A Caridade verdadeira, segundo o Espiritismo

Caridade: termo tão usado em toda parte, mas, ainda, tão mal compreendida. Que seria a Caridade verdadeira, segundo o Espiritismo?

Para nós, espíritas, ela aparece em todo canto, em toda literatura. Kardec a tornou base necessária para toda e qualquer felicidade, dizendo: “fora da caridade não há salvação”. A afirmativa, é claro, nasceu de uma certa oposição ao dogmatismo religioso, que tentava apregoar que a salvação estava em cada seita, de forma exclusivista e mesmo egoísta, mas não deixa de ser verdade, pois, sem caridade, não há amor ao próximo.

Contudo, o termo caridade tomou, hoje, conotação de assistencialismo, quase que exclusivamente, tornando-se sinônimo de doação material. Mas, para que realmente possamos entendemo-la dentro do contexto espírita, precisamos voltar ao contexto de Allan Kardec, na França de meados de 1850:

É importante destacar que o termo caridade utilizado por Kardec, para o Espiritualismo Racional, naquele tempo (divergindo da definição atual do termo, que se aproxima do assistencialismo), representava agir pelo dever, ou seja, de forma livre, consciente, intencional, independentemente de castigos e recompensas, com a plena compreensão da lei moral. A caridade é um princípio que orienta o agir integral do ser, e não uma atividade complementar, como se fosse um comportamento acessório […].

Paulo Henrique de Figueiredo – O Legado de Allan Kardec

Vemos, assim, que a caridade, bem entendida, deve constituir o ser, o modo de proceder, e não apenas se constituir de ações isoladas que, muitas vezes, falam mais pela necessidade de se fazer visto como “pessoa caridosa”, situação na qual não há real caridade, mas apenas ego e vaidade. Mais que isso, a caridade não se resume à doação material. Na verdade, eu diria, ela é, na maioria das vezes, oposta à doação material, visto que quem doa materialmente, seja dinheiro, seja comida, sejam coisas, muitas vezes o faz como uma forma de alívio de consciência.

O caro leitor que me perdoe, pois o intuito realmente não é julgar ninguém em suas ações. O próprio Cristo exemplificou, na “parábola do óbulo da viúva”, que a intenção real, ou, se quisermos, a fé, é quem fala mais alto. Muitas pessoas doam dinheiro ou outros recursos querendo realmente fazer o bem e, claro, isso conta muito. Mas quantas vezes nós nos limitamos a fazer uma doação material, sem mesmo refletir sobre o que estamos fazendo e sobre a situação real daquela pessoa que nos pede, num ato [enganoso], quase sempre, de desobrigação de ir além, ou apenas para nos sentirmos bem?

Pensemos: quantas pessoas utilizam doações para, revendendo recursos, obter dinheiro para obter entorpecentes? Quantas pessoas, dispondo de recursos fáceis, se lançam nos piores vícios e desregramentos, cavando mais e mais o próprio buraco em que se afundam? Será que doar a essas pessoas, regularmente, está realmente ajudando em suas situações? Será, realmente, que se os ricos simplesmente doassem suas fortunas, a miséria humana acabaria?

Não digo, de forma alguma, que não devemos doar recursos materiais; mas pensemos além, analisando cada situação e buscando ser fraternos com o irmão que nos busca, nos importando realmente com a situação dessa pessoa. Muitas vezes, uma simples pergunta do tipo “por que está na rua, irmão? O que está passando?” pode abrir caminho para uma relação muito mais frutífera que, não esqueçamos, beneficia os dois lados.

O indivíduo que realmente deseja fazer o bem, não faz a caridade uma vez por mês ou por semana: ele é caridoso, o tempo todo. E ser caridoso consiste em colocar o outro à frente de nossas próprias vontades e necessidades. Quantas vezes, pessoas passando pelos mais difíceis momentos de suas vidas, encontram forças para fazer a caridade de um dar sorriso a quem chora ainda mais? Minha avó, por exemplo, passando por uma grave e dolorida doença, encontrava forças para ser doce e afável, sorrindo a todos que vinham visitá-la em seus últimos dias da última encarnação. Não será isso um gênero de caridade – talvez dos maiores que existem?

