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Baseado no vídeo de mesmo título do bate-papo semanal do Grupo de Estudos Espiritismo para Todos
Para demonstrar (e não provar) a reencarnação como uma lei natural, Kardec se baseia nos princípios fundamentais do Espiritismo e do Espiritualismo Racional. Dentre eles, estão os atributos essenciais de Deus1, que são perfeitas em grau infinito, posto que, fosse diferente, não seria esse ser o próprio Deus, sendo necessário, então, que houvesse outro acima, em condição perfeita.
É através da constatação e do entendimento dessas condições essenciais, que deriva o entendimento a respeito da criação divina. Como veremos mais à frente, sua criação também deve ser perfeita e, suas criaturas – os Espíritos – perfectíveis, o que, de contrário, não condiziria com a perfeição divina infinita.
Allan Kardec, de início, não aceitava a reencarnação. Em verdade, ele nem sequer aceitava a possibilidade da nossa interação com os Espíritos, em sua juventude. Era educador emérito, totalmente ligado aos conceitos da moral na pedagogia, além de pesquisador das ciências de então. Dizia ele que, se a educação das crianças fosse bem realizada, elas, quando crescessem, não acreditariam em almas do outro mundo ou em fantasmas2. Foi somente após os primeiros contatos com os fatos espíritas, onde ele compreendeu a existência de uma lei natural, a qual se pôs a estudar, que, vencido pelas evidências e pela razão, aceitou, por ser a conclusão mais racional, os fatos acima mencionados.
Sobre os Espíritos, diz Kardec, na introdução de O Livro dos Espíritos: “Conforme notamos acima, os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos ou gênios“.
Já sobre a reencarnação, encontramos um artigo de muito interesse na Revista Espírita de 1858, do mês de novembro, chamado “Pluralidade das Existências“, donde tiramos o seguinte trecho:
[…] quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema, aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.
Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema3 .
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 2a edição. Grifos nossos.
Kardec, nesse mesmo artigo, cuja leitura recomendamos fortemente, dá algumas noções preliminares sobre a antiguidade da ideia sobre a transmigração das almas. Citaremo-las, para, então, apresentar as dificuldades encontradas nos falsos em que elas muitas vezes se apoiam – ou vieram a se apoiar.
Das diversas doutrinas professadas pelo Espiritismo, a mais controvertida é, inquestionavelmente, a da reencarnação ou da pluralidade das existências corpóreas. Embora seja esta opinião atualmente partilhada por grande número de pessoas e que já tenha sido abordada por nós em várias ocasiões, julgamos um dever aqui examiná-la mais minuciosamente, à vista de sua extraordinária importância e para responder a diversas objeções que foram levantadas.
Antes de entrar a fundo na questão, devemos fazer algumas observações que se nos afiguram indispensáveis.
Para muitas pessoas o dogma da reencarnação não é novo: é ressuscitado de Pitágoras. Nós jamais dissemos que a Doutrina Espírita é uma invenção moderna. Decorrendo de uma lei natural, o Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos por provar que os seus traços são encontrados na mais alta Antiguidade.
Como se sabe, Pitágoras não é o autor do sistema da metempsicose. Ele bebeu-o nos filósofos indianos e entre os egípcios, onde ela existia desde tempos imemoriais. Assim, a ideia da transmigração das almas era uma crença vulgar, admitida pelas mais eminentes personalidades.
Ibidem.
É interessante notar que, embora essa ideia fosse admitida desde a antiguidade, “pelas mais eminentes personalidades”, Kardec não a admitia. Talvez sejam dois os possíveis motivos para isso: ele não pensava nisso, porque não admitia a sobrevivência do Espírito, ou ele não encontrava racionalidade nessas ideias. É sobre esse ponto que entraremos a seguir, para demonstrar que a ausência de razão reside nos falsos princípios, tomados de forma dogmática pelo clero das religiões e ensinado, desde criancinhas, aos seus adeptos.
