Primeiras lições de moral da infância

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Quem já se aventurou a conhecer um pouquinho mais da história de Allan Kardec, sabe que ele foi educado pelo método de Pestalozzi, sendo um de seus mais exemplares discípulos. Para seu mestre, a educação deve ser pautada pelos princípios da fraternidade e do amor, afastada dos conceitos de pecado e castigo, o que moldou demais a forma de pensar de Kardec, que, depois, se fundamentou ainda mais plenamente pelo Espiritualismo Racional e, posteriormente, pelo Espiritismo. Sabemos também que o caráter investigativo e humilde do professor Rivail também foi formado basilarmente por essa educação, pautada pela exploração das ciências naturais através do método científico, e isso, é claro, explica muito a maneira pela qual ele agia frente ao Espiritismo.

Tudo isso – a fraternidade, o aprendizado pelos princípios morais do bem e das leis de Deus, a caridade desinteressada, que é fruto desse aprendizado, a humildade, que nasce do coração daquele que jamais toma por princípio que a sua palavra é a última, enfim, tudo aquilo que está encerrado na metodologia pestalozziana – dá base a uma educação de muito melhor qualidade, desde os primeiros passos do ser humano sobre a Terra. Ela é, não hesito em dizer, uma das maiores ferramentas para a (trans)formação da sociedade, complementada grandemente pelo entendimento das leis que o Espiritismo veio demonstrar. As duas, juntas, têm o maior poder de, desde a infância, impedir a instalação ou o desenvolvimento dos mais danosos hábitos para o indivíduo e para a sociedade – o egoísmo e o orgulho – mas, até hoje, nenhuma delas ganhou o espaço merecido, por conta do apego humano aos falsos conceitos que, de cara, parecem agradar, mas que, no fundo, causam apenas infelicidade e atraso.

Para exemplificar tudo isto, nada melhor do que reproduzir, na íntegra, o conteúdo do artigo homônimo de Allan Kardec, apresentado na Revista Espírita de fevereiro de 1864.

De todas as chagas morais da Sociedade, parece que o egoísmo é a mais difícil de desarraigar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais é alimentada pelos próprios hábitos da educação. Parece que se toma a tarefa de excitar, desde o berço, certas paixões que mais tarde tornam-se uma segunda natureza. E admiram-se dos vícios da Sociedade, quando as crianças o sugam com o leite. Eis um exemplo que, como cada um pode julgar, pertence mais à regra do que à exceção.

Numa família de nosso conhecimento há uma menina de quatro a cinco anos, de uma inteligência rara, mas que tem os pequenos defeitos das crianças mimadas, isto é, é um pouco caprichosa, chorona, teimosa, e nem sempre agradece quando lhe dão qualquer coisa, o que os pais cuidam bem de corrigir, porque fora esses defeitos,segundo eles, ela tem um coração de ouro, expressão consagrada. Vejamos como eles se conduzem para lhe tirar essas pequenas manchas e conservar o ouro em sua pureza.

Um dia trouxeram um doce à criança e, como de costume, lhe disseram: “Tu o comerás se fores boazinha”. Primeira lição de gulodice. Quantas vezes, à mesa, não dizem a uma criança que não comerá tal petisco se chorar. “Faze isto, ou faze aquilo”, dizem, “e terás creme” ou qualquer outra coisa que lhe apeteça, e a criança se constrange, não pela razão, mas em vista de satisfazer a um desejo sensual((Desejo dos sentidos)) que a aguilhoa.

É ainda muito pior quando lhe dizem, o que não é menos frequente, que darão o seu pedaço a uma outra. Aqui já não é só a gulodice que está em jogo, é a inveja. A criança fará o que lhe dizem, não só para ter, mas para que a outra não tenha. Querem dar-lhe uma lição de generosidade? Então lhe dizem: “Dá esta fruta ou este brinquedo a fulaninho”. Se ela recusa, não deixam de acrescentar, para nela estimular um bom sentimento: “Eu te darei um outro”, de modo que a criança não se decide a ser generosa senão quando está certa de nada perder.

Certo dia testemunhamos um fato bem característico neste gênero. Era uma criança de cerca de dois anos e meio, a quem tinham feito semelhante ameaça, acrescentando: “Nós o daremos ao teu irmãozinho, e tu ficarás sem nada.” Para tornar a lição mais sensível, puseram o pedaço no prato do irmãozinho, que levou a coisa a sério e comeu a porção. À vista disso, o outro ficou vermelho e não era preciso ser nem o pai nem a mãe para ver o relâmpago de cólera e de ódio que partiu de seus olhos. A semente estava lançada: poderia produzir bom grão?

Voltemos à menina, da qual falamos. Como ela não se deu conta da ameaça, sabendo por experiência que raramente a cumpriam, desta vez foram mais firmes, pois compreenderam que era necessário dominar esse pequeno caráter, e não esperar que com a idade ela adquirisse um mau hábito. Diziam que é preciso formar cedo as crianças, máxima muito sábia e, para a pôr em prática, eis o que fizeram: “Eu te prometo, disse a mãe, que se não obedeceres, amanhã cedo darei o teu bolo à primeira menina pobre que passar.” Dito e feito.

Desta vez queriam manter a promessa e dar-lhe uma boa lição. Assim, no dia seguinte, de manhã, tendo visto uma pequena mendiga na rua, fizeram-na entrar e obrigaram a filha a tomá-la pela mão e ela mesma lhe dar o seu bolo. Então elogiaram a sua docilidade. Moral da história: A filha disse: “Se eu soubesse disto teria me apressado em comer o bolo ontem.” E todos aplaudiram esta resposta espirituosa. Com efeito, a criança tinha recebido uma forte lição, mas de puro egoísmo, da qual não deixará de aproveitar-se uma outra vez, pois agora sabe quanto custa a generosidade forçada. Resta saber que frutos dará mais tarde esta semente quando, com mais idade, a criança fizer a aplicação dessa moral em coisas mais sérias que um bolo.

Sabe-se todos os pensamentos que este único fato pode ter feito germinar nessa cabecinha? Depois disto, como querem que uma criança não seja egoísta quando, em vez de nela despertar o prazer de dar e de lhe representar a felicidade de quem recebe, impõem-lhe um sacrifício como punição? Não é inspirar aversão ao ato de dar e àqueles que necessitam?

Outro hábito, igualmente frequente, é o de castigar a criança mandando-a comer na cozinha com os criados. A punição está menos na exclusão da mesa do que na humilhação de ir para a mesa dos serviçais. Assim se acha inoculado, desde a mais tenra idade, o vírus da sensualidade, do egoísmo, do orgulho, do desprezo aos inferiores, das paixões, numa palavra, que com razão são consideradas como as chagas da Humanidade.

É preciso ser dotado de uma natureza excepcionalmente boa para resistir a tais influências, produzidas na idade mais impressionável, na qual não podem encontrar o contrapeso nem da vontade, nem da experiência. Assim, por pouco que aí se ache o germe das más paixões, o que é o caso mais ordinário, dada a natureza da maioria dos Espíritos que se encarnam na Terra, ele não pode deixar de desenvolver-se sob tais influências, ao passo que seria preciso observar-lhe os menores traços para reprimi-los.

A falta, sem dúvida, é dos pais, mas é preciso dizer que muitas vezes estes pecam mais por ignorância do que por má vontade. Em muitos há, incontestavelmente, uma culposa despreocupação, mas em muitos outros a intenção é boa, no entanto, é o remédio que nada vale, ou que é mal aplicado.

Sendo os primeiros médicos da alma de seus filhos, os pais deveriam ser instruídos, não só de seus deveres, mas dos meios de cumpri-los. Não basta ao médico saber que deve procurar curar, é preciso saber como agir. Ora, para os pais, onde estão os meios de instruir-se nesta parte tão importante de sua tarefa? Hoje dá-se muita instrução à mulher; fazem-na passar por exames rigorosos, mas algum dia foi exigido da mãe que soubesse como fazer para formar o moral de seu filho?

Ensinam-lhe receitas caseiras, mas foi iniciada aos mil e um segredos de governar os jovens corações?

Os pais, portanto, são abandonados sem guia à sua iniciativa. É por isto que tantas vezes seguem caminhos errados. Assim recolhem, nos erros dos filhos já crescidos, o fruto amargo de sua inexperiência ou de uma ternura mal compreendida, e a Sociedade inteira lhes recebe o contragolpe.

Considerando-se que o egoísmo e o orgulho são reconhecidamente a fonte da maioria das misérias humanas; que enquanto eles reinarem na Terra não se pode esperar nem paz, nem caridade, nem fraternidade, então é preciso atacá-los no estado de embrião, sem esperar que fiquem vivazes.

Pode o Espiritismo remediar esse mal? Sem dúvida nenhuma, e não hesitamos em dizer que ele é o único suficientemente poderoso para fazê-lo cessar, pelo novo ponto de vista com o qual ele permite perceber a missão e a responsabilidade dos pais; dando a conhecer a fonte das qualidades inatas, boas ou más; mostrando a ação que se pode exercer sobre os Espíritos encarnados e desencarnados; dando a fé inquebrantável que sanciona os deveres; enfim, moralizando os próprios pais. Ele já prova sua eficácia pela maneira mais racional empregada na educação das crianças nas famílias verdadeiramente espíritas. Os novos horizontes que abre o Espiritismo fazem ver as coisas de outra maneira. Sendo o seu objetivo o progresso moral da Humanidade, ele forçosamente deverá iluminar o grave problema da educação moral, primeira fonte da moralização das massas. Um dia compreender-se-á que este ramo da educação tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual, numa palavra, que é uma verdadeira ciência. Talvez um dia, também, será imposta a toda mãe de família a obrigação de possuir esses conhecimentos, como se impõe ao advogado a de conhecer o Direito.

Kardec dá todo o peso à responsabilidade que temos perante as crianças e seus hábitos. O Espiritismo mostra a origem das tendências inatas infantis, mas demonstra, também, que o Espírito encarnado numa criança pode não ser forte, ainda, para resistir a um mau hábito que seus pais ou cuidadores lhes ensinem desde os primeiros passos. Criam-se, assim, imperfeições que muito poderão custar a serem vencidas…

Comumente, na carne, o fruto dessas imperfeições levará esses a perguntarem: “o que foi que eu fiz para merecer isso?”, ou então “onde foi que eu errei?”. Contudo, basta que a razão fale um pouquinho mais alto à consciência para que se joguem em pesadas lamentações, nascidas do fruto da constatação de que o sofrimento pelo qual o filho poderá ter passado não só por uma, mas por muitas vidas terrestres, se originou, senão em tudo, mas ao menos em parte, na primeira semente lançada e cultivada por aqueles que lhes deveriam auxiliar a se desenvolver sob a moral do bem, e não a dele se afastarem.

Portanto, pais e cuidadores, muito mais atenção para com os Espíritos que Deus lhes confiou como filhos. Serão as suas próprias consciências, e não Deus, quem vai lhes cobrar, amanhã…




Análise da obra “O Livro dos Espíritos – A obra interminável”

Sob um título muito interessante, encontrei, hoje, essa obra, um compêndio de perguntas e respostas, distribuída gratuitamente, em PDF, na Internet. Fui então analisá-la, razão pela qual deixo, aqui, minhas observações sobre esse trabalho.

Devo destacar que a intenção não é de denegrir ou zombar dos esforços que muitos fazem, e que, creio eu, tem uma boa intenção, quase sempre. Contudo, precisamos, quando falamos em Espiritismo, entender que essa ciência, em definitivo, não se faz de opiniões isoladas, e que qualquer comunicação espírita que não tenha atendido ao método do duplo controle da razão e da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos não pode ser tomada, senão, como uma opinião. No artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos” já apontamos, segundo o Espiritismo, as diversas razões para isso.