Quando pensarmos, portanto, em caridade, precisamos pensar necessariamente em uma coisa: ir além. Se doamos algo material, que isso seja apenas a porta para criar um vínculo e uma abertura para aprofundar a relação com o irmão que pode estar em grande sofrimento. Mas, sobretudo, não esqueçamos que a maior caridade que podemos fazer ao próximo é lhe levar amor, fé e consolação, sobretudo através do exemplo de quem vivencia o que fala e não apenas como quem joga palavras ao vento.

É, portanto, um gênero de caridade com a humanidade nos esforçarmos em nosso próprio adiantamento moral, buscando modificarmo-nos à luz daquilo que nos consola e, em nosso caso, estudando dedicadamente O Espiritismo, doutrina que, muitas vezes na vida, nos salvou de escolhas ruins ou nos conduziu a melhores caminhos. Aprendamos a espalhá-lo sem chocar, isto é, sem iniciar as conversas falando em reencarnação e obsessão, mas, sim, apresentando a filosofia tão consoladora encontrada nessa Doutrina.

Sairemos, então, portão afora, e encontraremos por todos os lados pessoas precisando, desesperadamente, de algo que as console, que as ajude a tirar o pensamento de desistência de suas cabeças, que as auxilie a passar pelas provas da vida com fé inabalável e com firmeza decidida. São pessoas quase sempre difíceis, pelo momento de crise que vivem, e não seria caridade maior nos esforçarmos por ajudá-la, de forma persistente e fraterna, mesmo sabendo que, muitas vezes, viveremos dificuldades nesse contato inicialmente difícil?

Acreditem, irmãos: fazemos caridade muito maior deixando para trás nossas imperfeições e espalhando consolações e conhecimentos que podem mudar, para sempre, o rumo de um Espírito, do que apenas doando uma “coisa”, que ele vai usar e descartar, enquanto nós viramos nossas costas e seguimos nossa vida, sem vontade de ir além. Afinal, de que adianta doar um saco de arroz para alguém que pede no portão enquanto não somos caridosos, sequer, com os membros de nossa própria família ou com nossos subordinados no trabalho?

Encerro deixando a mensagem de “Um Espírito Protetor”, apresentada no capítulo XIII de O Evangelho Segundo o Espiritismo:

Meus amigos, a muitos dentre vós tenho ouvido dizer: Como hei de fazer caridade, se amiúde nem mesmo do necessário disponho?

Amigos, de mil maneiras se faz a caridade. Podeis fazê-la por pensamentos, por palavras e por ações. Por pensamentos, orando pelos pobres abandonados, que morreram sem se acharem sequer em condições de ver a luz. Uma prece feita de coração os alivia. Por palavras, dando aos vossos companheiros de todos os dias alguns bons conselhos, dizendo aos que o desespero, as privações azedaram o ânimo e levaram a blasfemar do nome do Altíssimo: “Eu era como sois; sofria, sentia-me desgraçado, mas acreditei no Espiritismo e, vede, agora, sou feliz.” Aos velhos que vos disserem: “É inútil; estou no fim da minha jornada; morrerei como vivi”, dizei: “Deus usa de justiça igual para com todos nós; lembrai-vos dos obreiros da última hora.” Às crianças já viciadas pelas companhias de que se cercaram e que vão pelo mundo, prestes a sucumbir às más tentações, dizei: “Deus vos vê, meus caros pequenos”, e não vos canseis de lhes repetir essas brandas palavras. Elas acabarão por lhes germinar nas inteligências infantis e, em vez de vagabundos, fareis deles homens. Também isso é caridade.