Falso princípio da degradação da alma
No artigo “Doutrina da reencarnação entre os hindus”, da Revista Espírita de dezembro de 1859, Allan Kardec retoma o assunto da reencarnação em profundidade, apresentando o seguinte:
Conforme os hindus, as almas tinham sido criadas felizes e perfeitas e sua decadência resultou de uma rebelião; sua encarnação no corpo de animais é uma punição. Conforme a Doutrina Espírita, as almas foram e ainda são criadas simples e ignorantes; é pelas encarnações sucessivas que chegam, graças a seus esforços e à misericórdia divina, à perfeição que lhes proporcionará a felicidade eterna. Devendo progredir, a alma pode permanecer estacionária durante um período mais ou menos longo, mas não retrograda. O que adquiriu em conhecimento e em moralidade não se perde. Se não avança, também não recua: eis por que não pode voltar a animar os seres inferiores à Humanidade.
Desse modo, a metempsicose dos hindus está fundada sobre o princípio da degradação das almas. A reencarnação, segundo os Espíritos, está fundada no princípio da progressão contínua.
Segundo os hindus, a alma começou pela perfeição para chegar à abjeção; a perfeição é o começo e a abjeção, o resultado. Conforme os Espíritos, a ignorância é o começo; a perfeição, o objetivo e o resultado. Seria supérfluo procurar demonstrar qual dessas duas doutrinas é mais racional e dá uma ideia mais elevada da justiça e da bondade de Deus.
É, pois, por completa ignorância de seus princípios que algumas pessoas as confundem.
KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1859.
A crença dos hindus, na queda pelo pecado, é partilhada por muitas outras correntes de pensamento, dentre elas a da Igreja Romana. Segundo essa crença, seria necessário supor que Deus não seria assim tão perfeito, pois, após um erro de um filho seu, criado perfeito, portanto, sem experiência, o submete a um castigo na carne.
No artigo “Do princípio da não-retrogradação dos espíritos”, da RE de junho de 1863, Kardec destaca que:
Segundo um sistema, os Espíritos não teriam sido criados para serem encarnados, reencarnando apenas quando cometem faltas. O bom-senso repele tal pensamento.
A encarnação é uma necessidade para o Espírito que, para cumprir sua missão providencial, trabalha em seu próprio adiantamento pela atividade e a inteligência, que ele deve desenvolver a fim de prover à sua vida e ao seu bem-estar. Mas a encarnação torna-se uma punição quando, não tendo feito o que devia, o Espírito é constrangido4 a recomeçar sua tarefa e multiplica suas existências corpóreas penosas por sua própria culpa.
Um escolar somente se forma após passar por todas as classes. São essas classes uma punição? Não: são uma necessidade, uma condição indispensável para seu adiantamento5. Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí é uma punição6. Ser aprovado em algumas é um mérito.
O que é falso é admitir em princípio a encarnação como um castigo.
KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863. Grifos nossos.
Por incrível que pareça, esse falso princípio dominou o Movimento Espírita, após Kardec. Hoje, sem estudos, fala-se, no meio espírita, em carma, lei do retorno e lei de ação e reação, imputando, à reencarnação, essa característica arbitrariamente punitiva, do “olho-por-olho, dente-por-dente”. É um completo disparate, que só existe, como dissemos, pela ausência do estudo.
Na Revista Espírita de fevereiro de 1864, no artigo “Dissertações Espíritas – Necessidade da Encarnação”, Kardec apresenta a comunicação de um Espírito, assistido por outro, de nome Pascal:
Quis Deus que o Espírito do homem fosse ligado à matéria para sofrer as vicissitudes do corpo7, com o qual se identifica a ponto de iludir-se e de o tomar por si mesmo, quando não passa de sua prisão passageira; é como se um prisioneiro se confundisse com as paredes da cela…
Se Deus quis que suas criaturas espirituais fossem momentaneamente unidas à matéria, é, repito, para as fazer sentir e, a bem dizer, para que sofressem as necessidades que a matéria exige de seus corpos, no que respeita ao seu sustento e conservação.
