (N. do E.))).

10. O destino do Espírito é a vida espiritual. Mas, nas primeiras fases de sua existência
corporal, ele só possui necessidades materiais para satisfazer. Com essa finalidade, o
exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente falando. Porém, saindo desse período, possui outras necessidades, a princípio semimorais e semimateriais, e depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria. Na medida em que se liberta de seu jugo, avança pela vida adequada e se aproxima de seu destino final. Se, ao contrário, deixar-se dominar pela matéria, se atrasa e se identifica com os irracionais. Nessa situação, o que antes era um bem, por ser uma necessidade da sua natureza, torna-se um mal, não só por não ser mais uma necessidade, mas porque se torna nocivo para a espiritualização do ser. Por isso, o mal é relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de adiantamento.

Todas as paixões têm sua utilidade providencial, sem o que Deus teria feito algo inútil
e nocivo. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa, conforme seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo próprio interesse, ele escolhe, livremente, entre o bem e o mal




Ação do Espírito sobre a matéria

Postulado. A teoria de Mesmer e a Doutrina Espírita afirmam que os Espíritos agem sobre a matéria apenas através do pensamento e da vontade:

Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade, que são para o Espírito o que a mão é para o homem.

(KARDEC, [1868] 2018, P. 290)

Para Mesmer, não existem fluidos, como a ciência de sua época postulava, como os fluidos calórico, elétrico, magnético, vital, etc. Sua teoria concebia o Fluido Cósmico Universal, de onde toda a matéria seria formada e que, portanto, preenche a tudo, como se fôssemos peixes, mergulhados no oceano((FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal. FEAL, 2022)). Os diferentes estados da matéria estariam ligados a um diferente estado de onda, o que é comprovado pela física moderna. Assim, para um Espírito agir sobre a matéria fluídica, ele não age com suas mãos ou com força física, mas através de sua vontade. É assim que um Espírito pode, pelo seu perispírito, aparecer de diferentes formas, moldando-o como quiser. Contudo, ele somente pode agir sobre a matéria fluídica. Para agir sobre a matéria mais densa, é necessário algo a mais: ou um corpo, no qual se encarne, ou um corpo cujo controle é momentaneamente cedido por outro Espírito encarnado, ou, simplesmente, o auxílio de um encarnado, lúcido e por sua própria vontade.

É por esse princípio que um Espírito, como ficou comprovado nas experiências à época de Kardec, NÃO PODE se fazer visível, materialmente, muito menos tangível, sem a existência de um médium especial, que lhe forneça o “ectoplasma”, que seria uma espécie de fluido espiritual mais animalizado. Não fosse assim — o que está determinado pelas leis da Natureza, ou Leis Divinas — bastaria um Espírito, que queira fazer o mal, tomar uma faca ou uma pistola e cometer um crime qualquer. Ele pode, contudo, inspirar alguém a fazê-lo, sendo que essa pessoa, ao aceitar a sugestão, tem sua própria responsabilidade.

Espíritos agem sobre os fenômenos da Natureza?

De início, vamos encontrar algo que parece incongruente com tudo o que foi dito até aqui. Deixo claro que, neste tópico, estou me apoiando naquilo que nasceu do meu entendimento, e não totalmente em postulados do Espiritismo.

Primeiramente temos a questão nº 537 de O Livro dos Espíritos:

537. A mitologia dos antigos se fundava inteiramente em ideias espíritas, com a única diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir ao fenômeno da vegetação, etc. Semelhante crença é destituída de fundamento?

“Tão pouco destituída é de fundamento, que ainda está muito aquém da verdade.”

Então os Espíritos estão dizendo que existem aqueles que governam os fenômenos da Natureza? Parece que sim. Mas, em primeiro lugar, fomos ensinados, por Kardec, a nada aceitar sem passar pelo crivo da razão. Ora, conhecemos hoje as forças da natureza que fazem surgirem as tempestades. Conhecemos a ação da temperatura sobre os ventos, a razão da formação das nuvens que geram as precipitações e até mesmo a razão da descarga elétrica pelos raios. São fenômenos tão predizíveis que já existem modelos matemáticos computacionais que conseguem predizer, com grande taxa de acerto, quando e quanto vai chover, e com algumas semanas de antecedência.

Então, por que é que haveria de existirem Espíritos comandando algo previsível e que obedece às Leis da Natureza?

Prossigamos para a questão 538:

538. Formam categoria especial no mundo espírita os Espíritos que presidem aos fenômenos da natureza? Serão seres à parte, ou Espíritos que foram encarnados como nós?

“Que foram ou que o serão.”

a) – Pertencem esses Espíritos às ordens superiores ou às inferiores da hierarquia espírita?

“Isso é conforme seja mais ou menos material, mais ou menos inteligente o papel que desempenhem. Uns mandam, outros executam. Os que executam coisas materiais são sempre de ordem inferior, assim entre os Espíritos, como entre os homens.”

Assim, fica entendido que os Espíritos mais elevados não interagiriam diretamente sobre os elementos, mas deixam isso para os Espíritos menos desenvolvidos — o que é racional, afinal isso se torna um exercício de aprendizado para esses também. Segue Kardec, com grifos meus:

539. A produção de certos fenômenos, das tempestades, por exemplo, é obra de um só Espírito, ou muitos se reúnem, formando grandes massas, para produzi-los?

“Reúnem-se em massas inumeráveis.”

540. Os Espíritos que exercem ação nos fenômenos da natureza operam com conhecimento de causa, usando do livre-arbítrio, ou por efeito de instintivo ou irrefletido impulso?

“Uns sim, outros não. Estabeleçamos uma comparação. Considera essas miríades de animais que, pouco a pouco, fazem emergir do mar ilhas e arquipélagos. Julgas que não há aí um fim providencial e que essa transformação da superfície do globo não seja necessária à harmonia geral? Entretanto, são animais de ínfima ordem que executam essas obras, provendo às suas necessidades e sem suspeitarem de que são instrumentos de Deus. Pois, bem: do mesmo modo, os Espíritos mais atrasados oferecem utilidade ao conjunto. Enquanto se ensaiam para a vida, antes que tenham plena consciência de seus atos e estejam no gozo do livre-arbítrio, atuam em certos fenômenos, de que inconscientemente se constituem os agentes. Primeiramente, executam. Mais tarde, quando suas inteligências já houverem alcançado um certo desenvolvimento, ordenarão e dirigirão as coisas do mundo material. Depois, poderão dirigir as do mundo moral. É assim que tudo serve, que tudo se encadeia na natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou pelo átomo. Admirável lei de harmonia, que o vosso acanhado espírito ainda não pode apreender em seu conjunto!”

Aqui chegamos a algo muito importante. Na resposta à questão n.º 539, fica esclarecido que os Espíritos a agir sobre tais fenômenos agem reunidos em massas. Não é um Espírito, então, que interage sobre esses fenômenos. Sendo que são massas de Espíritos, na questão n.º 540 Kardec busca entender se essas massas são inteligentes e racionais, agindo por sua vontade, ou não.

Observemos, primeiramente, algo importante: o Espírito não utiliza as tempestades para exemplificar sua resposta, mas usa o exemplo de uma ilha que pode ser formada pela ação de infinitos minúsculos animais, com a ação do tempo, como se dá com os corais. Na pergunta n.º 537, é Kardec quem dá vários exemplos das possibilidades de ação espiritual, incluindo, dentre elas, os ventos, os raios e os fenômenos da vegetação. A resposta do Espírito, limitada por diversas questões, sendo a primeira dela o compromisso de não revelar ao homem aquilo que ele mesmo deve concluir, pela ciência, foi respondida de forma genérica, e se encaixa bem com os fenômenos da última classe.

A resposta à questão n.º 540 demonstra que os seres inferiores (do ponto de vista evolutivo) obedecem às leis da natureza, isto é, ao instinto, de forma cega, mas que, ao fazer assim, atendem a um propósito maior. Esse propósito maior não se cumpre por milagres ou trancos, mas sim através das leis da Natureza, que são as leis de Deus, que visam a harmonia geral. Isso quer dizer que não são Espíritos de qualquer classe que provocam um desastre natural, mas a consequência, justamente, da Natureza. Um desastre pode se dar, por exemplo, pela ação de bactérias que, lentamente, corroam o ferro de uma ponte que, em certo momento, cai, ou pela ação de fungos que atuem de certa forma em um solo de região montanhosa que, saturado então pela chuva, se torne encharcado e deslize sobre toda uma cidade.

E aqui chegamos a um ponto importante: os seres vivos mais simples, desde a célula, o vírus e a bactéria, também tem um princípio espiritual. Estaria explicado, portanto, os Espíritos reunidos em “massas inumeráveis”, governadas pela Natureza, que fazem a harmonia que nosso “acanhado espírito ainda não pode apreender em seu conjunto”.