Dizem, outros dentre vós: “Ora! somos tão numerosos na Terra, que Deus não nos pode ver a todos.” Escutai bem isto, meus amigos: Quando estais no cume da montanha, não abrangeis com o olhar os bilhões de grãos de areia que a cobrem? Pois bem: do mesmo modo vos vê Deus. Ele vos deixa usar do vosso livre-arbítrio, como vós deixais que esses grãos de areia se movam ao sabor do vento que os dispersa. Apenas, Deus, em sua misericórdia infinita, vos pôs no fundo do coração uma sentinela vigilante, que se chama consciência. Escutai-a, que somente bons conselhos ela vos dará. Às vezes, conseguis entorpecê-la, opondo-lhe o espírito do mal. Ela, então, se cala. Mas, ficai certos de que a pobre escorraçada se fará ouvir, logo que lhe deixardes aperceber-se da sombra do remorso. Ouvi-a, interrogai-a e com freqüência vos achareis consolados com o conselho que dela houverdes recebido.

Meus amigos, a cada regimento novo o general entrega um estandarte. Eu vos dou por divisa esta máxima do Cristo: “Amai-vos uns aos outros.” Observai esse preceito, reuni-vos todos em torno dessa bandeira e tereis ventura e consolação. – Um Espírito protetor. (Lião, 1860.)




O Renascimento do Espiritismo

Vivemos a grande escuridão, novamente. Após o Espiritismo raiar na face da Terra como grandiosa luz que poderia nos lançar ao mais acelerado processo de renovação espiritual e moral humana, se espalhando com a velocidade de um raio, sofreu enorme revés e, então, passou a ser lentamente esquecido em suas proposta e verdadeira face originais. Vieram, então, as guerras, o grande desenvolvimento industrial, as enormes facilidades materiais, os enormes lucros e, por trás de grandes sorrisos falsos, de bonitas máscaras sociais, alegres e divertidas, se multiplicam as enormes dores e angústias que, não raro, encontram saída na desistência da vida e no suicídio direto ou indireto.

A humanidade clama. Há choro e ranger de dentes. Eis que, então, o inimaginável acontece e uma doença de facílima transmissão, embora de taxas de mortalidade relativamente baixas, se alastra por toda a superfície do planeta, levando entes queridos, vizinhos e conhecidos, pobres e ricos, em questão de poucas semanas – quase sempre, em menos de 20 dias. A humanidade se mostra, uma vez mais, ferida e vulnerável. O Espírito foi esquecido. A moral foi colocada de lado, como artigo de politicagem. Deus se tornou artigo de fé cega, quase sempre incompreendido e, embora presente em muitas línguas, vazias no coração.

As partidas de pessoas próximas abalam as famílias e os indivíduos. Um grande movimento se acelera: a busca por reaproximação com o espiritual, a busca por consolação, a busca por respostas. E eis que justamente nessa mesma época, começam a se avolumar, aos nossos olhos, grandiosos estudos e preciosas obras, por mãos dedicadas de irmãos entregues ao trabalho da Verdade, trazendo a nós a verdadeira face do Espiritismo e sua história, e grande e preciosa parte, até então incompreendida ou, então, desconhecida.

Vivemos, hoje, processo muito parecido com aquele vivido nos meados do século XIX, nos trazendo uma oportunidade mais uma vez extremamente grandiosa. Vejo e acredito que, como antes, vivemos grande chamamento de volta à espiritualidade. Multiplicam-se por todas as partes os fenômenos mediúnicos, inclusive os físicos, com vistas a chamar a nossa atenção. Como antes, passou a humanidade por gravíssima fase materialista, dando margem às grandes chagas do egoísmo e do orgulho, além de espaço à proliferação de todos os vícios e imperfeições, físicas e morais.