Essa obra assim inicia:

Esta obra, elaborada por espíritos encarnados e desencarnados, está estruturada em perguntas e respostas, notas explicativas e textos complementares, notas de rodapé e preces. Destina-se a todos que desejam iniciar ou aprofundar seu vínculo com o Criador através da leitura instrutiva e reflexiva, da oração, da prática do amor e da caridade, do autoconhecimento e da busca constante por reforma íntima

Até bem pouco tempo atrás eu não veria nisso problema algum. Hoje, porém, eu entendo que existe um grande equívoco na tão falada “reforma íntima”, que nunca esteve, nem com essas palavras, nem com outras, na obra de Allan Kardec. Por quê? Simplesmente porque não se reforma o que não está estragado. Ora, somos Espíritos em evolução, errando e acertando e, algumas vezes, adquirindo maus hábitos que se tornam imperfeições. Quando existe a imperfeição, haveremos de ter algum trabalho em nos desapegar dela – aí sim havendo um certo trabalho de “reforma” – contudo não podemos admitir como pressuposto generalizado o fato de que todos nós devamos nos reformar, como o Movimento Espírita tem apregoado largamente. Isso coloca um grande peso de culpa nas costas daqueles que estão simplesmente buscando aprender e evoluir, mas que passam a se acreditar, sempre, como “coisas quebradas” – e isso está, no fundo, ligado às falsas concepções da queda pelo pecado.

Complementação

No capítulo I – Complementação – I – Propósito da Obra, diz-se o seguinte:

1. Com qual propósito foi lançado O Livro dos Espíritos, em 1857, por Allan Kardec?
— Libertar os encarnados através da verdade, instruí-los e, consequentemente, levá-los à prática do bem.

A. Esse propósito foi alcançado?
— Sim; obviamente que depende do livre-arbítrio de cada indivíduo, mas tudo está nos planos de Deus.

B. Diante disso, é necessário complementá-lo?
— Sim, as comunicações e formas de entendimento modificam-se com o passar do tempo, e é importante que os ensinamentos acompanhem essas mudanças.

Nota: A intenção jamais será contestar o que já foi escrito, e sim afirmá-lo com mais clareza e objetividade, para que não haja dubiedade de entendimento, trazendo a verdade de modo mais explícito, com o intuito de promovermos a prática outrora exemplificada pelo mestre Jesus.

É claro que, para complementar alguma coisa, sobretudo quando se trata de complementar o Espiritismo, através de “comunicações de Espíritos Superiores”, é totalmente necessário que uma série de quesitos se cumpra:

  1. O ser humano deve estar preparado para isso, tendo conhecido e entendido profundamente, e de forma contextualizada, tudo aquilo que deu base à formação dessa Doutrina. Como veremos, esse primeiro ponto não foi atendido.
  2. Quando os Espíritos demandam auxiliar o homem a alcançar novos conhecimentos, eles agem distribuindo o mesmo conhecimento através de todos os cantos do mundo, simultaneamente. Isso é necessário a fim de que, à luz da lógica e da razão, os pesquisadores da doutrina possam confrontar as ideias transmitidas por todos os lados, realizando o mesmo método científico que Kardec realizou. Talvez os pesquisadores tenham realizado uma certa análise racional, mas, desde que isso não se dá pela universalidade dos ensinamentos dos Espíritos e desde que não nos foi dado conhecer o método empregado – que parece consistir apenas de perguntas e respostas realizadas a alguns Espíritos, supostamente superiores, através de um médium ou mais, do mesmo grupo, esse segundo ponto também não foi atendido.

Logo em seguida, apresenta-se o seguinte:

2. Quando a primeira obra foi lançada, o intuito era a criação de uma nova religião?
— No lançamento da primeira obra, a intenção era auxiliar na transformação da humanidade mediante o conhecimento, fazendo-a abdicar do orgulho e do egoísmo, potencializando a prática do amor através da caridade. Toda religião criada com o intuito de agregar ao invés de segregar os encarnados é positivamente encarada (ver item V – Religião não pode causar divisão).

E, em complemento a isso, vamos buscar o que é apresentado no item V do mesmo capítulo:

16. Como promover a integração do Espiritismo com as demais religiões?
— O conteúdo deve ser o guia de vossa consciência; esta não possui religião, apenas o discernimento do certo e do errado. Logo, tudo aquilo que a agradar deverá ser fator de união, e não de segregação.

Ora, o interlocutor parte do conceito errado de que o Espiritismo é mais uma religião, em contrário àquilo que Allan Kardec já demonstrou, no passado (leia mais clicando aqui). Assim, enviesa, com um conceito prévio, a característica da resposta.

Sobre a confiabilidade da obra, há o que segue:

7. O que garante que este trabalho seja oriundo de espíritos elevados?

— A garantia está na coesão e no conteúdo, alinhando-os ao que sentis no âmago, para entender se há coerência ou não. Ao filtrar, através da consciência, percebereis que a intenção da obra não é a de demonstrar a elevação de quem vos instrui, assim como não é a de vos convencer que apenas há uma nova comunicação, mas, sim, de fazer-vos praticar o amor e o bem.

Grifos meus.

Quando o Espírito supostamente diz que a garantia está na coesão e no conteúdo, “alinhando-os ao que sentis no âmago”, está apenas afirmando que as respostas serão coesas, já que nascem de uma mesma ideia, em um mesmo grupo – o que está em contrário com o método de Kardec – e abrem o precedente para que esse grupo, baseado em suas ideias, e vendo-as corroboradas pelos Espíritos, apenas as confirmem. Depois, em “ao filtrar, através da consciência”, abre-se a precedência para que o “filtro” seja a própria consciência, e não a lógica racional e científica de Kardec que, aliás, nunca se deu por satisfeito com qualquer ideia espírita, sem julgá-la sob o crivo da razão e, muitas vezes, lutava contra elas, de acordo com a ciência, para aceitá-las apenas quando verificava que a ideia atendia, com excelência, a todas as questões envolvidas.

Segue o autor:

8. O que Kardec diria a respeito de um complemento de sua obra de codificação?

— Que jamais pretendeu ser dono da verdade absoluta, mas abrir o caminho para que, por meio da ciência e das descobertas, as atualizações acontecessem de forma natural e constante. Diria, ainda, que a verdade acompanha a evolução moral humana; logo, necessita de atualizações conforme evoluímos.

Além disso, diria Kardec que, sem o método do duplo controle, os estudiosos seriam facilmente levados ao engano.

A. Como os espíritas que têm como verdade o fato de a primeira obra ser imutável poderão receber este complemento?

— Esperamos que o recebam com muito amor, mas, se assim não o for, obtê-lo-ão pela coerência, rebuscando na própria consciência o discernimento necessário.
Nada é imutável, apenas Deus. Todos sois aprendizes do eterno progresso; hoje conheceis mais do que ontem e menos do que amanhã.

É preciso muito cuidado com os conteúdos “complicados” que se encontram escondidos sob as diversas verdades, tomadas como refrões. Não digo que os Espíritos comunicantes tenham necessariamente desejado realizar uma mistificação, mas, no mínimo, refletiam as mesmas tendências e os mesmos pensamentos do grupo em questão, que se acreditava no papel de trazer, por ele mesmo, a atualização do Espiritismo, o que também está em contrário às lúcidas palavras de Allan Kardec na Revista Espírita de dezembro de 1868.

Uma outra questão é que precisamos notar as crenças das quais se achavam imbuídos os envolvidos nessa pesquisa: por que a necessidade de copiar a forma de se expressar como naquela época, imitando a linguagem de O Livro dos Espíritos? “Obtê-lo-ão”? Ninguém mais utiliza essas palavras, atualmente, e é natural que os Espíritos se comunicassem de forma diferente, hoje em dia, já que eles não se prendem às linguagens.

Sobre o trabalho dos encarnados, é dito que:

12. Os participantes podem ter sido influenciados por falsos profetas?

— Conhecemos a veracidade de algo pelo conteúdo. A forma de realização também tem relevância. Falsos profetas fazem bastante alarde, mas não conseguem sustentar a mentira por muito tempo.

O simples fato de esta obra ter sido concluída com tanto esforço, dedicação e de maneira despretensiosa já anula essa possibilidade.

Ora, Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, desmentem essas afirmações: as ideias erradas foram mantidas do início ao fim, e foi produzida com bastante esforço das partes envolvidas. Se o esforço é despretensioso ou não, é outro problema. Aliás, o Espírito não precisa querer mentir para produzir uma obra com conceitos errados: basta que ele acredite nesses conceitos, apresentando-os. Vemos isso em André Luiz o tempo todo.

Outra crítica à obra é que ela não deixa claro, senão nas perguntas e respostas, de quem é o texto apresentado: é do grupo? É do revisor? É do Espírito? Assim acontece em cada uma das introduções aos capítulos.

Elementos Gerais do Universo

O capítulo II se inicia com um texto falando sobre quatro mudanças energéticas do globo terrestre, algo que mais parece ter saído das doutrinas orientais, que tanto falam das energias, do que da Doutrina Espírita. O texto é atribuído a Sócrates, um nome de peso, como que para dar mais confiabilidade a ela.

24. Existe hierarquia predeterminada na Criação ou ela é fruto do processo evolutivo?
— Na Criação, a “hierarquia” é consequência do processo evolutivo; conforme a evolução acontece, o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica.

Apesar de o autor lançar nota em comparação à questão nº 29 de OLE (O Livro dos Espíritos), a resposta não tem nada do que diria um Espírito conhecedor das verdades doutrinárias registradas por Kardec. Em OLE, os Espíritos respondem suscintamente que os Espíritos pertencem a diferentes ordens, e não a diferentes hierarquias, que são conceitos bastante diferentes. Além disso, o Espírito diz que “o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica”: ora, acaso elementos evoluem?

Em seguida, em III – Descobertas Científicas, o autor, quem quer que ele seja, parte de um pressuposto errado, segundo o Espiritismo, de que a moral deve avançar para que, apenas depois, avancemos em ciência. Isso está claramente em oposto àquilo que eles mesmos apresentaram, pouco antes, na nota 27, de O Livro dos Espíritos, e confirmado pelas observações:

O Livro dos Espíritos, questão 780: “O progresso moral segue sempre o progresso intelectual? — É a sua consequência, mas não o segue sempre imediatamente.”

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Grifo meu.

Quando o autor diz que “um passo por vez. Solidificando a moral, a ciência dará saltos e desvendará muitos mistérios“, está deixando de lado o fato notório de que o Espírito somente progride moralmente quando faz um esforço de sua vontade consciente. Isso demanda avanço intelectual.

No parágrafo imediatamente anterior, é dito que “O avanço tecnológico poderá ser a salvação ou a destruição do planeta. É por esse motivo que os homens só irão possuir mais respostas quando tiverem a moral compatível com esse privilégio“. É como se dissessemos que Deus coloca um limite para a inteligência humana, devendo o homem primeiro aprender a amar para depois aprender a construir foguetes. Isso seria ilógico, porque é a consequência da construção do foguete, que gera a bomba que é utilizada para dizimar milhares de pessoas, que justamente promove o avanço moral, pelas consequências do ato.

Em seguida, é feita a seguinte pergunta:

28. Qual é a relação entre a ciência material e a espiritual?

— Na ciência material, os recursos são limitados, já na espiritual, são ilimitados. A ciência espiritual complementa a material, pois, oferecendo recursos infinitos, faz com que os avanços científicos aconteçam pelo uso da inteligência humana.

O que é falso. A ciência humana avança pelo desenvolvimento do intelecto do homem, e não por revelações científicas dos Espíritos, que, aliás, nada tem de materialista. Espíritos não desenvolvem automóveis super tecnológicos, porque eles não precisam da matéria, de maneira alguma, senão quando encarnam para avançar.

Na questão 35, outra incongruência é encontrada:

35. Desde a primeira obra, houve relevantes progressos na ciência.
Como os espíritos enxergam esse avanço?

— Com naturalidade, pois é um reflexo do esforço coletivo da humanidade. Entretanto, a utilização dessas descobertas nem sempre foi positiva; elas foram permitidas por Deus para que os encarnados as utilizassem para o bem, mas, em muitas ocasiões, utilizaram-nas para o mal.

Deus não permite nem proibe a utilização da ciência, nem seu avanço. Ela está de acordo com a capacidade da intelectualidade humana. O ser humano, pelo uso da inteligência, muitas vezes comete erros e, com eles, aprende. Isso não é fazer o mal: é o fruto do desenvolvimento.

O capítulo segue com uma enorme quantidade de perguntas e respostas sobre conceitos científicos que, na verdade, não levam a lugar algum. Não vou repetí-los aqui, mas deixo a questão: estaria nisso a “atualização científica” da Doutrina? Ora, sabemos que, no que tange à ciência, um dos pontos que mais foi estudado por Allan Kardec, embora limitado à ciência de sua época, é a questão do Fluido Cósmico Universal e do perispírito. Não seria esse um conhecimento importantíssimo em que avançar, frente às nossas descobertas científicas?

