Ora, claro! Jesus não foi demagogo nem hipócrita ao nos chamar de “irmãos”. Ele demonstrou que era como nós, Espírito em evolução.
Esse é um postulado fundamental da ciência dos Espíritos: todos nós, sem exceção, fomos criados simples e ignorantes e, daí, seguimos o rumo da evolução. Quando e onde, só Deus o sabe. Sendo Deus a soberana justiça e o Amor em essência, não poderia criar criaturas privilegiadas, plenas e evoluídas, enquanto criaria outras para sofrerem. Esse é um dogma bastante antigo ensinado principalmente pela Igreja Romana, no qual não entraremos, dada a extensão de sua discussão.
Tudo o que está aqui exposto está fartamente postulado nas obras de Kardec, com muita clareza e racionalidade, sendo possível encontrar já em O Livro dos Espíritos as bases necessárias.
O fato que aqui destacamos é que ninguém evolui em linha reta para Deus. Esse é um falso conceito. A evolução de qualquer Espírito passa pelos mesmos passos, do passando por todos os reinos, inclusive o do animal, para, depois, ao adentrar o reino da consciência, adquirir o livre-arbítrio, isto é, a capacidade de escolher.
Contudo, como pode o Espírito escolher frente a uma situação que nunca enfrentou antes? É impossível. Ele age, obtendo um resultado que pode ser um erro ou um acerto. Então, da próxima vez que enfrentar a mesma situação, já tendo algum conhecimento do resultado segundo sua forma de agir, poderá escolher agir da mesma forma novamente, ou poderá tentar agir de outra forma, o que poderá lhe fazer acertar ou errar novamente.
Enquanto o Espírito está tentando, está progredindo. O erro que nasce da tentativa não é um pecado, mas apenas um erro. Ele não está cometendo o mal, mas o bem, pois não tinha base de julgamento próprio de como agir. É quanto ele passa a escolher agir errado, por motivos quaisquer, que o erro passa a se tornar um hábito e, então, se transforma em um imperfeição.
Kardec, em A Gênese (capítulo III), conclui:
“Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.
Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra, que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, IMPORTANTÍSSIMO:
Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.
Portanto, Jesus também passou pelo mesmo caminho, inclusive errando e acertando. Ele apenas é um Espírito que já percorreu toda a escala, enquanto nós ainda estamos no início dela, fazendo esforços para sair da terceira ordem da classificação da Escala Espirita. Hoje, se um Espírito no início da sua vida pudesse nos avaliar, pensaríamos que somos semideuses e julgaria como maravilhosos os parcos feitos que podemos realizar.
Longe de esse pensamento rebaixar Jesus, ele o eleva e, ao mesmo tempo, nos dá esperanças, pois demonstra que um Espírito que já trilhou todo esse caminho da evolução, por um livre gesto de bondade e caridade, voltou para nos ensinar. Um dia nós estaremos agindo com ele, mas não esqueçamos que, desde já, nós podemos também fazer a diferença na vida das pessoas, sem esperar nada em troca.
O Espiritualismo Racional e o Tratado de Filosofia de Paul Janet
Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.
Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.
Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.
O Espiritualismo racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.
Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.
A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosophia, de Paul Janet, obra em dois volumes, que podem ser baixados por aqui, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:
a) As ciências exatas ou matemáticas.
b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).
c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.
As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:
1) As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).
2) As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafa, numismática, geografa) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.
3) As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografa etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.
4) As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano ( JANET, 1885, p. 15-17).
As três últimas classes das ciências morais (históricas, filológicas e sociais) tratam dos fatos ou fenômenos morais que são exteriores ao ser humano, visto a partir do ponto de vista objetivo. Mas, considerando espírito humano “o conjunto das faculdades intelectuais e morais do homem, tais quais se manifestam interiormente em cada um de nós”, tudo o que concerne ao eu, princípio interior consciente de si mesmo, é o ponto de vista subjetivo, ou “estudo da própria alma” (JANET, 1885, p. 17). Daí um grupo de ciências chamadas ciências psicológicas. Elas adotam a metodologia da introspecção e foram um desenvolvimento da escola científica iniciada por Maine de Biran. Todavia, para sustentar o estudo psicológico pelo olhar espiritualista, as bases conceituais desse paradigma precisaram se tornar objeto de pesquisa, compreendendo uma ciência do homem (espírito humano) e uma ciência das causas primeiras, ou metafísica. Esses são os objetos das ciências filosóficas.
Veja mais detalhes na obra Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo.
Magia negra, feitiços, banhos de sal grosso e ervas, amuletos, wicca: tudo isso existe?
Raras são as crenças e mesmo as superstições que, atravessando os milênios, não tem algum fundo de verdade. Na verdade, Allan Kardec sempre se esforçou em mostrar que a verdade sempre esteve na história da humanidade, transmitida por todos os tempos, mas que apenas ficou abafada pelos erros característicos da ignorância humana e também pelos dogmas propositadamente criados para controlar as consciências.
Em “Instruções práticas sobre as manifestações espíritas”, Kardec assim define:
MAGIA, MAGO — do gr. mageia, conhecimento profundo da natureza; de onde magos, sábio, cientista formado em magia; sacerdote, sábio e filósofo entre os antigos Persas. Originalmente a magia era a ciência dos sábios; todos os que conheciam a astrologia, que se gabavam de predizer o futuro, que faziam coisas extraordinárias e incompreensíveis para o vulgo eram magos ou sábios que, mais tarde, foram chamados magos. O abuso e o charlatanismo desacreditaram a magia; mas todos os fenômenos que hoje reproduzimos pelo magnetismo, pelo sonambulismo e pelo espiritismo provam que a magia não era uma arte puramente quimérica e que, entre muitos absurdos, havia certamente muita coisa verdadeira. A vulgarização desses fenômenos tem por efeito destruir o prestígio dos que outrora operavam sob o manto do segredo e abusavam da credulidade, atribuindo-se um pretenso poder sobrenatural. Graças a essa vulgarização hoje sabemos que nada existe de sobrenatural e que certas coisas só parecem derrogar as leis da natureza porque não lhes conhecemos as causas.
A magia no Egito antigo
Um dos maiores exemplos disso eram os egípcios, profundos conhecedores da mediunidade e de muitas das verdades que o Espiritismo hoje professa. Contudo, esse conhecimento era reservado aos iniciados — os sacerdotes, em geral — e, para o público, era passada a imagem mística de deuses terríveis e vingativos e de um falso poder sobre-humano atribuídos aos sacerdotes e faraós. A mesma estrutura foi copiada por outras religiões que se seguiram.
Os egípcios praticavam, também, os diversos rituais de magia (heka) que, longe da acepção negativa que o ocidente faz da palavra, era uma dos dons concedidos pelo deus (em letra minúscula pois a crença deles não era exatamente como a nossa, num Deus único, soberano, etc):
Bem atendidos são os homens, o gado do deus. Ele fez o céu e a terra por sua causa, repeliu o monstro da água e fez o sopro da vida (para) seu nariz. Brilha no céu por sua causa e fez para eles as plantas, o gado, as aves e os peixes, (tudo) para alimentá-los. (porém) matou seus inimigos e destruiu até seus próprios filhos quando intentaram rebelar-se. Fez a luz do dia por sua causa e navega (no céu) para que o vejam. Erigiu […] seu santuário entre eles, e quando choram ele ouve. Fez para eles governantes ainda no ovo, guias para erguer as costas do fraco. Fez para eles a magia [heka] como arma para desviar o golpe do que acontece (de ruim), velando por eles dia e noite. Matou os traidores que se encontravam entre eles como um homem bate em seu filho por causa de seu irmão, pois o deus conhece cada nome.
(ARAÚJO, 2000, p. 291. Grifos nossos)((ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: UnB, 2000.)).