Nos foi dado a conhecer que o Espiritismo sofreu com diversas manipulações e desvios, às vezes criminosos, se não aos olhos da justiça humana, mas ao menos perante a justiça Divina. Letra e Movimento foram adulterados. O Espiritismo, após a morte de Kardec, perde a força gigantesca que vinha desenvolvendo e, com as guerras, encontra, no Brasil, guarida, para ficar em estágio semi-gestacional, no meio religioso, por mais de um século…

Irmãos, como dizia, vivemos momento importantíssimo e singular. O Espiritismo nasceu em momento favorável e necessário, quando a humanidade buscava respostas filosóficas para fazer frente ao negacionismo materialista que, por sua vez, nasceu para enfrentar o dogmatismo ferrenho das velhas religiões. Hoje, o Espiritismo renasce, em sua real exuberância, no momento certo, para atender aos clamores daqueles tantos que buscam respostas ao mesmo materialismo pujante e ferrenho que esfriou as almas durante o último século e colocou o homem no caminho do ganho e do lucro, das paixões efêmeras e do culto ao corpo.

A enorme diferença é que, hoje, encontramos o trabalho já iniciado. Não necessitamos desenvolver o raciocínio do zero, analisando fenômenos físicos, conversando com Espíritos através de pancadas. Basta, a nós, estudar a fundo, com muita sabedoria e dedicação, o Espiritismo e as obras complementares que nos ajudem a melhor compreendê-lo, situando-o de forma contextualizada no momento histórico em que nasceu para, então, trazer aos nossos dias o exato entendimento, que até hoje não tivemos, em maioria, sobre o que realmente é o Espiritismo!

Mas isso não será possível enquanto não agirmos conforme o exemplo daquele que Deus nos deu como exemplo nesse particular. Não falo do nosso exemplo máximo, Jesus, mas, sim, do nosso grande e humilde mestre, afável e caridoso, pesquisador dedicado à humanidade, Allan Kardec. Não, enquanto não seguirmos o seu exemplo, repito, a recuperação do Espiritismo não será possível. Kardec não foi perfeito, como nenhum de nós somos, mas uma coisa muito importante ele exemplificou: a total ausência de personalismo, vaidade e orgulho, bem como a busca por analisar fatos, provas e opiniões, de todos os lados e de todas as fontes, sem, antes, forma ideia previamente concebida. Enquanto nosso personalismo, nossa vaidade, nosso orgulho, nossos preconceitos, enfim, falarem mais alto, não sairemos do mesmo lugar. Não é isso, infelizmente, que tem feito as pessoas que, tomando frágeis argumentos a favor de suas ideias pessoais, continuam renegando os fatos históricos e que, por isso, se afastam do desenrolar do entendimento claro e profundo a respeito do Espiritismo, como já tratei neste artigo.

Espíritas, olhem ao redor: o trabalho nos chama, arduamente! O mundo de regeneração não virá sozinho! A regeneração precisa partir de nós, mas ela não se dará enquanto nos mantivermos parados, sentados, esperando a vida e aquilo que achamos serem castigos, passarem. Precisamos compreender que as dificuldades da vida, que julgamos castigos intransponíveis, são, na verdade, oportunidades valiosas de aprendizado e de correção de nossas imperfeições que nos levam a errar. Precisamos compreender que, assim como Deus não nos impõe castigos, mas, sim, oportunidades difíceis – mas totalmente suportáveis, desde que nós mesmos não aumentemos suas dificuldades – para aprendizado e elevação, também precisamos nós, com o auxílio da Doutrina Espírita, aprendermos a colocar em prática em nossas vidas e, sobretudo, com nossas crianças, a mesma moral: somos imperfeitos e castigar o erro nascido da imperfeição apenas causa retração e, muitas vezes, aumento da imperfeição e do erro. É isso que o Espiritismo vem nos mostrar: ninguém se torna anjo num estalar de dedos e, também, ninguém perde o que já conquistou. Não há anjos caídos, da mesma forma que não há escolhidos por Deus. Todos nós chegaremos à perfeição, sem exceções, mas a velocidade com que lá chegaremos depende, única e exclusivamente, de nós.