Então, quando se diz que os Espíritos presidem sobre os fenômenos da Natureza, o que está sendo dito é que existem os Espíritos mais elevados, que, pela sua influência, governam os menos elevados, ligados diretamente à matéria.

Pode um Espírito agir diretamente sobre a matéria?

Creio que a questão ficou bem esclarecida, mas, para reforçar o conceito, vamos recorrer novamente a O Livro dos Espíritos. Nas três questões seguintes e em suas respostas, está muito claro o princípio de que os Espíritos não podem agir diretamente sobre a matéria:

526. Tendo, como têm, ação sobre a matéria, podem os Espíritos provocar certos efeitos, com o objetivo de que se dê um acontecimento? Por exemplo: um homem tem que morrer; sobe uma escada, a escada se quebra e ele morre da queda. Foram os Espíritos que quebraram a escada, para que o destino daquele homem se cumprisse?

“É exato que os Espíritos têm ação sobre a matéria, mas para cumprimento das leis da natureza, não para as derrogar, fazendo que, em dado momento, ocorra um sucesso inesperado e em contrário àquelas leis. No exemplo que figuraste, a escada se quebrou porque se achava podre, ou por não ser bastante forte para suportar o peso de um homem. Se era destino daquele homem perecer de tal maneira, os Espíritos lhe inspirariam a ideia de subir a escada em questão, que teria de quebrar-se com o seu peso, resultando-lhe daí a morte por um efeito natural e sem que para isso fosse mister a produção de um milagre.”

527. Tomemos outro exemplo, em que não entre a matéria em seu estado natural. Um homem tem que morrer fulminado pelo raio. Refugia-se debaixo de uma árvore. Estala o raio e o mata. Poderá dar-se tenham sido os Espíritos que provocaram o raio, dirigindo-o para o homem?

“Dá-se o mesmo que anteriormente. O raio caiu sobre aquela árvore em tal momento porque estava nas leis da natureza que assim acontecesse. Não foi encaminhado para a árvore por se achar debaixo dela o homem. A este, sim, foi inspirada a ideia de se abrigar debaixo de uma árvore sobre a qual cairia o raio, porquanto a árvore não deixaria de ser atingida, só por não lhe estar debaixo da fronde o homem.”

528. No caso de uma pessoa mal intencionada disparar sobre outra um projétil que apenas lhe passe perto sem a atingir, poderá ter sucedido que um Espírito bondoso haja desviado o projétil?

“Se o indivíduo alvejado não tem que perecer desse modo, o Espírito bondoso lhe inspirará a ideia de se desviar, ou então poderá ofuscar o que empunha a arma, de sorte a fazê-lo apontar mal, porquanto, uma vez disparada a arma, o projétil segue a linha que tem de percorrer.”

Os Espíritos não derrogam as Leis da Natureza por um princípio moral, mas simplesmente porque essas Leis são naturais e se cumprem tanto quanto se cumpre que, sobre a superfície de um corpo celeste qualquer, ao soltar um objeto, ele vai cair, por conta da lei da gravidade, com uma velocidade que dependerá da massa desse corpo (planeta, estrela, etc.).

Conclusões

A digressão realizada até aqui serviu para dar um maior embasamento a outro artigo de minha autoria, “Magia negra, feitiços, banhos de sal grosso e ervas, amuletos, wicca: tudo isso existe?” (clique aqui para ler). A magia, como muitos imaginam, não existe. Caso contrário, estaríamos sujeitos a sermos atingidos, contra a nossa vontade, e não importa o quão no bem estejamos, por um feitiço qualquer. Podemos, é claro, ser atingidos por meios materiais, pela ação da vontade de indivíduo, secundado ou não por Espíritos encarnados. Mas, por meios não materiais, o máximo possível é que um Espírito interaja sobre a matéria fluídica, que, para se identificar com a nossa, depende exclusivamente da nossa permissão ostensiva ou da nossa impotência em combatê-la, por não termos subsídios morais para tanto.

E você, o que achou de todo esse pensamento desenvolvido aqui? Deixe seu comentário abaixo!




O Espírito retrograda ou “involui”?

Não, o Espírito nunca retrograda. Avança sempre, às vezes para, mas nunca volta para trás. Se volta na aparência, como no caso em que não se encaixa mais na evolução moral de uma população e vai encarnar em outra civilização mais atrasada, é porque ainda não avançou moralmente, em verdade.

Deus nos cria simples e ignorantes. Durante os primeiros passos da nossa evolução, não temos consciência, mas apenas instinto, que é da Lei de Deus e, portanto, é o bem, por definição. O leão que mata a zebra não comete o mal, mas o bem, pois está atendendo ao instinto.

Mais à frente, quando adentramos o reino da consciência, conquistamos o livre-arbítrio, isto é, a capacidade da escolha. Com ela, passamos a TENTAR e, da tentativa, nascem os erros e acertos. Aquele erra tentando, não está fazendo o mal, mas o bem, pois está seguindo conforme as leis de Deus. O mal consiste apenas quando o indivíduo passa a errar por vontade, cultivando, assim, imperfeições. Ao criar uma imperfeição, o Espírito passará a sofrer por conta dela, por mais ou menos tempo, até que perceba o mal que faz a si mesmo, se arrependa e deseje, honestamente, vencer essa imperfeição, através das expiações.

É por isso que, nas obras de Kardec, por mais de uma vez os Espíritos utilizaram a expressão “será duplamente punido”: não quer dizer que Deus o punirá mais ou menos — porque Deus não pune — mas sim que, após adquirir uma imperfeição, o Espírito gastará um bom tempo tentando se livrar dela.




A CRÍTICA AO TRABALHO MEDIÚNICO

Um bom médium deve sempre estar pronto para a crítica à sua obra, já que ela não lhe pertence, jamais se magoando nem se sentindo humilhado quando uma ideia qualquer tiver vindo de um espírito imperfeito e não puder ser aceita como doutrinária.

Essa crítica e esse julgamento, quando se trata de um bom médium, não deve nem precisa se estender ao médium em si. Contudo, se no grupo mediúnico há o indivíduo invigilante, quase sempre movido por hábitos de vaidade e orgulho, que frequentemente lhes promovem quadros de obsessão e fascinação, deve ser aconselhado em particular, com firmeza, mas com benevolência. Se a razão lhe falar mais alto, entenderá e buscará modificar seu quadro; se não, frequentemente se afastará. “Neste caso, quaisquer que sejam as faculdades que possua, seu afastamento não é de causar saudades.”, diria Kardec [RE, julho de 1858]

O papel do médium é transmitir o conteúdo, inclusive de espíritos inferiores, e o papel de um bom espírita deveria ser o de julgar, com base no estudo e na razão, as comunicações mediúnicas e aprender inclusive com aquelas que forem provenientes de espíritos inferiores, não por aceitá-las cegamente, mas por entender as ideias, as dificuldades, as ilusões, as reflexões sobre a vida anterior, etc. E isso, prezado leitor, se aplica, também, ao querido Chico Xavier, a Divaldo, a Sueli Caldas e todos os médiuns, pois nenhum conta com a graça divina de ser “blindado” contra Espíritos imperfeitos — muito pelo contrário, como creio que está claro pela própria finalidade da mediunidade.

Criou-se uma distorção absurda, não somente no Movimento Espírita, mas também em todo o movimento espiritualista, com trabalhos mediúnicos, desde que se esqueceu desse princípio e que se passou a tratar dos Médiuns como oráculos infalíveis. Importa lembrar que essa ideia foi justamente aquela inculcada por Roustaing, o maior inimigo do Espiritismo e que, infelizmente, permeou e dominou o Movimento Espírita desde sua chegada às terras brasileiras, antes de 1900, tendo encontrado largo apoio para disseminação na FEB, autointitulada órgão máximo de representação do Espiritismo no Brasil (em contrário daquilo que o próprio Kardec recomendou e planejava dar início, se não tivesse morrido tão cedo, conforme apresentado em Constituição Transitória do Espiritismo — RE — dezembro de 1869).

O senhor Roustaing, um dos “judas do Espiritismo”, não era médium. Porém, por uma boa médium, sra. Emilie Collignon, que inclusive se comunicava com Kardec, começou a obter comunicações atribuídas aos quatro evangelistas, que vinham dizer que Roustaing seria o novo profeta, produzindo aquilo que ficou conhecido como Os Quatro Evangelhos, que até hoje influenciam negativamente, com diversos conceitos, o Movimento Espírita no Brasil, principalmente.