A magia entre os Druidas
Tanto os egípcios, quanto praticamente todos os povos, tiveram as suas práticas de magia. O mesmo se deu entre os Druidas, pessoas encarregadas das tarefas de aconselhamento e ensino e de orientações jurídicas e filosóficas na sociedade celta. Em geral, pode-se dizer que eram sacerdotes e sábios. Existiam desde antes de Cristo, há mais de 3000 anos.
Um dos magos mais lendários de todos, Merlin, teria sido também um Druida.
Tidos como bruxos e feiticeiros, cheios de rituais que incluiriam até sacrifícios humanos (o que até hoje não foi comprovado) — razão pela qual foram exterminados em grande parte pelos romanos — os druidas eram, na verdade, uma classe sacerdotal que vivia entre a natureza e que dela colhia os elementos necessários aos seus rituais, dentre eles a cura.
A magia pelos milênios
As ideias de magia ou de curandeirismo, como dissemos, permearam, talvez, todos os povos, em todas as épocas. Temos, no Brasil, os curandeiros, feiticeiros e pajés, dentre os povos indígenas e, mais recentemente, os benzedeiros, bem como a Wicca, nascida na Europa, e outras inúmeras denominações que, envoltas em dogmas, rituais e crenças particulares tem, no fundo, a crença no poder da reza ou da oração (ou das fórmulas) e da natureza para a cura das doenças — e acreditam, algumas delas, para promover um feitiço maléfico contra outrem. Os wiccanos, por exemplo, indo (até certo ponto) na direção do Magnetismo de Mesmer, que apresentaremos a seguir, acreditam que a magia é a lei da natureza ainda incompreendida ou ignorada pela ciência contemporânea((Valiente, Doreen (1973). An ABC of Witchcraft Past and Present. [S.l.]: Hale. 231 páginas)), e, como tal, não a veem como sendo sobrenatural, mas sendo uma parte dos “super poderes que residem no natural”.
O Magnetismo de Mesmer
Diria Kardec que “fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade“. Cuidemos, pois, de fazer uma aproximação com a ciência que já existe a respeito dessas crenças.
De forma muito resumida, Franz Anton Mesmer foi um médico, cientista e estudioso que, com base em experiências racionais, postulou a teoria conhecida como Magnetismo Animal((FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal. FEAL, 2022)).
Mesmer entrou em conflito a ciência de seu tempo, que, para explicar tudo o que não podia analisar pelos aparelhos e pelos sentidos humanos, criou a teoria dos fluidos (para os cientistas de então, a eletricidade seria um fluido, assim como o magnetismo e até mesmo a vida). Para ele — o que depois foi confirmado pelo Espiritismo e pela ciência atual — havia o Fluido Cósmico Universal, que dava origem a tudo. Cada estado diferente da matéria, mesmo aquilo que era intangível e imperceptível, seria apenas uma constituição diferente desse fluido original, vibrando em uma frequência diferente (é exatamente o que explica a Física moderna, mais de 200 anos após a teoria de Mesmer).
Segundo a teoria de Mesmer — e a ciência espírita — o ser humano é capaz, pela vontade, de interagir sobre aquilo que ficou conhecido como fluido perispiritual, que constitui a ligação entre o Espírito e a matéria.
O perispírito
O perispírito, conforme conclui Kardec, se liga ao corpo molécula por molécula((KARDEC, Allan. A Gênese. 2a Edição. FEAL, 2018)) (na verdade, célula a célula, mas naquele tempo não havia esse conhecimento orgânico) e, pela ação do pensamento, através dessa ligação intrínseca, lhe influencia positiva ou negativamente, podendo obter curas ou criar doenças. É o princípio das doenças psicossomáticas e, no fundo, do efeito placebo, para os quais a ciência moderna não consegue encontrar uma explicação definitiva justamente por ignorar as ciências do Magnetismo e do Espiritismo, tachadas por elas de supersticiosas.
Cabe destacar que o perispírito é uma teoria apoiada não só sobre tudo aquilo que grandes pensadores sempre conceberam, incluindo Sócrates e Platão — e o próprio Mesmer — mas também sobre a razão e a observação dos fenômenos e das comunicações espíritas, tal como apresentado aqui. Diria Kardec, em O Livro dos Médiuns:
Numerosas observações e fatos irrecusáveis, de que mais tarde falaremos, levaram à consequência de que há no homem três componentes: 1.º, a alma, ou Espírito, princípio inteligente, onde tem sua sede o senso moral; 2.º, o corpo, invólucro grosseiro, material, de que ele se revestiu temporariamente, em cumprimento de certos desígnios providenciais; 3.º, o perispírito, envoltório fluídico, semimaterial, que serve de ligação entre a alma e o corpo.
[…]
O perispírito não constitui uma dessas hipóteses de que a ciência costuma valer-se para a explicação de um fato. Sua existência não foi apenas revelada pelos Espíritos, resulta de observações, como teremos ocasião de demonstrar. Por ora e por nos não anteciparmos, no tocante aos fatos que havemos de relatar, limitar-nos-emos a dizer que, quer durante a sua união com o corpo, quer depois de separar-se deste, a alma nunca está desligada do seu perispírito.
Em A Gênese, conclui Kardec:
O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e sua ação sobre a matéria. Tem demonstrado a existência do perispírito, sobre o qual havia suspeitas desde a Antiguidade, sendo denominado por São Paulo Corpo Espiritual, ou seja, o corpo fluídico da alma após a destruição do corpo tangível. Sabemos atualmente que esse envoltório é inseparável da alma; que é um dos elementos constitutivos do ser humano; que é o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de ligação entre o Espírito e a matéria. O perispírito realiza um papel tão importante no organismo e em muitas afecções, que se liga tanto à Fisiologia quanto à Psicologia
O perispírito não é, portanto, uma teoria, nem mesmo uma hipótese, para o Espiritismo. Segue Kardec, na mesma obra, afirmando que…
Como meio de elaboração, o Espiritismo procede da mesma maneira que as Ciências positivas, ou seja, aplica o método experimental. Quando se apresentam fatos novos que não podem ser explicados por meio das leis conhecidas, ele os observa, compara-os, analisa-os e, remontando dos efeitos para as causas, chega à lei que os rege; depois deduz suas consequências e procura suas aplicações úteis. Não estabelece nenhuma teoria preconcebida. Assim, não apresenta como hipótese nem a existência, nem intervenção dos Espíritos, nem mesmo o perispírito, a reencarnação ou qualquer outro princípio da doutrina. Conclui pela existência dos Espíritos quando esta se tornou evidente pela observação dos fatos, e tem procedido da mesma maneira em relação aos outros princípios. Não foram, portanto, os fatos que vieram posteriormente confirmar a teoria, mas a teoria que veio em seguida para explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer que o Espiritismo é uma Ciência de observação, e não o produto da imaginação.
Curas, passes, magia negra e feitiçaria
Aqui, porém, é necessário fazer uma observação importantíssima, baseada nas duas ciências citadas: não sendo o magnetismo animal uma transferência de fluidos, mas, sim, uma ação da vontade sobre os fluidos perispirituais, é indispensável que a outra ponta partilhe da vontade e da aceitação para que essa interação prolongada se cumpra.
Quando Mesmer e muitos de seus discípulos curavam, essa ação se dava através de incontáveis horas de aproximação com o paciente, da simpatização de ideias e, figurativamente, de energias e, então, o tratamento, quase sempre por meio de passes, se iniciava por prolongadas horas, podendo ser realizado com periodicidade, de modo a alcançar o resultado. O paciente, nesse estágio, se colocava totalmente à disposição e em favor da cura que, não raro, se produzia de forma notável. Depois, o Espiritismo veio demonstrar que a essas curas estão, quase sempre, associados Espíritos bondosos que auxiliam no processo.