Dessas necessidades nascem as vicissitudes que vos fazem sentir o sofrimento e compreender a comiseração que deveis ter por vossos irmãos na mesma posição. Esse estado transitório é, pois, necessário ao adiantamento do vosso Espírito, que, sem isto, ficaria estagnado.
As necessidades que o corpo vos faz experimentar estimulam os vossos Espíritos e os forçam a buscar os meios de as prover; desse trabalho forçado nasce o desenvolvimento do pensamento. Constrangido a presidir aos movimentos do corpo para os dirigir, visando a sua conservação, o Espírito é conduzido ao trabalho material e daí ao trabalho intelectual, necessários um ao outro, pois a realização das concepções do Espírito exige o trabalho do corpo e este não pode ser feito senão sob a direção e o impulso do Espírito.
KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864. Grifos nossos.
Ao que Kardec observa:
A estas observações, perfeitamente justas, acrescentaremos que, trabalhando para si mesmo, o Espírito encarnado trabalha para a melhoria do mundo em que habita, assim ajudando a sua transformação e o seu progresso material, que estão nos desígnios de Deus, de quem é o instrumento inteligente. Na sua sabedoria previdente, quis a Providência que tudo se encadeasse na Natureza; que, todos, homens e coisas, fossem solidários8.
A reencarnação é necessária enquanto a matéria domina o Espírito. Mas, desde que o Espírito encarnado chegou a dominar a matéria e a anular os efeitos de sua reação sobre o moral, a reencarnação não tem mais nenhuma utilidade nem razão de ser.
Com efeito, o corpo é necessário ao Espírito para o trabalho progressivo até que, tendo chegado a manejar este instrumento à vontade, a lhe imprimir sua vontade, o trabalho esteja realizado.
Ibidem. Idem.
Não creio necessárias maiores explicações. O princípio do progresso sucessivo, através das múltiplas encarnações, está demonstrado como o único capaz de dar razão a todas as questões até hoje levantadas sobre a justiça divina.
Em um próximo artigo continuaremos o assunto.
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- Eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom. Vide O Livro dos Espíritos, Cap. I, item III – Atributos da Divindade [↩]
- RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834 [↩]
- Já falamos sobre o quão importante é esse tipo de atitude frente à pesquisa espírita. Longe de constituir um ato de prepotência ou arrogância, é necessário e instigado pelos próprios Espíritos – quando superiores [↩]
- Esse constrangimento, é claro, dá-se em decorrência da lei natural, divina, e não pela ação direta e arbitrária de Deus [↩]
- Isso está totalmente de acordo com o pensamento pedagogo de Kardec, alinhado à pedagogia de Pestalozzi, totalmente voltado à autonomia e afastado dos conceitos de punição ou castigo, que, diz Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública” (Paris, 1828), “irritam as crianças em vez de convencê-las” [↩]
- Lembrando que a palavra “punição”, para o Espiritismo e para o Espiritualismo Racional, tem o significado de ser o resultado de uma ação, e não de uma imposição divina (veja este artigo). Assim, é possível compreender que repetir de ano, para o estudante, seria uma consequência de suas ações, e não um castigo infligido por elas. [↩]
- Afinal, a reencarnação é uma lei. Como diria Kardec no primeiro artigo citado, “Deus não nos pede permissão; não consulta o nosso gosto. Ou é, ou não é.” [↩]
- Esse princípio fundamental da lei natural, demonstrado pelo Espiritismo, vai de contra ao falso princípio do Espírito isolado em si mesmo. Vejamos que, mesmo sem saber ou querer, o Espírito trabalha pelo conjunto, desde sempre. Se houvesse sido criado perfeito (o que também é um contrassenso), não haveria essa necessidade. [↩]