Tudo isso que estou apontando foi justamente o que Kardec apontou a Roustaing. A própria médium chegou a afirmar, para Kardec, que não concordava com aquelas comunicações, mas sempre que estava junto a Roustaing, elas eram obtidas. Após Kardec chamar a atenção de Roustaing para a obsessão de que era vítima, tentando fazer um bem a ele, este se revoltou, por vaidade e orgulho… E, então o estrago foi feito.

Após a morte do prof. Rivail (Kardec), um rico (bastante rico) seguidor de Roustaing, Jean Guérin, se aproximou de Leymarie, o “continuador” do Espiritismo que, por interesses menos elevados, se vendeu e, dentre tantos crimes contra o Espiritismo, passou a veicular, na Revista Espírita, conteúdos provenientes dessa ideologia, ainda que contrárias à Doutrina. Isso provocou revolta nos verdadeiros seguidores de Kardec, dentre eles Berthe Fropo, amiga íntima do casal, Camille Flamarion, Leon Denis e Gabriel Delanne. Fropo chegou a publicar:

Apelo a todos os espíritas, meus irmãos. Esse homem [Leymarie] pode permanecer na direção do espiritismo? já que ele não é mais espírita? Ele, que não tem nenhuma crença, que tem somente interesses, que renegou a doutrina que devia defender e proteger, envileceu-a em si mesmo ao preferir outra. Agora quer fazer que a doutrina entre na fase teológica, para estabelecê-la como religião, e fazer que nossa bela filosofia seja rebaixada mediante congressos, cerimônias e, mais tarde, por dogmas, e tudo isso por amor ao dinheiro, para comprazer às ideias do Sr. Guérin, o milionário. Converteu-se em roustainguista, preconizou as ideias subversivas sobre a natureza de Jesus e, atualmente, coloca para estudo até a própria não existência do Cristo.

Em nome de nosso mestre venerado, não podemos deixar nossa doutrina de vida nas mãos de um homem sem crença, sem convicção, e que a renegou. Suplico a todos os espíritas que têm ações da Sociedade Anônima fundada pela Sra. Allan Kardec que se reúnam em assembleia geral; eles têm o direito como acionistas. Se são espíritas sinceros, pessoas honradas, grandes corações que desejam a felicidade de toda a nossa humanidade mediante a propagação da doutrina em toda a sua pureza, devem considerar que é para eles um direito e sobretudo um dever, e que, se não o cumprem, seja por temor, seja por inércia, isso seria um covarde abandono de nossa querida filosofia, que, estai persuadidos, encontra-se em perigo, e em grande perigo. Como é possível respeitar o espiritismo quando se vê, para representá-lo e fazê-lo avançar, pessoas sem moralidade, sem crença e sem lealdade?

A Revista de Allan Kardec não é mais que uma abominável rapsódia; com o pretexto de ecletismo, são inseridas nela as ideias mais subversivas, e perverte-se o juízo daqueles irmãos nossos que, como não têm instrução suficiente para fazer justiça a todas essas ridículas concepções, são confundidos e tornam-se de uma credulidade que pode ser perigosa para seu repouso.

Estudemos o ensinamento de nosso querido mestre Allan Kardec, aceitemos o que essa elevada inteligência compendiou durante trinta anos de um trabalho tenaz, e sobretudo saibamos compreendê-lo e aplicá-lo em nós para nos tornarmos melhores, justos, leais e fraternos, dedicados à doutrina consoladora que os Espíritos nos revelaram.

Jesus, que tão bem nos ensinou o amor, a caridade e a fraternidade, expulsou, no entanto, em um momento de indignação, os vendedores do templo, e as correias das quais ele se serviu ainda não estão gastas. Utilizei as de nossa época; Deus e os bons Espíritos julgar-me-ão.

Considero ter cumprido a missão da qual me encarregaram. Corresponde aos espíritas acionistas atuarem agora e salvarem a Villa Ségur, que, de acordo com a ideia do mestre, estava destinada a uma casa de refúgio para os idosos espíritas; ele desejava construir ali, além disso, um edifício suficientemente vasto para estabelecer nele um lugar de reunião, o museu e a biblioteca espíritas

Fropo, Beacoup de lumière

Kardec, por defender os princípios básicos e necessários da ciência Espírita, também foi chamado ortodoxo, orgulhoso, pedante, vaidoso, etc. Justamente ele, que demonstrava sempre que nem sequer iniciou os estudos do Espiritismo e que, tendo apenas se dedicado a esse estudo de forma metodológica, científica e organizada, sendo muitas vezes contrariado, em suas ideias, pela força da razão, pelos próprios Espíritos, sempre destacou que tudo pertencia aos Espíritos e não às ideias particulares de ninguém, muito menos dele.

Eis os fatos que muitos custam a aceitar, mas que já são bem conhecidos e que estão relatados em O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato, e Ponto Final, de Wilson Garcia.

Referências

  • O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato
  • Ponto Final, de Wilson Garcia
  • Beacoup de lumière, de Berthe Fropo
  • Revista Espírita de 1858



O difícil trabalho de desobsessão

Kardec assim define a obsessão:

A obsessão é a ação persistente que um malvado Espírito exerce sobre um indivíduo. Apresenta caracteres muito distintos, desde a simples influência moral sem marcas externas sensíveis até a perturbação completa do organismo e das faculdades mentais. Oblitera todas as faculdades mediúnicas. Na mediunidade auditiva e psicográfica, ela se traduz pela obstinação de um Espírito em se manifestar com a exclusão dos demais.

A obsessão é quase sempre o fato de uma vingança exercida por um Espírito e que o mais frequente tem origem nas relações que o obsedado tenha tido com aquele em uma existência anterior. 

Nos casos de obsessão grave, o obsidiado é envolvido e impregnado por um fluido pernicioso que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repulsa. É desse fluido que se torna necessário se desembaraçar; ora, um mau fluido não pode ser repelido por outro mau fluido. Por uma ação idêntica à do médium curador, no caso de doenças, é necessário expulsar o fluido mau com a ajuda de um fluido melhor. 

Essa é a ação mecânica, mas que nem sempre é suficiente. É preciso também, e sobretudo, atuar sobre o ser inteligente, ao qual é preciso ter o direito de falar com autoridade, e essa autoridade só é dada pela superioridade moral; quanto maior ela for, maior será a autoridade.

Allan Kardec, A Gênese, 1868

A obsessão se dá de Espírito para Espírito, mesmo de encarnado para encarnado e tem, na sua raiz, sempre uma falta de capacidade inicial de lutar contra uma influência perniciosa. Vemos isso nas relações doentias de casais, quando um exerce um domínio pernicioso que não é combatido pelo outro. Quando se dá de Espírito para encarnado, na origem, identifica-se a falta de capacidade, do encarnado, de identificar a influência perniciosa sobre suas próprias imperfeições e paixões (sentimentos), levando-o, lenta e progressivamente, a entrar em estados diversos como os de prazer, inquietação, melancolia, etc. Isso quer dizer que, muitas vezes, o próprio encarnado aceita voluntariamente, embora inconscientemente, a influência que o instiga ao cultivo das imperfeições ou dos hábitos que o agradam.

Existe também a possibilidade menos frequente de haver uma auto-obsessão, onde o próprio indivíduo se prenda a certos pensamentos ou a certas questões, sem a participação de outros Espíritos. Vamos tratar de cada uma dessas possibilidades a seguir.

Importa dizer, antes de mais nada, que a obsessão precisa ser combatida, o quanto antes, pela vontade do encarnado, em primeiro lugar. Acontece que, se a obsessão estiver avançada, essa vontade pode estar obliterada, o que é muito comum nos casos identificados como depressivos. É aí que é necessário haver uma intervenção, de pessoas próximas, que possam auxiliar, com persistência benevolente, a soerguer essa vontade inexistente ou apagada. Por esse motivo, cremos importante destacar o estado de subjugação e os de possessão, definidos assim por Kardec:

Subjugação

É uma ligação moral que paralisa a vontade de quem a sofre e que impele a pessoa às mais desarrazoadas atitudes, frequentemente as mais contrárias ao seu próprio interesse. [RE, out/1858]

A subjugação pode ser moral ou corporal. No primeiro caso, o subjugado é constrangido a tomar resoluções muitas vezes absurdas e comprometedoras que, por uma espécie de ilusão, ele julga sensatas: é um tipo de fascinação. No segundo caso, o Espírito atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos involuntários. Traduz-se, no médium escrevente, por uma necessidade incessante de escrever, ainda nos momentos menos oportunos. Vimos alguns que, à falta de pena ou lápis, simulavam escrever com o dedo, onde quer que se encontrassem, mesmo nas ruas, nas portas, nas paredes. [O Livro dos Médiuns]

Possessão 

Dava-se outrora o nome de possessão ao império exercido por maus Espíritos, quando a influência deles ia até à aberração das faculdades da vítima. A possessão seria, para nós, sinônimo da subjugação. [O Livro dos Médiuns]

Na possessão, em lugar de agir exteriormente, o Espírito livre se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado; faz eleição de domicílio em seu corpo sem que, contudo, este o deixe definitivamente, o que não pode ter lugar senão com a morte. A possessão é, pois, sempre temporária e intermitente porque um Espírito desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar e a dignidade de um Espírito encarnado, atentando que a união molecular do perispírito e do corpo só pode se operar no momento da concepção.