É claro que toda essa teoria de Mesmer não deixou de criar inimigos mordazes, mas isso é tema para uma leitura dedicada do leitor((FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Ibidem)).
Da mesma forma que se acontece com a cura, os rituais de magia negra e feitiçaria (que, na verdade, são a ação da vontade — embora maléfica — sobre o fluido perispiritual, com ou sem a participação de Espíritos inferiores) depende inexoravelmente da aceitação da contraparte para que a influência se cumpra. Veja que, de qualquer forma, não é um fluido que se transfere de um para outro, mas o efeito da ação mental de um sobre o outro. É por isso que, simplória e acertadamente, o dito “se não acreditar, não pega” é exato.
Vou além: sabe aquela ideia de que palavras de ódio são um jato de energia negativa que atinge o outro? Também é mito. O outro só se contamina com o mau estado se ele permitir, e o que acontece não é que ele deixa entrar uma energia, mas sim que ele próprio cria a “má energia”.
Vemos, portanto, que, no que tange à “magia negra”, começar por dissolver a superstição é o primeiro bem que se faz. A criatura que nem sequer acredita nisso já se coloca um pé distante dessa influência. Contudo, resta dizer que a vibração, aqui, entra com muita propriedade: o indivíduo que, mentalmente, se afasta do bem, seja pela ação ostensiva no mal, seja pelo cultivo das paixões e imperfeições, coloca seu perispírito (sendo matéria, mas em estado quintessenciado) em estado vibratório suscetível de ser influenciado pelos pensamentos de outros Espíritos em mesma sintonia, encarnados ou desencarnados. Portanto, se o indivíduo estiver nesse estado, não receberá um influxo de magia como se fosse algo tangível, mas, pela ação do pensamento de outrem, poderá se influenciar. Aliás, nem é necessário recorrer à magia para isso: as pessoas se influenciam, positiva ou negativamente, dia após dia.
Tudo é energia?
Essa afirmação é extremamente comum: somos energia. Contudo, antes de prosseguir, temos que dizer: nem tudo é energia.
Nem Deus, nem os Espíritos são energia. Energia é algo físico. Deus é outra coisa, e Espírito é ainda outra coisa. Se fossem energia, seriam matéria e, portanto, estariam sujeitos às transformações da matéria, inclusive à desagregação e, portanto, teriam um fim. Mas sabemos que o Espírito é imortal e que Deus, além de imortal, não tem também um começo.
É por isso que nada que é material tem influência sobre o Espírito, a não ser que ele acredite nisso. Pelo mesmo princípio, nada que é espiritual tem ação direta sobre a matéria. Não fosse assim, seria muito fácil um mal Espírito promover uma ação maléfica material sobre um encarnado, inclusive lhe criando doenças e instalando “chips” de controle. Frisamos: tudo isso não passa de superstição, e é nesse sentido, aqui tão bem entendido, que, em O Livro dos Espíritos, consta o seguinte:
Pode um homem mau, com o auxílio de um mau Espírito que lhe seja dedicado, fazer mal ao seu próximo?
551. Pode um homem mau, com o auxílio de um mau Espírito que lhe seja dedicado, fazer mal ao seu próximo?
— “Não; Deus não o permitiria.”
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 1860
Em “Deus não o permitiria” está encerrada toda a explicação feita até aqui: um homem mau, com ou sem a ajuda de um mau espírito, não consegue fazer o mal contra outrem, através de magias, feitiços ou conjurações. “É da lei de Deus”.
Diríamos, porém: “mas um homem pode fazer um mal a outrem por meios diretos, físicos mesmo”. Isso parece lógico… Mas, se pensarmos de forma mais profunda, mesmo esse mal feito fisicamente, como, por exemplo, uma ferida por uma arma ou mesmo a morte, somente pode representar o mal para sua vítima se essa se permitir atingir. Ora, o outro pratica uma ação, afastada do bem, por ignorância de que está fazendo o mal para si mesmo. Por mais que me doa, é da minha escolha me deixar ser atingido por essa ação, me permitindo demorar sobre pensamentos de raiva, angústia, revolta, vingança, etc., que é quando eu mesmo faço o mal para mim. Veja que pensamento libertador!
Quer um exemplo prático? Pensemos em Jesus: do nosso ponto de vista, fizemos muito mal a ele. Do ponto de vista dele, contudo, nada do que fizemos o atingiu, e ele não sofreu nenhum mal, senão dores físicas, pois seu grau de elevação espiritual não lhe deixava mais suscetível a qualquer coisa que o fizessem. Eis a nossa meta.
Banhos de descarga, sal grosso, ervas e amuletos
Chegando a este ponto, supomos que já está bastante claro o princípio da ação “energética” entre os seres encarnados e o princípio da inexistência de uma ação energética entre Espíritos e encarnados, e vice-versa. Ficou evidenciado que nenhuma ação Espiritual, seja de um Espírito encarnado ou desencarnado, pode afetar diretamente outro indivíduo encarnado (e resta descartar que a ação entre Espíritos desencarnados é sempre moral e depende da aceitação do outro). Portanto, recomendar quaisquer artifícios materiais para atrair ou repelir essas influências é quase de todo uma perda de tempo, já que o que se quer é que a parte afetada racionalmente se coloque em atitude firme contra as influências do pensamento estranho, o que se dá apenas com a transformação moral ativa do indivíduo.
Mas e o efeito placebo? É claro que não o descartamos. Uma pessoa pode, sim, acreditando no poder de um amuleto ou de uma erva, ou ainda de uma limpeza corporal, ou do ambiente, assumir uma atitude diferente, mais positiva e ativa e, daí então, afastar as influências anteriores. Contudo, vejamos, aqui é a vontade dessa pessoa, e não a suposta força desses elementos, que promoveu a modificação de seu estado. Contudo, há um lado muito negativo nesse aspecto: sendo motivada por crenças supersticiosas e não científicas, muitas vezes a pessoa pode se esquecer do principal, que a própria modificação, outorgando o efeito desejado à ação desses elementos e, assim, prolongando seu próprio sofrimento.
E, é ainda mais claro, não estamos descartando os efeitos físicos que a matéria tem sobre a matéria; é, aliás, o princípio de tudo o que dissemos acima.
Para finalizar, podemos recorrer até à tão mencionada ação do mentor de André Luiz, no romance Nosso Lar, que vai à floresta, na Terra, e lá supostamente colhe elementos extraídos das árvores para tratar do corpo do indivíduo encarnado. Sabemos do princípio das curas espirituais, mas é importante lembrar que, para que essa ação seja possível — desde a colheita dos princípios naturais, até a aplicação ao enfermo, é necessária a existência de um médium que, mesmo sem consciência, possa fornecer algum fluido perispiritual específico para essa tarefa. Quem sabe, seguindo nessa teoria, isso não se deu através da própria filha de André Luiz, que demonstrava ter uma mediunidade latente?
E a prece ou a oração, funcionam?
Depende, porque a oração ou a prece deve ter o intuito honesto do indivíduo que reconhece suas imperfeições, suas faltas e roga o auxílio para vencer essas dificuldades. É esse o propósito da prece. Por ela, o indivíduo eleva seus pensamentos, muda sua sintonia e se coloca em contato com os Espíritos superiores — desde que sua intenção seja honesta e verdadeira.
Contudo, se a oração é feita “de boca pra fora”, uma repetição maquinal de fórmulas “sagradas” e se, sobretudo, ela transfere a responsabilidade a outrem, seja a Deus, seja a um Espírito de qualquer ordem, ela será ineficaz, já que a pessoa não está atenta e compromissada com sua própria modificação. Nem Deus, nem qualquer Espírito fazem nada por nós, senão nos inspirar e nos direcionar para as situações, os conteúdos e os conhecimentos que poderão nos auxiliar. Ou seja, nos levam até a porta, muitas vezes, mas abri-la e entrar é algo que depende de nós, exclusivamente.
