Umbral e a base doutrinária

“O que é umbral?”; “quem vai para o umbral?”; “qual é o significado de umbral?”; “o que o Espiritismo diz do umbral?”. Os adeptos do movimento espírita estão tão preocupados com algo que, em verdade, não tem razão de ser – não como eles imaginam que seja.

Penso que se perde muito tempo sobre esse assunto, o “Umbral”, que é ponto pacífico na Doutrina (portanto, resultado do método científico de pesquisa): não passa de criação mental de Espíritos apegados, em sofrimento, quando não são ideias intencionalmente cultivadas e transmitidas com o fim de atrasar. Tanto isso é fato, que, antes do Espiritismo, o Espírito se diria sofrendo no fogo do inferno e, antes do catolicismo, diria estar no Tártaro. Não são locais, são estado de alma e, se você busca fazer o bem, com todas as suas forças e com todo o seu entendimento, não deve se preocupar com esse sofrimento moral.

Portando, a pergunta “o que é o umbral” fica assim respondida: é uma alegoria, uma figura de linguagem, representando um estado de alma. Também pode ser uma alegoria para representar essa camada espiritual mais densa, dos Espíritos mais ligados à matéria. Esse é o significado de “umbral” e, “quem vai para o umbral”, é todo aquele que esteja apegado às imperfeições, à materialidade, sabendo, contudo, que essa é uma ideia alegórica para ilustrar um estado anterior.

Quando se foca no que se quer, por ideias prévias, deixa-se passar os detalhes importantes da obra. Eis o que vamos demonstrar. Este é um trabalho simplório de análise do artigo “Umbral, há base doutrinária para sustentá-lo?”, de Paulo da Silva Neto Sobrinho, por Paulo Degering Rosa Junior.

O estudo de Paulo Neto sobre o umbral

No estudo apresentado por Paulo Neto, “Umbral, há base doutrinária para sustentá-lo?”, há alguns problemas iniciais. Verifiquemos, por exemplo, as diferenças muito sensíveis entre a primeira edição de O Céu e o Inferno e a edição utilizada por ele. Na primeira edição:

Na maioria dos casos, ele é infeliz neste mundo por sua própria culpa, mas, se é imperfeito, é porque já o era antes de vir para a Terra, onde expia não apenas as faltas atuais, mas as faltas anteriores que não foram reparadas, sofre numa vida de provas o sofrimento imposto a outros numa outra existência. As vicissitudes que o homem experimenta são simultaneamente um castigo temporário e uma advertência quanto às imperfeições de que se deve desfazer para evitar desditas futuras e progredir para o bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, 1868 (edição original).

Já na edição citada por Paulo Neto:

[…] Na maior parte das vezes ele [o homem] é infeliz por sua própria culpa; porém, se é imperfeito, é porque já o era antes de vir à Terra, expiando não somente faltas atuais, mas faltas anteriores não reparadas. Sofre em uma vida de provações o que fez sofrer a outrem em anterior existência. As vicissitudes que experimenta são, ao mesmo tempo, uma correção temporária e uma advertência quanto às imperfeições que lhe cumpre eliminar de si, a fim de evitar males futuros e progredir para o bem. […].

NETO, Paulo. Umbral: Há base doutrinária para sustentá-lo?. Disponível em: http://www.paulosnetos.net/artigos/send/6-ebook/806-umbral-ha-base-doutrinaria-para-sustenta-lo. Acesso em: 20 abr. 2023.

Consegue notar que a diferença no emprego do verbo expiar causa toda uma mudança de ideias? Na primeira versão, de Kardec, é claro que o homem expia na Terra. Na versão utilizada por Neto, é possível depreender que a expiação começa antes de vir à Terra, o que não seria verdade, segundo as conclusões doutrinárias.

Não só: essa edição, de Paulo Neto, não condiz nem sequer com a 4a edição em francês, já adulterada:

Le plus souvent, il est malheureux ici-bas par sa propre faute ; mais s’il est imparfait, c’est qu’il l’était avant de venir sur la terre ; il y expie non seulement ses fautes actuelles, mais les fautes antérieures qu’il n’a point réparées ; il endure dans une vie d’épreuves ce qu’il a fait endurer aux autres dans une autre existence. Les vicissitudes qu’il éprouve sont à la fois un châtiment temporaire et un avertissement des imperfections dont il doit se défaire pour éviter les malheurs futurs et progresser vers le bien.


Na maioria das vezes, ele é infeliz aqui embaixo por sua própria culpa; mas se ele é imperfeito, é porque o era antes de vir à terra; ele expia ali não apenas suas faltas atuais, mas as antigas faltas que não reparou; ele suporta em uma vida de provações o que fez os outros suportarem em outra existência. As vicissitudes que ele experimenta são ao mesmo tempo um castigo temporário e um aviso das imperfeições das quais ele deve se livrar para evitar futuros infortúnios e progredir para o bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2019. Disponível em: https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/886/o-ceu-e-o-inferno-ou-a-justica-divina-segundo-o-espiritismo. Acesso em: 20 abr. 2023.

É evidente notar que Kardec, na primeira edição e também na quarta, reafirma que a expiação se dá na Terra, e depreender o contrário seria supor que o Espírito expie, materialmente, no mundo espiritual, o que está intrinsecamente ligado às ideias de inferno, purgatório, umbral e etc.

Sigamos.

Revista Espírita

Um dos artigos mais interessantes da RE é o “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns, a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Temos, em O Livro dos Espíritos, a conhecida questão 1012, que, a meu ver, Neto desconsiderou em total para focar apenas em “já respondemos essa pergunta”, fazendo uma suposição de que ela se referiria à questão 87. Essa questão, por sua vez, interpretou como quis, não levando em consideração a linguagem muitas vezes figurativa utilizada pelos Espíritos:

1012. Haverá no universo lugares circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seu merecimento? “Já respondemos a essa pergunta. As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou menos felizes ou desgraçados, conforme seja mais ou menos adiantado o mundo em que habitam.”

a) — De acordo, então, com o que vindes de dizer, o inferno e o paraíso não existem, tais como o homem os imagina?

“São simples alegorias: por toda parte há Espíritos ditosos e desditosos. Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia; mas podem reunir-se onde queiram, quando são perfeitos.”

A localização absoluta das regiões das penas e das recompensas só na imaginação do homem existe. Provém da sua tendência a materializar e circunscrever as coisas, cuja essência infinita não lhe é possível compreender.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2019. Disponível em: https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/2/o-livro-dos-espiritos. Acesso em: 20 abr. 2023.

87. Ocupam os Espíritos uma região determinada e circunscrita no espaço?

“Estão por toda parte. Povoam infinitamente os espaços infinitos. Vós os tendes de contínuo a vosso lado, observando-vos e sobre vós atuando, sem o perceberdes, pois que os Espíritos são uma das potências da natureza e os instrumentos de que Deus se serve para a execução de seus desígnios providenciais. Nem todos, porém, vão a toda parte, pois há regiões interditas aos menos adiantados.”

Recorrendo à questão 87, note: “Os Espíritos estão por toda parte. Povoam infinitamente os espaços infinitos”. Espaço não é Universo. O Espaço é infinito; o Universo, não. Universo é material, cíclico, tem começo e tem fim, assim como a matéria. O Espaço, não.

Quando, ao final, ele assevera que “há regiões interditas aos menos adiantados“, Neto tomou uma frase figurativa por uma frase literal. Ainda assim, se considerarmos o fato de que os menos adiantados não se desprendem do cenário material com facilidade, podemos facilmente supor a dificuldade de viver em regiões materiais que dão lugar a encarnações de Espíritos mais adiantados.

De volta à RE, temos em 1858, “O Tambor de Berezina”:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor?

─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos?

─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás?

─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida?

─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

Ainda no mesmo ano, em “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática”:

29. ─ Sob que forma estais entre nós?

─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva?

─ Sim. 31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes?

Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Na Revista Espírita de março de 1860, Kardec, conversando (via médiuns) com três Espíritos distintos, questiona um deles, o Espírito de Charles Dupont, aquele envolvido na “História de um Danado”, Espírito inferior, bastante atrasado e muito ligado ainda à matéria. Kardec pergunta sobre como ele vê o Espírito do Dr. Vignal, pessoa viva, evocado para aquele estudo:

53. ─ Vedes o Espírito do doutor, com o qual conversamos?

─ Sim.

54. ─ Como o vedes?

─ Vejo-o com um envoltório menos transparente que o dos outros Espíritos.

55. ─ Como percebeis que ele ainda está vivo?

Os Espíritos comuns não têm forma aparente. Este tem uma forma humana; está envolto numa matéria semelhante a uma névoa, que repete sua forma humana terrena. O Espírito dos mortos não tem mais esse envoltório, pois está desprendido dele.

Ou seja: os Espíritos continuam afirmando que, para eles, a forma não é nada. No último caso, o Espírito de Charles Dupont, sendo inferior, ele mesmo afirma o mesmo princípio: os Espíritos comuns (desapegados) não têm forma aparente. Kardec percebe, baseado em tudo isso, que, quando afirmam em contrário, estão em estado de sofrimento. Sempre. O grande erro, me permita repetir, é querer dizer que, fora do estudo metodológico, basta colher algo que se diga em todo canto e isso se torna verdadeiro. Fosse assim, deveríamos incluir duendes, fadas e sereias na Doutrina Espírita.

Não basta e não podemos simplesmente acreditar nos Espíritos

Daí em diante, Paulo Neto passa a catalogar diversas afirmações de Espíritos, após Kardec — dentre eles André Luiz — e outras conclusões de Espíritas ou Espiritualistas que, colocando de lado a Doutrina, ficaram com suas conclusões parciais.