Outra questão: os Espíritos superiores, como demonstra Kardec em A Gênese, cap. XVI – Teoria da Presciência, não tem os nossos referenciais materiais para falar em questão de tempo ou questões que pertencem à ciência humana. É por isso que, mesmo na época de Kardec, eles jamais entraram no âmbito das particularidades, cabendo ao homem, no papel de pesquisador, tirar suas conclusões, com base nas observações, e não nas “revelações”.

Criação – A Infância do Espírito

Esse capítulo inicia com um questionamento respondido de forma totalmente contrária à Doutrina dos Espíritos:

60. O período de infância dos espíritos ocorre em um mundo primitivo?
— Sim, na maioria dos casos, a infância espiritual inicia-se no mundo primitivo, onde começa o estágio hominal.

A. Por que na maioria?
— A evolução de cada ser depende de suas escolhas, livre-arbítrio e merecimento. Em casos raros, o animal também pode dar saltos evolutivos, a ponto de passar a infância espiritual em outros mundos.

Nota: Nesses casos, em que o salto ocorre do mundo animal terrestre para gerar uma infância em outro mundo, há merecimento daquele espírito, que, através de seu esforço e resignação, ainda que com poucas ferramentas intelectuais, conseguiu evoluir a ponto de não necessitar vivenciar a infância em um mundo de provas e expiações. Embora pareça confuso aos vossos olhos, isso é uma prova de que Deus reconhece o esforço de forma individual e particular.

Grifos meus.

As respostas atribuídas a uma origem espiritual estão em total contrariedade ao Espiritismo, como dissemos. A evolução não dá saltos, muito menos de um Espírito vivenciando a fase animal, onde não tem consciência de si mesmo, nem livre-arbítrio, para vivenciar logo em seguida uma fase humana. Aliás, está em total contradita à resposta dada em OLE: “Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus”. Além disso, comete-se o erro absurdo de supor que um Espírito possa evoluir sem passar pelas provas, ao menos, que são as vicissitudes materiais que estimulam-no ao desenvolvimento intelectual e moral.

Logo em seguida, em II – Princípio material, na pergunta 62:

62. As moléculas possuem princípio espiritual?

— Não, elas são partes da matéria. Possuem fluidos vitais, que, por sua vez, as sustentam.
Os movimentos moleculares iniciam-se no princípio vital e são compostos por fluidos vitais e magnéticos. As moléculas são exclusivamente orgânicas, e não espirituais, porém servem ao espírito, por meio da matéria, quando compõem o organismo humano.

Grifos meus

O primeiro erro está em supor o fluido vital, que era uma teoria materialista da ciência da época de Kardec que, não podendo explicar o invisível, supôs a existência de partículas imponderáveis, como o fluido calórico, o fluido elétrico, etc. Allan Kardec, que inicialmente partiu dessa ideia, em A Gênese, abandonou-a, ficando apenas com o termo “princípio vital”, genérico, e com a teoria de Mesmer – a de que tudo o que existe, em questão de matéria e energia (é óbvio que os Espíritos não fazem parte de nenhum dos dois) se originam do Fluido Cósmico Universal. Isso está bem explicado em A Gênese:

O princípio vital é algo distinto, tendo uma existência própria? Ou então, para ser
integrado no sistema de unidade do elemento gerador, é apenas um estado particular, uma
das modificações do fluido cósmico universal, que se torna princípio de vida, como se torna
luz, fogo, calor, eletricidade? É nesse último sentido que a questão é resolvida pelas
comunicações reproduzidas anteriormente. (Cap. VI, Uranografia geral).

A Gênese – Editora FEAL

Me espanta, aliás, que aos pesquisadores, tão compenetrados de fórmulas científicas, as quais discutiram com os Espíritos, tenha faltado esse princípio fundamental teorizado por Mesmer e sustentado pela ciência moderna. Veremos, logo mais, que esse mesmo erro provocou outros enganos, na “atualização” de O Livro dos Espíritos, pelo grupo em questão.

Chegado a este ponto, agora noto que errei: as notas são quase todas, senão todas, dos Espíritos. Me pergunto o que fizeram os pesquisadores além de analisá-las, segundo suas ideias, e aceitá-las.

Fluidos no Universo

O capítulo em questão comete os mesmos erros citados acima: não tendo conhecido e compreendido a ciência do magnetismo de Mesmer e as concusões de Kardec, partem dos falsos pressupostos de uma ciência ultrapassada. Ou seja: para complementar o Espiritismo que, segundo pressupostos, estaria ultrapassado em ciência, utilizam uma ciência que o próprio Espiritismo já ultrapassou, há mais de 100 anos. Estranho, não?

É assim que se repete uma opinião erradíssima e que, aliás, seria prontamente corrigida por um Espírito superior:

74. É o fluido vital que determina o tempo de permanência humana na Terra?
— A quantidade de fluido vital é Determinada por Deus, porém, através das vossas escolhas, podeis encurtar ou prolongar o tempo de permanência no
orbe.

Em primeiro lugar, como demonstramos, não existe fluido vital, muito menos uma quantidade dele. Em segundo lugar, não é Deus quem determina nada, mas nós mesmos. É exatamente por isso que animais, sem o livre-arbítrio, morrem, de causas naturais, quase todos numa mesma idade, segundo suas espécie e raça, ao passo que o homem morre, das mesmas causas, nas mais diversas idades. E o fundamento disso também está em A Gênese, apresentado por Kardec:

Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que elabora seu envoltório e o adapta às suas novas necessidades. Ele aperfeiçoa, desenvolve e completa seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades. Em uma palavra, ele o molda de acordo com sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais. Cabe a ele fazer uso. É dessa forma que as raças mais avançadas têm um organismo, ou se preferem, uma ferramenta mais aperfeiçoada que a das raças primitivas. Assim se explica igualmente o estilo especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e as maneiras do corpo.

KARDEC, Allan. A Gênese. Editora FEAL.

Os erros, baseados nesses falsos conceitos, seguem a mancheias, no capítulo. Não vou comentá-los. No capítulo seguinte, “Transmissão Energética e Fluídica”, os autores continuam repetindo conceitos falsos, baseados nos mesmos erros, de origem materialista, difundidos pelos fluidistas do passado, que se contrapunham às ideias das ciências do Magnetismo e do Espiritismo. É assim que repetem, ipsis leteris, a erradíssima ideia de que o passe seria uma “transmissão energética e/ou fluídica”. Isso é falso, tão falso quanto as ideias que os supostos Espíritos repetem na resposta à pergunta nº 92:

  • “O magnetismo instiga a curiosidade e é uma ciência intrigante, mas exige o conhecimento necessário para não oferecer riscos a quem o pratica ou a quem o recebe. Não podeis incluir sua prática na Doutrina ou confundi-lo com fluido magnético.” – Não existe fluido magético, então do que é que esse Espírito está falando?
  • “Magnetizar é uma atividade antiga, que se utiliza do fluido vital” – não existe fluido vital!
  • “Fluido magnético é diferente de magnetismo e é exalado sempre que há a necessidade, através do concurso dos desencarnados ou de encarnados com o devido preparo” – mesmo erro, com um agravante: o magetismo é a interação da vontade, através do pensamento consciente, sobre a vontade do outro, que também precisa estar conscientemente com vontade de ser ajudado. Não há transferência de nada ((Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal, por Paulo Henrique de Figueiredo)).

Retorno à Vida Espiritual

É claro que, pelo que vimos, não poderia faltar, ainda que em contrário a tudo aquilo que o Espiritismo já ensinou e que a razão confirma, uma grande discussão a respeito dos conceitos de “colônias espirituais”, umbral, dores físicas nos Espíritos, etc. É a velha mania de querer materializar o mundo dos Espíritos.

Sexualidade, Sexo e Moral

Para completar nossa análise, nos reportamos à questão nº 505, Parte Terceira, cap. III – aborto:

505. Ocorrendo concepção mediante o estupro, é correto abortar?

— Não, não é correto em nenhuma circunstância, pois todos deveis passar pelas vossas próprias provas. Ninguém é mãe ou filho por casualidade. A lei divina é sábia e tem como principal meta corrigir ou atenuar sofrimentos. A lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações. Interromper a reencarnação de um espírito, mesmo decorrente de um estupro, não é correto: somente trará mais dor e ampliará o sofrimento dos envolvidos. A preservação da vida diante da dor da violência é um ato de amor. Que possais sempre combater o mal com o amor, por mais difícil que seja.

Grifos meus

Um completo desparate! Em contrário daquilo que encontramos em O Livro dos Espíritos, pergunta 359,

359. No caso em que o nascimento da criança puser em perigo a vida da mãe, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?

“Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”

A resposta à questão nº 505, da obra em análise, afirma que jamais o aborto deve ser cometido. Pior: que se a mulher foi estuprada, é porque, nas palavras dos Espíritos, “a lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações“. Em outras palavras: o que está sendo dito nessa obra, que visa complementar e atualizar o Espiritismo é que a mulher estuprada apenas está pagando, pela lei de talião, uma falta de outra vida. Isso é um absurdo completo e desmoralizante. Preciso reafirmar, em encontro a OLE, que o aborto é preferível quando a mãe está em risco, e quem somos nós para avaliar o risco emocional e psicológico de uma mulher que tenha passado por tal trauma, que nasce do crime praticado por escolha do outro, e não pelo efeito de uma suposta cobrança de dívidas!

Conclusão

A obra, em si, parece uma verdadeira luta de incongruências, falsos conceitos, e algumas verdades. Parece que, se há realmente a participação de mais de um Espírito, esses Espíritos tem conhecimentos diferentes, pois a contradição é frequente. Há diversas ideias absurdas e erradas, em contradita com os postulados mais básicos do Espiritismo, como há algumas verdades espalhadas pelo meio. Que fazer, então? Cremos que o melhor é seguir o conselho do Espírito de Erasto:

[…] é melhor repelir dez verdades momentaneamente do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa, porque sobre essa teoria, sobre essa mentira podereis construir todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento erigido sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados logicamente, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

Resta reafirmar que a intenção deste artigo não é nada mais que a de alertar, inclusive ao grupo de onde se originou esse livro, que tenham muito cuidado para não se envolverem sob essas teias de falsas ideias, que muito custarão sua tranquilidade, no futuro. Que estudem a fundo Allan Kardec, inclusive – e principalmente – na Revista Espírita. Que estudem as novas obras, que vêm recuperar os os conhecimentos esquecidos no tempo. Que deixem de lado, pelo menos por ora, os conceitos resultantes de obras mediúnicas, de modo a buscarem o aprendizado necessário. E que não se esqueçam, jamais, da importantíssima exortação de Allan Kardec, em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

É claro que o Espiritismo, até certo ponto, na parte que tange ao conhecimento humano, é interminável, mas não será sobre erros que ele será continuado, principalmente quando se parte do erro fundamental, que é tratar os Espíritos como reveladores, não respeitando o método necessário, pois os Espíritos não são reveladores da verdade, a Doutrina não se faz apenas por perguntas e respostas, mas também pela investigação e a observação dos Espíritos de todas as ordens, dos mais inferiores aos mais superiores.

É interessante notar, além disso, que, em se tratando de supostos Espíritos superiores, conforme pressupõem os pesquisadores humanos envolvidos, em nenhum momento corrigiram os erros flagrantes dos últimos, já que o conhecimento doutrinário já existe. Ao invés disso, sempre corroboraram as informações e os conceitos errados dos quais partiam os encarnados.

O erro principal desta obra surge da ausência de observação, como demonstramos, das características fundamentais da ciência espírita, tão bem explicada por Allan Kardec na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo (grifos meus):

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.”