Vejamos um exemplo:
“[…] Agora apelo ao Círculo de Segurança da 13ª dimensão para que sele, proteja e aumente completamente o escudo de Miguel Arcanjo, assim como para que remova qualquer coisa que não seja de natureza Crística e que exista atualmente dentro deste campo.
Agora apelo aos Mestres Ascensionados e a nossos assistentes Crísticos para que removam e dissolvam completamente, todos e cada um dos implantes e suas energias semeadas, parasitas, armas espirituais e dispositivos de limitação auto impostos, tanto conhecidos como desconhecidos. Uma vez completado isso, apelo pela completa restauração e reparação do campo de energia original, infundido com a energia dourada de Cristo.”
Esse é um trecho da tão conhecida “oração dos 21 dias de São Miguel Arcanjo para a libertação espiritual”. Analise esse trecho e, se desejar, o restante dela. Compare com tudo o que expusemos até aqui. Ela é repleta de conceitos falsos e é baseada no conceito heterônomo: faça por mim.
Portanto, repetimos, para frisar e finalizar: encarnados ou desencarnados, tudo, absolutamente tudo, do mal à cura, depende única e exclusivamente da ação da nossa vontade. Sem ela, nada se faz.
Podcasts de Espiritismo
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Colônia espiritual “Rancho Alegre” para animais
Muito se tem falado nesse tema. Muitos ensinam que os animais, depois da morte, vão para uma linda colônia espiritual, chamada Rancho Alegre, onde os animais ficariam juntos, em deleite das belezas naturais de lugares no mundo dos Espíritos. Parece bonito, mas é importante lembrar que o Espiritismo não pode ser feito sobre ideias que não tenham sido validadas pela metodologia científica necessária, porque, do contrário, falsas ideias podem gerar enganos, erros e apegos em nossas mentes.
O que diz a ciência espírita
Kardec, em O Livro dos Espíritos, apresenta importantes conceitos sobre os animais:
597. Pois que os animais possuem uma inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio independente da matéria?
“Há, e que sobrevive ao corpo.”
a) – Será esse princípio uma alma semelhante à do homem?
“É também uma alma, se quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta palavra. É, porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus.”
598. Após a morte, conserva a alma dos animais a sua individualidade e a consciência de si mesma?
“Conserva sua individualidade; quanto à consciência do seu eu, não. A vida inteligente lhe permanece em estado latente.”
599. À alma dos bichos é dado escolher o animal em que encarne?
“Não, pois que não possui livre-arbítrio.”
Os animais, tem, portanto, uma alma, ou Espírito. Contudo, esse Espírito, apesar de não ser uma máquina, ainda não tem consciência de seu próprio “eu”. Não tem, portanto, livre-arbítrio, pois este vem com a consciência das leis de Deus:
621. Onde está escrita a lei de Deus?
“Na consciência.”
É quando o homem adquire a consciência que, com ela, adquire o livre-arbítrio. Antes, ele é imperado pelos instintos: a fome o chama a comer, o medo o chama a se proteger, a raiva serve para se defender. Ao adquirir o livre-arbítrio, passa a ter a livre escolha, de onde nascem erros e acertos. Dos erros, pode nascer um aprendizado ou uma paixão, que é quando o indivíduo escolhe utilizar o instinto para fortalecer um mau hábito que lhe cause algum tipo de regozijo. Disso, nasce uma imperfeição, que custará para ser vencida através das encarnações.
Animais não tem sofrimento moral, nem necessidade de refletir sobre eles
O animal, porém, não está nesse patamar evolutivo, ainda. Quando o leão mata a zebra, não está cometendo um mal, mas, sim, um bem, pois está agindo segundo as leis de Deus. O animal, portanto, não tem culpa, não tem arrependimento, enfim, não tem sofrimento moral (embora alguns animais aprendam, no contato com o ser humano, a esboçar reações similares). Vem daí que o Espírito vivendo a fase do animal não necessita do período entre as vidas para aprender e refletir, pois seu aprendizado, por enquanto, se dá diretamente no contato com a matéria, vivendo sob o instinto e sob alguma capacidade de vontade que, contudo, não representa o livre-arbítrio, o que coloca abaixo a ideia de uma colônia espiritual Rancho Alegre.
600. Sobrevivendo ao corpo em que habitou, a alma do animal vem a achar-se, depois da morte, num estado de erraticidade, como a do homem?
“Fica numa espécie de erraticidade, pois que não mais se acha unida ao corpo, mas não é um Espírito errante. O Espírito errante é um ser que pensa e obra por sua livre vontade. De idêntica faculdade não dispõe o dos animais. A consciência de si mesmo é o que constitui o principal atributo do Espírito. O do animal, depois da morte, é classificado pelos Espíritos a quem incumbe essa tarefa e utilizado quase imediatamente; não lhe é dado tempo de entrar em relação com outras criaturas.”
Já para o Espírito humano, o período de erraticidade, entre uma encarnação e outra, é necessário ao seu adiantamento e ao seu aprendizado:
227. De que modo se instruem os Espíritos errantes? Certo não o fazem do mesmo modo que nós outros?
“Estudam o seu passado e procuram meios de elevar-se. Veem, observam o que ocorre nos lugares aonde vão; ouvem os discursos dos homens esclarecidos e os conselhos dos Espíritos mais elevados, e tudo isso lhes incute ideias que antes não tinham.”
Precisamos retornar a Kardec
Portanto, amigos, reflitamos sobre a doutrina esquecida pelo Movimento Espírita brasileiro. Os livros de Kardec não nasceram por sua autoria, mas pelo estudo dedicado, organizado e metodológico da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos. Na Doutrina Espírita, existe uma construção, onde cada ponto está firmemente estabelecido sobre outro, anteriormente estabelecido, pelo mesmo processo. É necessário, portanto, tomar muito cuidado com os “novidadeiros” do Espiritismo, falando, quase sempre, de suas próprias opiniões. Não é demais lembrar que aquilo que as pessoas veem em estado de sono ou de sonambulismo (desdobramento) não represente, sempre, a verdade, podendo estar alterado por ideias e crenças pessoais.
Kardec sempre destacou a necessidade de a tudo julgar, frente à razão e à ciência, coisa que o Movimento Espírita não tem feito. Esse mesmo Movimento, esquecido voluntariamente disso, passou a aceitar as comunicações espirituais e as opiniões de médiuns em destaque como se fossem algo inquestionável… O que é um enorme erro, já que o papel de qualquer médium é transmitir a comunicação, cabendo aos demais julgá-la em questão de sua aceitação ou não, e não cabendo ao médium melindrar-se por isso.
Este artigo, enfim, é praticamente um grito, um rogo: estudemos Kardec, estudemos a suas obras, pois a base da ciência espírita, essa mesma base da fé raciocinada, aquela que, segundo o professor, “… só é aquela que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade”, está fundamentada ali. Em suma: não, os animais não vão para a Colônia Espiritual Rancho Alegre, pois não precisam disso. Em verdade, nem nós, Espíritos mais evoluídos, precisamos: é um mito que, quando morrer, nossos Espíritos irão para quaisquer colônias esperituais, tomar sopinha e descansar, porque o Espírito não precisa de nada disso.
Criança é incendiada e morre em ritual para evocar espíritos malignos em Minas
Do jornal O Tempo:
Durante a seita, foram jogadas ervas e álcool no corpo da criança. Depois, o líder espiritual ateou fogo no corpo dela com o uso de uma vela. A menina teve quase 100% do corpo queimado. Os avós da criança, uma tia e a mãe dela estavam no ritual quando ocorreu o crime. Os familiares ficaram com queimaduras por tentarem apagar o fogo do corpo de Maria Fernanda.
Infelizmente, esse é mais um dos casos que acreditávamos ter ficado no passado da bestialidade humana, mas que ainda hoje se reproduzem, e até mesmo em solo brasileiro. Muito longe de tal ato estar atrelado ao Espiritismo, está diametralmente oposto a ele, pois, do estudo da Doutrina, depreende-se que os Espíritos não requerem nenhum tipo de ritual, e a abordagem do caso seria totalmente diferente.
Na internet circulam informações que a criança estava doente e que o falso líder espiritual teria prometido uma cura durante o ritual, mas essa informação não foi confirmada pela Polícia Civil ainda
Entendo, com isso, que o caso em questão foi uma espécie de exorcismo, prática esta condenada pelos próprios Espíritos:
477. As fórmulas de exorcismo têm alguma eficácia sobre os maus Espíritos?
“Não. Estes últimos riem e se obstinam, quando veem alguém tomar isso a sério.”
O Livro dos Espíritos
Não demoremos em lembrar, para concluir, que a superstição e o misticismo tem um lado muito tenebroso, que é o de incutir no homem o medo das coisas naturais, para ele inexplicáveis. Pela ação dessas crenças, matam-se gatos, corujas e outros animais, acreditando-se em “mau agouro” e, infelizmente, até mesmo crianças, em rituais irracionais e absurdos.
Infelizmente, é mais um caso para manchar a reputação dos espiritualistas, mas também para motivá-los a estudar o Espiritismo a fim de conquistarem, nessa ciência, o conhecimento importante para se afastarem desse tipo de situação escabrosa.
A morte do filho de Cristiano Ronaldo: reflexões
Morreu, durante o parto, um dos bebês que a esposa de Cristiano Ronaldo estava esperando. Mais uma situação oportuna não somente para analisar friamente, mas para levar, ao mundo, a visão filosófica da Doutrina que abraçamos.
Em primeiro lugar, é necessário afastar os absurdos. Há quem diga que isso se deu por conta da ação do “carma”, que, já sabemos, não existe. Então, como pode Deus permitir tal desgraça a uma alma que sequer deu os primeiros passos na escola da Terra?
De um lado, há a opinião do materialismo: não há Deus, não há Espírito, não há vida após a morte; há apenas a carne, e nós somos seres que vivemos do pó ao pó. Não cabe, aqui, uma digressão filosófica nesse sentido, já que essa visão está totalmente afastada de nossas ideias. Cabe apenas questionar: se assim fosse, seríamos meras máquinas, para as quais o bem e o mal nada representam, e onde o pior dos assassinos poderia ser igualado com o melhor dos humanitários. O bem, na verdade, não seria nada mais que uma ilusão e a vida na Terra não valeria absolutamente para nada.
Nos encontrando na linha daqueles que reconhecem a existência de Deus e da continuidade da vida após a morte, precisamos fazer uma distinção entre aqueles que pressupõem na reencarnação a explicação para tudo e aqueles que creem que a alma seja criada no instante do nascimento ou da fecundação. Na última hipótese, a criança que morre antes de seus primeiros passos seria muito sortuda, pois, não tendo feito bem nem mal, não pôde errar, ao passo que aquele que viveu até a velhice, tendo quase sempre cometido vários erros, talvez não tenha encontrado tempo para corrigi-los quando ainda vivo. Perguntamos que Deus seria esse que não daria mais chances ao indivíduo arrependido.
Não, nossas posições não se enquadram entre nenhuma dessas anteriores, senão naquela da doutrina da reencarnação, única na qual encontra razão e lógica que explique a tudo de forma clara e sensata. Então, diremos: o indivíduo que morre ainda enquanto criança é um Espírito, que apenas desfrutaria de mais uma encarnação com vistas a evoluir. Não tendo vingado o bebê, nascerá novamente em outras condições, continuando sua jornada evolutiva. Não há, para ele, nem vantagem nem desvantagem.
Resta saber se sua morte tem algo de útil ou mesmo de necessário. Em O Livro dos Espíritos, constam as seguintes perguntas e respostas:
345. É definitiva a união do Espírito com o corpo desde o momento da concepção? Durante esta primeira fase, poderia o Espírito renunciar a habitar o corpo que lhe está destinado?
“É definitiva a união, no sentido de que outro Espírito não poderia substituir o que está designado para aquele corpo. Mas como os laços que ao corpo o prendem são ainda muito fracos, facilmente se rompem. Podem romper-se por vontade do Espírito, se este recua diante da prova que escolheu. Em tal caso, porém, a criança não vinga.”
346. Que faz o Espírito se o corpo que ele escolheu morre antes de se verificar o nascimento?
“Escolhe outro.”
a) – Qual a utilidade dessas mortes prematuras?
“Dão-lhes causa, as mais das vezes, as imperfeições da matéria.”
347. Que utilidade encontrará um Espírito na sua encarnação em um corpo que morre poucos dias depois de nascido?
“O ser não tem então consciência plena da sua existência; a importância da morte é quase nenhuma. Frequentemente é, como já dissemos, uma prova para os pais.”
É muito claro: estamos encarnados e, portanto, estamos sujeitos às leis da matéria. Ao mesmo tempo, a morte prematura é uma prova (e não um castigo, em nenhuma hipótese) para os pais, que podem adquirir uma experiência muito importante ao passar por essa experiência.
31 de Março: Aniversário de morte de Allan Kardec
Dia 31 de março. Data pouco conhecida ou pouco lembrada no meio Espírita, é o dia em que morreu, em 1869, o querido e emérito professor, cientista, filósofo e estudioso dos fenômenos espíritas, Hypolite Leon Denizard Rivail – grafado dessa forma, mesmo, conforme ele próprio corrigiu, em documento de punho próprio, disponibilizado pelo CDOR. Esse foi Allan Kardec, aquele que dedicou seus últimos anos de vida e fez, em pouco mais de uma década, aquilo que poucos fazem em uma vida: obteve, pela observação racional e metodológica dos fenômenos espíritas, naturais e inteligentes, toda uma Doutrina, consoladora em sua essência e que, um dia, será reconhecida como a grande revolução no pensamento humano a respeito da vida, da sociedade, da caridade e da verdade sobre o bem.
O triste dia
Com uma beleza poética, Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, assim se expressa, sobre a morte de Kardec:
Como sentia que sua encarnação passava de maneira célere e constatava que suas tarefas doutrinárias continuavam aumentando, Allan Kardec evitava perder tempo. […] Ali [na Passagem Sainte-Anne] trabalhava desde a manhã até a noite e, frequentemente, desde a noite até a manhã, sem ao menos poder descansar, uma vez que estava só para ocupar-se de um trabalho cuja dimensão dificilmente se pode imaginar e que aumentava à medida que o espiritismo se difundia.
Como o contrato de aluguel do imóvel na Passagem Sainte-Anne estava para vencer, Allan Kardec pretendia deixá-lo no dia 1º de abril de 1869 e retirar-se para a Villa Ségur, onde tinha a intenção de concentrar-se mais na elaboração de textos doutrinários. Nessa mesma data, o escritório para assinatura e expedição da Revista Espírita, bem como a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seriam transferidos da Passagem Sainte-Anne para a sede da Livraria Espírita, na rua de Lille, nº 72.
Na quarta-feira, 31 de março, Allan Kardec encontrava-se na Passagem Sainte-Anne organizando seus livros e papéis para a mudança, que já havia começado e que deveria terminar no dia seguinte. Durante a manhã, recebeu um funcionário de uma livraria que desejava adquirir um número da Revista Espírita. Ao lhe entregar o exemplar, subitamente Allan Kardec perdeu os sentidos e tombou no solo sem haver dito sequer uma palavra.
[…]
Até o último instante de sua existência física, Allan Kardec deixou profundos ensinamentos. Morreu como viveu: trabalhando pelo Espiritismo. Suas mãos laboriosas despediram-se deste mundo entregando a Revista Espírita — periódico no qual deixou registrados seus ensinamentos, suas lutas, suas vitórias e, naquele último momento, sua imortalidade.
[…]
No cemitério, os curiosos procuravam posicionar-se nos lugares de onde podiam escutar os discursos. No entanto, quando o ataúde desceu para o fundo da cova, a emoção calou as palavras; fez-se um grande silêncio.
E esse silêncio parece ter se arrastado até os dias atuais, em que a grande parte do movimento espírita, em realidade, não conhece Allan Kardec e, muito menos, seu trabalho na formação da Doutrina Espírita — o Espiritismo.
Allan Kardec esquecido
Com grande tristeza, podemos averiguar que, nos pontos históricos que envolvem esse grande trabalho, o nome de Kardec não existe, nem como Allan Kardec, nem como Rivail: foi apagado pelo tempo, assim como fizeram com todos os cientistas que se dedicaram a estudar o Espiritismo e o Magnetismo. Não há uma placa dedicatória a Kardec. Não há um busto. Não há uma inscrição na parede ou na calçada, quando, por muito menos, personalidades do satirismo ou do horror merecem uma gravação dedicada, sob a luz dos holofotes, nas calçadas da fama que existem, mundo afora. Não. Nas ruas da França, parece que o único lugar em que o querido professor merece uma lembrança é no cemitério, como que por obrigação, e onde, morto e enterrado, não chama a atenção de ninguém com suas ideias “subversivas”.
Mas a grande questão aqui não é apenas o esquecimento da figura de Allan Kardec, mas do seu papel como cientista espírita e da sua metodologia, da sua honestidade, da sua humildade e da sua seriedade no estudo do Espiritismo. Não cultuamos Kardec, mas reconhecemos seu trabalho e sua dedicação. Em uma paródia muito pertinente, há quem acredite, hoje, que a gravidade é uma grande farsa, por não ter estudado e compreendido o estudo de Isaac Newton, que principiou as ciências físicas, como hoje as conhecemos. Dá-se o mesmo com o Espiritismo.
Uma Doutrina desconhecida
Dizíamos que o Movimento Espírita desconhece Kardec e seu trabalho. Sim, de tal forma que, de fato, em grande parte, desconhecem a própria Doutrina que dizem professar. Poucos sabem do enorme desvio que a Doutrina, ou, antes, o Movimento Espírita, sofreu após a morte de Kardec, pelas mãos de Leymarie e com a influência de Roustaing e seus seguidores; poucos sabem que as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” foram adulteradas, respectivamente nas edições 5.ª e 4.ª; poucos sabem que essa influência se espalhou e se instalou no Movimento Espírita nascente, aqui no Brasil, logo em seus primeiros passos; poucos sabem que o próprio Bezerra de Menezes, por suas inclinações religiosas, preferiu as ideias roustainguistas sobre as espiritistas e que, por isso, as difundiu no Brasil; poucos sabem, ainda, que Kardec planejava dar início, a partir de abril de 1869, a uma nova fase do Espiritismo, sem figuras ou entidades centralizadoras e sem hierarquias, de modo que ninguém pudesse ditar regras — cenário totalmente diferente do que vivemos em nosso país, onde, desde os primórdios do Movimento Espírita, uma Federação se autointitulou centralizadora e regradora — a mesma Federação que chegou a colocar, também, Roustaing acima de Kardec.
No Brasil, país onde o Espiritismo parece ter conquistado o maior número de adeptos, vivemos um movimento espiritista religioso, com rituais e paramentos, onde “o telefone só toca de lá para cá” virou lei e, pior, onde as ideias de pecado e castigo, carma, “lei de causa e efeito” ou “lei de ação e reação”, que nunca fizeram parte dessa Doutrina, passaram a ser tomadas como doutrinárias.
Que me desculpe o querido Chico, mas, na afirmação sobre o telefone, ele errou, ou foi mal entendido. Contudo, erram ainda mais os adeptos, que, por falta de estudo e de forma irrefletida, passaram a tomar opiniões de médiuns e de Espíritos como se fossem a lei ou a expressão inquestionável da verdade e da sabedoria. É por isso que reafirmamos: o Movimento Espírita desconhece o Espiritismo, pois o ponto fundamental da Doutrina é aquele com o qual Kardec inicia sua última obra, A Gênese, apresentando, logo na primeira página:
Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.
O Movimento desconhece, muito mais, a formação da Doutrina, apresentada largamente na Revista Espírita (leia este artigo), onde Kardec, número após número, demonstra várias evocações de Espíritos das mais diversas categorias (conforme a escala espírita), afirmando sua utilidade. Kardec evocou assassinos e cientistas, sábios e ignorantes, suicidas há poucos dias de sua morte, reis e rainhas e, de todos, sempre obteve ensinamentos importantes, que, progressivamente, através do método da busca pela concordância universal, sob o julgamento da razão, do bom-senso e da ciência humana, foram constituindo toda uma Doutrina e que, depois, serviram de base para a formação das demais obras e para a complementação de O Livro dos Espíritos.
As adulterações desconhecidas
Mas não podemos culpar, de todo, apenas a falta de empenho no estudo, pois muitos estudaram, mas estudaram sem saber que estudavam algo adulterado, como foi o caso de A Gênese e O Céu e o Inferno[1]. Ora, um dos pontos mais controversos de OCI nasceu de uma adulteração, pois a seguinte frase não existia na obra original, escrita por Kardec:
Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.
Texto inserido na versão adulterada de OCI, a partir da 4a edição
Sabemos hoje, por documentos históricos, que não apenas essas obras, mas todo o movimento espírita, sob as mãos de Leymarie, foi adulterado e subvertido, em nome do dinheiro e da vaidade. Um dos piores casos foi aquele conhecido como “O processo dos espíritas“, que manchou a reputação do Espiritismo na sociedade francesa.
O contexto de Allan Kardec
Também não conhecíamos o contexto de Kardec, onde O Espiritualismo Racional e as Ciências Morais davam base à formação educacional francesa, como podemos averiguar largamente em “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, por Paulo Henrique de Figueiredo, obra essa que também apresenta a face puramente autônoma do Espiritismo, completamente afastado de noções como as de carma, largamente presentes no Movimento Espírita atual. Não apenas isso, temos também a questão do Magnetismo, citado constantemente por Kardec como ciência gêmea do Espiritismo, de modo que uma sem a outra ficariam incompletas. Ora, Mesmer, “pai” do Magnetismo, só passou a ser compreendido recentemente, através da recuperação e da tradução de suas obras, culminando no livro Mesmer: A ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.
Enfim: nós precisamos recuperar Kardec. Precisamos estudá-lo em suas obras e na Revista Espírita; precisamos compreender o contexto no qual estava inserido; precisamos conhecer o Magnetismo; precisamos compreender o Espiritismo como ciência, que de fato é, e não como religião, que nunca foi, senão sob a compreensão da religião natural, conforme o entendimento do Espiritualismo Racional. E, entendendo o Espiritismo em sua essência, precisamos fazê-lo sair dos círculos fechados dos centros espíritas, para fazê-lo conquistar a sociedade através de suas ideias renovadoras e verdadeiramente consoladoras. Mas, para isso, a mudança precisa começar pelo indivíduo, se espalhando, então, para a família e para a sociedade.
Kardec superado?
Muitos pensam e afirmam o seguinte: “Kardec está superado no passado, então esqueçamo-lo e sigamos com o estudo dessas novas concepções que temos hoje”, o que é um erro profundo.
Espiritismo é ciência, tanto sob o aspecto das ciências morais francesas, no contexto de seu nascimento, quanto do ponto de vista de uma ciência de observação, que deduz, infere, analisa empiricamente, como fica muito claro para todos que estudam-no em suas fontes. Como ciência, tem uma base, sem a qual não se pode avançar. O Físico Nuclear também precisa passar por Newton, para depois chegar a Einstein e, depois, nos atuais cientistas.
No Espiritismo, tem pelo menos duas coisas que não mudaram, com relação ao nosso estado atual: a moral e os Espíritos. A primeira precisa ser estudada desde Jesus, e mesmo antes, sendo essa uma das propostas centrais do Espiritismo. Já os Espíritos continuam pertencendo a toda aquela escala, proposta por Kardec e refinada pelos Espíritos, e continuam se comunicando conosco, nos influenciando e conduzindo pelas mesmas formas que sempre utilizaram. Desde que, nisso, de forma inegável, há uma ciência, é necessário estudá-la e compreendê-la.
É por esquecer Kardec que, hoje, se aceita no movimento espírita conteúdos perniciosos, irracionais e antidoutrinários.
Se temos muito a aprender? Ora, mas é claro que sim! E os Espíritos nos ensinam aquilo que nós estamos prontos para entender, segundo o progresso da nossa ciência material. Kardec “arranhou” em assuntos científicos tão profundos, mas que ainda não podiam ser entendidos. Imaginem o que ele poderia alcançar se, naquela época, soubéssemos o que conhecemos hoje? Imagine, aliás, o que um pesquisador sério, elevado e honesto como ele poderia obter, segundo a ciência atual, a respeito de tudo aquilo que não pôde ser aprofundado naquela época?
Mas isso, meus caros, somente será feito no momento certo. Por isso, faço minhas as palavras do Paulo Henrique de Figueiredo: estudemos, estudemos, estudemos, até cansar. Entendamos o Espiritismo na Revista Espírita e nos seus complementos. Estudemos as obras de Kardec, as de Bozzano, as que, hoje, estudam o contexto do Espiritismo, inserido no Espiritualismo Racional, e estudemos ainda o magnetismo de Mesmer.
Quando estivermos prontos, como outrora, os próprios Espíritos nos buscarão e, quem sabe, eles precisem voltar a girar mesas e tocar tambores invisíveis de modo a chamar nossa atenção.
Uma motivação a mais para o estudo
E, se te falta ainda uma motivação para se afundar nesses estudos, deixo a seguinte reflexão:
O que nos afasta da felicidade real são nossas imperfeições, nossos vícios morais, nossas paixões desenfreadas. Somente o Espírito que venceu suas imperfeições, através das provas, e que desenvolveu seu raciocínio, através do conhecimento, consegue progredir no caminho da evolução espiritual. Todos nós o faremos, mais cedo ou mais tarde, mas a velocidade depende da vontade de cada um, galgada na razão, pois somente faz a verdadeira mudança o Espírito que realmente entende, racionalmente.
Diz Kardec, em A Gênese: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.
Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra (que deu base a todas as traduções e edições futuras), que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, importantíssimo, omitido pela adulteração:
Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.
Tudo o que vivemos, portanto, como nos mostra a Doutrina, jamais se trata de castigo, mas, sim, de oportunidades para a nossa evolução. O Espiritismo é autônomo em sua essência — “Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta” [RE — outubro de 1858].
Se isso tudo não te motiva a estudar Kardec, não sabemos o que mais faria.
1. A editora FEAL já tem as traduções dessas obras, segundo o texto original. O contexto das adulterações de A Gênese pode ser entendido através da leitura da obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; já o das adulterações de O Céu e o Inferno pode ser entendido na obra “Nem céu, nem inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo”, por Lucas Sampaio e Paulo Henrique de Figueiredo
A eutanásia de Alain Delon e o Espiritismo
O ator francês Alain Delon afirmou que praticará eutanásia, segundo informa a matéria da Veja SP. Alain, que considera o suicídioassistido “a coisa mais lógica e natural”, disse, numa postagem no Instagram:
“Tomei a minha decisão há muito tempo, acho que a minha vida foi linda mas também muito difícil. Nunca gostei de envelhecer. Todas essas dores e desafios do cotidiano me deixam paralisado”
Infelizmente o ator não conhece o Espiritismo, o que seria quase cômico, se não fosse trágico, por ser, justamente, nascido na terra onde a Doutrina Espírita nasceu, há mais de 160 anos. Mas não falo, aqui, do Espiritismo-religião do movimento espírita atual, aquele que diz que o suicida sentirá o corpo sendo roído por vermes, ou que ficará sofrendo no “vale dos suicidas”, ou que renascerá em um corpo defeituoso. Já falamos sobre a irrealidade dessas afirmações genéricas neste artigo.
Não: aqui falamos do Espiritismo em sua essência científica, doutrina cuja teoria nasceu da observação racional dos ensinamentos universalmente concordantes dos Espíritos. Essa Doutrina, em sua essência, nos mostra o seguinte: a vida é uma oportunidade de aprendizado e elevação. Terminá-la antes do tempo, por conta própria, é uma grande perda de tempo, pois nos distancia da elevação e do aprendizado possibilitado pelas provas e pelas oportunidades da vida.
Acontece que cada segundo sobre a Terra, por difícil que seja, se bem enfrentado e vencido, nos aproxima do objetivo final, que é a felicidade dos bons e dos justos. Como alcançar, porém, esse estado de felicidade, sem nos livrarmos das imperfeições e das paixões — o que somente se faz através das provas da vida, da vontade e do aprendizado?
Isso, é claro, é totalmente diferente do caso da eutanásia animal.
O ator, infelizmente, não está atento para esse fato da nossa realidade espiritual. Do outro lado, após cometer o ato, provavelmente um dia verá a inutilidade do mesmo… E é isso. Não há punição: há erro, nascido da ignorância. Entender melhor essas questões alavanca nosso progresso, nos permitindo alcançar mais cedo a felicidade, de acordo com nosso empenho em nos elevarmos pelo próprio esforço. Desejamos a ele, e a outros, que possam cedo compreender essas questões.
Encerro deixando para reflexão o assunto, conforme abordagem em O Evangelho Segundo o Espiritismo:
Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura? 28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador. Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim?
Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até à borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar ideias diversas das que tinha? Ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a hora derradeira. A iência não se terá enganado nunca em suas previsões?
Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.
O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no além-túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Minorai os derradeiros sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro.
S. Luís. Paris, 1860
O tapa de Will Smith: reflexões
Para quem não viu, ontem, na noite da premiação do Óscar 2022, Will Smith, ao subir ao palco, deu uma grande bofetada no rosto do apresentador, Chris Rock. Acontece que, pouco antes, este havia feito uma piada, associando a esposa de Will, que sofre de perca de cabelos por conta de uma doença, com a protagonista de um filme antigo, onde a protagonista tem os cabelos raspados.
Will se levantou, foi em direção a Chris, se “armou”, como podemos ver no comportamento físico e lhe desferiu um grande tapa no rosto. Não, não parece ter se tratado de encenação, como podemos ver no vídeo ao lado e, mesmo que fosse, a reflexão permaneceria, como poderíamos fazer a respeito de um filme.
E o que é que isso tem a ver com nosso assunto, aqui? Bem, na verdade, muito, assim como acontece com muitos dos acontecimentos cotidianos. Vejamos:
Em primeiro lugar, podemos justificar a ação de Will?