É um problema muito grande pressupor que basta a comunicação universal dos Espíritos para a aceitação de uma nova ideia doutrinária. Não: ela deve também atender à razão e respeitar aquilo que já foi galgado pelo mesmo método. Assim, quando muita gente lê um livro que fala em “umbral”, muita gente passa a aceitar essa ideia, que se torna ilusão no pós morte; que se torna ilusão em “desdobramentos”; que o médium insere, enfim, pelas próprias ideias, ao traduzir um pensamento de um Espírito, durante uma comunicação.

É notável constatar que, no meio espírita, existe grande preocupação se, ao morrer, vai-se para “Nosso Lar” ou para o “Umbral”. Como “Nosso Lar” não poderia suportar bilhões de Espíritos em seus leitos e lares, logo surgiram centenas de novas “colônias”, cada uma situada, asseveram, sobre certas cidades ou regiões da Terra. O espírita deixou de estar preocupado com sua moral, mediante seu progresso espiritual, para estar preocupado se será castigado com o umbral ou premiado com uma cama confortável e sopa quente em Nosso Lar ou em outra “colônia” qualquer!

Neto interpreta de forma incorreta os conceitos de expiação e punição. Digo isso com segurança, porque Kardec e os Espíritos estavam se utilizando de conceitos presentes naquela época, galgados no Espiritualismo Racional, para se expressarem.

Quando o autor cita o artigo “O Dia de Todos-os-Santos”, na RE de 1862, temos um trecho destacado em negrito: “[…] infelizes Espíritos que suportam as angústias da punição e do isolamento”. Acontece que “punição” era considerada a consequência legítima do mal, e não uma ação externa de uma força punitiva. A punição do pai irresponsável, por exemplo, é ver seu filho amado seguir um mau caminho. Se o pai é responsabilizado pela justiça humana e preso por sua irresponsabilidade, isso, talvez, para ele não signifique absolutamente nada, frente à real punição que ele próprio sofre. A punição não é algo externo, imposto, senão pela decorrência da Lei natural. Entendemos, assim, o Espiritismo sob outro ponto de vista, muito mais congruente.

Por não entender essa ideia fundamental, Neto infere que sofrimento ou prazer, no mundo espiritual, é uma condição externa, materialista, como já demonstrei.

Em seguida, Neto dá enfase ao trecho seguinte:

“Meu caro irmão, que horríveis tormentos para todos esses [aqueles que escolheram o caminho do materialismo]! É exatamente como diz a Escritura: “Haverá choro e ranger de dentes”. Eles serão mergulhados no abismo profundo das trevas. Esses infelizes são vulgarmente chamados os danados e, posto seja mais exato chamá-los os punidos, nem por isso sofrem menos as terríveis torturas que se atribuem aos danados em meio às chamas. Envoltos nas mais espessas trevas de um abismo que lhes parece insondável, posto não seja circunscrito, como vos ensinam, experimentam sofrimentos morais indescritíveis, até abrirem o coração ao arrependimento.”

Nesse trecho, Neto se atém à ideia de “abismo profundo de trevas”, sem se atentar para o fato de que esse abismo, se lhes parece insondável e não é circunscrito, não pode existir senão como criação mental de Espíritos sofredores, sendo, portanto, efêmero. Evoquemos esses Espíritos e lhes auxiliemos a entender que suas dores são morais, e não físicas, e desaparecem os abismos, a lama, etc., para dar lugar à consciente compreensão de seu estado, à reflexão e, por conseguinte, à escolha pela expiação, onde terão a nova oportunidade de trabalharem sobre seus apegos passados.

Você sabia que existem Espíritos que se colocam em tais circunstâncias por terem cometido um erro e por acreditarem na Doutrina do Pecado? Sim. Pode, por exemplo, um indivíduo ter matado outro, porque acreditou que o outro vinha lhe tirar a vida. Crê que isso é um pecado e, assim, se submete mentalmente a esse sofrimento, que externaliza em criações fluídicas (que não são matéria como a nossa, mas, sim, algo muito mais sutil, formada pela “condensação” do Fluido Cósmico Universal). Faça-o entender que esse aparente erro nasceu de uma reação instintiva; que Deus não pune; que ele pode buscar, em novas vidas, trabalhar esse instinto, para dominá-lo pela vontade; que, enfim, aquele que ele matou não tem nada contra ele, pois entende seu erro, e esse Espírito se desvencilhará de tais ideias, realmente perturbadoras.

O próprio André Luiz deixa isso transparecer quando cita o caso da moça que, havendo morrido, seu Espírito não queria sair de dentro do caixão, pois acreditava que o próprio Cristo viria lhe tirar dali, submetendo-a ao julgamento.

No mais, o autor, por uma ideia prévia, adota um paradigma que o leva a entender todos os exemplos dados segundo o que lhe convém. Ao citar “esferas espirituais”, “camadas espirituais”, não percebe que se trata de uma linguagem figurada e, nesse último caso, em referência à classificação dos Espíritos por “camadas”, como é feito na Escala Espírita. Aliás, isso está bem claro na questão nº 1017 de OLE, que o prezado Paulo Neto não incluiu em sua apreciação (grifos meus):

1017 [1016]. Alguns Espíritos disseram estar habitando o quarto, o quinto céus, etc. Que queriam dizer com isso?

“Se lhes perguntais que céu habitam, é que formais ideia de muitos céus dispostos como os andares de uma casa. Eles, então, respondem de acordo com a vossa linguagem. Mas por estas palavras quarto e quinto céus exprimem diferentes graus de purificação e, por conseguinte, de felicidade. É exatamente como quando se pergunta a um Espírito se está no inferno. Se for desgraçado, dirá sim, porque, para ele, inferno é sinônimo de sofrimento. Sabe, porém, muito bem que não é uma fornalha. Um pagão diria estar no Tártaro.”

O mesmo ocorre com outras expressões análogas, tais como: cidade das florescidade dos eleitos, primeira, segunda ou terceira esfera, etc., que apenas são alegorias usadas por alguns Espíritos, quer como figuras, quer, algumas vezes, por ignorância da realidade das coisas, e até das mais simples noções científicas.

Quando se foca no que se quer, por ideias prévias, deixa-se passar os detalhes importantes da obra.

A Condessa Paula – O Céu e o Inferno

Muita gente usa o caso desse Espírito, da Condessa Paula, apresentado em O Céu e o Inferno, para dar base às suas teorias de “cidades astrais”.

O que são os vossos palácios e os vossos salões dourados ante as moradas aéreas, o vasto campo do espaço matizado de cores que fariam empalidecer o arco-íris? Que são os vossos passeios passo a passo nos parques, ante a viagens através da imensidão, mais rápidas do que o relâmpago? O que são os vossos horizontes limitados e carregados de nuvens, ante o grandioso espetáculo dos mundos a se moverem no universo sem limites, sob a poderosa mão do Altíssimo?

Como os vossos concertos mais melodiosos são tristes e ruidosos, ante esta harmonia que faz vibrar os fluidos do éter e todas as fibras da alma? Como as vossas grandes alegrias são tristes e insípidas ante a inefável sensação de felicidade que incessantemente satura o nosso ser à maneira de um eflúvio benfazejo, sem nenhuma mescla de inquietação, nenhuma preocupação, nenhum sofrimento! Aqui tudo respira amor e confiança e sinceridade. Por toda parte corações amantes, por toda parte vemos amigos, nada de invejosos e ciumentos. Esse é o mundo em que me encontro, meu amigo, e todos vós o atingireis infalivelmente seguindo o caminho certo.

Infelizmente, muitos param nas leituras dos pontos que lhes interessam. Quando o Espírito fala em “moradas aéreas”, pronto, isso já é suficiente para afirmarem que ela falava das cidades espirituais! A que ponto levam os vieses adotados com pressa…

Logo em seguida à citação de “moradas aéreas”, ele continua:

[…] o vasto campo do espaço matizado de cores que fariam empalidecer o arco-íris? Que são os vossos passeios passo a passo nos parques, ante a viagens através da imensidão, mais rápidas do que o relâmpago? O que são os vossos horizontes limitados e carregados de nuvens, ante o grandioso espetáculo dos mundos a se moverem no universo sem limites, sob a poderosa mão do Altíssimo?

Esse Espíritos está falando do Espaço! Não está falando de cidades astrais, mas do Espaço! “Moradas aéres” é uma linguagem figurada para dizer do Espaço, “acima” de nós!

Ela continua:

Entretanto uma felicidade uniforme logo aborreceria. Não penses que a nossa felicidade esteja livre de vicissitudes. Não se trata de um concerto perpétuo, nem de uma festa sem fim, nem de beatífica contemplação através da eternidade. Não. É o movimento, a vida, a atividade. As ocupações, embora isentas de fadigas, apresentam incessante variedade de aspectos e de emoções, pelos mil incidentes que as continham. Cada qual tem a sua missão a cumprir, seus protegidos a assistir, amigos da Terra a visitar, processos da Natureza a dirigir, almas sofredoras a consolar. Há um vaivém, não de uma rua para outra, mas de um mundo para outro. As criaturas se reúnem, se separam para novamente se juntarem; encontram-se aqui e ali, conversam sobre o que fazem, felicitam-se pelos sucessos obtidos; entendem-se, assistem-se mutuamente nos casos difíceis. Enfim, asseguro-te que ninguém dispõe de um segundo de tempo para se enfadar.

O que existe “do lado de lá”, para os Espíritos desapegados, é a atuação na criação divina! É o trânsito pelo Espaço infinito, onde se reúnem, aqui e ali, com outros Espíritos, para atuar nos processos da Natureza, no consolo às almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas! É isso, e não uma vida limitada por paredes e falsas necessidades fisiológicas!

Conclusão

É importante destacar, porém, que, se tais criações existem, é porque Deus permite. Na verdade, isso é algo ligado à própria benevolência divina, que garante, a cada um, o desenvolvimento gradual e sem choques. No artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864, consta uma importante comunicação espiritual, da qual tiramos o seguinte trecho:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Vemos, portanto, que a existência de tais “lugares” é um fato, permitido pela benevolência divina, àqueles que ainda não estão desenvolvidos para compreender algo acima e fora da matéria e das necessidades materiais.