O Espírito, na posse momentânea do corpo, serve-se dele como do seu próprio; fala por sua boca, vê pelos seus olhos, atua com seus braços como se tivesse feito de sua vivência. Não é mais como na mediunidade psicofônica, na qual o Espírito encarnado fala transmitindo o pensamento de um Espírito desencarnado. É este último ele próprio que fala e que atua e se o tiver conhecido em vida, reconhecê-lo-á pela sua linguagem, sua voz, pelos seus gestos e até pela expressão de sua fisionomia.

A obsessão é sempre uma ocorrência de um Espírito malfeitor. A possessão pode ser a atuação de um bom Espírito que quer falar e, para causar maior impressão em seu ouvinte, toma emprestado o corpo de um encarnado, que lhe empresta voluntariamente como se emprestasse sua veste. Isso se faz sem nenhuma perturbação nem mal-estar, e durante esse tempo o Espírito se encontra em liberdade, como no estado de emancipação, e, mais frequentemente ele se coloca ao lado de seu substituto para escutá-lo.

Quando o Espírito possessor é mau, as coisas se passam diferentemente. Ele não toma emprestado o corpo, mas se apodera se o titular não possuir força moral a lhe resistir. Ele o faz por maldade para com o dito, a quem tortura e martiriza de todas as maneiras, até querer fazer com que pereça, seja pelo estrangulamento, seja colocando-o no fogo, seja em outros lugares perigosos. Servindo-se dos membros e dos órgãos do desditoso paciente, insulta, difama e maltrata os que o cercam; libera-se a essas excentricidades e a atos que tenham todas as características de loucura furiosa. [A Gênese]

Vemos, assim, a extensão do mal ao qual se pode chegar com uma influência não combatida. Chegamos ao ponto importante: como combater uma obsessão.

Combatendo uma obsessão

Seja por iniciativa própria, seja com a ajuda de alguém, o combate a uma obsessão deve abranger todos os envolvidos. Quando se trata de uma auto-obsessão, esse será o único alvo; a abordagem será outra quando houver a relação entre uns e outros indivíduos. No caso da obsessão de encarnado para encarnado, o trabalho poderá ser muito auxiliado pela psicologia humana, mas também pela abordagem junto ao obsessor encarnado que, por sua vez, quase sempre, também está sofrendo um quadro de obsessão. Dependendo da gravidade desse quadro, de encarnado para encarnado, a interrupção da influência, mesmo por meios legais, poderá ser necessária.

O quadro mais frequente, porém, é o da obsessão de Espíritos imperfeitos sobre encarnados. Como vimos, quase sempre ela se dá por ação de vingança. Outras vezes, se dá simplesmente pela vontade que um ou mais Espíritos imperfeitos têm de atrair para a infelicidade de que compartilham aqueles a quem invejam. Outra possibilidade que muito deve importar aos trabalhadores da Doutrina Espírita é a dos Espíritos que, inimigos dessa ciência, fazem de tudo para atrapalhar a sua propagação, criando verdadeiros planos malignos para atacá-la em suas bases, como foi o caso envolvendo o sr. Roustaing, na época de Kardec, e o sr. Leymarie, que, após a morte de Kardec, cedeu às paixões da fama e do dinheiro e, assim, destruiu e deturpou os caminhos anteriormente traçados pelo patrono da Doutrina Espírita, lançando, sobre esta, grande mancha que somente hoje começa a se apagar.

O trabalho de combate à obsessão espiritual, como dizíamos, deve abordar os dois lados da relação. Do lado dos Espíritos, um bom grupo espírita, suficientemente instruído e cuidadoso, poderá ser de grande auxílio, através do trabalho de desobsessão, que consiste em procurar fazer os Espíritos obsessores entenderem a perda de tempo e a inutilidade de fazerem o que fazem. Para isso, porém, os trabalhadores do grupo precisam oferecer aquilo que Kardec chamava de ascendente moral, isto é, precisam ser honestos e empenhados no trabalho de correção das próprias imperfeições, pois, muito comumente, os Espíritos obsessores apontarão para qualquer vestígio de desonestidade ou de demagogia, que é quando se diz uma coisa e se faz outra. O Espírito obsessor, por exemplo, quando convidado a deixar de agir por ciúmes, poderá se voltar e dizer: “quem é você para me dizer isso, se agiu assim ontem, com sua esposa?”. É claro, não esperamos que os encarnados sejam perfeitos, mas é necessário que sejam honestos e empenhados. Nessa situação, poderia o indivíduo replicar: “sim, eu infelizmente cedi a esse mau hábito, ontem, mas você deve ter visto que eu sofri com seus resultados. É por isso que, se tem me acompanhado, deve ter visto que estou tentando vencê-lo”.

Durante o contato mediúnico, o Espírito, que muitas vezes está tresloucado num pensamento fixo, sofre uma espécie de “choque”, que não consiste em nada energético, mas, sim, na contenção de seus pensamentos, durante a ligação perispiritual com o médium. Assim, torna-se mais fácil raciocinar e refletir.

O trabalho junto a um obsessor pode demandar persistência e cuidado, por diversas sessões, que poderão envolver a evocação do Espírito envolvido. Mas também é necessário abordar o encarnado, que precisa despertar, em si, a vontade de querer se libertar desse jugo. Para isso, será necessário levá-lo a raciocinar, também, para que, pela razão, tome essa decisão.

Na Revista Espírita de outubro de 1858, Kardec apresenta um caso do tipo, bem-sucedido, afinal:

Empreguei toda a minha força de vontade para chamar os bons Espíritos por seu intermédio; toda a minha retórica para lhe provar que era vítima de Espíritos detestáveis; que aquilo que escrevia não tinha senso, além de ser profundamente imoral. Para essa obra de caridade juntei-me a um colega, o Sr. T… e pouco a pouco conseguimos que escrevesse coisas sensatas. Ele tomou aversão àquele mau gênio, repelindo-o por vontade própria cada vez que tentava manifestar-se, e lentamente os bons Espíritos triunfaram.

Para modificar suas ideias, ele seguiu o conselho dos Espíritos, de entregar-se a um trabalho rude, que lhe não deixasse tempo para ouvir as sugestões más.

O efeito sobre o Espírito também foi positivo:

O próprio Dillois acabou confessando-se vencido e manifestou o desejo de progredir em nova existência. Confessou o mal que tinha tentado fazer e deu provas de arrependimento. A luta foi longa e penosa e ofereceu ao observador particularidades realmente curiosas. Hoje o Sr. F. sente-se livre e feliz. É como se tivesse deposto um fardo. Recuperou a alegria e agradece-nos o serviço que lhe prestamos.

É interessante notar que, nesse caso apresentado, o trabalho de Kardec foi ainda mais ativo com relação ao encarnado, porque, adquirindo essa vontade ativa e benevolente, este oferecerá o “ascendente moral” sobre esses Espíritos, que deixarão de perturbá-lo quando verificarem essa força, além de adquirir a simpatia dos bons Espíritos.

Portanto, instruir-se ao máximo na Doutrina Espírita, tirando dela todas as consequências morais e racionais que nos impulsionam no caminho da “reforma íntima”, trabalhe sobre os próprios pensamentos e ações, medos e vontades, a fim de que, a cada dia mais, tudo esteja sob as leis divinas, é o melhor caminho para se manter livre das obsessões, pois, mesmo que o Espírito obsessor não se convença da necessidade de se reformar, poderá não mais encontrar abertura para influencia o encarnado.

Recomendamos a leitura aprofundada e complementar de O Livro dos Médiuns, parte segunda, Cap. XXIII, onde Kardec aborda o tema em extensão.




Platão e a Doutrina das Escolhas de Provas

Como todo ensinamento, ele é progressivo. Conforme a humanidade evolui  seu entendimento vai mudando. Esse artigo sobre Platão e Sócrates é sobre isso.

Recordam dos ensinamentos de São Vicente de Paula da semana passada? Então, São Vicente de Paula falava do Evangelho, que deveríamos estuda-lo .  Agora, a RE nos mostra algo anterior a Jesus, do século V e IV a.c., de Platão e seu mentor Sócrates (lembrando que era Platão quem escrevia).