Assim, irmãos, mais do que nunca, vale aquela tão importante exortação: “Espíritasamaivos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo”. Precisamos deixar de lado as cisões. Precisamos deixar de lado os preconceitos. Precisamos, como Kardec, ouvir todas as opiniões, de todas as fontes, mas apenas como Kardec, entendendo muito bem seu trabalho, seu exemplo e seu método, poderemos nos unir, nos amar e nos instruir. E, sobretudo, precisamos produzir, em nosso bem e em favor do próximo, pois o tempo urge e, após um ano e meio de centros espíritas fechados, muitos sem nenhuma produção, sequer entre seus membros mais próximos, precisamos recuperar o Espiritismo que não é vivido em templos fechados, mas, sim, em nossa intimidade familiar e, daí, para o mundo afora!

Mais uma vez, fica aqui a exortação, o pedido, para que vós, irmãos, leiam também as obras tão importantes e necessárias ao nosso entendimento:

  • O Legado de Allan Kardec, por Simoni Privato
  • Nem céu nem inferno, por Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio
  • Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, por Paulo Henrique de Figueiredo
  • Muita Luz, por Berthe Fropo



O Livro dos Espíritos

Encerrando o Primeiro Capítulo da primeira edição da Revista Espírita, Kardec cita a publicação de O Livro dos Espíritos, trazendo à luz um muito interessante e sensato artigo publicado no Courrier de Paris, de 11 de junho de 1857, bem como algumas cartas a ele endereçadas, agradecendo pelo trabalho consolador apresentado naquela obra. Interessante notar como a imprensa, na época, citava tais acontecimentos sem a grande necessidade de criticá-los sem fundamento, como muitas vezes vemos hoje.

Lendo as admiráveis respostas dos Espíritos na obra do Sr. Kardec, dissemos a nós mesmos que haveria um belo livro a escrever. Bem depressa reconhecemos que nos havíamos enganado: o livro já está escrito. Apenas o estragaríamos se tentássemos completá-lo.

G. Du Chalard – Courrier de Paris, de 11 de junho de 1857

Kardec termina contando sobre como o Livro foi constituído, em sua primeira edição, em grande parte com a ajuda das irmãs Baudin. Após a primeira edição, foi recomendado pelos próprios Espíritos que realizasse uma revisão da obra. Importante destacar que Kardec buscava sempre confirmar as respostas obtidas principalmente por médiuns intuitivos com médiuns mecânicos, onde a influência do médium seria menor ou inexistente. Além disso, sobre as questões mais complicadas, buscava um maior número de “opiniões”, fazendo a mesma pergunta a diversos espíritos, através de médiuns por todas as partes. Essa é a tão conhecida Concordância Universal dos Ensinamentos dos Espíritos.




História de Joana D’Arc ditada por ela própria à Senhorita Ermance Dufaux

Aqui Kardec cita o caso de Joana D’Arc, sem se aprofundar nele. Teria ela própria transmitido uma mensagem à senhorita Dufaux, contando a história da heroína de forma mais aprofundada, destacando ter sido médium e explicando sua jornada. Kardec diz que voltará a esse caso, em outra ocasião, mas é interessante citar que ele aceitou tal conteúdo verificando que a médium em questão contava com apenas 14 anos quando o recebeu e que, mesmo sendo de família educada, muito dificilmente teria encontrado nas bibliotecas tais detalhes tão pouco conhecidos sobre a personagem em questão.

Interessante destacar que a senhorita Dufaux teve uma participação importante na própria Revista Espírita, onde, segundo Canuto de Abreu, ela cooperou para a transmissão de valiosas orientações para esse periódico:

No final de 1857, Kardec teve a idéia de publicar um periódico espírita e quis ouvir a opinião dos guias espirituais. Ermance foi a médium escolhida e, através dela, um Espírito deu várias e ótimas orientações ao Mestre de Lion. O órgão ganhou o nome de “Revista Espírita” e foi lançado em Janeiro do ano seguinte.

Também foi o Sr. Dufaux, pai de Ermance, quem muito cooperou na fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, quando conseguiu em apenas 15 dias a autorização para as reuniões da Sociedade (as leis em vigência não permitiam a livre reunião em locais fechados, sendo o próprio Kardec muitas vezes seguido por “policiais”, a fim de verificarem e reportarem seus encontros e reuniões).