Lembramos aquilo que está estampado em nossa página inicial:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.Allan Kardec – A Gênese

Kardec deu o guia seguro para o método de pesquisa, frequentemente apresentando-o na RE. Atuais resgates da ciência de então permitem aprofundar esse conhecimento. O espírita precisa aprender a estudar, do mesmo jeito que, quem não estuda as Ciências, termina acreditando em teorias como as da Terra plana. Defendo que o mais interessante é retomar Kardec, entender a ciência espírita (o que depende de entendimento científico de seu contexto e da atualidade) e, então, retomar o contato com os Espíritos. Havendo desapego de ideias próprias e o firme propósito de pesquisa, será muito fácil retomar o passo, desanuviando essa confusão causada no Movimento Espírita com um único propósito: atraso do progresso moral.




Não falamos ao Movimento Espírita

Terminei um dos últimos artigos falando a respeito do Movimento Espírita, apegado aos erros que foram lenta e continuamente sendo admitidos no meio dele, apagando, lentamente, o conhecimento doutrinário ora adquirido pelos estudos de Kardec.

Erros? Ah, vários. As ideias de lugares na erraticidade; a ideia da reencarnação como pagamento de dívidas; a proibição de conversar com os Espíritos fora do centro espírita; a aceitação cega de comunicações isoladas, sem passar pelo crivo da ciência já adquirida e da razão; a igrejização dos centros espíritas, que passaram a adotar rituais e fórmulas, enfim, uma série de contrariedades àquilo que já havia sido estabelecido pelo estudo científico do Espiritismo.

E quem sou eu para apontar tais erros? Bem, sou um mero estudante da Doutrina que, depois de ter contato com uma série de fatos históricos e mergulhar no estudo da Revista Espírita, encontrou tanta disparidade. Mas, dizia eu, não é ao Movimento Espírita, resistente ao desapego das ideias fixadas por anos, às vezes décadas, de leituras de romances espíritas, sem passar, antes, pelo estudo da Doutrina Espírita. Também não àqueles que, em sua simplicidade, estão muito tranquilos em se dizerem adeptos da Doutrina, mas que dela não fazem estudos, nem tampouco se dedicam a divulgá-la. Não.

Tal como na época de Kardec, com as diferenças resguardadas, nós nos direcionamos aos estudiosos, pesquisadores e cientistas de boa-fé (e não de fé cega) que se interessem em conhecer aquilo que lhes é desconhecido. São esses que vão buscar entender e que, quando houverem entendido, espalharão as ideias que nasceram com Mesmer e com o Espiritualismo Racional e que encontraram pleno desenvolvimento com o Espiritismo. São esses que terão os olhos brilhando e, quem sabe, terminem emocionados como nós outros, ao constatarem no Espiritismo uma vasta profundidade de conhecimentos filosóficos, metafísicos, científicos e morais. O matemático, o físico, o químico, enfim, todos aqueles, de bom-senso, verão, maravilhados, a extensão da doutrina formada pelos estudos de Kardec, cuja figura ascenderá às mais elevadas condições de destaque entre os nomes que mudaram o mundo…

Estamos aqui, enfim, ansiosos e esperançosos pelo desenrolar dos últimos estudos, das últimas pesquisas. Enquanto não temos acesso aos conteúdos das últimas pesquisas que valiosos companheiros estão realizando, nos resta falar do que sabemos, do que entendemos até aqui, produzindo algo que, esperamos, seja útil amanhã, quando a Ciência começar a deixar o dogma e retomar a metafísica racional, o espiritualismo racional, mas, desta vez, com um enorme lastro de conhecimentos que tocam em todas as áreas do conhecimento humano, com seus já conhecidos aspectos filosóficos e morais.

Estamos muito contentes pelo caminho que se abre à nossa frente. E esperamos que você, sentido-se contagiado, também esteja. O Espiritismo voltará à sua condição de ciência, afastado do misticismo e do dogma. Quanto aos resistentes e aos dissidentes, o tempo encarregará de mostrar onde está a verdade, com a diferença que, quando a Ciência admitir o Espiritismo, isso, desta vez, será definitivo, e mudará o mundo.

Prezado leitor: se você sentir-se compelido, participe dos estudos, mas também ajude na divulgação do que já temos em mãos. São conhecimentos que tocam em todas as áreas e que poderão contar com a familiaridade de cada um. Vídeos são bons, mas não bastam, porque ainda não são pesquisáveis, isto é, aquilo que se trata em um vídeo, falando, não está acessível às ferramentas de busca. O texto está.

Esperamos você.




A dogmática ciência moderna: Ciência versus Espiritismo

Acabo de responder uma objeção relacionada ao tema sobre Ciência versus Espiritismo (o sujeito quis imputar Espiritismo à imaginação). Achei interessante reproduzi-la aqui:

“X, está evidente que você fala do que acha que é, ou seja, fala de opinião própria. Isso não é ciência. Provavelmente o amigo desconhece que a Ciência (com “C” maiúsculo) foi formada juntamente à metafísica, e que os grandes gênios do passado, foram, também, grandes filósofos, tratando da questão de Deus e da Criação afastados, porém, da teologia, dogmática e retrógrada. Natural, pois a Ciência, tornando-se tão dogmática quanto a Igreja, virou as costas para a metafísica, tachando de supersticioso, místico ou louco aquele que ouse tocar no assunto sobre Deus ou sobre a espiritualidade, ainda que de forma racional. Pois bem, amigo. Foi justamente o que fizeram aqueles que deram início ao Espiritualismo Racional, no séc XIX, e foi precisamente o que fez Kardec no estudo de certos fenômenos que, apesar de atravessarem a humanidade, eram tratados e forma dogmática, tanto pela Igreja, quanto pela Ciência.

O que a Ciência moderna não percebe, porque colocou no esquecimento esse conhecimento, é que, ao agir como age, age como a Igreja. Enquanto esta conduzia o homem pelo dogma da queda pelo pecado e do castigo, aquela conduz o homem pelo dogma do materialismo. Tanto uma, quanto a outra, tornam-no ausente de suas responsabilidades: a última, porque submete o homem à vontade de terceiros — age-se mau pela influência do diabo e age-se bem pela influência do cristo — e a primeira porque torna o homem essa máquina que age desta ou daquela forma simplesmente por força das sensações, agindo quimicamente sobre seu cérebro ((não excluindo daqui, é claro, a influência que a “química corporal” e mesmo a genética tem sobre o indivíduo. Apenas destaca-se que não são os únicos fatores, porque, frente a uma grande tentação, o indivíduo pode escolher, por sua vontade, não ceder a ela.)). Caem no mesmo erro de certos cientistas antigos, que atribuíam o bom e o mau proceder à bile branca e à bile negra. A diferença, apenas, é que a ciência moderna não trata o psicológico com sanguessugas, mas com comprimidos.

Dizia eu que a Ciência, no passado, tratava da metafísica, de forma racional (e, lógico, nada misticista). Acontece que, para ela, faltava uma chave, assim como faltava para a psicologia de então, que investigava o homem como alma encarnada apenas pelos processos de indução e extrapolação lógicas. Essa chave, quem veio dar, foi o Espiritismo, não esse falso “espiritismo”, colhido nas entrelinhas de falsas ideias, surgida de erros e opiniões de supostas obras mediúnicas, mas o Espiritismo estudado por Kardec, com metodologia, aquele Espiritismo que, há mais de 150 anos, adiantou conhecimentos, ou caminhos para eles, que apenas agora a Ciência moderna passa a constatar. Importante, claro, separar os erros, naturais da parte humana, galgados na ciência da época (como a teoria dos fluidos), dos acertos da parte que tange à lei natural. O que Kardec fez foi investigar as causas de certos efeitos, de onde depreendeu uma Doutrina, que toca não apenas na questão de certos fenômenos materiais, mas que é toda de aspecto moral.

O pesquisador e o cientista que tivessem a boa-fé de investigar as obras “O Céu e o Inferno” e “A Gênese” (com o cuidado de referir-se às recentes edições da FEAL, onde temos segurança de serem as obras originais de Kardec, intocadas) encontrariam, com grande surpresa, algo muito diverso daquilo que pensavam que era o Espiritismo, e, por mais que pudessem terminar discordando, ao imputar a Kardec seja lá o que for, não poderiam concluir esse estudo sem constatar que ele se lançou com muita seriedade a essa pesquisa, que constituiu algo que, diferentemente do que você acha, não foi uma religião.”




Existe alguma outra forma de verificar a existência da alma sem experimentos?

A questão foi proposta em uma discussão, no Facebook, a respeito da resistência da ciência em investigar a alma, imputando o assunto ao misticismo e ao sobrenatural. Destaco, abaixo, minhas considerações sobre a possibilidade de verificar a existência da alma:

“Diga-me: o átomo é observável? Dirá que sim, e isso é fato: por meio de um instrumento, é possível observar o átomo, cuja investigação do comportamento leva os cientistas a teorizar em várias hipóteses.

Sem o microscópio, no passado, o homem, certamente, diria que isso é loucura ou sobrenatural. A questão é sempre atribuir ao sobrenatural aquilo que não compreendemos: esse é o ponto.

Será que somos assim, tão conhecedores de tudo, a ponto de podermos descartar o corpo como instrumento da alma?

Infelizmente, por uma virada materialista nos paradigmas filosóficos, após o final do século XIX, muitas verdades foram colocadas no esquecimento. Hoje, quando se fala em Psicologia, não se cita Victor Cousin ou Paul Janet; quando o assunto é física quântica, ninguém fala de Mesmer, que, taxado de louco, no passado, vislumbrou teorias em acordo com a física moderna.