Na Sociedade Espírita, eles nunca tinham imaginado antes:

“Não discutiremos hoje essa teoria, que estava tão longe de nosso pensamento quando os Espíritos no-la revelaram, que nos surpreendeu estranhamente, porque — confessamos humildemente — o que Platão escrevera sobre esse assunto especial nos era então completamente desconhecido, nova evidência, entre tantas outras, de que as comunicações que nos foram dadas não refletem absolutamente a nossa opinião pessoal. Quanto à de Platão, apenas constatamos a ideia principal, cabendo facilmente a cada um a forma sob a qual é apresentada e julgar os pontos de contato que, em certos detalhes, possa ter com a nossa teoria atual.”

Kardec, Allan. Revista Espírita: ano primeiro: setembrto/1858

Os ensinamentos de Sócrates e Platão realmente carregam os preceitos de Jesus e são similares aos dos Espíritos comunicantes do século de Kardec.

Nesse artigo, a RE apresenta como ideias principais vindos de Platão: a imortalidade da alma, a sucessão das existências, a escolha das existências por efeito do livre arbítrio, enfim, as consequências felizes e infelizes. Claro que Sócrates, descrito por Platão, usou de parábolas  para explicar,  pois era assim que entendiam as lições naquela época. 

Em sua alegoria do Fuso da Necessidade, Platão imagina um diálogo entre Sócrates e Glauco, atribuindo ao primeiro o discurso da RE, sobre as revelações do armênio Er, personagem fictício, segundo toda probabilidade, embora alguns o tomem por Zoroastro. Vale a leitura.

Kardec apresenta a essência de uma alegoria de Platão, onde um homem teria tido uma EQM e voltou contando “o lado de lá”. Ela é bastante figurativa, e mostra a ideia das Escolhas de Provas antes de reencarnarmos.

Nestes ensinamentos, quando Platão cita as Filhas da Necessidade, ele está falando sobre as leis divinas. Veja o que ele fala:

Almas passageiras, ireis iniciar uma nova carreira e renasce( reencarnar) na condição mortal. Não se vos assinalará o gênio; vós mesmas o escolhereis. Escolherá aquela que a sorte chamar em primeiro lugar, e essa escolha será irrevogável. A virtude não pertence a ninguém: alia-se àquele que a dignifica e abandona quem a despreza. Cada um é responsável pela escolha que faz, Deus é inocente.’

Kardec, RE setembro/1858

Depois segue descrevendo como se dá o renascimento que é muito parecido com que os Espíritos nos tempos de Kardec explicam.

Portanto, cada um é responsável pela escolha! Deus é inocente no seu livre arbítrio!

Em OLE, essas questões são abordadas em profundidade, como na  Parte segunda — Do mundo espírita ou mundo dos Espíritos, Capítulo VI — Da vida espírita, Escolha de provas, bem como nas questões 337 e 975

Esse artigo da RE é a semente de Kardec para a elaboração do Evangelho Segundo o Espiritismo (abril de 1864). Em sua introdução expõe a relação com as ideias do cristianismo e logo depois a moral de Sócrates e Platão.

Observação: indicamos, também, esse ótimo video sobre a Moral de Sócrates e Platão do canal Espiritismo Para Todos




O que é a Revista Espírita e como estudá-la?

No momento em que escrevo este artigo, estamos entrando no estudo da 10.ª edição da Revista Espírita — outubro de 1858. Começamos esse estudo semanal (clique aqui para conhecê-lo), transmitindo-o ao-vivo, sabendo, por uma intuição, que ele seria muito importante e útil, mas, de fato, não sabíamos o que esperar desse estudo. A verdade é que, senão pela leitura de algumas citações de trechos dessa obra, não sabíamos nem sequer do que se tratava a Revista Espírita.

Ouça ao podcast:

Hoje, então, passadas nove edições dessa publicação, dentre as 136 das quais o próprio Kardec esteve à frente, de janeiro de 1858 a abril de 1869 (ele morreu em março, mas já havia deixado pronta essa última e importante edição, da qual falaremos mais adiante) — e continuamos nos perguntando onde é que ele arrumava tempo e disposição para isso, coisa digna de missionário — já conseguimos vislumbrar um pouco do brilhantismo de Rivail no encadeamento lógico do desenvolvimento dos temas que, agora compreendemos um pouco, dão base e rumo ao crescimento e ao fortalecimento da Doutrina Espírita — lembremos que as próximas obras foram produzidas, em grande parte, justamente a partir de muitos dos temas e estudos desenvolvidos na Revista Espírita.

Importa dizer, antes de tudo, que a Revista Espírita, como demonstra o nome, foi um periódico mensal, onde Allan Kardec apresentava diversos temas, sendo alguns deles totalmente doutrinários, outros deles ligados às questões sociais, histórias e científicas e outros nos quais percebemos uma crescente e ininterrupta elaboração de pesquisas e conhecimentos que foram dando cada vez mais base à Doutrina Espírita.

Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos

Muitos não sabem, mas esse é o subtítulo completo desse periódico: jornal de estudos psicológicos. E isso é importante ser destacado, pois, pelos olhos de hoje, não parece que psicologia tem muito a ver com um jornal espírita, não é mesmo? É aqui que entra o valoroso e importante trabalho de Paulo Henrique de Figueiredo, um dos mais expoentes pesquisadores espíritas da atualidade, que foi buscar, no passado, um conhecimento esquecido, varrido para baixo do tapete: em resumo, aquele que se encerrava no contexto do Espiritualismo Racional, sobre o qual já falamos um pouco aqui. É somente através do estudo desse conhecimento esquecido que poderemos, adiantamos, contextualizar muito do que se fala na R.E. e, sobre isso, destacamos a importância da obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, desse mesmo autor.

No contexto de Kardec, a Psicologia não tinha a característica terapêutica materialista de hoje: ela era uma ciência moral, espiritualista, inserida no contexto do Espiritualismo Racional, e seu principal objetivo era investigar e analisar as leis naturais que regem a natureza humana, inclusive de forma experimental.

Nesse contexto, a Psicologia compreendia o ser humano como um ser constituído de corpo e de alma. A alma, que sobreviveria ao corpo, era a causa primária da psique, não sendo esta um efeito apenas material de química e estímulos. Tratamos um pouco disso nos estudos baseados no artigo “O Período Psicológico”, que você pode ler aqui.

O nascimento da Revista e sua finalidade

Kardec criou a Revista Espírita baseado, em parte, nas sugestões de um Espírito que se comunicou através da Srta. Hermance Dufaux (é com H, mesmo) que, segundo Canuto de Abreu, cooperou para a transmissão de valiosas orientações para esse periódico:

No final de 1857, Kardec teve a ideia de publicar um periódico espírita e quis ouvir a opinião dos guias espirituais. Hermance foi a médium escolhida e, através dela, um Espírito deu várias e ótimas orientações ao Mestre de Lion. O órgão ganhou o nome de “Revista Espírita” e foi lançado em janeiro do ano seguinte.

Um dos maiores interesses de Kardec era o de se corresponder, de forma facilitada, com os adeptos do Espiritismo espalhados pela Europa. Através da Revista, uma publicação de fácil circulação e de interesse geral — Kardec, nela, abordava até os fatos cotidianos e de grande interesse, envolvendo os Espíritos — a Doutrina foi rapidamente permeando as massas, que liam avidamente suas folhas. Não faltaram as cartas de assinantes, milhares delas, muitas das quais Kardec sequer encontrava tempo para responder.

Destacamos a palavra “assinantes” de propósito: Kardec, ou melhor, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cobrava por uma assinatura desse periódico, mas jamais para enriquecimento próprio, e sim com a finalidade de obter recursos para baratear custos das obras, fornecer apoio social, etc. Fizemos uma citação a esse respeito no artigo Propagação do Espiritismo.

Dizíamos dos propósitos da Revista. Bem sabemos que Kardec identificou, logo de início, com sua perspicácia de pesquisador formado, desde criança, pelo método investigativo da Natureza, de Pestalozzi, que…

… A opinião isolada de um Espírito não passa disso — uma opinião — portanto, não pode ser tomada, isoladamente, como se fosse fonte inquestionável da verdade, já que Espíritos de todos os tipos podem se comunicar, sendo que os Espíritos enganadores tomam os nomes até mesmo dos santos e de Jesus, sem pudor, principalmente quando percebem que não são questionados.

Portanto, Kardec buscava um meio de fortalecer o princípio básico e inexorável da Doutrina, que é o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos, que deve, além disso, atender à lógica, à razão, ao bom-senso e à ciência já formada, tanto da parte dos homens, quanto da parte dos Espíritos, pelo mesmo método. Ora, como já podemos perceber, através da Revista Espírita, onde recebia os diversos relatos de várias partes do mundo, através de seus correspondentes, o mestre lionês obteve justamente isso, em grande parte! Vemos um exemplo disso na carta do Sr. Jobard, em julho de 1858, e nas observações de um correspondente em setembro de 1858.

As evocações de Kardec

Há também um aspecto ainda mais importante apresentado na Revista, que demonstra claramente uma face pouquíssimo conhecida do Espiritismo, no atual movimento espírita: o da natureza e da utilidade das evocações de Espíritos. Ora, num momento onde virou lei a famosa frase do querido Chico Xavier — “o telefone só toca de lá para cá” — sobre a qual já fizemos uma análise no artigo “O Espiritismo sem os Espíritos” — qual não foi nosso espanto (pelo menos para aqueles que não conhecíamos essa realidade) ao verificarmos que Kardec fazia uso das evocações com tanta naturalidade — mas com a necessária seriedade — como aquela que usamos para conversar com as pessoas ao nosso redor.

Em praticamente todas as edições, Kardec apresenta evocações de Espíritos, as quais realizava com a finalidade de obter melhores compreensões a respeito da moral compreendida em certos acontecimentos, bem como o de tentar sondar alguns fatos científicos envolvendo fenômenos Espíritas, como se deu em “Uma nova descoberta fotográfica“, de julho de 1858.

Foi assim que, número após número, Kardec apresentou as mais diversas evocações, algumas feitas por ele mesmo e outras feitas por correspondentes seus. Evocaram-se Espíritos de suicidas, de loucos, de assassinos, de reis, de plebeus, de gente de grande moral e benevolência e de Espíritos inferiores. Muitos desses, diga-se de passagem, a pouquíssimos dias de sua morte, o que contraria aquilo que grande parte do movimento espírita atual tem dito.

Importa destacar, é claro, que as evocações não tinham a finalidade de atenderem à curiosidade vazia e inferior ou à diversão de ninguém: além dos ensinamentos que se podiam colher de todas elas, para os Espíritos superiores sempre foi uma felicidade nos ajudar e, para os inferiores, muitas vezes forneceram preciosos momentos de reflexão e de reequilíbrio.

Fortalecimento da Doutrina e descontrução de falsos ou inconpletos conceitos

A forma para o Espírito

Para dar um exemplo prático, nessas desconstruções de ideias fartamente enraizadas atualmente, temos, ainda que em primórdios, uma delas que começou a chamar nossa atenção: a questão da forma para o Espírito errante (entre as encarnações). É de praxe, hoje em dia, a concepção de todo um mundo fantástico e cheio até mesmo de automóveis no plano espiritual… Contudo, Kardec, a partir de certa edição, passa a sondar o que é a forma para os Espíritos, através de perguntas como “de que forma lhe veríamos se pudéssemos vê-lo com nossos olhos?” ou “vê outros Espíritos? De que forma?”.

Foi assim que, em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei natural, apenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”. É, portanto, matéria, mas uma matéria muito sutil, extraída do fluido cósmico universal[1]).

Significa então que os estudos de Kardec desmentem André Luiz? Bem, apesar de a metodologia de Kardec ser bastante lógica, deixando pouco espaço para erro, seria talvez precipitado tirar conclusões baseados apenas nesses dois Espíritos — ainda não sabemos se existem, mais adiante, mais evocações que deem suporte a essa tese — mas também não estamos dizendo que Chico Xavier errou, já que ele foi uma ferramenta dos Espíritos, nem que André Luiz mentiu, mas sim que ele falou segundo suas concepções e seus entendimentos. Quem sabe, ele poderia estar falando de uma situação de “encarnação” de Espíritos, em matéria mais sutil? Também não descartamos a existência de verdadeiras cidades, formadas pelos Espíritos ainda muito dependentes da matéria e da forma — o que, em suma, não é nada bom, mas compreendemos que seja uma fase.

O suicídio

Outro tema que foi fartamente desconstruído de suas concepções modernas é aquele a respeito do suicídio. Reinam, hoje, no meio espírita, as afirmações de que o suicida fica no “umbral” ou no “vale dos suicidas”; o de que ele ficará preso ao corpo, “sentindo-o” ser roído pelos vermes; o de que ele ficará anos em perturbação extrema, sendo impossível se comunicar; e, ainda, o de que o suicida amanhã nascerá com defeitos físicos de modo a “resgatar um débito cármico” (esse último trecho causa aversão até para escrever).

Bem, até o momento, Kardec já fez a evocação de dois suicidas: O Suicida da Samaritana, em junho de 1858, e Suicídio por Amor — setembro de 1858 — onde um rapaz se matou à porta da namorada, num ápice das emoções, pois ela se obstinara em não aceitá-lo de volta, após uma grande discussão.

O primeiro é evocado cerca de dois meses após o episódio fatídico: “Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco” — notem a simplicidade na evocação. Esse Espírito denotou um grande sofrimento moral, que vinha desde antes de sua morte, a qual buscou por um desespero em não saber lidar com os desgostos e as provações da vida. São Luís encerra a comunicação dizendo apenas que o suicídio interrompe a vida bruscamente, o que pode provocar uma certa dificuldade momentânea de se desapegar do corpo.

O segundo é evocado sete ou oito meses após o suicídio. Esse espírito já não sofre tanto, pois entendeu a falta de utilidade no que fez, e que o fez por um ato irrefletido levado pelas paixões (emoções) incontidas. Nesse, há apenas um “aprisionamento mental” ao momento do ato, que ficava se repetindo na mente desse Espírito, já que a ele se ligava com arrependimento.

Em nenhum deles, nenhuma menção àquilo que se tornou lugar-comum no meio Espírita, que, na verdade, são meias-verdades: existem as diversas possibilidades, segundo a mentalidade de cada um, mas o espírita atual insiste em tomar a exceção por regra.

A moral autônoma

Paulo Henrique de Figueiredo muito tem falado e defendido a essência do Espiritismo como moral autônoma. E muito tem sido criticado por alguns poucos que ainda não conseguiram ver isso na Doutrina. Aqui, há mais um conceito atual desconstruído pelo estudo da Revista Espírita. Não vou me aprofundar sobre o assunto, pois neste artigo já apresentei o conceito. Apenas quero destacar que, na própria Revista, nós vemos esse conceito muito bem fundamentado, e não por Kardec, apenas, mas pelos Espíritos.

Logo na primeira edição da RE, em janeiro de 1858, temos o artigo “Uma conversão“, que apresenta a seguinte sequência de perguntas e respostas, feitas ao pai falecido de um rapaz, por esse mesmo rapaz, que buscava acreditar no Espiritismo:

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos? — Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem? — Avançará em seu caminho.

17. — Estou no bom caminho? — Faça o bem e estará.

Observe a profundidade moral desse simples diálogo. Não há castigo e recompensa, mas apenas nós mesmos, diante de nossa própria consciência, segundo nossas escolhas.

Mais adiante, em outubro de 1858, no artigo “Assassinato de cinco crianças por outra de doze anos — Problema moral“, Kardec questiona a São Luís sobre a possibilidade daquele Espírito, do assassino, voltar a encarnar sobre a Terra, e não sobre um planeta ainda mais atrasado:

11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?

─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.

Prezado(a) amigo(a), vê a beleza da Doutrina Espírita, verdadeiramente consoladora e autônoma, transparecida em sua face original? Nada de carma. Nada de “ação e reação”. Nada de “lei do retorno”. Estudemos, estudemos, porque o movimento espírita atual, inundado de conceitos exíguos e contrários à Doutrina dos Espíritos, anda muito afastado de suas essência e realidade originais!

Como estudar a Revista Espírita

Muito bem: já apresentamos a importância inestimável desse periódico de Kardec; já apresentamos, também, a profundidade que ele tem e o encadeamento lógico e racional de algo que vai formando o corpo de uma Doutrina Científica, muito bem estabelecida, que é o Espiritismo. Resta saber: como estudar esses 136 números dessa publicação?

Cremos haver duas formas principais, sobre as quais, aliás, estamos discutindo e nos adequando, no momento, de modo a chegar no melhor método. A primeira delas é aquela que respeita a forma cronológica, edição a edição; a segunda é aquela que “passa a perna”, no bom sentido, em Kardec, e avança por assuntos, de forma mais ou menos cronológica. Explico:

Na primeira modalidade, que é o que fizemos até então, pegamos a Revisa, edição por edição, e nos dedicamos a estudá-la individualmente, em primeiro lugar, a fim de extrair de cada número e assunto o melhor entendimento, enriquecendo o estudo. Isso porque existem, nela, assuntos acessórios, que não apresentam grande ganho em trazer para o estudo em grupo, como é o caso dos fenômenos apresentados por Kardec, no que chamaríamos hoje de “causos espíritas”. Não que não sejam artigos úteis, pois reforçam muito o entendimento a respeito do fato dos fenômenos espíritas, principalmente para aqueles que ainda tem dúvidas sobre eles.

Já outros assuntos são tão importantes e profundos que merecem uma atenção especial, por vezes buscando complementos não só em Kardec, mas também em obras complementares de outros pesquisadores contemporâneos ou não de Kardec. Por diversas vezes já encontramos grande utilidade em abordar não apenas demais obras de Kardec que, se fôssemos nos basear pela cronologia correta, sequer haviam sido publicadas, mas também obras como as de Ernesto Bozzano e aquelas recentes de Paulo Henrique.

Outra forma de realizar esse estudo é, como dissemos, “passar a perna” em Kardec e avançar sobre os assuntos em todos os anos da Revista e da obra completa do Professor. Mas isso no bom sentido: Kardec, cronologicamente, o que é óbvio, vai amadurecendo a própria compreensão a respeito da Doutrina dos Espíritos, através da pesquisa incessante. Assim, podemos ver, por exemplo, Kardec falando em fluido vital, em 1858, mas, em A Gênese, descartando os fluidos e ficando com a tese de Mesmer, do Magnetismo Animal e do princípio vital. Portanto, pode-se desrespeitar a ordem cronológica de modo a estudar os assuntos abordados na Revista, complementando-os e relembrando-os conforme se avança pelos números, na ordem.

No momento, estamos optando por um meio-termo: descartamos o aprofundamento nos assuntos acessórios, nos atendo aos assuntos principais e, deles, fazendo o devido aprofundamento, conforme observamos a necessidade. Talvez passaremos a abordar mais de uma edição num mesmo estudo, quando verificarmos que os assuntos de mais de uma delas é construído e complementado sequencialmente. Apena não julgamos útil avançar a passos grandes demais, pois compreender a construção do pensamento de Kardec, de seu método, dos ensinamentos dos Espíritos nas entrelinhas, é algo que julgamos muito proveitoso e importante.

O fim da Revista Espírita sob a tutela de Kardec

Chegamos, enfim, ao final do artigo, citando o fim da Revista Espírita com a morte de Allan Kardec. “Mas, Paulo, a Revista Espírita continuou sendo veiculada por muitos anos após sua morte”. Sim, continuou… Mas, infelizmente, foi subvertida pelos interesses mesquinhos do dinheiro e da vaidade. Enquanto esteve sob Kardec, foi uma publicação metódica, bem formulada e, sobretudo, impessoal, voltada aos interesses do Espiritismo, isto é, da Doutrina dos Espíritos, que não pertence a nenhum encarnado e nem sai das ideias de nenhum deles, de forma isolada.

Após a morte de Kardec, aqueles que assumiram e subverteram a Sociedade (para mais detalhes leia O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato) passaram a utilizar desse periódico para veicular os mais completos absurdos, dentre eles, sob a direção de Pierre Leymarie, artigos promovendo um falso médium, que dizia obter fotografias dos Espíritos. A promoção era literal, pois, na Revista Espírita, chegou-se a dar a indicação e os valores cobrados para se obter uma suposta fotografia de um parente morto. O caso rendeu um grande processo judicial contra Leymarie e seus associados, naquilo que ficou conhecido como O Processo dos Espíritas e que manchou absurdamente a reputação da Doutrina perante a sociedade.

Mas não parou por aí. A Revista Espírita, depois de 1869, passou a ser constantemente lugar de veiculação de absurdos artigos, muitos contrários à Doutrina até então formada pela metodologia indispensável aplicada por Kardec. É por isso que, juntamente aos demais estragos causados à Doutrina, que, hoje, ficamos com a Revista apenas sob o tempo em que ela esteve sob as conscienciosas mãos de Allan Kardec, e é por todo o exposto, até aqui, que…

… Convidamos a todos a montarem grupos de estudos sobre essa publicação, juntando a isso as pesquisas mais atuais, de modo que o aprendizado do Espiritismo, como Doutrina Científica que é, possa, a cada dia mais, sair dos círculos dos estudiosos espíritas e espalhar suas influências sobre a sociedade, que está desesperada em busca de respostas, uma vez mais.

Para isso, recomendamos observar as obras recomendadas para estudo, bem como acompanhar os estudos do grupo Espiritismo para Todos, no YouTube.


1. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em A Gênese (FEAL, 2018):

“Havia a teoria do fluido cósmico universal, adotada inicialmente por Franz Anton Mesmer (na Ciência do Magnetismo Animal), segundo a qual o Universo seria composto de um só elemento gerador, ocupando plenamente o espaço, dividido em inúmeras fases de densidade, progressivamente, desde a matéria tangível, líquida, gasosa, o éter e demais condições ainda mais sutis, imperceptíveis aos sentidos. Nessa outra teoria, as forças não seriam substâncias, mas estados de vibração em diversos níveis sutis do fluido universal. Por exemplo, a luz seria um estado de vibração do éter. Por analogia, considerando a adoção nessa obra da teoria do único elemento gerador como explicação universal dos fenômenos físicos, os fluidos espirituais estariam entre os estados mais sutis do fluido cósmico universal”. Recomendamos a obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.




Reencarnação compulsória

Assunto recorrente esse. Não basta muito esforço para encontrar tal afirmativa: um Espírito renitente, ou seja, que resiste a avançar, poderia ser “forçado” a uma reencarnação compulsória, compreendendo-se, nesse conceito, que os Espíritos superiores o forçariam a encarar provas e expiações “para seu próprio bem”.

Bem, meus irmãos, “calma lá”! É preciso ter muito cuidado com as afirmações que fazemos por aí, muitas vezes baseadas em conceitos que tem um fundo de verdade, mas que se tornam genericamente aplicados como “lei” — e aqui já abordamos diversos desses casos.

Primeiramente, precisamos recuperar o que aprendemos com o estudo do Espiritismo — aquela ciência que muitos resistem em estudar e que formou, através dos estudos de Kardec, a Doutrina Espírita ou Espiritismo: em primeiro lugar, o Espiritismo tem como fundamento a doutrina da escolha das provas, isto é, afirma que, desde que tenhamos capacidade, nós sempre escolhemos nossas provas e nossas expiações. Não custa lembrar: prova é uma oportunidade de enfrentar uma situação, para aprender com essa situação e vencer uma imperfeição; já a expiação acontece quando o Espírito se impõe um sofrimento qualquer a fim de enfrentar, na própria pele, um mal que impôs a outrem.

Dissemos: “se impõe”, porque ninguém, nem nenhum Espírito, nem mesmo Deus, impõem castigos a ninguém. Quando, no contexto de Kardec, se diz “Deus quis”, “Deus permitiu”, “Deus puniu”, quer dizer que tudo isso se dá como efeito da Criação. Ora, como somos suas criaturas, seres inteligentes e capazes do livre-arbítrio, quando nos impomos uma provação qualquer significa que, indiretamente, Deus o permite, assim como permite que o mal – ou, antes, a ausência do bem – exista.

Bem, apresentamos o conceito de provas e expiações, que visam trazer um aprendizado ao Espírito. Contudo, sabemos que apenas aprendemos algo quando entendemos realmente que erramos, o que nos traz a culpa, o remorso e a vontade de reparar – o que pode se dar ou não com as vítimas de nossos erros. Também relembramos que a escolha das provas e expiações é um princípio primordial, conforme ensinado pelos Espíritos. Aliás, isso está exposto claramente em O Livro dos Espíritos:

258. Quando na erraticidade, antes de começar nova existência corporal, tem o Espírito consciência e previsão do que lhe sucederá no curso da vida terrena?

“Ele próprio escolhe o gênero de provas por que há de passar, e nisso consiste o seu livre-arbítrio.”

a) – Não é Deus, então, que lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?

“Nada ocorre sem a permissão de Deus, porquanto foi Deus que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Ide agora perguntar por que decretou ele esta lei e não aquela! Dando ao Espírito a liberdade de escolher, Deus lhe deixa a inteira responsabilidade de seus atos e das consequências que estes tiverem. Nada lhe estorva o futuro; abertos se lhe acham, assim, o caminho do bem, como o do mal. Se vier a sucumbir, restar-lhe-á a consolação de que nem tudo se lhe acabou, e que a bondade divina lhe concede a liberdade de recomeçar o que foi mal feito. Ademais, cumpre se distinga o que é obra da vontade de Deus do que o é da do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós quem o criou e sim Deus. Vosso, porém, foi o desejo de a ele vos expordes, por haverdes visto nisso um meio de progredirdes, e Deus o permitiu.”

Onde fica, então, a tal da “reencarnação forçada”?

Vamos ver, na questão 262, o que segue:

262. Como pode o Espírito, que, em sua origem, é simples, ignorante e carecido de experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável por essa escolha?