Também foi ela grande cooperadora na revisão de O Livro dos Espíritos, na 2a edição da obra.




Reconhecimento da existência dos Espíritos e de suas manifestações

Nesta abordagem um tanto mais extensa, Kardec chama a atenção para o fato de que o as manifestações espirituais encontram-se evidentemente reconhecidas mesmo dentro da Igreja Católica Romana, da qual ele cita grande artigo, publicado à época, na Civiltà Cattolica, de Roma. Muito interessante notar o tom do artigo, onde, por vezes, parece mesmo que estamos lendo um texto do próprio Kardec, dada a lucidez e a honestidade da análise sobre os fatos em questão.

Convém lembrar do caso da obra “Manuscrito do Purgatório”, onde uma Irmã, dentro do contexto da Igreja Católica, recebeu e publicou diversas psicografias de outros irmãos, de dentro do mesmo contexto, já falecidos. A obra é iniciada por uma longa introdução, cheia de poréns e entretantos, visando explicar o acontecido como algo permitido por Deus apenas naquela situação muito estrita, mas que vale a pena uma análise ao menos superficial.




Visões

Aqui Kardec aborda dois casos de visões espirituais. Apesar de sabermos das manifestações espirituais visuais, aqui nenhum deles parece se tratar disso, mas, antes, de fenômenos de dupla vista, sonambulismo ou êxtase, como no último caso, onde o próprio Espírito do encarnado se transporta para outro local, vivendo outras experiências que, depois, vêm a se confirmar. 

“Como os sonhos nada mais são que um estado de sonambulismo natural incompleto, designaremos as visões que ocorrem nesse estado sob o nome de visões sonambúlicas, para distingui-las das que se dão em estado de vigília e que chamaremos de visões pela dupla vista.”

A seguir, separamos um trecho que visa causar uma certa provocação e que abre campo para uma necessária reflexão:

“Quando as visões têm por objeto os seres do mundo incorpóreo, poder-se-ia, aparentemente com alguma razão, qualificá-las de alucinação, porque nada lhes pode demonstrar a exatidão.”

Em outras palavras: será que podemos confiar tanto assim nas “visões” mediúnicas de outros planos e mundos? É preciso, como lembra Kardec, tomar sempre muito cuidado, não acreditando por acreditar naquilo que qualquer um diga.

Cabe fazer uma breve abordagem sobre os extáticos, lembrando que tal mediunidade sonambúlica, que hoje se confunde entre as chamadas “viagens astrais”, carece de conhecimento e vigilância da parte do próprio médium. Frente às maravilhas com as visões, nesse caso específico, poder se afastar de tal forma de seu corpo carnal, fazendo sua ligação com ele tão tênue que chegue, mesmo, a se romper, sob sua vontade de abandoná-lo. Lembrando sempre que “Não é a partida do Espírito a causa da morte do corpo, mas é a morte deste que causa a partida do Espírito.”




Os médiuns julgados

Aqui Kardec aborda um caso ocorrido no qual uma instituição determinou o pagamento de um prêmio àquele que pudesse comprovar alguns fenômenos espíritas, ao que nenhum dos inscritos conseguiu atender, embora, fora dali, muitos deles obtivessem tais fenômenos facilmente, tal como se deu, lembra Kardec, dez anos antes, com alguns sonâmbulos magnetizados, na França, os quais, em outras circunstâncias, “liam livros fechados e decifravam toda uma carta, sentados sobre ela ou colocando-a bem dobrada e fechada sobre o ventre”. 

Já vimos isso recentemente, também. Importante compreender, com essa abordagem, que a espiritualidade não está a nosso mando e não está interessada em tais shows, sobretudo quando se visa, através disso, obter ganhos materiais de qualquer gênero. Aliás, é interessante notar como isso repulsa tanto o Espírito superior quanto o inferior, o que dá margem para uma grande discussão a respeito dos médiuns que se lançam, por exemplo, a ler a sorte.

Também nos traz à lembrança os diversos casos polêmicos nos quais diversos “espíritas” já se envolveram, como aconteceu ao próprio Leymarie, naquilo que ficou conhecido como “O Processo dos Espíritas”, fato que causou grande vergonha ao Movimento Espírita de então, e o conhecido caso da polêmica materialização espiritual, da qual Chico Xavier participou. Não podemos julgar se são caros de pura leviandade ou não, mas são casos bastante complicados, que não desmentem a possibilidade e mesmo a veracidade de tais fenômenos, mas que servem para nos chamar a atenção para alguns pontos:

  1. O Espiritismo conquista muito mais adeptos por sua filosofia consoladora e esclarecedora do que através de fenômenos, ante os quais, aquele que seja decididamente cético, não se tornará menos convencido;
  2. Seres humanos são falíveis, na maioria das vezes mais por invigilância do que por maldade. Não podemos endeusar ninguém, sobretudo quando lembramos que médiuns são, em geral, Espíritos bastante faltosos no passado, que recebem a mediunidade como grata oportunidade de correção de seus desvios;
  3. Os Espíritos não nos atendem quando nós queremos, mas quando eles o querem;
  4. Os Espíritos não se prestam a responder coisas triviais e que estão ao nosso alcance e tampouco se prestam a provar aquilo que é facilmente verificável pela nossa inteligência, tanto quanto um homem de grande conhecimento não se presta a responder às questões já respondidas, às quais muitos não se lançam a pesquisar por pura preguiça.

Escribas e fariseus disseram a Jesus: “Mestre, muito gostaríamos que nos fizésseis ver algum prodígio.” Respondeu Jesus: “Esta geração má e adúltera pede um prodígio, mas não lhe será dado outro senão o de Jonas.”

(Mateus, 12: 38 e 39.)




Por que a esposa de Kardec não impediu as adulterações em A Gênese?

A questão das adulterações em A Gênese já está factualmente sancionada, isto é, não há mais dúvidas de que Allan Kardec não foi o responsável pelas alterações apresentadas a partir da quinta edição de A Gênese. Tudo isso fica bastante claro na obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato, mas nós também já abordamos um pouco disso no artigo As adulterações nas obras de Kardec e o “CSI do Espiritismo”. Ainda restava, contudo, uma questão: como é que a esposa de Kardec, Amélie Boudet, deixou passar essa adulteração tão séria?

A resposta veio de forma bastante simples e clara: ela não sabia de tais alterações (ou adulterações), nem as esperava, até mesmo porque nunca houve um depósito legal para a nova edição, necessário, naquela época, para qualquer alteração no conteúdo da obra. Allan Kardec sempre realizou tais depósitos, quando necessário, para uma nova obra ou para uma nova edição, com alterações da anterior. É por isso de ele nunca fez depósito legal de nenhuma outra edição de A Gênese, pois, nas quatro primeiras edições, ela não sofreu alterações.

Tudo isso fica mais claro no vídeo abaixo. Convidamos o leitor a assistir, com atenção, e a deixar seu comentário aqui neste artigo.




Evocações particulares

Nesse item, Kardec aborda algumas evocações particulares com a finalidade de promover uma análise com ganho geral.

Sobre isso, aliás, fico me questionando sobre até que ponto devemos realmente desaconselhar que as pessoas busquem tais evocações para obterem alguma consolação a respeito de seus familiares falecidos ou mesmo para buscarem algum aconselhamento pessoal, dado que em minha própria família isso tantas vezes aconteceu de forma espontânea. Não estaria eu me contradizendo? Será que um médium que se preste a tal fim, de forma séria e desinteressada, não cumpre também um papel importante?

Entendemos, porém, que aqui, como em tudo, cabe a grande pergunta: qual a utilidade e a finalidade? Passados mais de 160 anos do “início” do Espiritismo, nós já compreendemos muito bem como é a vida após a morte, a continuidade das nossas imperfeições e virtudes, a necessidade de o encarnado seguir em frente sua vida, sem ficar lamentando sobre os entes desencarnados e, assim, não vemos a necessidade ir até um médium buscar psicografia de cada ente desencarnado. Precisamos realmente avançar sobre esse ponto, buscando cultivar as comunicações com os Espíritos com propósitos mais profundos, o que não exclui, a meu ver, a possibilidade de buscar apoio e, quem sabe, um aconselhamento sobre assuntos sérios e importantes, como o próprio Kardec fazia.

No primeiro caso abordado, fica clara uma comunicação bastante consoladora, pela filha falecida, mas também a verificação de três fatos:

  • Os Espíritos ficam felizes em poder nos auxiliar naquilo que é permitido;
  • Os Espíritos não podem nos informar sobre tudo. Precisamos nos esforçar por seguir com nossas pernas e, assim, termos nosso próprio mérito, que nos estrutura;
  • Suportar as provas com resignação e confiança em Deus, mas de forma ativa, nos permite um grande aproveitamento e, assim, uma grande felicidade no porvir (e mesmo durante a prova);

No segundo caso, “uma conversão”, vemos um caso notório de um pai e um filho que compartilhavam de um pensamento materialista ou, por assim dizer, negacionista da espiritualidade e de Deus. Acontece que, após a morte do pai, o filho teve contato com O Livro dos Espíritos e, tendo o lido, buscou um médium, com intensa curiosidade. Ele queria obter uma comunicação de seu pai, 4 meses após sua morte, a fim de acabar com suas dúvidas (nota-se que o Livro Dos Espíritos causou grande impacto nele).

O pai lhe traz informações pessoais, que confirmam sua legitimidade. Na conversa que se trava, mostra para o filho que a vida realmente continua após o túmulo. Destaco, porém, um trecho que nos chamou a atenção:

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos?

— Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem?

— Avançará em seu caminho.

Importante relembrar que Kardec buscava a concordância universal e que sempre fazia anotações e considerações a respeito das opiniões contrárias àquilo que já estava estabelecido pelo ensinamento dos Espíritos. 

O trecho em questão denota que faz parte das idéias de Kardec, posto que está expressa pelo pensamento do Espírito comunicante, a compreensão de que ninguém é punido ou recompensado externamente. “Se você fizer o mal, sofrerá”, denota esse entendimento profundo da Doutrina Espírita: o sofrimento nasce como consequência direta de nossas ações, ao passo que a recompensa pelo bom proceder é o avanço em nossos caminhos. Não há pagamento de dívidas, não há julgamentos, punições ou mesmo recompensas externas. 

Isto é mais um ponto que corrobora com a afirmação (factual) de que o item “Código Penal da Vida Futura”, presente no capítulo VII a partir da 4a edição do O Céu e O Inferno, sabidamente adulterada, está em total desacordo com o pensamento do codificador, sobretudo no que tange ao apresentado no item 9º:

Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.




Duendes

Aqui Kardec apenas aborda a questão de que a intervenção de seres incorpóreos, tidos como duendes, diabretes e outros, sempre permeou a humanidade e, em si, não deixa de ser uma verdade. Acontece que, antes do Espiritismo, que a explicou, era tomada como superstição, fruto da imaginação, ou então cercada de superstição.

Aliás, interessante notar como mesmo dentro do Espiritismo essas intervenções são muitas vezes tomadas com conto da carochinha e, por isso, desacreditadas, sem antes serem analisadas.

Por outro lado, é interessante abordar como, há mais de 160 anos, Kardec já buscava explicar, à luz dos ensinamentos dos Espíritos e da razão, esses fatos antes cercados de superstições. Infelizmente, ainda hoje essa superstição ou esse misticismo persistem no meio espiritualista, onde, em algumas religiões, ainda se utlizam de termos e crenças limitantes, mesmo, como é o caso dos chamados “Tranca-Rua”, “Zé Pilantra”, etc, que não passam de Espíritos, da forma simples e pura como eles mesmos já nos ensinaram.