O erro, sempre, é associar Ciência apenas com o que é observável, esquecendo-se de que a investigação científica avança, também, pela elaboração de teorias sobre hipóteses galgadas em observações racionais. Quer ver?

“A matéria negra é uma forma de matéria hipotética que os cientistas acreditam existir no universo devido a observações astronômicas. Ela é chamada de “negra” porque não emite, absorve ou reflete luz ou outras formas de radiação eletromagnética, tornando-se invisível para nossos telescópios.

Acredita-se que a matéria negra compõe cerca de 85% da matéria do universo, mas ainda não foi detectada diretamente. Os cientistas inferem a sua existência a partir de efeitos gravitacionais que ela causa em objetos observados, como galáxias e aglomerados de galáxias.

Apesar de muitos estudos e experimentos terem sido realizados para tentar identificar a matéria negra, sua natureza ainda é desconhecida. Várias hipóteses foram propostas, incluindo partículas exóticas ainda não detectadas, buracos negros primordiais, e teorias alternativas da gravitação. A pesquisa sobre a matéria negra continua sendo uma das áreas mais importantes e intrigantes da física e da astronomia modernas.”

Diríamos que os cientistas são loucos, ao perseguirem algo que não pode ser observável por nossos instrumentos (e que talvez nunca seja), simplesmente porque observaram certos efeitos? Partindo-se do censo comum, poderíamos dizer que a matéria negra seria algo sobrenatural?

E isso para não adentrar no escopo das teorias de universos paralelos, que são uma consequência lógica de algumas teorias da mecânica quântica.

Veja: a ciência busca respostas em algo não observável, baseada meramente em efeitos. Busca a causa de um efeito. E será mesmo que os efeitos, no escopo humano, são inobserváveis – ou será que a tendência a tratar qualquer forma de espiritualismo como misticismo ou sobrenatural é apenas um preconceito em um campo onde preconceito não deveria entrar?

Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

[…]

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

[…]

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.

Vemos, portanto, que a alma é tão observável quanto a matéria negra: pelos seus efeitos inteligentes. A diferença é que o Espírito (sinônimo de alma) age por sua própria vontade.




Espiritualismo Racional e Espiritismo – uma nova divisão no meio Espírita?

Parece que alguns Espíritas – aqueles que não entenderam a proposta do Espiritismo – trabalham pela divisão, e não pela construção colaborativa. Encontram em todos os lugares e em todas as pessoas um objeto de suas críticas que, se podem ter algum fundamento, quase sempre perdem-se em razão da notória falta de aprofundamento e de uma real e sólida argumentação, que apresente ponto e contraponto, não dando sentença final sobre nada que não possa ser provado ou suficientemente elaborado pela razão. Interessante, porque, justamente, são (somos) adeptos de uma Doutrina inteiramente fundada na lógica e na razão, onde evidências e hipóteses corroboram teorias, não se dando a posse sobre a verdade. Não agindo assim, Carlos Seth Bastos, do “CSI do Espiritismo”, vem dizer que o tema Espiritualismo Racional e Espiritismo seria uma nova divisão no movimento espírita, sem ter a coragem (ou a vontade) de citar o nome do autor ao qual se refere.

A história se repetiu entre 2016 e 2020 agora no campo da moral, com o lançamento de livros que procuraram trazer pensamentos de Kant, Maine de Biran e Victor Cousin para dentro do Espiritismo, mesmo que para isso precisassem deturpar as ideias de Allan Kardec.

Sua propagação, a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião, nos parece o mesmo discurso de Marius George (Surpreso que a ideia espírita tinha recrutado tão poucos adeptos do exército de republicanos, foi finalmente levado a ver que o obstáculo era inteiramente devido ao disfarce místico sob o qual Allan Kardec o havia apresentado) e Émile Blin (Até que tenhamos trazido à Sociedade parisiense um número suficiente de membros para entrar neste caminho de pesquisa, devemos, para ver nossas fileiras aumentarem, convidar a vir até nós os incrédulos e os descrentes para, pela palavra, deixá-los conhecer nossas intenções, provar-lhes nosso desinteresse e persuadi-los de nossa boa fé e honestidade; então, por experiências tão simples quanto possível, por em suas mãos os meios de adquirir para si a certeza de que tudo o que propomos é real e, de fato, a doutrina imortalista é a única que, sem misticismo e sem orações, dá ao homem a consolação e a coragem no presente, e a esperança e a fé no futuro).

Pelo menos estes discursos não se sustentaram na falácia de uma improvável adulteração das obras de Allan Kardec.

BASTOS, Carlos Seth. Bônus adicional – O final. Espíritos sob investigação. Disponível em: <https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L193.pdf>. Acesso em: 15/04/2023.

Divisão no Espiritismo?

Em primeiro lugar, importa destacar que o Espiritismo não se divide. Sendo uma verdade natural, é una. Colocadas à parte as dificuldades encontradas nas comunicações feitas sem controle, o Espiritismo é um só, em todos os tempos. O que, sim, pode se dividir, é o Movimento Espírita – e essa divisão é incontável. Através do tempo, depois de Kardec, dividiu-se com a “roustainguização” e, depois, com incontáveis outras, por diversos motivos que não cabe citar aqui, mas que Simoni Privato, Paulo Henrique de Figueiredo e Wilson Garcia, dentre outros, contam bem em suas obras (refira-se a Obras Recomendadas).

Segundo Carlos Seth, “cabeça” do CSI do Espiritismo, agora a divisão se dá no campo moral, porque Paulo Henrique de Figueiredo – esse o autor das referidas obras, de 2018 e 2020, a quem Seth nem sequer se digna a fazer referência – estaria distorcendo falas de Kardec para implantar, na Doutrina, algo que nada tem a ver com ela. Veremos.

Em segundo lugar, importa abordar a sentença “a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião”. Como se fazer esforços legítimos e bem embasados para atrair o interesse de “pessoas avessas à religião” fosse um demérito, já que (1) o Espiritismo não é uma religião, (2) desenvolveu-se a partir de uma ciência, como uma ciência e (3) foi precisamente no meio não religioso que encontrou, em sua origem, a maior aderência – justamente porque grande parte dos cientistas que se tornaram adeptos do Espiritismo estavam bem compenetrados do desenvolvimento do Espiritualismo Racional e de suas constatações científicas.

Termina o autor novamente atacando quem, por outras evidências e argumentos lógicos e racionais, conclui pela probabilidade da adulteração ((A teoria da não-adulteração (de O Céu e o Inferno e A Gênese) tem também evidências e argumentos, mas não apresenta prova cabal. Arvora-se numa falácia para atacar outra (segundo defende), esquecendo-se das valiosas sugestões de Kardec: nunca tomar por final senão aquilo que pode ser provado.))

Kardec defendeu o Espiritualismo Racional, mas Seth parece não saber disso

Antes de mais nada, porém, precisaremos evocar Kardec e questionar o porquê de ele ter defendido o tal Espiritualismo Racional – movimento filosófico-científico encabeçado por pessoas como Maine de Biran e Victor Cousin ((Por A + B, se o Espiritualismo Racional estava instituído oficialmente no ensino francês e se era um movimento sólido, fundamentado principalmente pelos autores citados, é fácil concluir, com certeza, que Kardec refere-se ao mesmo movimento, e não a outro qualquer)). Ora, vemos, na Revista Espírita de 1868, que:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

O Sr. Chassang é o autor da história de Apolônio de Tiana, à qual nos referimos na Revista de outubro de 1862.

“Esse livro, de um caráter todo especial, não foi feito por ocasião dos recentes debates sobre o materialismo e, sem a menor dúvida, é independentemente da vontade do autor que as circunstâncias lhe vieram dar uma espécie de atualidade. Escrevendo-o, o Sr. Chassang não pretendia fazer obra de metafísico, mas de simples literato. Não obstante, como as grandes questões de metafísica estão atualmente, como sempre, na ordem do dia, e toda obra literária verdadeiramente digna desse nome supõe sempre algum princípio filosófico, esse livro, de uma inspiração espiritualista muito decidida, se acha em correlação com as preocupações do momento.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Sendo que a metafísica era um dos campos de estudo das ciências filosóficas, oficialmente instituída na Universidade de Sorbonne:

Imagem extraída do Tratado Elementar de Philosophia, de Paul Janet

E isso não é tudo. Antes disso, em 1863, Kardec diz, no artigo intitulado “Noticias bibliográficas – O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”:

Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita; aliás, em breve será seguido ─ e disto temos certeza ─ por outras adesões mais ressonantes ainda, que levarão os negadores e adversários de todas as escolas a refletir seriamente

KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro de 1863

Que sandice, senhor Kardec! Defendendo ideias que, segundo algumas pessoas, não tem nada a ver com o Espiritismo! Afirmando que o Espiritualismo Racional, ao qual se refere, no texto, apenas como “ideias espiritualistas” (o que nos leva a crer que, em outras referências do tipo – “espiritualismo”, “espiritualistas”, etc – ele se referia ao mesmo Espiritualismo Racional) seria algo obtido da observação científica dos fatos! Ora, onde já se viu ciência e espiritualismo andarem juntos? Só se foi no passado, no tempo do “doido” Kardec.

Maior sandice, na verdade, é a de Paulo Henrique de Figueiredo, que resolveu investigar a fundo e descobriu que a metafísica, ao tempo de Kardec, era uma das áreas de estudo das Ciências Morais oficialmente ensinadas na Universidade de Paris e também na Escola Normal (refira-se a “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, desse autor). Tudo isso contido em obras que, até então, eram desconhecidas ou esquecidas pelo mundo moderno.