“Deus lhe supre a inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazeis com a criancinha. Pouco a pouco, porém, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve, deixa-o senhor de proceder à escolha, e só então é que muitas vezes lhe acontece extraviar-se, tomando o mau caminho, por desatender os conselhos dos Espíritos bons. A isso é que se pode chamar a queda do homem.”

a) – Quando o Espírito goza do livre-arbítrio, a escolha da existência corporal dependerá sempre exclusivamente de sua vontade, ou essa existência lhe pode ser imposta ((Reencarnação compulsória)), como expiação, pela vontade de Deus?

“Deus sabe esperar, não apressa a expiação. Todavia, pode impor certa existência a um Espírito, quando este, pela sua inferioridade ou má vontade, não se mostra apto a compreender o que lhe seria mais benéfico, e quando vê que tal existência servirá para a purificação e o progresso do Espírito, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.”

Ora, Deus então impõe a expiação? Não é bem isso. O que acontece é que quando o Espírito está em negação ou resistência, ele não consegue ver o bem que lhe proporcionaria o enfrentamento de suas imperfeições através das provas e das expiações. Não pode, portanto, escolher lucidamente…. Mas continua reencarnando. Vejamos, ainda em OLE:

167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?

“Expiação, melhoria progressiva da humanidade. Sem isto, onde a justiça?”

Entendemos facilmente que a encarnação é uma necessidade para o avanço do Espírito e que, quando ainda é simples e ignorante, o que facilmente lhe dá o estado de resistência, pode facilmente resistir a enfrentar suas próprias imperfeições. É aí, portanto, que a mecânica da Lei Divina supre sua inexperiência: através de uma encarnação “forçada”, isto é, uma encarnação “comum”, mas sem escolhas de provas e expiações, o Espírito enfrentará a escola da vida material, que o colocará, de uma forma ou de outra, frente às suas imperfeições, de acordo com a forma como escolher agir na matéria. Assim, poderá escolher – no fundo, sempre há a escolha, a partir do momento em que o Espírito entra na idade da consciência – continuar cedendo às paixões, prática da qual colherá resultados amargos (e nisso consiste as expiações involuntárias), até que, um dia, esse sofrimento moral lhe motive a dizer: “chega! Cansei de agir assim! Cansei de sofrer por ser imperfeito! Preciso me livrar dessas imperfeições!”. É nesse momento que, então, esse Espírito volta a escolher provas e expiações.

Lembramos, para terminar, que o conhecimento trazido pelo Espiritismo é de substancial importância para alavancar o processo de evolução do Espírito, pois, no momento em que, pela ciência, isto é, pela razão, ele entende que tem que ter vontade firme para vencer suas imperfeições, pode avançar em anos o que não avançou em sucessivas encarnações.




Um pouquinho sobre a psicografia

O estudo da Revista Espírita de Julho de 1858 nos abriu espaço para um aparte importante, a respeito da Psicografia. Falamos sobre os tópicos seguintes em nosso encontro, conforme poderão ver abaixo.

De O Livro dos Médiuns    

178. De todos os meios de comunicação, a escrita manual é o mais simples, mais cômodo e, sobretudo, mais completo. Para ele devem tender todos os esforços, porquanto permite se estabeleçam, com os Espíritos, relações tão continuadas e regulares, como as que existem entre nós. Com tanto mais afinco deve ser empregado, quanto é por ele que os Espíritos revelam melhor sua natureza e o grau do seu aperfeiçoamento, ou da sua inferioridade. Pela facilidade que encontram em exprimir-se por esse meio, eles nos revelam seus mais íntimos pensamentos e nos facultam julgá-los e apreciar-lhes o valor. Para o médium, a faculdade de escrever é, além disso, a mais suscetível de desenvolver-se pelo exercício.

Médiuns Mecânicos

São aqueles cujo movimento do lápis, da caneta ou mesmo das mãos sobre um teclado se dão de forma independente à sua vontade. O movimento é ininterrupto e o médium não tem a menor consciência do que escreve.    

179. […] Quando se dá, no caso, a inconsciência absoluta, têm-se os médiuns chamados passivos ou mecânicos. É preciosa esta faculdade, por não permitir dúvida alguma sobre a independência do pensamento daquele que escreve.

Médiuns Intuitivos    

São aqueles que escrevem sob a influência do Espírito, tendo consciência do que escrevem.    

180. […] é possível reconhecer-se o pensamento sugerido, por não ser nunca preconcebido; nasce à medida que a escrita vai sendo traçada e, amiúde, é contrário à ideia que antecipadamente se formara. Pode mesmo estar fora dos limites dos conhecimentos e capacidades do médium.

Médiuns Semimecânicos

181. No médium puramente mecânico, o movimento da mão independe da vontade; no médium intuitivo, o movimento é voluntário e facultativo. O médium semimecânico participa de ambos esses gêneros. Sente que à sua mão uma impulsão é dada, mau grado seu, mas, ao mesmo tempo, tem consciência do que escreve, à medida que as palavras se formam. No primeiro o pensamento vem depois do ato da escrita; no segundo, precede-o; no terceiro, acompanha-o. Estes últimos médiuns são os mais numerosos.

Médiuns Inspirados    

São aqueles que escrevam conscientemente, mas cuja origem do conteúdo seja do contato com outros Espíritos. São como intuitivos, com a diferença que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível. Nesse caso, é muito mais difícil distinguir o pensamento próprio do que aquele que lhe é sugerido.    

182. […] Pode dizer-se que todos são médiuns, porquanto não há quem não tenha seus Espíritos protetores e familiares, a se esforçarem por sugerir aos protegidos salutares ideias.

Se todos estivessem bem compenetrados desta verdade, ninguém deixaria de recorrer com frequência à inspiração do seu anjo de guarda, nos momentos em que se não sabe o que dizer, ou fazer. Que cada um, pois, o invoque com fervor e confiança, em caso de necessidade, e muito frequentemente se admirará das ideias que lhe surgem como por encanto, quer se trate de uma resolução a tomar, quer de alguma coisa a compor. Se nenhuma ideia surge, é que é preciso esperar.

Médiuns de Pressentimentos

184. O pressentimento é uma intuição vaga das coisas futuras. Algumas pessoas têm essa faculdade mais ou menos desenvolvida. Pode ser devida a uma espécie de dupla vista, que lhes permite entrever as consequências das coisas atuais e a filiação dos acontecimentos. Mas, muitas vezes, também é resultado de comunicações ocultas, e sobretudo neste caso é que se pode dar aos que dela são dotados o nome de médiuns de pressentimentos, que constituem uma variedade dos médiuns inspirados.




Há perigo na evocação de Espíritos inferiores?

278. Uma questão importante se apresenta aqui, a de saber se há ou não inconveniente em evocar maus Espíritos.  Isso depende do fim que se tenha em vista e do ascendente que se possa exercer sobre eles. O inconveniente é nulo, quando são chamados com um fim sério, qual o de os instruir e melhorar; é, ao contrário, muito grande, quando chamados por mera curiosidade ou por divertimento, ou, ainda, quando quem os chama se põe na dependência deles, pedindo-lhes um serviço qualquer. Os bons Espíritos, nesse caso, podem muito bem dar-lhes o poder de fazerem o que se lhes pede, o que não exclui seja severamente punido mais tarde o temerário que ousou solicitar-lhe o auxílio e supô-los mais poderosos do que Deus. Será em vão que prometa a si mesmo, quem assim proceda, fazer dali em diante bom uso do auxílio pedido e despedir o servidor, uma vez prestado o serviço. Esse mesmo serviço que se solicitou, por mínimo que seja, constitui um verdadeiro pacto firmado com o mau Espírito e este não larga facilmente a sua presa. (Veja-se o n.º 212.)  

279. Ninguém exerce ascendentes sobre os Espíritos inferiores, senão pela superioridade moral. Os Espíritos perversos sentem que os homens de bem os dominam. Contra quem só lhes oponha a energia da vontade, espécie de força bruta, eles lutam e muitas vezes são os mais fortes. A alguém que procurava domar um Espírito rebelde, unicamente pela ação da sua vontade, respondeu àquele: Deixa-me em paz, com teus ares de matamouros, que não vales mais do que eu; dir-se-ia um ladrão a pregar moral a outro ladrão.  

282. 11.ª. Haverá inconveniente em se evocarem Espíritos inferiores? E será de temer que, chamando-os, o evocador lhes fique sob o domínio? “Eles não dominam senão os que se deixam dominar. Aquele que é assistido por bons Espíritos nada tem que temer. Impõe-se aos Espíritos inferiores e não estes a ele. Isolados, os médiuns, sobretudo os que começam, devem abster-se de tais evocações. (N.º 278.)