Num momento em que os esforços pela retomada do Espiritismo se multiplicam, se multiplicam os esforços contrários, com a finalidade (tola, convenhamos) de causar confusão e atraso. É necessário estar em guarda, sobretudo no que tange ao frequente convite das sombras, instigado pelas imperfeições humanas, quais a vaidade e o orgulho. Ora, haverá algo mais instigante, nesse sentido, do que se dizer o novo eleito a continuar o grandiosíssimo trabalho de Allan Kardec? Não sejamos nós, e não seja você, em seu grupo e em suas palestras, a auxiliar o trabalho dos Espíritos que ainda não entenderam o bem e que contrários ao progresso da humanidade.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.” – Espírito de Verdade




Espiritismo Raiz e Eduardo Sabbag

Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. Não é, de maneira alguma, adotar ideias místicas nascidas de opiniões próprias e alheias, como infelizmente o Eduardo Sabbag, do cana Espiritismo Raiz, infelizmente tem feito. Mais um indivíduo com um potencial tão grande de auxiliar o progresso humano, mas que vê apenas a superfície do Espiritismo e favorece o atraso, pela divulgação de falsas ideias.

Tempos difíceis, esses que vivemos. Por toda a parte, mina-se a doutrina espírita dos mais variados absurdos. Por meio dos incautos, dos desavisados e da grande massa dos resistentes ao estudo necessário, o Espiritismo sofre tanto quanto a Física de Isaac Newton sofreria se não houvesse os estudiosos da Física para defendê-la de ideias como a não existência da Lei da Gravidade ou como sofreria a Astronomia se não houvessem que a defendesse contra as ideias persistentes do geocentrismo ou da Terra plana.

É claro que a base doutrinária será entendida de forma mais ou menos clara, a depender do progresso que o próprio Espírito tenha feito nesse sentido. É ao que Kardec se refere quando diz das ideias inatas, que encontram, em muitos, a plena aceitação racional, porque, para eles, elas são tão naturais quanto averiguar que o vapor da água é o fruto de sua evaporação. Contudo, o que se constata, largamente, é que a ausência do “instruí-vos”, deixa a nau à deriva, ao sabor do vento.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo. Todas as verdades são encontradas no Cristianismo; os erros que nele criaram raiz são de origem humana. E eis que, além do túmulo, em que acreditáveis o nada, vozes vêm clamar-vos: Irmãos! nada perece. Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade!” – (Espírito de Verdade. Paris, 1860.)

Allan Kardec – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. VI, item 5.

A exortação do Espírito de Verdade, ao recomendar o “instruí-vos”, deixa clara a necessidade de estudar a Doutrina Espírita, as vozes além do túmulo – o que requer metodologia científica. Mas os “espíritas” se esqueceram de quem foi Allan Kardec. Enterraram seu trabalho, junto ao seu corpo, e passaram a se limitar a conhecer o básico do essencial: a lei da reencarnação e as nossas relações com os Espíritos. Nem isso, porém, sobreviveu de forma ilesa às ideias absurdas, pois a reencarnação, de lei consoladora, se recheou de ideias de pecado e de castigo, e as nossas relações com os Espíritos perderam o objetivo de esclarecimento de outrora, convertendo-se, novamente, no mesmo tipo de relação que, pasmemos, tinha o homem com os Espíritos antes da vinda do Cristo.

932. Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?“

Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.”(O Livro dos Espíritos)

Sim, o cenário do Movimento Espírita é de entristecer. Com a morte de Allan Kardec, não voltamos apenas décadas, mas milênios, pois, sem a necessária instrução, nos deixamos uma vez mais subjugar pelas ideias aprisionantes das consciências e, por conseguinte, do progresso. Esvaziou-se a Doutrina do seu aspecto filosófico.

O “espírita” responde ao censo, dizendo, “essa é minha religião”, mas não sabe que o que diz abraçar é uma ciência, e não uma religião. Diz que a lê e estuda, mas nunca estudou Kardec a fundo: prefere ler romances, repletos das ideias de uns e outros, por mais absurdas que sejam. Aposentou o raciocínio e, com ele, a própria autonomia, num cenário que, para ele, parece muito mais cômodo – sem saber, porém, que também é dos mais sofridos. Abraça as ideias de carma, “lei do retorno”, “lei de ação e reação” e aceita profecias mediúnicas sem nem sequer questionar a própria consciência. E, enfim, quando é apresentado à razão, pelos poucos que tentam demonstrar o verdadeiro Espiritismo, aquele que Kardec estudou, dedicando vida, saúde e recursos, enfim, quando tem chamada a atenção, luta ferrenhamente por se manter agarrado ao cabresto que o conduz.

Desola-nos sair da caverna, atraídos pela luz, para verificar que, por toda a parte, essa luz está abafada pelo pó e pelas teias dos velhos conceitos religiosos. Dói ver as consciências inconscientes, presas aos conceitos materialistas e mesquinhos, sem a capacidade, por escolha própria, de ver o quanto sofrem pelo desconhecimento!

Vejam aquele! Ao seu lado, um Espírito bondoso, cheio de luz, sopra em seus ouvidos o bom conselho. O conduz, num momento de elevação mental, para a porta do conhecimento. Alguém lhe convida: “vamos estudar?”. Mas a luz se apaga de sua consciência: “quem é esse para me mandar estudar? Já li O Livro dos Espíritos e já passei por toda a a famosa coleção daquele Espírito que ensinou sobre o umbral e a vida espiritual – embora nem espiritualizado ele fosse. Além disso, sou médium e, nas minhas viagens astrais, vejo a verdade com meus próprios olhos!”.

Olhem aquele outro: é voluntário no centro espírita, mas não estuda. Uma mãe, em pleno sofrimento, veio buscá-lo: seu filho, nascido com deficiências físicas, lhe requer demais as energias. Está cansada. Seu filho se atormenta diariamente sob pesadas comoções: gritos, contorções. O voluntário tenta confortá-la com base no que conhece, e lhe diz que seu filho está sofrendo a lei de ação e reação, pois, provavelmente, foi um suicida na vida anterior. A mulher se horroriza e se afasta: “quem é esse para dizer tal coisa do meu amado filho? Esse Espiritismo não presta pra nada!”.

Ali vai mais uma. Está desesperada, pois disseram-lhe, em certo centro espírita, que o homem que ama é sua alma gêmea. Acontece, porém, que o homem desposou outra mulher. Que será dela, agora? Como poderá viver pela metade? Melhor acabar com seu próprio sofrimento, pensa ela. Num átimo de inspiração, vai ao centro espírita do caso anterior, onde conversa com o mesmo voluntário, que lhe diz que ela não deve jamais pensar em cometer o suicídio, pois, se assim fizer, ela ficará anos vagando no umbral ou no vale dos suicidas, e que ela deve suportar essa “prova”, pois deve ser consequência de um débito de vida passada. Ela houve, pesarosa, mas, saindo dali, pensa: não será melhor sofrer o castigo lá, do que ficar sofrendo aqui?

Eis um homem: está perseguido por pensamentos de autodestruição também. Ouve vozes: mate-se, chega de sofrer, dizem elas. Ele chega ao mesmo centro. O rapaz o diagnostica com obsessores, manda-o fazer uma famosa oração para afastar Espíritos e também lhe recomenda limpar a casa com anil. O cenário não muda e, depois de alguns meses, o homem acaba por tirar a própria vida.

Outro dia, outro cenário, busca o voluntário uma mulher. Está sofrendo abusos psicológicos e físicos de seu marido, que, viciado no álcool, volta ao lar com as piores companhias. Ela expõe todo o cenário. O voluntário lhe diz que ela está deve estar sofrendo a consequência da lei de ação e reação, pois deve ter feito um mal ao seu marido na vida passada. Por isso, deve suportar a tudo com coragem, de modo a “resgatar esse débito”.

Como dissemos, o cenário é, sim, um tanto desolador. Mas, se estamos conscientes disso, é porque precisamos fazer a nossa parte, começando por estudar, por conhecer, porque o Espírito só avança em moral pela própria vontade consciente. Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. É estudá-lo com cuidado, em suas páginas originais, longe das adulterações de O Céu e o Inferno e A Gênese. É entender e retomar os aspectos filosófico e moral do Espiritismo, para, vivendo em nossas próprias vidas, sermos peças atuantes, e não mais inoperantes, na transformação social.

Há muitos falando, escrevendo, atuando em nome de algo que se chama Espiritismo no cartaz, mas que é dogma na essência, porque ainda há poucos estudando e atuando, em nome da Doutrina, inspirados no modelo probo e consciencioso de Allan Kardec, um homem que, com seu esforço, ajudou a formar a Doutrina com a maior capacidade de alavancar a mudança do mundo.

Espíritas: instruí-vos!




Ninguém é professor de Espiritismo

Imagem de capa: Foto de Andrea Piacquadio no Pexels

Muito tem sofrido a Doutrina Espírita por conta dos indivíduos que acham que, porque leram Kardec — o que é bem diferente de estudar e compreender Kardec, o que requer conhecimentos outros, devidamente contextualizados, como é o caso do Espiritualismo Racional — creem que podem se colocar na posição de ensinar, à sua moda, o que é o Espiritismo e, pior, como são os conceitos e temas que sequer foram abordados ou desenvolvido no espaço de tempo em que o Espiritismo se desenvolveu como deve ser: como ciência.

Veja: O Espiritismo é uma lei natural. Como tal, sempre existiu e sempre existirá e, dessa lei, conhecemos apenas uma pequena parte, a doutrina nomeada como Espiritismo. Reconhecer, porém, que conhecemos muito pouco dessa lei da natureza não significa dizer que o que conhecemos é inválido e, em certos aspectos, conclusivo, desde que esteja muito bem fundamentado, com segurança, nos conceitos doutrinários. Significa apenas reconhecer que a ciência espírita não está concluída, mas, sim, que é a base, assim como os estudos de Isaac Newton deram base à Física.

Nosso papel primeiro deve ser o de estudante humilde, porque, na maioria das vezes, nem sequer entendemos todos os conceitos brilhantemente desenvolvidos por Allan Kardec em suas obras. Aliás, sabendo que as suas duas últimas obras, O Céu e o Inferno e A Gênese foram adulteradas e que o Espiritualismo Racional e o Magnetismo foram quase apagados pelo tempo, temos que reconhecer que aprendemos muita coisa errada e que outras tantas deixamos de aprender.

O que se tem, hoje, em geral, é um conhecimento muito parco e superficial, além de muitas vezes distorcido, do Espiritismo “contido” nas obras de Kardec. Não bastasse isso, colocando Kardec no esquecimento, passamos a admitir como doutrinários conceitos outros que, na maioria das vezes, não passaram pelo crivo da razão, nem pelo controle do método científico, tão bem desenvolvido pelo codificador. E, munidos de toda essa falta de conhecimento, muitos têm desejado ditar o Espiritismo, segundo suas visões e concepções. É por isso que, daquilo que não temos certeza, por não haver nada conclusivo no Espiritismo, não podemos nada afirmar, embora possamos afirmar, paradoxalmente, que muitas certezas, hoje persistentes no movimento espírita, não são exatas, como a existência do umbral.

Não vamos muito além. Nossos textos e estudos são fartos de apontamentos e de exemplos sobre tudo o que dissemos, acima. Terminamos reafirmando: não somos professores, mas estudantes, e jamais estaremos fechados a reavaliar qualquer ideia ou conteúdo que se mostre errado um incompleto, de acordo com uma irretorquível e irrecusável lógica dos fatos que, porventura, tenhamos vindo a não compreender ou conhecer completamente.

É a isso, pelo bem da humanidade, que convidamos a todos.




As ilusões de um Espírito apegado às riquezas

Extraído da obra “Instruções psicofônicas”, de Chico Xavier.

O irmão “F” nome pelo qual passaremos a designar o companheiro, cuja mensagem vamos transcrever, foi na Terra grande banqueiro. Certamente não foi um criminoso, na acepção comum do termo, mas, pelo conteúdo espiritual de suas manifestações, parece haver sido um desses homens “nem frios, nem quentes”, do símbolo evangélico, que, trazendo a mente amornada na ideia do ouro, durante a existência na carne, ficou por ela dominado em seus primeiros tempos, além da morte.

“[…] Conturbado e aflito, senti necessidade da confissão. Afinal, eu era um católico que relaxara a própria fé. Sem que ninguém me escutasse os apelos, pedi a presença de um padre. Avancei para o confessionário e pus-me de joelhos, mas, em poucos momentos, o confessionário convertia-se para mim num guichê de banco. Sobressaltado, ergui meus olhos para o altar. O altar, porém, transformara-se em cofre forte. Intentei consolar-me com a visão do missal, mas o livro do culto, de repente, surgiu metamorfoseado num velho livro de minha propriedade, em que eu lançava, às ocultas, as minhas notas de rendimento real. Diligenciei isolar-me. Temia a loucura completa. Ainda assim, levantei meu olhar para a imagem da Virgem Maria. Naturalmente, ela teria pena de mim, contudo, ante a minha atenção, a imagem reduziu-se a uma joia de alto preço… Fez-se toda de ouro, de ouro puro…

[…]

Demandei uma caixa d’água que me era familiar no alto do bairro de Santo Antônio. A água, ali, corria em jorros. Podia debruçar-me… Podia beber como se eu fora um animal e, prostrado, não mais de joelhos, mas de rastros, imploraria a graça de Deus. Achei a água corrente, a água límpida visitada pela luz do sol e estireime no chão… Mas, no momento preciso em que meus lábios sequiosos tocaram o líquido puro, apenas o ouro, o ouro apareceu… Reconheci haver descido à condição de um alienado mental. Lembrei-me, então, de velho amigo… Cícero Pereira… Cícero era espírita e, por esse motivo, tornou-se para mim alguém que eu supunha, em minha triste cegueira, haver deixado na retaguarda da loucura. Bastou a recordação para que a voz dele se me fizesse ouvida. Acudia-me ao chamado. Amparou-me. Conversou comigo […]

Um ótimo exemplo de que não se pode tomar cegamente as comunicações de um Espírito como se fossem a expressão da verdade. Imaginem se esse Espírito, sendo levado a uma reunião de auxílio espiritual, contasse apenas a parte da ilusão em questão e as pessoas desavisadas saíssem afirmando que, no mundo dos Espíritos, existe ouro…




Onde fica o umbral? E Nosso Lar? Esses lugares existem?

O umbral e “Nosso Lar” existem? Onde fica? Resposta curta: não existem como as pessoas acreditam, por falta de conhecimento do Espiritismo. Mas, como isto é um grupo de estudos, você não deve simplesmente aceitar esta resposta, sem raciocinar, da mesma forma que não deve aceitar as ideias isoladas de quaisquer Espíritos, seja pelo médium que for.

Por que é que muitos Espíritos, antes do Espiritismo ou sob outras religiões, dizem que, depois da morte, se constataram no Inferno? Por que é que, na época dos romanos, os Espíritos diziam estar no Tártaro? Por que é que os Espíritos que conheceram o Espiritismo (esse distorcido) dizem que se constataram no umbral ou no vale dos suicidas, e não no inferno? É muito claro que isso se deve às suas próprias concepções, porque, se um ou outro fossem uma realidade, haveria, sempre, uma uniformidade nas ideias apresentadas pelos Espíritos, em todo o tempo e por toda a parte.

Portanto, é fácil notar que se tratam de concepções do imaginário. São uma abominação? É claro que não: fazem parte da nossa evolução. Contudo, o Espiritismo não veio para continuar essas ideias, de uma maneira mais agradável: veio para apresentar a realidade, ajudando o ser humano a se desfazer dessas concepções limitantes e que atrasam o seu passo. Ora, é fato que o Espiritismo tem esse propósito de alavancar o progresso, como toda ciência, pois, se não fosse assim e sendo o Espírito imortal, poderia Deus, em suas Leis, deixar que cada um chegue ao progresso através das infinitas encarnações, aprendendo por tentativa e erro, apenas, e sem nenhum suporte. Mas Ele, sendo todo bondade, nos confere as ferramentas, sendo a maior delas a inteligência e a razão; cabe a nós utilizá-las ou não, segundo nossa vontade.

O papel do médium

O papel do médium é não interferir na comunicação de um Espírito e, através dele, podem se comunicar qualquer tipo de Espíritos, dependendo da circunstância e do propósito, seja do médium, seja dos Espíritos superiores. Já o papel do estudioso é analisar e julgar essas comunicações, com base na ciência já adquirida e no crivo da razão((Leia o artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos“)).

Após a morte de Kardec e com todo o desvio que o Movimento Espírita tomou, principalmente com a verdadeira plantação de joio que foram as ideias de Roustaing, os espíritas, afastados dos estudos, deixaram de raciocinar e começaram a permitir que diversas ideias, sem base doutrinária, passassem a inundar o imaginário dos adeptos da Doutrina. Assim, conceitos fantásticos e supersticiosos começaram a transformar lenta e progressivamente o Movimento que, hoje, se apresenta como uma religião, repleta de dogmas e falsos conceitos.

O que existe no Espiritismo

Ora, prezado leitor, está lá em O Livro dos Espíritos a seguinte conclusão, apresentada na pergunta 1012 de O Livro dos Espíritos:

1012((Nota dos Revisores: Note-se que, na numeração dos itens do livro, Kardec salteou o n.° 1011. Apesar do lapso evidente, o texto foi mantido assim nas quatorze edições que se seguiram até a desencarnação de Allan Kardec. Para evitar confusões, a presente edição não procurou “acertar” a numeração.)). Haverá no universo lugares circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seu merecimento? 

“Já respondemos a essa pergunta. As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou menos felizes ou desgraçados, conforme seja mais ou menos adiantado o mundo em que habitam.”

a) — De acordo, então, com o que vindes de dizer, o inferno e o paraíso não existem, tais como o homem os imagina?

“São simples alegorias: por toda parte há Espíritos ditosos e desditosos. Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia; mas podem reunir-se onde queiram, quando são perfeitos.”

A localização absoluta das regiões das penas e das recompensas só na imaginação do homem existe. Provém da sua tendência a materializar e circunscrever as coisas, cuja essência infinita não lhe é possível compreender.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1860

Está muito claro que os lugares, no mundo dos Espíritos, não existem por si. São meras alegorias e, principalmente, estados de consciência. O Espírito feliz está “no céu”, enquanto o Espírito infeliz e sofredor está “no inferno” de sua própria consciência.

Notemos, porém, um detalhe importante, na pergunta 1012-a: “Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia“. Isto quer dizer que, conforme suas ideias e seus estados de evolução, os Espíritos podem se reunir. Ora, sabendo que os Espíritos menos evoluídos se prendem aos conceitos da matéria e sabendo que, pela ação da vontade, o Espírito pode atuar sobre a matéria fluídica, proveniente do Fluido Cósmico Universal, é fácil conceber que, em conjunto, os Espíritos sofredores reunidos possam criar verdadeiras paisagens infernais ou purgatoriais, que, contudo, existem apenas enquanto esses Espíritos as plasmarem, isto é, não são lugares que os precedem, mas que existem apenas como criações desses agrupamentos de inteligências.

Também não podemos esquecer que nós, mentalmente, somos capazes de criar verdadeiras ilusões, em razão de nossas ideias, crença, medos, etc. Portanto, é fácil entender quando um Espírito sofredor se diz machucado, com fome, sede ou mesmo cansado.

Importante: os Espíritos, no Espiritismo, foram categóricos a esse respeito: não existem lugares circunscritos. Por outro lado, sobre outros conceitos, eles disseram: “calma. Isso não pode ser entendido ainda. Aguarde o desenvolvimento da Doutrina”. Isso demonstra que é falsa a ideia de que tais conceitos não puderam ser ensinados naquele tempo (o que nem sequer faz sentido).

Não paremos por aqui, porém. Em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota, a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, além daquele que respondeu às perguntas de OLE, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei naturalapenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”).

O ensinamento geral e a razão

Kardec sempre destacou, como método indispensável à formação da ciência espírita, o duplo controle da razão e do ensinamento geral dos Espíritos. Mas não é só: o ensinamento, destaca Kardec, quando deve ser espalhado, é dado simultaneamente sobre vários pontos do globo. Os conceitos ora apresentados, contudo, não se estabeleceram dessa forma: eles foram trazidos por um Espírito ou médium, em uma época, e, com o passar do tempo, começaram a ser admitidos por outros indivíduos, que passaram a reproduzí-los. É como se fosse uma pirâmide invertida, no tempo: atualmente, a partir de uma construção de teorias ilusórias do passado, uma série de outras foram desenvolvidas, em contrário à própria Doutrina Espírita e recuperando diversos conceitos das velhas religiões.

“Mas eu vi em viagem astral”

Para o estudioso da Doutrina, é muito claro que as ideias do indivíduo tem papel fundamental naquilo que vê e conforme sua mente física interpreta essas “visões”.

Kardec, em A Gênese, cap. XIV, destaca que:

27. ​A visão espiritual é necessariamente incompleta e imperfeita entre os Espíritos encarnados e, por consequência, sujeita a aberrações. Tendo sede na própria alma, o estado desta deve influir sobre as percepções. Conforme o grau de seu desenvolvimento, as circunstâncias e o estado moral do indivíduo, ela pode dar, seja no sono, seja no estado de vigília: 1.º) a percepção de certos fatos materiais reais, como o conhecimento de ocorrências que se passam ao longe, os detalhes descritivos de uma localidade, as causas de uma doença e os remédios convenientes; 2.º) a percepção de coisas igualmente reais do mundo espiritual, como a visão dos Espíritos; 3.º) imagens fantásticas criadas pela imaginação, análogas às criações fluídicas do pensamento (veja acima, no 14). Essas criações estão sempre em relação com as disposições morais do Espírito que as cria. É assim que o pensamento de pessoas fortemente imbuídas e preocupadas com certas crenças religiosas lhes apresenta o inferno, suas caldeiras, suas torturas e seus demônios, do modo que elas mesmas imaginam: é por vezes toda uma epopeia; os pagãos vendo o Olimpo e o Tártaro, como os cristãos veem o inferno e o paraíso. Se, ao despertar ou sair do êxtase, essas pessoas conservam uma lembrança precisa de suas visões, consideram-nas como realidade e confirmação de sua crença, embora sejam apenas o produto dos próprios pensamentos. É preciso fazer uma distinção muito rigorosa das visões estáticas antes de aceitá-las. Nesse sentido, o remédio para a excessiva credulidade é o estudo das leis que regem o mundo espiritual.

28. ​Os sonhos propriamente ditos apresentam as três naturezas de visões descritas anteriormente. Às duas primeiras pertencem os sonhos de previsão, pressentimentos e advertências. Na terceira, isto é, nas criações fluídicas do pensamento pode-se encontrar a causa de certas imagens fantásticas, que nada têm de real em relação à vida material, mas que têm, para o Espírito, uma realidade tal que o corpo sofre um impacto, como se tem visto cabelos embranquecerem sob a impressão de um sonho. Essas criações podem ser provocadas por crenças exaltadas, lembranças, gostos, desejos, paixões, medo, remorsos, preocupações habituais, necessidades do corpo ou mal-estar relativo às funções do organismo; enfim, por outros Espíritos, com objetivo benévolo ou malévolo, conforme sua natureza.

Quer dizer, prezado leitor, que, conforme a ciência espírita, os lugares, no mundo dos Espíritos, não passam de falsos conceitos. Infelizmente, caídos na curiosidade novidadeira e ausentes desses alicerces, os Espíritas passaram a admitir os frutos das ideias isoladas de certos Espíritos como se fossem a plena verdade.

Resta afirmar, portanto, que não existe umbral, não existe vale dos suicidas e não existem colônias espirituais como acreditamos: existem Espíritos que se reúnem, segundo suas ideias, e que, quanto mais distraídos do propósito do intervalo entre as encarnações, que deveria ser o de refletir e aprender, reforçando sua vontade para vencer suas imperfeições na próxima encarnação, criam cenários “materiais”, replicando os hábitos terrestres, o que constitui, para eles, um verdadeiro atraso em direção à felicidade.

Ensinar os falsos conceitos de umbral, vale dos suicidas, hospitais espirituais, etc., que são a representação externa do sofrimento moral, é deixar de ensinar o que realmente importa: a análise dos próprios erros e acertos, a compreensão de que tudo depende da própria vontade e a necessária ação para a própria evolução. Para um Espírito que sofre, e para nós mesmos, digamos: qualquer sofrimento ou necessidade fisiológica, no mundo espiritual, são sensações FALSAS, uma espécie de repercussão moral((ver O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. VI, item 257)) . Ora, é conclusão de Kardec que a morte do corpo provoca a saída do Espírito, se desligando, o perispírito, célula a célula((ver A Gênese, cap. XI)). Desde que todas as células estão mortas e o perispírito “solto” (o que não vai levar mais do que 24 horas após a morte cerebral) não existe nenhuma repercussão do corpo para o Espírito, senão por uma externalização de um sofrimento moral!