A grande dificuldade, porém, será que todos nós, que acompanhamos o trabalho de Paulo Henrique e inclusive ele, teremos que negar a realidade, negar os documentos históricos e as obras existentes, censurar as obras de Paul Janet, negar Kardec, negar suas conclusões e suas afirmações, tudo a fim de não provocarmos uma nova cisão, “agora no campo moral”. Em outras palavras: apaguemos e adulteremos a verdade, para que a moral, da forma que eles entendem, permaneça intocada. Bem, essa sanha de tomar a verdade para si, ignorando fatos, parece um hábito do Carlos Seth Investiga do Espiritismo, como demonstramos no artigo “CSI do Espiritismo: o órgão oficial da Verdade“.

Também precisamos evocar o Espírito do Sr. Love e ter uma séria conversa com ele, a fim de esclarecer sua ousadia em, sendo um espiritualista racional, afirmar que encontrou a mesma moral obtida em suas observações, justamente no Espiritismo “de Kardec”:

A moral, tal qual a compreendo e a deduzi de noções científicas ─ não temo reconhecê-lo ─ tem numerosos pontos de contacto com aquela transmitida pelos médiuns do Sr. Allan Kardec. Também não estou longe de admitir que se nas páginas por eles escritas muitas há que não ultrapassam o alcance ordinário do espírito humano, inclusive o deles, deve havê-las, e as há, de um tal alcance que lhes seria impossível escrever outras idênticas nos seus momentos ordinários.

LOVE, G. H. apud KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro, 1863.

Creio não ser necessário seguir adiante. Deixo ao leitor a liberdade e a tarefa, se assim desejar, de buscar obter informações que o permitam chegar, pelo seu próprio raciocínio, às suas respostas. Apenas gostaria de citar mais uma vez Carlos Seth:

A doutrina espírita é progressiva, mas seu estudo é a chave. Saibamos aguardar novos dados em vez de recusarmos alguns de seus aspectos, como por exemplo a ação dos Espíritos nos fenômenos da natureza. Se ainda assim, determinada característica, como a religiosa, nos incomoda a ponto de não conseguirmos pô-la de lado, deixemos de ser espíritas kardecistas para então seguirmos quaisquer outras seitas oriundas do Espiritismo original. Apesar de recorrente na história,
é isso que hoje presenciamos mais uma vez com laicos, ecléticos e sincréticos.

BASTOS, Carlos Seth. Ibidem. Grifos meus.

Ah, se o sr. Carlos houvesse seguido seu próprio ensinamento e estudado. Se soubesse aguardar, antes de pular precipitadamente às tolas conclusões apressadas… Teria visto Paulo Henrique afirmar, em Revolução Espírita, o quão evidente é que o Espiritismo complementa e desenvolve aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde estudar, resolvendo, aliás, muitos de seus erros, contradições e incertezas. Ah, essa pressa de certos “pesquisadores renomados”…

Por que Kardec não deu mais detalhes sobre o Espiritualismo Racional?

Cabe destacar que, à objeção do porquê Kardec não ter dado mais informações sobre algo para ele tão importante, precisamos responder o seguinte: o mesmo se deu com o Magnetismo, ciência que ele declara ter estudado por mais de 35 anos. Ele simplesmente não se aprofundou sobre algo que estava tão profundamente estabelecido em seu contexto, da mesma forma que, hoje, para falar sobre astronomia, não dedicamos tempo a narrar todo o contexto científico atual, nos limitando a falar, por exemplo, da teoria do Big Bang. Se, porventura, essa teoria fosse colocada no esquecimento, por encontrar-se superada ou pela adoção de outra teoria, não necessariamente correta, um leitor qualquer, no futuro, precisaria buscar resgatar esse conhecimento para bem compreender nossas teorias, suposições e doutrinas.

Devo apenas mencionar que, ao me pronunciar sobre o caso, solicitam-me provas de Kardec teria, como eu disse, defendido amplamente o Espiritualismo Racional. Eis minha resposta:

X, se os autores do artigo (PDF), de bom grado, tivessem se dedicado a estudar a obra desse autor, antes de criticar, teriam entendido muito facilmente todo esse contexto, de modo que eu não tivesse que ficar repetindo aqui toda a informação que já existe.

Já citei uma das vezes em que Kardec citou, com ênfase, e nomeadamente, “Espiritualismo Racional”, afirmando que toda defesa dele seria favorável ao Espiritismo. Em outubro de 1863 (RE) você terá DOIS artigos muito interessantes sobre o assunto. Cito o início do segundo, ao final do número (“O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”):

“Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita”.

Vá até o Google e coloque assim: “site:kardecpedia.com espiritualismo”, e encontrará muita coisa.

Ora, se Kardec falava de fluidos (vital, elétrico, magnético, etc) não nos cabe investigar o que é isso, ao invés de adotar, cegamente, teorias erradas? Vamos então verificar que era um conceito da ciência da época, superada pela ciência atual e, ao que tudo indica, abandonada por Kardec, após convencer-se da veracidade da teoria de Mesmer. Sem fazer isso, caio no erro de dizer que Mesmer e Espiritismo não tem nada a ver, sem saber que Kardec TAMBÉM defendeu o Magnetismo de Mesmer.

Afinal, que linha de pesquisa é essa, para a qual querem dar tantos ares de seriedade e confiança, mas que comete um erro tão grave e absurdo como tal, com o agravante de dar sentenças finais sobre este ou aquele assunto, influenciando o meio espírita para uma nova cisão que não existe senão em suas mentes, apegadas a uma discordância inicial ((Refiro-me à discordância entre ter havido ou não adulterações nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese))?

Terminam por cair no ridículo e no descrédito aqueles que assim agem. Não que não estejamos livres, de nossa parte, de incorrer em erros do gênero ou outros piores, mas o estudo do Espiritismo e do proceder científico de Kardec muito nos tem ajudado nesse sentido.

O monopólio do bom-senso

Termino com uma observação de Kardec, feita sobre o artigo “A bibliotecária de Nova York”, na Revista Espírita de maio de 1860. Não é relacionado ao tema principal, mas, quem sabe, nos sirva de reflexão. Os grifos são meus, como sempre:

Sobre o artigo, faremos uma primeira observação: é a displicência com que os negadores dos Espíritos se atribuem o monopólio do bom-senso. “Os espiritualistas, diz o autor, aí veem um exemplo a mais das manifestações do outro mundo. As pessoas sensatas não vão buscar a explicação tão longe e reconhecem claramente os sintomas de uma alucinação”. Assim, conforme esse autor, só são sensatas as pessoas que pensam como ele; as demais não têm senso comum, mesmo que fossem doutores, e o Espiritismo os conta aos milhares. Estranha modéstia, na verdade, a que tem como máxima: ninguém tem razão, salvo nós e nossos amigos!

KARDEC, Allan. Revista Espírita, maio de 1860

Os documentos que eles encontraram, corroborando uma hipótese de não adulteração, são, segundo eles, comprobatórios, dão sentenças finais – mesmo sendo nada mais que evidências que não explicam muitas coisas. Fora disso, segundo eles, é tudo descartável, falácia ou invenção.

O questionamento é natural, salutar e necessário. Ele nos instiga a pesquisar, a reler, a estudar. Mas seria ainda mais produtivo se a opinião discordante nascesse, sempre, de um profundo embasamento bibliográfico e científico, de modo a não terminar como os Srs. Schiff e Jobert (Revista Espírita, junho, 1859) que, tendo descoberto no estalar de um músculo a confirmação de uma hipótese, terminaram por afirmar categoricamente, com palavra final, contra todos os fenômenos espíritas. Bem, basta ler o artigo para certificar-se do ridículo no qual caíram frente aos fatos apresentados por Kardec.

Isso é ciência. Isso é desapego. Isso é compromisso com a verdade. Por todo esse compromisso, longe de configurar como um ataque, mas como uma defesa, faço o que eles não fizeram, e dou nome e sobrenome àqueles que atacam de maneira leviana o trabalho de outros.

Estranhamente, Seth vê uma divisão ao tratar do movimento que deu base ao surgimento do Espiritismo, mas não vê problema algum em ficar fuçando e trazendo à tona fofocas da época, lançada por médiuns que não quiseram se adequar àquilo que a Doutrina Espírita demandava. Vai entender…




O ataque às escolas e a “visão segundo o Espiritismo”

Vou me dar ao luxo de “chover no molhado”, apenas porque o assunto é importante e requer, penso eu, reflexão e racionalidade. Os ataques realizados nas escolas foram algo lamentável, mas mais lamentável ainda é ouvir os absurdos que falam em nome do Espiritismo.

Vemos, frente aos acontecimentos em questão, novamente a busca de respostas “espiritualistas” para os motivos pelos quais aquelas crianças passaram por tais tragédias, e não raro nos deparamos com palestrantes que, em nome do Espiritismo, vão dizer que “são Espíritos endividados que se reuniram para resgatar faltas passadas”. Superado o momento inicial de verdadeira ojeriza pela falta de empatia de quem se coloca na posição de juiz do caminho alheio, sem se colocar na posição de um pai ou de uma mãe ouvindo tais palavras – um verdadeiro desserviço ao Espiritismo – sinto necessário reiterar: não é possível, muito menos cabível, apontar para quem quer que seja para dizer se a situação que a pessoa passa é resultado de suas escolhas – repito: escolhas – ou se é simples resultado da lei natural, isto é, resultado de estar vivo.

Já tratamos disso algumas vezes (ver Pode uma pessoa morrer antes do tempo ou é sempre o destino, ou a fatalidade?, O desastre de Petrópolis na visão do Espiritismo: resgate coletivo? e Karma e Espiritismo. Não existe carma, tudo é efeito de escolhas do Espírito, que, apenas em casos excepcionais, por ausência de capacidade de raciocínio, é submetido a encarnar de forma compulsória (ref. OLE, p. 262). Deus não castiga seus filhos por fazerem más escolhas, pois sabe que tudo é resultado da ignorância e, quando essa ignorância é tão grande a ponto de obliterar sua capacidade de julgamento, suas leis suprem essa incapacidade momentânea.