Bem, não estamos aqui para julgar ninguém, mas apenas para analisar ações que possam nos dar balisa para reflexões oportunas. Podemos, à primeira vista, colocar em cena a questão da defesa: Will estaria apenas defendendo a imagem e a honra de sua esposa, o que justificaria o ato.
Fosse há pouco mais de um século, o caso daria um belo duelo: haveria um desafio de onde, provavelmente, apenas um deles sairia vivo. Aliás, o “tapa na cara” vem justamente desse hábito passado: o desafiador, atingido em sua honra, com a mão ou com uma luva, batia no rosto do ofensor, desafiando-o para um duelo de armas.
757. Pode-se considerar o duelo como um caso de legítima defesa?
“Não; é um assassínio e um costume absurdo, digno dos bárbaros. Com uma civilização mais adiantada e mais moral, o homem compreenderá que o duelo é tão ridículo quanto os combates que outrora se consideravam como o juízo de Deus.”
O Livro dos Espíritos
Duelar, seja como for, é algo que torna o homem ridículo. Desperdiçam-se vidas e desenrolam-se sofrimentos em matéria de disputas banais que tem, aliás, quase sempre, a honra como ponto central da contenda.
759. Que valor tem o que se chama ponto de honra, em matéria de duelo?
“Orgulho e vaidade: dupla chaga da humanidade.”
Os dois trechos acima foram extraídos de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Claro, não estamos aqui falando de um duelo até a morte — coisa que, de formas diferentes, ainda acontece — mas podemos recorrer ao Livro dos Espíritos, em matéria da opinião concordante dos Espíritos a esse respeito. Se você não sabe do que se trata o Espiritismo, que é uma ciência cuja teoria nasceu da observação racional e metodológica das manifestações e das comunicações espirituais, clique aqui para acessar uma dissertação de mestrado sobre o assunto.
Lembrando: não estamos aqui tomando essa obra como um código sagrado, mas, sim, trazendo-a para dar suporte, através da Doutrina dos Espíritos, à nossa reflexão. E vemos, afinal, aquilo que racionalmente se torna escancarado aos nossos olhos, mas que raramente queremos admitir: por trás de tudo está o orgulho ferido e a vaidade ameaçada. Afinal, no caso em questão, a resposta poderia ter sido superior: Will poderia ter aproveitado o ensejo para dar diversas lições morais sobre as questões ali envolvidas. Mas existem mais dos aspectos encerrados na questão; vamos a eles:
As paixões
No passado, lá no século XIX, era muito comum e claro o uso do termo paixão para designar o forte apego humano a um objeto, tema, pessoa ou sentimento. Assim, um homem apaixonado, naquela época, seria um homem desvairado no apego a determinada questão.
Hoje, é mais comum estar a palavra emoção associada a esse contexto. Contudo, entendendo o significado da primeira, julgo que a segunda não representa tão bem o grau elevado de apego, quanto a primeira. Por exemplo: um homem pode estar sentindo a emoção da raiva, mas essa emoção pode estar em diversos graus, sendo que, em até certo limite, essa emoção, que emana do instinto, é útil e benéfica (e.g.: quando sentimos raiva ao tentar abrir uma tampa rosqueada que não se solta: a raiva nos dá ainda mais força para abri-la, porém, se incontida, muitas vezes nos machuca no processo). Por outro lado, ao dizer que o homem está vivenciando a paixão da raiva, entende-se muito bem que ele esta num grau de apego muito elevado a essa emoção que, apesar de emanar do instinto, que é sempre útil e equilibrado, chegou num estado de loucura e incontenção.
E, então, segue, na mesma sequência, um complemento de Kardec à pergunta anterior, em OLE:
[759] a) — Mas não há casos em que a honra se acha verdadeiramente empenhada e em que uma recusa seria covardia?
“Isso depende dos usos e costumes. Cada país e cada século tem a esse respeito um modo de ver diferente. Quando os homens forem melhores e estiverem mais adiantados em moral, compreenderão que o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos.”
É “bonito” ver que os próprios Espíritos, quando superiores, não nos julgam com desprezo. Eles denotam, sempre, que tudo está de acordo com a nossa evolução, isto é, com o nosso tempo e os costumes de cada povo. Um exemplo simples: antigamente, os samurais japoneses tiravam a própria vida, com uma adaga, ao se reconhecerem culpados e sem honra.
Mas o ponto principal está no final do parágrafo: “o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos”. É em superando as paixões que encontraremos o verdadeiro ponto de honra, o verdadeiro sentimento, a verdadeira caridade. É através dessa superação que avançaremos para um novo estágio de sociedade, mas isso somente se faz pela vontade e pela escolha individual. Como, então, chegar a esse novo estado das coisas terrenas?
Kardec, em A Gênese (capítulo III), conclui: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.“. Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5a edição dessa obra, que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4a edição, temos o seguinte encerramento:
Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.
Muito importante esse encerramento original. Vai justamente mostrar o ponto central: domamos as paixões através de nossa vontade, no esforço realizado através de muitas encarnações, frente às provas e as expiações.
Portanto, aqui, tomando o caso de Will como exemplo, poderíamos dizer: foi um ímpeto de paixões que o levou a agir daquela forma. Provavelmente, agora se arrependa, em alguma parte, pelo que fez. E se tivesse uma arma e, num ímpeto, houvesse tomado a vida de Chris Rock? Bem, talvez, em algum momento, passasse a sentir uma culpa enorme. Essa culpa poderia lhe travar a jornada, por se achar sob um peso enorme do remorso e, principalmente, se acreditar que pecou e merece castigo. Como retomar a caminhada? Entendendo, afinal, que cometeu um erro, justamente por não saber lidar com as paixões. Perguntamos, enfim: que importa mais: castigar-se ou procurar formas de exercitar o aprendizado da contenção dessas paixões? Já que o segundo caso permite aprendizado e evolução, enquanto o primeiro paralisa, ficamos com a segunda opção. Há, então, uma última reflexão:
Quem foi que motivou todo esse desentendimento?
Bem, sabemos, pelo estudo do Espiritismo, que estamos o tempo todo cercados por uma “nuvem de testemunhas”, como diria Kardec. Espíritos estão o tempo todo por toda parte e, por ser um planeta ainda muito atrasado, é natural supor que existam em maioria os Espíritos imperfeitos.
Na Revista Espírita de Outubro de 1858, no artigo “O mal do medo”, Kardec cita um ensinamento de São Luís:
Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também àqueles que o ouvem. Nesse caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, que no entanto não passa de um ignorante. Pensai bem, e compreendereis o que eu vos digo.
Não que estejamos, aqui, afirmando que o apresentador seja um ignorante em qualquer aspecto. Apenas destacamos o trecho pois, muitas vezes, entre gracejos que alegram o público, somos alimentados mentalmente por Espíritos que visam nada mais que se divertir. Quando não estamos atentos a isso e não nos vigiamos, podemos levar muito longe essa identificação, até que, à custa de nossa infelicidade, caímos em ciladas como estas. Ora, seria demais supor que, fôssemos videntes, veríamos uma multidão de Espíritos inferiores, ao lado do ator, se matando de rir após ver a bofetada provocada pela péssima sugestão que possam ter dado, mentalmente, ao apresentador?
E isso tira a responsabilidade desse apresentador? Muito longe disso. Se vamos a um bar e cedemos às más sugestões de “amigos” levianos que nos incitem a uma briga, a culpa é deles ou é nossa? Cremos já estar bem respondida a questão.
É assim, enfim, que tiramos, da teoria espírita, lições diversas para o dia-a-dia, como, aliás, Kardec frequentemente fazia na Revista Espírita. Rogamos que essa teoria possa se espalhar mais e mais, a fim de influenciar positivamente a sociedade que, talvez mais do que nunca, procura tantas respostas para as questões morais e sociais da humanidade.