Portanto, você não vai passar “pelo umbral”, mas terá, sim, que enfrentar sua própria consciência, uma hora ou outra, e sua consciência, dependendo de como estiver e dos conceitos que carregar, poderá lhe indicar muito claramente o caminho de reajuste, ou então poderá lhe fixar em estados de perda de tempo. O céu ou o inferno estará em sua própria consciência. Portanto, cuide de aprender o Espiritismo e tirar, dele, as consequências morais em reforço à sua própria vontade. Assim alcançará, mais cedo, a felicidade almejada, que não é viver numa casinha aconchegante numa colônia espiritual onde os Espíritos se preocupam em trabalhar para ganhar dinheiro em troca, mas, sim, a possibilidade de agir no bem, através do espaço infinito, fazendo a sua parte na criação divina.

E não se engane: o Espírito se transporta pelo pensamento, onde quer que ele projete esse pensamento. Não precisa de ônibus voador.

Onde está a chave para entender tudo isso, então?

Está em A Gênese, de Allan Kardec. Leia com atenção:

14. Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade, que são para o Espírito o que a mão é para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem no fluido essa ou aquela direção; eles os aglomeram, combinam ou dispersam e formam conjuntos com uma aparência, uma forma, uma cor determinada; mudam suas propriedades, como um químico muda as de um gás ou de outros corpos, combinando-os segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.

Algumas vezes, essas transformações são o resultado de uma intenção, mas frequentemente são o produto de um pensamento inconsciente, pois basta o Espírito pensar numa coisa para que ela seja feita.

É assim, por exemplo, que um Espírito se apresenta à vista de um encarnado, dotado da vista espiritual, sob a aparência que tinha quando estava vivo, na época em que o conheceu, embora já tenha tido várias outras encarnações. Ele se apresenta com as vestes, os sinais externos, enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. que tinha; um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não digo que tenham conservado tais aparências; não, certamente, porque, como Espírito, ele não é coxo nem maneta, nem caolho nem decapitado. Mas seu pensamento, se reportando à época em que era assim, seu perispírito toma instantaneamente essa aparência, a qual muda também instantaneamente. Se ele havia sido uma vez negro e outra vez branco, ele se apresentará como negro ou como branco, de acordo com qual das duas encarnações ele seja evocado e para onde vá seu pensamento.

Por um efeito análogo, o pensamento do Espírito cria fluidicamente os objetos que estava habituado a utilizar. Um avaro manejará ouro; um militar terá suas armas e seu uniforme; um fumante, seu cachimbo; um trabalhador, sua charrua e seus bois; uma velha mulher, sua roca. Esses objetos fluídicos são tão reais para o Espírito quanto seriam no estado material para o homem encarnado. Mas, pelo fato de serem criados pelo pensamento, sua existência é tão efêmera quanto ele [o pensamento].

É muito fácil compreender, portanto, aquilo que dissemos: “por que existe? Porque acreditam”. Precisamos reconhecer, portanto, a necessidade de compreender e de separar o que á falso do que é verdadeiro, porque, a partir do momento em que alguém diga que, no mundo dos Espíritos, existem bichos-papões comedores de criancinhas, ou Espíritos que vampirizam o fluido perispiritual dos encarnados (o que não pode acontecer, conhecendo o princípio das leis universais que regem matéria e Espírito), e que as pessoas passem a, irrefletidamente, acreditar, sem raciocinar, nesses conceitos, elas próprias, depois de morrerem, a depender de seu estado de consciência, fabricarão suas próprias assombrações, isto é, pela ação do pensamento, criarão tais imagens e, então, em suas comunicações mediúnicas, reproduzirão as mesmas ideias, provavelmente aumentadas aqui e ali, afinal, “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

Entende o problema, amigo leitor?

Vídeo explicativo, com Paulo Henrique de Figueiredo

Conclusão

Com tudo isso, estamos dizendo que Chico Xavier estava errado? NÃO, pelo princípio de Chico Xavier ser apenas o médium. Contudo, André Luiz, que nem sequer era uma pessoa espiritualista, na Terra, apresentou a sua verdade das coisas, segundo suas concepções. E, desde que essa opinião não encontra base doutrinária e racional, não pode fazer parte do Espiritismo.

É importante destacar, porém, que, se tais criações existem, é porque Deus permite. Na verdade, isso é algo ligado à própria benevolência divina, que garante, a cada um, o desenvolvimento gradual e sem choques. No artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864, consta uma importante comunicação espiritual, da qual tiramos o seguinte trecho:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Vemos, portanto, que a existência de tais “lugares” é um fato, permitido pela benevolência divina, àqueles que ainda não estão desenvolvidos para compreender algo acima e fora da matéria e das necessidades materiais.

Finalizamos lembrando aquilo que está estampado em nossa página inicial:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec – A Gênese




A fé customizada pelas paixões ideológicas

Por Marco Milani

(Texto publicado na Revista Senda – FEEES, mai/jun 2022, p.5-6((Fonte: https://www.feees.org.br/?jet_download=3739)))

Ao longo de seu discurso à comunidade de espíritas das cidades francesas de Lyon e Bordeaux, em 1862, Kardec((Livro Viagem Espírita em 1862. Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux. Discurso I)) categorizou os adeptos em três grandes grupos: I) Os que creem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem qualquer consequência moral; II) Os que percebem o alcance moral, mas o aplicam aos outros e não a si mesmos; III) Os que aceitam pessoalmente todas as consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.

O verdadeiro espírita, portanto, aplica em si mesmo o que muitos apenas manifestam em discursos normativos carregados de lições enobrecedoras, mas vazios de ações.

Entre cada uma dessas categorias poderiam ser apontadas múltiplas subcategorias, proporcionais à maturidade moral e intelectual dos indivíduos. Uma delas seria formada por aqueles que apresentam-se como adeptos, porém adequam os ensinos aos próprios interesses e não raramente procuram legitimar suas opiniões particulares sobre diversos assuntos polêmicos alegando essas estarem embasadas no Espiritismo. Tal é o espírita por conveniência, que customiza a fé conforme seus interesses e ambições.

A fé customizada é adotada em detrimento da coerência doutrinária por novos sofistas que distorcem a realidade para moldar a aparência da verdade. Tal distorção decorre, muitas vezes, das paixões que o suposto adepto carrega e direcionam sua cosmovisão e consequente argumentação. Ao invés de servir-se das premissas doutrinárias para se autoconhecer, aprimorar-se e repensar suas crenças anteriores com natural mudança de atitudes, ele faz o inverso, partindo de arraigadas convicções ideológicas para encaixar o Espiritismo nessas propostas. O que não couber ou for divergente, simplesmente ignora-se ou reinterpreta-se.

 Assim ocorre com as paixões políticas. Em um mundo de expiações e provas, não faltam antigas propostas revolucionárias sociais que prometem a concretização do reino de justiça na Terra desde que seguida determinada cartilha já idealizada por intérpretes da história e planejadores do comportamento coletivo. Quase a totalidade dessas receitas utópicas de felicidade desconhecem o processo interexistencial de desenvolvimento e pregam a imposição de relações econômicas artificiais e coletivistas como aquelas que transformariam moralmente o indivíduo, mas que acabam por sufocá-lo. Para esses, o Espírito Erasto((Trecho extraído da epístola de Erasto aos espíritas lioneses – 1861. Um alerta contra as utopias materialistas. Revista Espírita, out/1861.)) assim se manifesta. 

Acabo de pronunciar a palavra igualitária. Julgo útil deter-me um pouco nela, porque absolutamente não vimos pregar, em vosso meio, utopias impraticáveis, e também porque, ao contrário, repelimos com energia tudo quanto pareça ligar-se às prescrições de um comunismo antissocial; antes de tudo, somos essencialmente propagandistas da liberdade individual, indispensável ao desenvolvimento dos encarnados; por conseguinte, inimigos declarados de tudo quanto se aproxime dessas legislações conventuais, que aniquilam brutalmente os indivíduos.

 Fruto de ilusões utópicas, muitos espíritas por conveniência selecionam e reinterpretam conceitos doutrinários para legitimar o modelo político que carregam de sistemas de relações socioeconômicas que dependem da perfeição moral de todos.

As questões transitórias sociais recorrentemente estavam presentes nos diálogos de Allan Kardec com os Espíritos e o respectivo ensino doutrinário contém os elementos fundamentais para a construção de uma sociedade terrena mais justa e fraterna, lastreada no conhecimento da realidade espiritual e da finalidade da reencarnação.

A contribuição primordial do Espiritismo no progresso social evidencia-se na condição de um poderoso agente de transformação moral da humanidade, sem qualquer enquadramento em concepções político-ideológicas já concebidas.

Como filosofia interexistencialista, o Espiritismo não se limita às relações do mundo material, pois expande a compreensão da realidade e desloca a finalidade última do ser para a conquista do verdadeiro Reino de Deus em si mesmo. As misérias humanas são reflexos do nível moral dos indivíduos, confrontando-os com as chagas do orgulho e do egoísmo, incentivando-os a exercitar a inteligência e praticar a caridade em seu verdadeiro sentido, em harmonia com as leis divinas.

O Espiritismo, ao demonstrar a responsabilidade de cada um sobre suas ações e respectivas consequências durante o processo reencarnatório em plena conformidade com as leis naturais, afasta-se da míope perspectiva materialista histórica que concebe o homem como produto de seu meio e ignora sua bagagem reencarnatória, suas tendências e necessidades evolutivas para a realização espiritual. A expressão “a cada um segundo suas obras” resume a essência meritocrática do esforço individual na jornada interior em busca da verdadeira felicidade, segundo o Espiritismo.

A confiança e a crença racional na justiça divina e no futuro pautado pelos benefícios consequentes da prática da caridade, aqui entendida como a ação benevolente, indulgente e voltada ao perdão das ofensas, deveriam nortear a conduta equilibrada do adepto, promovendo conforto e coragem para superar os desafios materiais. A conduta do espírita espelha o seu próprio progresso moral nas obras realizadas e faz-se reconhecido como coerente aos princípios de paz e solidariedade que professa.

A fé raciocinada, sob esse ângulo, analisa criticamente e admite a consistência do conjunto de ensinos apresentados por Allan Kardec, convidando o adepto da filosofia espírita a agir conforme os princípios doutrinários, reduzindo e atenuando hábitos e posturas orgulhosas e egoístas. Certamente, em um mundo de expiações e provas, não se deve exigir a súbita perfeição e o progresso moral é paulatino e proporcional aos esforços e maturidade de cada um.

A transformação social, para Kardec, não ocorrerá de maneira impositiva e totalitária ao indivíduo, mas de maneira oposta, decorrente da melhoria do indivíduo respeitando-se a liberdade de consciência de cada um. Conforme afirma-se na edição de fevereiro de 1862 da Revista Espírita((Trecho extraído do texto Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo, Revista Espírita, Revista Espírita, fev/1862)), tem-se:

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar: eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa.

 Ao crer somente naquilo que está em concordância com suas paixões político-ideológicas e rejeitar tudo o que na doutrina espírita as contrarie, o adepto por conveniência exemplifica a postura egoísta e orgulhosa que leva à insensatez doutrinária. A militância política, com o intuito de ocupar espaços e disseminar suas propostas para convencer o maior número de pessoas, desrespeita a liberdade de pensamento e livre-arbítrio do próximo nas instituições espíritas e provoca cismas.

Allan Kardec, dirigindo-se aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha preparada por adversários do Espiritismo que objetivavam levar aos grupos espíritas a discussão política((ibidem)).

Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.

                       Atuando como promotores de cizânia em nome de paixões políticas variadas, os supostos adeptos que customizam a fé lançam-se com entusiasmo ao proselitismo de suas convicções pessoais camuflando-as de assuntos doutrinários, fomentando as discussões contra ou a favor de governantes, defendendo ou atacando condutas alheias, ou ainda, tentando fazer crer que só quem compartilha de suas paixões político-ideológicas poderia ser considerado um espírita legítimo.

Que nesses tempos agitados pela polarização política, consigamos entender o alerta de Kardec sobre os cuidados no trato das paixões e o respeito à liberdade de pensamento e exemplificarmos em nós mesmos o comportamento que gostaríamos que outros tivessem.




Os ataques a Kardec e as tentativas de manchar o Espiritismo

Não esqueçamos que o Espiritismo tem inimigos interessados em obstar-lhe à marcha, aos quais seus triunfos causam despeito, não sendo os mais perigosos os que o atacam abertamente, porém os que agem na sombra, os que o acariciam com uma das mãos e o dilaceram com a outra. Esses seres malfazejos se insinuam onde quer que contem poder fazer mal. Como sabem que a união é uma força, tratam de a destruir, agitando brandões de discórdia. Quem, desde então, pode afirmar que os que, nas reuniões, semeiam a perturbação e a cizânia não sejam agentes provocadores, interessados na desordem? Sem dúvida alguma, não são espíritas verdadeiros, nem bons; jamais farão o bem e podem fazer muito mal.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns.

De muito tempo são conhecidos os inimigos do Espiritismo que, em campo aberto, atacam-lhe de todos os lados e de todas as formas. Há os das religiões, que o combatem por pregar os princípios da autonomia e do livre-arbítrio; os das ciências materialistas, que não conseguem admitir aquilo que não veem sob os aparelhos; os da política, que veem, nas suas ideias, não mais que uma ameaça à sua hegemonia; os das filosofias materialistas, etc. Esses inimigos, porém, são declarados. Piores são aqueles que surgem, por imprecaução ou por malevolência, no seio da Doutrina, dentre os homens estudiosos que deveriam fazer de tudo para o bem dessa ciência.

Existem em todas as áreas os “judas” do Espiritismo. Kardec conheceu alguns, sendo que o mais destacado deles foi Roustaing, que, por orgulho e vaidade, se voltou contra o Espiritismo. São Espíritos que ainda não conseguiram compreender a essência da Doutrina Espírita, que a consideram uma “religião” ameaçadora e que esperam, sorrateiramente, o menor erro onde se possam agarrar, fazendo uma verdadeira tormenta em copo-d’água. Se valem, para isso, seja de si mesmos, quando encarnados, seja de indivíduos desavisados ou pouco compenetrados da verdadeira essência da Doutrina dos Espíritos, sobre os quais exercem influência em razão de suas ideias apegadas à vaidade e ao orgulho.

Não importa que, na formação da ciência espírita humana, existam mil conceitos consoladores, libertadores e transformadores: basta um único conceito, depois visto como falso ou errado, nascido das ideias de época dos homens, para que tentem colocar a Doutrina dos Espíritos, as ideias dos homens que a investigaram e o Movimento Espírita, três coisas diferentes, num mesmo balaio, tachado de imprestável ou danoso.

Uma dessas ideias que mais causa furor ao homem desavisado e desinformado é aquela do racismo em Kardec. Sim, Kardec afirma, em suas conclusões, e movido pelos conceitos da ciência da época, que o negro, referido por ele como “hotentote”, o “selvagem” africano, seria uma raça inferior, materialmente falando, onde se encarnariam Espíritos menos adiantados, em busca de expiações e aprendizado básico. Uma ideia terrível e racista? Sim, mas apenas sob o ponto de vista atual. Naquela época nem sequer havia o conceito do racismo, porque era natural, segundo a ciência, classificar o ser humano em raças — dezenas delas.

Kardec utilizava os conceitos e postulados científicos de sua época. Foi assim com os fluidos, que foram posteriormente abandonados, foi assim com o racismo. Simples assim. Partindo desse conceito MATERIAL da inferioridade da raça negra, ele supôs que os Espíritos que encarnavam eram inferiores? Por quê?

Ora, nos coloquemos na situação de Kardec: vivia em uma sociedade etnocêntrica; via os negros sendo classificados como inferiores, pelos conceitos científicos e tratados como animais. Daí, supôs que os Espíritos escolhiam encarnar negros para expiar suas imperfeições. Isso está explícito em “O negro pai César”, na Revista Espírita de junho de 1859. Há erro nisso? Se considerarmos como os negros eram tratados e classificados pela ciência e pela sociedade, que lhes impunham pesados sofrimentos, então não é fácil supor que alguns Espíritos escolhiam uma vida como aquela, assim como um Espírito chegou a escolher ser enterrado vivo, pensando ter que pagar um erro passado?

Um certo autor diz assim: “É ainda recorrente centros espíritas que não aceitam ou aceitam com ressalvas comunicações de pretos velhos, índios e outros espíritos que se apresentam de maneira não convencionada como de confiança”. Ora, é ainda recorrente, nos centros Espíritas, subirem às tribunas para ensinarem conceitos de carma e lei do retorno ou ainda falarem em “água fluida” e “o telefone só toca de lá pra cá”. E isso se dá pela mesma razão que leva esse Movimento Espírita a não aceitarem tais comunicações: pela ausência de estudos doutrinários e científicos. Não confundamos o Movimento Espírita com o Espiritismo. São coisas distintas, assim como são distintos o aspecto humano e o aspecto espírita da Doutrina.

Lembro que o mesmo Kardec que se guiou pela ciência para classificar os negros (e também outros povos) de tal forma, se esforçou para demonstrar que, “a despeito de qualquer coisa” (no contexto dessas opiniões), deveriam ser tratados com respeito e dignidade. Isso o autor esqueceu de citar:

829. Haverá homens que estejam, por natureza, destinados a ser propriedade de outros homens?

“É contrária à lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a outro homem. A escravidão é um abuso da força. Desaparece com o progresso, como gradativamente desaparecerão todos os abusos.”

É contrária à natureza a lei humana que consagra a escravidão, pois que assemelha o homem ao irracional e o degrada física e moralmente (nota de Allan Kardec)

831. A desigualdade natural das aptidões não coloca certas raças humanas sob a dependência das raças mais inteligentes?

“Sim, mas para que estas as elevem, não para embrutecê-las ainda mais pela escravização. Durante longo tempo, os homens consideraram certas raças humanas como animais de trabalho, munidos de braços e mãos, e se julgaram com o direito de vender os dessas raças como bestas de carga. Consideram-se de sangue mais puro os que assim procedem. Insensatos! Nada veem senão a matéria. Mais ou menos puro não é o sangue, porém o Espírito.” (361–803.)

Esse mesmo Kardec também se esforçou por trazer as mulheres para o mesmo patamar de dignidade e direitos, como na RE de janeiro de 1866 e nas perguntas 817 a 821 de OLE. Ainda, na mesma edição da Revista, ele desfaz, pelos princípios Espíritas, os preconceitos que dão origem à homofobia:

“Se essa influência da vida corporal repercute na vida espiritual, o mesmo se dá quando o Espírito passa da vida espiritual para a corporal. Numa nova encarnação, ele trará o caráter e as inclinações que tinha como Espírito; se ele for avançado, será um homem avançado; se for atrasado, será um homem atrasado.

Mudando de sexo, poderá, pois, sob essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as tendências e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes que se notam no caráter de certos homens e de certas mulheres”.

Portanto, só existe diferença entre o homem e a mulher em relação ao organismo material, que se aniquila com a morte do corpo. Mas, quanto ao Espírito, à alma, ao ser essencial, imperecível, ela não existe, porque não há duas espécies de almas.

Allan Kardec, R.E., Jan/1866

 E então Paulo Henrique destaca o uso de conceitos científicos da época, outra vez, por Kardec, para explicar o termo “anomalia aparente”:

É muito importante destacar aqui que o termo “anomalia aparente”, usado por Kardec, estava presente nas ciências da época, se referindo aos fenômenos que fogem da explicação das teorias aceitas, não sendo para elas “normais”; mas que, ao se encontrar uma nova explicação natural para o fenômeno em novas teorias, elas deixam de ser “anomalias” e se tornam fenômenos naturais. Por isso ela é “aparente”

Paulo Henrique de Figueiredo, site Revolução Espírita, 25/08/2016

Já foi um grande passo, para um homem daquela época, ter dado alma a um povo tratado como máquina. Mas, sabemos, a marcha do progresso avança e, como dizia sempre Kardec, deveríamos sempre acompanhar os avanços científicos, abandonando a opinião que se mostrasse errada frente à ciência. É isso o que fazemos aqui e é o mesmo que faria Allan Kardec se, hoje, se encontrasse encarnado entre nós. Discordo haver “lapso” de caráter em Kardec, pois ele demonstrava o contrário, todo o tempo. Há conceitos de época, de um homem profundamente ligado às ciências.

Esse mesmo autor segue dizendo que “Além disso, era muito comum as famílias ricas terem serviçais negros(as) para todos os tipos de trabalho. Então, Kardec não somente viu negros(as), mas teve oportunidade de conhecer, conversar e aprender sobre as sociedades africanas, pois a presença negra na França era comum”, sobre as quais teço as seguintes observações:

Em primeiro lugar, a referência apresentada para a primeira afirmação — McCloy, Shelby T. Negroes and Mulattoes in Eighteenth-Century France. The Journal of Negro History, Vol. 30, No. 3 (Jul., 1945), pp. 276-292 — traz referências apenas do final do século XVIII. Rivail, tendo nascido em 1804, alcançaria a maturidade somente por volta de 1816, no mínimo. São 16 anos de possíveis mudanças, e não podemos esquecer que a França era um país colonialista e que, por isso, enviava a maioria dos negros para suas colônias.

Em segundo lugar, a segunda afirmação carece de lógica. Kardec foi educado primordialmente em Yverdon, por Pestalozzi, onde, ainda aos 14 anos, atuava ensinando outros estudantes. Depois, conviveu, pelo que sabemos, majoritariamente entre os círculos científicos e educacionais, dominados, é claro, pelo homem branco. Será mesmo que Kardec teve tantas oportunidades assim de conviver com negros? Ora, conhecendo o bom-senso de Rivail, é de se supor que NÃO, caso contrário teria uma opinião diversa a esse respeito.

E resta lembrar que os Espíritos NÃO adiantam a ciência que cabe ao homem adquirir, pelos seus próprios esforços e inteligência. Da mesma forma que os Espíritos não desmentiram os falsos conceitos dos fluidos (elétrico, vital, etc), abandonados por Kardec em A Gênese, para ficar apenas com a teoria do Fluido Cósmico Universal, eles também não desmentiram a tese humana das raças, que só veio a ser superada cerca de um século depois.

Eu não consigo entender e concordar com um texto que, de certa forma, analisa o assunto de forma parcial. Não é questão de minimizar o fato, mas de apresentá-lo por completo. Acontece que uma pessoa que não conheça os fatos por completo, lê uma crítica como essa, que coloca, no mesmo balaio, Doutrina, Kardec e Movimento Espírita, e conclui: “o Espiritismo não presta mesmo”. E isso, meus amigos, é um grande desserviço à Doutrina, de forma que, ainda hoje, muitos negros e adeptos das religiões afro ainda manifestam rancor, preconceito e distanciamento da ciência espírita. Longe de atrair, tais opiniões continuam a afastá-los.




Hoje, não: o poder da vontade

Todos nós passamos pelo processo evolutivo através das encarnações. Todos, sem exceção. Durante esse processo, por conta das nossas escolhas, podemos desenvolver bons hábitos ou maus hábitos. Os primeiros se tornam virtudes, que nos aproximam da felicidade, ao passo que os segundos se tornam imperfeições, que nos afastam da felicidade e, portanto, prolongam nossos sofrimentos.

“Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

KARDEC, Allan. A Gênese. 4.ª edição (original), FEAL

Os maus hábitos são de dois tipos: os morais e os materiais (que, no fundo, tem sempre algo moral, isto é, da vontade do Espírito). Os maus hábitos morais são aqueles facilmente reconhecidos como avareza, ciúmes, vaidade, egoísmo, orgulho, etc., sendo que os dois últimos podem ser entendido como os pais de todos os outros. Já os maus hábitos materiais são aqueles como os vícios em entorpecentes ou no exagero de certos instintos animais, como a glutonice, o vício no sexo, etc.

Uns e outros são muito difíceis de combater, ora instalados. Muitas vezes, requerem múltiplas encarnações e, nada raro, encontramos a nós mesmos na condição daquele que entende onde erra e o sofrimento que isso lhe causa, mas que diz: “é mais forte do que eu”. Comumente, nessa condição, que já é o começo de algo muito importante, pelo simples reconhecimento, vamos buscar diversas formas externas de lidar com esses maus hábitos, sejam eles religiosos ou filosóficos, sejam eles medicinais. Buscamos as internações, as drogas que visam combater certos aspectos, as religiões que comumente classificarão como pecado ou que dirão que precisamos mudar com pressa, pois “Jesus nos espera”. Nada disso, porém, consegue mudar aquilo que vai no fundo de nossas almas, senão com raras exceções. É que, em tudo isso, falta uma chave fundamental: a vontade.