Digamos que participar de certos desastres, particulares ou coletivos, possa ser mesmo o efeito de uma escolha lúcida do Espírito que acredito que aquilo lhe ensinará algo ou que acredite na lei de talião ou no carma, julgando ser necessário passar pelo mesmo gênero de sofrimento a fim de se “depurarem”. Isso tem seu fundo de lógica e de verdade, e veremos alguns casos como esse permeando os estudos de Allan Kardec.

Poderiam, então, todas essas crianças terem escolhido estarem ali reunidas voluntariamente, por efeito de uma escolha feita em Espírito? Suponhamos que sim, e analisemos a lógica da suposição. Para tanto, de duas, uma: ou esses Espíritos teriam que saber, com grande antecedência, que aquele indivíduo, praticamente do crime, escolheria aquela escola onde elas teriam que estudar, para praticar seu crime, premeditado por anos, ou esses Espíritos teriam que, por meio deles ou de outros, instigarem esse indivíduo a cometer um crime (assumindo, por sua vez, uma “dívida”) apenas para que eles pudessem realizar seu “resgate” – um verdadeiro ciclo sem fim.

Sim, um Espírito em particular pode ter pressentido o crime em premeditação e ter manejado estar ali, para sofrer suas consequências, sabe-se lá o por que, assim como outro pode ter escolhido se ausentar desse local, nesse dia, pelo mesmo pressentimento. Vemos isso a todo momento. Torna-se inconcebível, porém, imaginar que todos aqueles que são mortos em um desastre qualquer escolheram estar ali, muitas vezes meses ou anos antes, apenas aguardando para que todas as circunstâncias alinhadas pudessem provocar a situação que ofereceria a oportunidade de “resgate”. Ademais, quando Kardec ou outros Espíritos falam em “resgate”, é o resgate de si mesmo, através do processo “arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem“((KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.)), e não um resgate de débitos recíprocos ou com a lei divina – porque Deus não cobra débitos que, em verdade, nem sequer existem.

As crianças que morreram em tais casos trágicos não estão pagando por nada. Morreram por efeito de estarem encarnadas e por efeito de uma má escolha de outro indivíduo. Esse indivíduo, que já sofre por efeito de suas escolhas, mesmo que não perceba isso, sofrerá quando despertar sua consciência, seja por sentimento culpa frente ao crime cometido, seja pela constatação de sua própria condição de apego, pelo efeito de seus atos, mesmo que nem sequer se lembre do caso específico em questão. Os Espíritos das crianças podem já ter seguido em frente, evoluído bastante, no momento em que o Espírito do criminoso tome consciência. Não há que se cogitar, portanto, uma encarnação conjunta com o fim de resgate recíproco qualquer, mas podemos imaginar o Espírito de uma dessas crianças, tocado de compaixão pelo outro, escolhendo nascer junto a ele para auxiliá-lo em seu caminho de retorno ao bem. Ou não. O Espírito do criminoso pode escolher, se tiver consciência disso, nascer em meio a uma família boníssima, de grandes valores espirituais, que poderão auxiliá-lo a aprender… Ou poderá escolher nascer em meio à criminalidade, para se colocar à prova de resistência. O que é melhor? Como saber quem e por qual motivo fez esta ou aquela escolha? Não sei. Nem você sabe. O ponto é: qualquer das escolhas, para esse Espírito, será uma expiação, e “expiação” não significa castigo, mas condição na qual ele tenha suaatenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se“((Ibidem)).

Se você já passou por algo parecido ou tem perto de você alguém que passou, a mensagem que eu deixo é esta: o Espírito sobrevive e seguirá sua jornada. Quem vai e quem fica precisa se esforçar para não se apegar ao acontecido, entendendo que quem comete o crime sofrerá por si só, e que apegar-se a ele ou à situação levará vocês a sofrerem também. Tristeza faz parte. Saudades, doem. Mas apego é infelicidade. Ore para que você e o Espírito que desencarnou não se apeguem a tudo isso, nem à personalidade que morreu com o corpo. Espíritos que se amam se comunicam instantaneamente, sem intermediários, e basta que um pense no outro para que estejam juntos, sem nenhuma necessidade de que isso seja percebido como sensação de presença. O pensamento a tudo alcança, em qualquer lugar do Universo.

Por fim: cuidado ao aceitar as “visões espíritas” sem estudar os alicerces do Espiritismo. Espíritos, encarnados ou desencarnados, dizem o que querem e, por falta de cuidado, frequentemente servem de ferramenta aos inimigos da Doutrina.




O poder da vontade sobre as paixões (emoções)

Texto integralmente reproduzido da Revista Espírita de Julho de 1863, onde Kardec nos agracia com uma maravilhosa reflexão sobre o poder da vontade e a responsabilidade do Espírito. Grifos e notas nossos.

(Extrato dos trabalhos da sociedade espírita de Paris)

Um jovem de vinte e três anos, o Sr. A…, de Paris, iniciado no Espiritismo apenas há dois meses, com tal rapidez assimilou o seu alcance que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um moço, e só uma coisa prova: a leviandade e um entusiasmo irrefletido. Seja. Mas continuemos. Esse jovem irrefletido tinha, como ele próprio reconhece, um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível disposição para a cólera, desde sua infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se uma coisa não estivesse em seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não estivesse pronto em um minuto, entrava em furores, a ponto de tudo arrebentar. Chegava a tal ponto que um dia, no paroxismo da cólera, atirando-se contra a mãe, lhe disse: “Vai-te embora, ou eu te mato!” Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais, nem as exortações da religião tinham podido vencer esse caráter indomável, aliás compensado por vasta inteligência, uma instrução cuidada e os mais nobres sentimentos.

Dirão que é o efeito de um temperamento bilioso-sanguíneo-nervoso, resultado do organismo e, consequentemente, arrastamento irresistível. Resulta de tal sistema que se, em seus desatinos, tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria tido por causa um excesso de bile((Paulo Henrique de Figueiredo, em “Mesmer: a ciência negada do Magnetismo Animal”, diz que “Galeno errou ao defender rigidamente a teoria dos humores como uma autêntica doutrina de Hipócrates. Ele divulgou e desenvolveu essa teoria amplamente ao comentar, de forma exaustiva, o tratado Sobre a natureza dos homens de Políbio. Segundo a interpretação de Galeno, a vida era mantida pelo equilíbrio entre os quatro humores — sangue, fleuma, bile amarela e bile negra, que eram procedentes, respectivamente, do coração, do cérebro, do fígado e do baço. O desequilíbrio seria a doença. Segundo o predomínio natural de um destes humores na constituição dos indivíduos, teríamos os diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o fleumático, o bilioso ou colérico e o melancólico.“ Até hoje, quando alguém está alegre e bem disposto, dizemos que ele está com bom humor e, àquele que está irado, dizemos que está mal-humorado.”)). Disso ainda resulta que, a menos que modificasse o temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse moço estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.

─ Conheceis um remédio para tal estado patológico?

─ Nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa atenuar a abundância de secreções mórbidas.

─ Ora, o que não pode a Ciência, o Espiritismo faz, não lentamente e por força de um esforço contínuo, mas instantaneamente. Alguns dias bastaram para fazer desse jovem um ser suave e paciente. A certeza adquirida da vida futura; o conhecimento do objetivo da vida terrena; o sentimento da dignidade do homem, revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal; a responsabilidade daí decorrente; o pensamento de que a maior parte dos males terrenos são a consequência de nossos atos; todas estas ideias, bebidas num estudo sério do Espiritismo, produziram em seu cérebro uma súbita revolução. Pareceu-lhe que um véu se erguera acima de seus olhos e a vida se lhe apresentou sob outra face. Certo de que tinha em si um ser inteligente, independente da matéria, se disse: “Este ser deve ter uma vontade, ao passo que a matéria não a tem. Então, ele pode dominar a matéria.” Daí este outro raciocínio: “O resultado de minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta, portanto, é inútil, porque assim não progredi. Ela me produz o mal e nenhum bem me dá em troca. Além disto, ela pode impelir-me a atos censuráveis e até criminosos.”

Ele quis vencer, e venceu. Desde então, mil ocasiões surgiram que antes o teriam enfurecido, mas ante elas, ficou impassível e indiferente, com grande estupefação de sua mãe. Ele sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o recalcava e o forçava a descer.

Um milagre não teria feito melhor, mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa Revista não bastaria para registrá-los, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal, relativos a reformas morais dos mais inveterados hábitos. Citamos este como um notável exemplo do poder da vontade e, além disso, porque levanta um importante problema que só o Espiritismo pode resolver.

A propósito perguntava-nos o Sr. A… se seu Espírito era responsável por seus arrastamentos, ou se apenas sofria a influência da matéria. Eis a nossa resposta:

Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o quisestes seriamente, detivestes o movimento sanguíneo. Assim, se tivésseis querido antes, os acessos teriam cessado mais cedo e não teríeis ameaçado a vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza? É o corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poderiam ser atribuídos ao afluxo sanguíneo, mas, fútil ou não, tinham por causa uma contrariedade. Ora, é evidente que contrariado não era o corpo, mas o Espírito, muito suscetível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema orgânico irritável, que teria ficado em repouso, se não tivesse sido provocado.

Façamos uma comparação. Tendes um cavalo fogoso. Se souberdes dirigi-lo, ele se submete. Se o maltratardes, ele dispara e vos derruba. De quem a falta? Vossa ou do cavalo?

Para mim, é evidente que vosso Espírito é naturalmente irascível, mas, como cada um traz consigo o seu pecado original, isto é, um resto das antigas inclinações, não é menos evidente que, em vossa existência precedente, deveis ter sido um homem de uma extrema violência que provavelmente tivestes que pagar muito caro, talvez com a própria vida. Na erraticidade, vossas boas qualidades vos ajudaram a compreender os erros. Tomastes a resolução de vos vencer, e para isto lutar em nova existência. Mas, se tivésseis escolhido um corpo mole e linfático, não encontrando qualquer dificuldade, vosso Espírito nada teria ganho, o que resultaria na necessidade de recomeçar. Foi com esse objetivo que escolhestes um corpo bilioso, a fim de ter o mérito da luta. Agora a vitória está ganha. Vencestes o inimigo do vosso repouso e nada pode entravar o livre exercício de vossas boas qualidades.

Quanto à facilidade com que aceitastes e compreendestes o Espiritismo, ela se explica pela mesma causa. Éreis espírita há muito tempo. Esta crença era inata em vós, e o materialismo foi apenas o resultado da falsa direção dada às vossas ideias. A princípio abafada, a ideia espírita ficou em estado latente e bastou uma centelha para despertá-la. Bendizei a Providência que permitiu que esta centelha chegasse em boa hora para deter uma inclinação que talvez vos tivesse causado amargos desgostos, ao passo que vos resta uma longa carreira a percorrer na via do bem.

Todas as filosofias se chocaram contra esses mistérios da vida humana, que pareciam insondáveis até que o Espiritismo lhes trouxe o seu facho.

Em presença de tais fatos, ainda se pode perguntar para que ele serve? Não estamos em condições de emitir bons augúrios cerca do futuro moral da Humanidade quando ele for compreendido e praticado por todo mundo?




Voltando a André Luiz e “Nosso Lar”

Um correspondente nosso destacou a disparidade entre o que conta André Luiz, a respeito de todo o cenário por ele descrito, do mundo espiritual, e o que diz Allan Kardec, no trecho citado, extraído da Revista Espírita de 1859. Repetimos abaixo os trechos citados:

“Mostrou desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar …”

André Luiz – E a vida continua

“O Espirito não experimenta fadiga nem necessidade de repouso ou de nutrição, porque não tem nenhuma perda a reparar. … Os Espíritos inferiores tem todas as paixões e desejos que tinham em vida – e seu castigo é não os poder satisfazer.”

Kardec – Revista Espírita – Abril de 1859

Se faz digno de nota a observação que o livro “E a Vida Continua”, de André Luiz, através da psicografia de Chico Xavier, é o último livro da série que se iniciou com Nosso Lar. Quero dizer: é interessante que as ideias apresentadas por esse Espírito não se alteraram ao londo de todas essas publicações, que supostamente refletem um certo tempo, com várias vivências e aprendizados, conforme relatado por ele mesmo, previamente. Chegado a esse ponto, esse Espírito permanece apresentando ideias que estão em contrário àquilo que formou a Doutrina Espírita – o estudo metodológico da universalidade das comunicações dos Espíritos.

Por que será que isso se deu? Por que será que, durante todo esse tempo, esse Espírito não aprendeu a realidade do mundo Espiritual? Suponho razoável aceitar que Espíritos mais esclarecidos não choquem àqueles que estão ainda nas ilusões dos apegos materiais, fato pelo qual eles poderiam mesmo prover “sopinhas” aos Espíritos que, nesse estado, as solicitassem. Daí, contudo, a ditar toda uma obra psicográfica, tida como “complementar” à Doutrina, sem esclarecer ao leitor a realidade dos fatos, vai uma longa distância.

Dito isso, prossigamos.

Aqui, é interessante cuidar para não tomar a exceção como regra, por um lado, e, por outro, pela regra geral, inadmitir a exceção. O Movimento Espírita toma, atualmente, as comunicações isoladas, repletas de ideias próprias, falsas ideias e ilusões, como regra da lei natural, ao passo que Kardec estudou, nas milhares de comunicações com os Espíritos, os fundamentos desse e de outros aspectos da lei natural.

Quando Kardec afirma que o Espírito não experimenta fadiga nem necessidade de repouso ou de nutrição, quer dizer que, como aspecto da lei natural, realmente, o Espírito não tem NENHUMA das nossas necessidades físicas, nem emoções, que são do corpo, nem dor. Contudo, ele mesmo se comunicou com vários Espíritos que declaravam tais necessidades ou sensações. Na Revista Espírita de dezembro de 1858, o artigo Sensações dos Espíritos fala um pouco sobre isso, iniciando pela citação da comunicação de um Espírito que veio se reunir a eles, ao redor da lareira, reclamando de frio.

Acontece, é claro – e nisto eu insisto em chamar todos ao estudo – que o Espírito, como nós, cria para si próprio as sensações oriundas de seu estado de apego e/ou de sofrimento MORAL – repito: M-O-R-A-L! Assim como nós podemos criar dores e doenças pelo corpo, através do processo psicossomático, o Espírito sofredor ou apegado faz o mesmo com seu corpo espiritual – o perispírito – com a diferença que, para nós, o processo de reversão é mais dificultoso, ao passo que, para o Espírito, tudo depende tão-somente da mudança de seu pensamento.

Por todo o estudo sério e profundo de Allan Kardec, fica evidente que é – repito – o grau de apego às coisas da matéria e às falsas ideias, aliado, quase sempre, a um sofrimento moral, que cria tais ilusões ao Espírito, ilusões essas que são permitidas por Deus, já que Ele não nos faz progredir a golpes, mas garante o tempo e a autonomia a cada um.

Adiciono, por fim, que esse é o grande problema do M.E. atual: incutir nas ideias da massa os APEGOS à matéria, baseados não no estudo sério, mas nas opiniões isoladas, promovendo, assim, ao invés de um despertar do Espírito, um apego continuado às ideias da matéria, que ENTRAVAM o progresso espiritual, já que o Espírito, ao deixar a carne, ao invés de se ver consciente de si mesmo e buscar avaliar seu estado, suas escolhas, etc, pelo contrário, se coloca a pensar se vai para Nosso Lar ou Umbral, se vai ganhar uma casinha para descansar (sic!), se vai ganhar sopinha, se vai se alimentar de caldos ou da carninha que ele gostava… Entende o problema?

Enfim: é o tempo e a cabeça de cada um. Cito o artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864:

“Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns, a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.”




Ciência e Espiritismo: matérias em dimensões opostas?

Obtivemos, recentemente, a seguinte observação de uma correspondente nossa, srta. A…:

A ciência hoje não confirma muito do que acreditamos ser o mundo espiritual e a intervenção no nosso plano. A própria mesa girante já foi acusada de ser apenas resultado do efeito ideomotor e não mensagens dos espíritos. Não temos comprovação científica de muitas coisas e mesmo assim acreditamos nelas. A ciência na época de Kardec evoluiu e não confirmou tudo. Espiritismo, por mais que tenha utilizado o método científico não é comprovado pela ciência, talvez no futuro seja. Mas ainda não é ciência. Podemos chamar de filosofia, religião baseado no método científico. Há coisas que sabemos que não são reais como o nome de quem deu certas mensagens em psicografias e nos é dito para apenas considerar o teor da mensagem dada e ignorar a suposta falsa identidade. Há coisas que preferimos não saber ou aceitamos ser estranhas mesmo. Mas quando vemos essas mesmas coisas em outras doutrinas e em outros grupos acusamos de falta de bom senso e de método científico.

Resumiremos a seguir nossa resposta a tais observações:

A prezada srta. A… disse bem: a ciência DE HOJE e, adicionamos, desde sempre, a ciência materialista, dogmática, não aceitam as constatações que os Espíritos vieram demonstrar. Porém, ainda antes de Kardec, muitos cientistas honestos constataram até mesmo a existência de algo além do corpo material. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em” Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”

Vemos, então, Rivail, educador emérito, anos antes, dizendo, a respeito da educação das crianças que, se fosse bem realizada, evitaria que elas acreditassem em almas do outro mundo ou em fantasmas; que elas não tomariam fogos-fátuos por Espíritos((RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834)). Veja a incrível mudança que se operou em suas ideias – não sem resistência, como podemos constatar no artigo “Pluralidade das existências“, da Revista Espírita de novembro de 1858 – para, já então como Kardec, dizer que “em geral, se faz uma ideia muito falsa do estado dos Espíritos. Eles não são, como alguns pensam, seres vagos e indefinidos, nem chamas, como fogos-fátuos, nem fantasmas, como nos contos de aparições. São seres semelhantes a nós, possuindo um corpo como o nosso, mas fluídico e invisível em estado normal((Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864 > Abril > Resumo da lei dos fenômenos Espíritas))”.

Produziríamos um texto sem fim, buscando reafirmar os inúmeros pontos que demonstram a força da formação do Espiritismo como ciência – ciência, esta, aliás, desenvolvida sobre o Espiritualismo Racional((ver “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, de Paulo Henrique de Figueiredo)) – tarefa que somente pode ser bem desempenhada e alcançada por aquele que, livremente, decida sair de suas pré-concepções e ESTUDAR o Espiritismo, em toda sua formação, o que se encontra facilmente na Revista Espírita e, depois, profundamente estabelecido em antologia, filosofia e moral nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese (em suas versões originais, não adulteradas).

Vê-se que o caminho é longo e somente pode ser trilhado por aquele realmente interessado em sair da heteronomia, que congela o passo, para a autonomia, que nos coloca no comando do leme de nossa própria nau.

Veja, apenas para complementar, que o Espiritismo nasceu como toda ciência que conhecemos: pela observação metodológica e racional de fatos da natureza. Se ela ainda não atingiu o status de ciência reconhecida, não é por culpa sua, mas por conta do grande desvio que tomaram as ciências filosóficas espiritualistas no final do século XIX, que apagaram as luzes do raciocínio sustentado pela moral para nos deixar nas sombras do materialismo aristotélico, que contamina e define nossa sociedade até hoje em dia. Chegamos ao cúmulo de ver a Psicologia esquecida de sua própria definição – o estudo da alma – para olhar o homem apenas sob o ponto de vista behaviorista, materialista. Percebe o fosso que existe entre o ponto de vista atual e as ciências filosóficas, morais, psicológicas e racionais do passado?