Vejamos: todos os artifícios exteriores podem, claro, ajudar muito no processo das superações. A prece ou a oração, os medicamentos, as práticas exteriores, enfim, tudo é uma ferramenta, mas aqui estou para dizer que nada vai mudar, a não ser que o indivíduo adquira a vontade firme de vencer. E isso é um processo, muito grandemente auxiliado pela razão. O Espiritismo, quando nos demonstra que alegria e tristeza, prazer e dor são condições puramente materiais e passageiras, mas que a verdadeira felicidade está em nos livrarmos das condições que nos forçam a continuar encarnando em condições tão brutas como esta, vivendo sob o fruto de nossas próprias imperfeições, nos diz: todos alcançarão os céus, mas depende apenas de cada um quando isso se dará.

Ao entender esse aspecto, podemos começar a enxergar a vida de outra forma. Cada situação difícil e cada oportunidade se tornam dispositivos de aprendizado. Passamos a encarar as dificuldades com outros olhos e passamos a estar mais atentos para as oportunidades às quais os bons Espíritos nos conduzem, desde que tenhamos a vontade.

Ainda assim, vencer parece algo muito distante e difícil. Muitos dirão: a carne é fraca. Bem, realmente não podemos supor que, da noite para o dia, venceremos um mau hábito fundamente enraizados em nossa mente. Esse é o primeiro entendimento fundamental. É preciso adotar a razão e a vontade para desenvolver melhores hábitos, sendo quem deles é o hábito de aprender a dizer “hoje, não”. Aprendamos a projetar nosso futuro: por que desejamos nos livrar de uma imperfeição ou mais? Porque desejamos não necessitar passar por mais vidas na mesma condição. Quem sabe a transformação possa ser tão grande que, ao fim desta encarnação, possamos conquistar a possibilidade de encarnar em mundos um pouco mais felizes? Ainda mais: quem saiba a transformação possa ainda que, lentamente, se dar de forma tão profunda que possamos, dia após dia, encontrarmos uma felicidade crescente em nosso coração, ante à constatação de que aprendemos a lidar um pouquinho melhor com as dificuldades e os maus hábitos?

Isso já deve ser o suficiente para nos provocar firmes propósitos de mudança, na esperança concreta de um amanhã melhor para nós mesmos.

Portanto, ao lutarmos com nossas imperfeições, aprendamos a vigiar os pensamentos, afastando, isto é, nem pensando, naquilo que nos leva aos processos de tropeço. E, se hoje não fomos fortes o suficiente e tropeçamos, não digamos: “não consigo, não sou forte”, mas sim “não sou perfeito e ainda não consegui superar”, analisando onde se deu o erro e continuando firme no propósito da mudança. Só não podemos tomar esse princípio como desculpa.

Prezado leitor, saiba e jamais se esqueça: se você já percebe uma imperfeição, esse é o começo da sua mudança. Reforce a sua vontade e saiba que, através dela, jamais estará abandonado. Os próprios Espíritos amigos te conduzirão às oportunidades que caberão a você aceitar ou não. É um bom livro que chega oportunamente, é uma palavra de um amigo, é um artigo como este, pensado para mexer contigo. Fique atento às más sugestões, porém, que continuarão vindo dos Espíritos habituados à perturbação, e galgue sua força no estudo e na prece, buscando sempre se reformar. As outras coisas, como ações no bem, estudo do evangelho, acompanhamento psicológico, são, sim, muito importantes, mas depende de você, e apenas de você, desejar alcançar a felicidade.

Lembre-se, afinal, que Jesus, pregado à cruz, ouvindo o arrependimento e os rogos de perdão do ladrão pregado na cruz ao lado, lhe replicou: “hoje mesmo estará comigo no paraíso”. “Estar com Jesus no paraíso” significa dizer que o ladrão, tendo se arrependido e encontrado a vontade de se modificar, entrou em nova fase de aprendizado. Não foi Jesus quem o salvou, mas ele próprio. Pense nisso.

Recomendamos assistir o estudo abaixo. Fala profundamente sobre isso:




Pode uma pessoa morrer antes do tempo ou é sempre o destino, ou a fatalidade?

É um falso conceito, embora generalizado, dizer que em tudo há um planejamento. Fosse assim, não teríamos livre arbítrio.

Quando se diz que até uma folha que cai está sob a vontade de Deus, significa dizer que tudo está sob suas Leis, que são perfeitas. Não há, porém, o efeito direto da vontade de Deus que determine que, naquele momento, a folha vai cair ou não vai cair.

Pois bem: nós, como Espíritos, antes de entrar no reino da consciência e da escolha, somos guiados unicamente pelo instinto. É ele que nos guia, por exemplo, quando somos animais: a fome nos leva a buscar alimento, a raiva nos ajuda a matar o animal que servirá de alimento e o medo nos afasta das condições de perigo. Quando somos um animal fora do topo da cadeia, muitas vezes somos mortos para servir de alimento a outro animal (veja: não há mal nisso, mas bem, pois estamos seguindo a Lei de Deus). Depois de morto, o Espírito do animal, que ainda não tem consciência de si mesmo e capacidade de escolha e, por isso mesmo, não sofre moralmente, é muito rapidamente reutilizado em outro animal que nasce.

Depois de entrarmos no reino do livre-arbítrio, passamos progressivamente a escolher nossas vidas, planejando-a em termos gerais. Se fui muito apegado ao ciúmes, que me causa dificuldades e sofrimentos, a partir do momento que entendemos isso, escolhemos um gênero de vida que nos proverá possibilidades de lidar com essa imperfeição. Desse planejamento participam Espíritos amigos que, durante a vida, nos ajudam, nos influenciando, inspirando e muitas vezes nos conduzindo às situações que poderão ser úteis a nós mesmos.

Tudo isso foi necessário para destacar: somos Espíritos vivendo encarnações na matéria densa. Estamos, portanto, sujeitos às leis espirituais e às leis da matéria. As últimas nos fazem estar expostos às condições da matéria, como, por exemplo, uma chuva torrencial que cause uma comoção numa montanha, que venha abaixo sobre as casas, um vulcão que explode, um terremoto que gere um tsunami devastador ou, ainda, um cometa que atinja o planeta e o destrua por completo. A ideia de “carma coletivo”, portanto, é FALSA (na verdade, a ideia de carma, como conhecemos, é falsa).

De outro ponto de vista, estamos sujeitos também às escolhas de outros Espíritos encarnados. Veja: Deus e os Espíritos superiores respeitam o livre-arbítrio e o tempo dos homens. É por isso não há uma interrupção divina de uma guerra, nem de um crime em menor escala. É claro que os bons Espíritos tentam dissuadir as más escolhas, através de suas influências, mas, no fim, o homem é quem escolhe ouvir a elas (ou à própria consciência) ou não. Do outro lado, uma pessoa que se esteja conduzindo para uma situação em que se torne vítima, pode, também, tentar ser inspirada, se possível, a se desviar disso. Quantos não são os indivíduos que escapam de acidentes e crimes por conta de um sonho ou de um pensamento insistente, ou mesmo através de um evento que lhe cause um atrapalhamento?

É claro que isso não consiste uma concessão a pessoas especiais. Todos nós temos os bons Espíritos que nos amam, sem exceção, mas, muitas vezes, estamos muito afastados de suas influências ou nos fazemos surdos às suas sugestões.

Mais uma constatação lógica que fazemos é que, quando uma pessoa morre por um crime, JAMAIS está “pagando” por algo do passado (mas ela pode, claro, ter sido vítima de sua própria imprecaução, quando, por exemplo, se mete em um ambiente criminoso ou perigoso por sua própria vontade).

Chegamos, enfim, à constatação: o gênero e a época da morte pode, sim, estar planejado antes da encarnação do Espírito, mas o curso da vida pode, é claro, mudar esse planejamento. Não há um destino pré-determinado, pois, se houvesse, seríamos meras marionetes no teatro da vida. Nós podemos mudar nossos planejamento – e frequentemente fazemos. Podemos inclusive criar uma doença, por nossas ações, que nos mate antes do planejado, e também podemos nos livrar de uma doença ou condição que iria nos levar ainda jovens, se uma série de condições permitirem (e NÃO faz parte dessas condições aquilo que chamam de “merecimento”).

Pense naquela pessoa que atravessa a rua sem olhar: não é um Espírito que a impele a tal ato, mas sua própria imprecaução, um mau hábito. Por esse mau hábito, poderá, a qualquer momento, encontrar um carro vindo em alta velocidade ou um motorista olhando para outro lado, e poderá acidentar-se e morrer. Pense também no paraquedista que se lança de um avião, colocando sua vida na dependência de um paraquedas. O instinto lhe diz para ter medo de fazê-lo, mas sua vontade, fruto da escolha, falseia esse instinto, e ele, assim mesmo, se lança. Se o paraquedas falha e ele morre, não foi Deus quem quis assim, nem um Espírito quem estragou o paraquedas, mas as próprias leis da matéria.

Cremos que ficou claro esse pensamento, mas encerramos destacando o que Kardec apresenta em Instruções práticas sobre as manifestações espíritas:

FATALIDADE — do lat. fatalitas, de fatum, destino. Destino inevitável. Doutrina que supõe sejam todos os acontecimentos da vida e, por extensão, todos os nossos atos, predestinados e submetidos a uma lei à qual não nos podemos subtrair. Há duas espécies de fatalidade: uma proveniente de causas exteriores, que nos podem atingir e reagem sobre nós; poderíamos chamá-la reativa, exterior, fatalidade eventual; a outra, que se origina em nós mesmos, determina todas as nossas ações; é a fatalidade pessoal. No sentido absoluto do vocábulo, a fatalidade transforma o homem numa máquina, sem iniciativa nem livre-arbítrio e, consequentemente, sem responsabilidade. É a negação de toda moral.

Segundo a doutrina espírita, escolhendo sua nova existência, pratica o Espírito um ato de liberdade. Os acontecimentos da vida são a consequência da escolha e estão em relação com a posição social da existência. Se o Espírito deve renascer em condição servil, o meio no qual se achar criará os acontecimentos muito diversos dos que se lhe apresentariam se tivesse de ser rico e poderoso. Mas, seja qual for essa condição, conserva ele o livre-arbítrio em todos os atos de sua vontade, e não será fatalmente arrastado a fazer isto ou aquilo, nem a sofrer este ou aquele acidente. Pelo gênero de luta escolhido, tem ele possibilidade de ser levado a certos atos ou encontrar certos obstáculos, mas não está dito que isto devesse acontecer infalivelmente, ou que não o possa evitar por sua prudência e por sua vontade. É para isso que Deus lhe dá a capacidade de raciocínio. Dáse o mesmo que se fosse um homem que, para chegar a um objetivo, tivesse três caminhos à escolha: pela montanha, pela planície ou pelo mar. No primeiro, a possibilidade de encontrar pedras e precipícios; na segunda pântanos; na terceira, tempestades. Mas não está dito que será esmagado por uma pedra, que se atolará no brejo ou que naufragará aqui e não ali. A própria escolha do caminho não é fatal, no sentido absoluto do vocábulo: por instinto o homem tomará aquele no qual deverá encontrar a prova escolhida. Se tiver que lutar contra as ondas, seu instinto não o levará a tomar o caminho das montanhas.

Conforme o gênero de provas escolhido pelo Espírito, acha-se o homem exposto a certas vicissitudes. Em consequência dessas mesmas vicissitudes, é ele submetido a arrastamentos aos quais deve subtrair-se. Aquele que comete um crime não é fatalmente levado a cometê-lo: escolheu um caminho de luta que a isso pode excitá-lo; se ceder à tentação, é pela fraqueza de sua vontade. Assim, o livre-arbítrio existe para o Espírito no estado errante, na escolha que faz das provas a que deve submeter-se, e existe na condição de encarnado nos atos da vida corpórea. Só o instante da morte é fatal: porque o gênero de morte é ainda uma consequência da natureza das provas escolhidas.