O grande erro está em querer definir a ciência pelo entendimento atual, como se fosse apenas aquilo que se faz em laboratório, esquecendo-se de que, ainda hoje, a inferência e a elaboração de ideias através de hipóteses ainda faz parte do método científico. Incrível, então, será constatar que Kardec, corroborando com Mesmer e apoiado pela pesquisa espírita, já havia, naquele tempo, chegado aos conceitos de campo e onda, aproximando-se da Física Moderna((Ver A Gênese, editora FEAL)). Vemos, enfim, que a ciência natural é uma só, subdividida, porém, pelas especialidades dos homens.

Kardec diria, na Revista Espírita de janeiro de 1858:

Talvez nos contestem a denominação de ciência que damos ao Espiritismo. Ele não teria, sem dúvida e em nenhum caso, as características de uma ciência exata e precisamente nisso está o erro dos que o pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um problema de matemática; já é bastante que seja uma ciência filosófica. Toda ciência deve basear-se em fatos, mas estes, por si sós, não constituem a ciência. Ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos: é o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado de ciência? Se se trata de uma ciência acabada, sem dúvida será prematuro responder afirmativamente, mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a ciência.

Quando a senhorita A… diz que “há coisas que preferimos não saber ou aceitamos ser estranhas mesmo”, fala apenas do seu ponto de vista, do qual não fazem parte nossas ideias. Não agimos dessa maneira. Não aceitamos, simplesmente. Pesquisamos, buscamos respostas. Se, realmente, não há respostas, ficamos no aguardo do dia que poderemos obtê-las, através do método científico necessário para estabelecer a comunicação com seres que não podemos julgar de outra forma senão pela razão. Se, hoje, o Movimento Espírita não prima por esse método, ainda uma vez, a culpa não é do Espiritismo, mas das deturpações realizadas no seio doutrinário, mas que, para quem tem boa vontade de estudar, estão sendo rapidamente corrigidas e anuladas, com a consequente restauração do Espiritismo verdadeiro.

Vamos fazer parte desse movimento?




Iremos para algum lugar após a morte? O que ensina o Espiritismo sobre a vida futura?

Por Suely G. O. Caine

Sabemos o quão é instintivo e data dos primórdios a ideia de continuidade da existência do espírito, após a morte do corpo. Os comentários à pergunta 148 de O Livro dos Espíritos destacam essa questão:

(…) O homem tem instintivamente a convicção de que tudo não se acaba para ele com a vida; tem horror ao nada; é em vão que se obstina contra a ideia da vida futura, e quando chega o momento supremo, são poucos os que não perguntam o que deles vai ser, porque a ideia de deixar a vida para sempre tem qualquer coisa de pungente. Quem poderia, com efeito, encarar com indiferença uma separação absoluta e eterna de tudo o que ama? 

(…)

Ninguém, costuma-se dizer, voltou de lá para nos dar conta do que existe. Isto, porém, é um erro, e a missão do Espiritismo é precisamente a de nos esclarecer sobre esse futuro, a de nos fazer, até certo ponto, vê-la e tocá-lo, não mais pelo raciocínio, mas através dos fatos. Graças às comunicações espíritas, isto não é mais uma presunção, uma probabilidade sobre a qual cada um imagina à vontade, que os poetas embelezam com suas ficções ou enfeitam de imagens alegóricas que nos seduzem. É a realidade que nos mostra a sua face, porque são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm contar a sua situação, dizer-nos o que fazem, permitem-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da sua nova vida e por esse meio nos mostram a sorte inevitável que nos está reservada, segundo os nossos méritos ou os nossos delitos.”

Pois bem! Não há que se considerar que ninguém tenha “voltado” para contar como se encontra no plano espiritual, eis que são inúmeros os relatos, estudos realizados em torno de narrativas obtidas em sessões mediúnicas, às vezes com ricos detalhes, que Kardec colheu e reuniu através de um método científico desenvolvido, e no capítulo VIII, As penas futuras segundo o Espiritismo, de o livro O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo, esclarece:

“A Doutrina Espírita, no que se refere às penas futuras, não é mais fundada sobre uma teoria preconcebida do que suas outras partes. Em tudo ela se apoia sobre observações, sendo isso o que lhe dá autoridade. Ninguém então imaginou que as almas, após a morte, devessem se encontrar nesta ou naquela situação. São os próprios seres que deixaram a Terra que vêm hoje – com a permissão de Deus e porque a humanidade entra numa nova fase – nos iniciar nos mistérios da vida futura, descrever sua posição feliz ou infeliz, suas impressões e sua transformação na morte do corpo. Os espíritos vêm hoje, em suma, completar nesse ponto o ensino do Cristo.”

Mas… afinal… nos encontraremos em um lugar circunscrito na vida espiritual? A resposta é negativa; não há registros na doutrina espírita de locais reservados aos sofredores ou felizes e nem eventuais subdivisões.

O Espiritismo nos ensina que o espírito necessitado de progresso, que guarda apego à matéria, comunga do mundo ao qual, naturalmente, mantém afinidade, ao qual possui uma atração, ao passo que aquele que evoluiu, tendo se desapegado da matéria, percorre mundos diferentes. As respostas 232 e 233 de O Livro dos Espíritos esclarecem a questão:

232. No estado errante os Espíritos podem ir a todos os mundos? – Conforme. Quando o Espírito deixa o corpo, ainda não está completamente desligado da matéria e pertence ainda ao mundo em que viveu ou a um mundo do mesmo grau; a menos que, durante sua vida, tenha se elevado. Esse é o objetivo a que deve voltar-se, pois sem isso jamais se aperfeiçoaria. Ele pode, entretanto, ir a alguns mundos superiores, passando por eles como estrangeiro. Nada mais faz do que os entrever, e é isso que lhe dá o desejo de se melhorar, para ser digno da felicidade que neles se desfruta e poder habitá-los.

233. Os Espíritos já purificados vêm aos mundos inferiores? – Vêm frequentemente, a fim de os ajudar a progredir; sem isso, esses mundos estariam entregues a si mesmos, sem guias para os orientar.

Não obstante, frequentemente, nos depararmos com mensagens de espíritos que narram que se encontram em determinados locais de sofrimento, ou que experimentam sensações físicas, tais retratam as ilusões que o espírito apegado à matéria pode criar para si, mas que não passam de uma percepção pessoal do espírito que o narra, e que, portanto, não é universal. 

Do que podemos depreender é que o estado feliz ou infeliz é inerente ao grau da depuração ou das imperfeições do espírito, conforme podemos concluir através da leitura dos itens 1° até 25° do capítulo VIII As penas futuras segundo o Espiritismo, de o livro O Céu e o Inferno, ou a justiça divina segundo o Espiritismo, com destaque aos itens 1° ao 3° abaixo transcritos:

1°) A alma ou espírito sujeita-se, na vida espiritual, às consequências de todas as imperfeições das quais ela não se despojou durante a vida corporal. Seu estado feliz ou infeliz é inerente ao grau de sua depuração ou de suas imperfeições. 

2°) Sendo todos os espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento. 

3°) A felicidade perfeita está ligada à perfeição, ou seja, à depuração completa do espírito. Toda imperfeição é uma causa de sofrimento, da mesma forma que toda qualidade adquirida é uma causa de satisfação e de atenuação dos sofrimentos; donde resulta que a soma da felicidade e da infelicidade está na razão da soma das qualidades boas ou más que possui o espírito.

Todavia, nos atentemos para o estudo da primeira edição de o livro O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo e de o livro A Gênese – Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, eis que sobre tal edição não pairam as adulterações constatadas nas 4ª e 5ª edições dos mencionados livros, respectivamente.

Outra informação obtida através do método da universalidade dos espíritos, e que compõe a doutrina espírita é que os espíritos se reúnem por uma espécie de afinidade (não associada à ideia de afinidade meramente material) e formam grupos, de acordo com a resposta 278 de O Livro dos Espíritos:

278. Os Espíritos de diferentes ordens estão misturados? – Sim e não; quer dizer, eles se veem, mas se distinguem uns dos outros. Afastam-se ou se aproximam segundo a semelhança ou divergência de seus sentimentos, como acontece entre vós. É todo um mundo, do qual o vosso é o reflexo obscuro. Os da mesma ordem se reúnem por uma espécie de afinidade, e formam grupos ou famílias de Espíritos unidos pela simpatia e pelos propósitos; os bons, pelo desejo de fazer o bem; os maus, pelo desejo de fazer o mal, pela vergonha de suas faltas e pela necessidade de se encontrarem entre os seres semelhantes a eles. Igual a uma grande cidade, onde os homens de todas as classes e de todas as condições se veem e se encontram, sem se confundirem, onde as sociedades se formam pela similitude de gostos, onde o vício e a virtude se acotovelam, sem se falarem.

Na Revista Espírita maio/1858, sob o título Metades Eternas , o espírito São Luís também deixa interessantes apontamentos: 

“Não. Não existe uma união particular e fatal de duas almas. Existe a união entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a posição que ocupam, isto é, segundo a perfeição adquirida: quanto mais perfeitos, mais unidos. Da discórdia brotam todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.

(…) 3 ─ Uma vez unidos, dois Espíritos perfeitamente simpáticos permanecem unidos para a eternidade ou podem separar-se e unir-se a outros Espíritos? Todos os Espíritos estão unidos entre si. Falo dos que chegaram à perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva, não é mais simpático àqueles que deixou. 4 ─ Dois Espíritos simpáticos são o complemento um do outro ou essa simpatia é o resultado de uma perfeita identidade? A simpatia que atrai um Espírito para outro resulta da perfeita concordância de suas inclinações e de seus instintos. Se um devesse completar o outro, perderia sua individualidade.”

Essas são reduzidas reflexões a respeito do assunto. E quais são as suas? Quais textos você conhece que poderiam ampliar nossos estudos? Bora estudar conosco?!

Fontes de estudo: