A inveja

Kardec inicia o mês trazendo uma dissertação moral, desta vez através do “Sr. D.”¹, médium que, até o presente momento, não pudemos identificar.

São interessantes as observações que o professor faz a respeito desse médium, pois, destaca, estava apenas iniciando o desenvolvimento de sua mediunidade e, por isso, duvidava um pouco de suas capacidades.

Tendo o Sr. D. expressado sua vontade de intermediar uma comunicação de São Luis, foi de pronto atendido, não como forma de provar qualquer coisa, mas porque o pedido foi genuíno e sincero, sem segundas intenções. Apenas duvidava de si mesmo.

“Hoje, o Sr. D… é um dos médiuns mais completos, não só pela grande facilidade de atuação, como por sua aptidão em servir de intérprete a todos os Espíritos, mesmo os das mais elevadas categorias, os quais por seu intermédio se exprimem facilmente e de boa vontade”

“São essas, sobretudo, as qualidades que devemos procurar nos médiuns e que podem sempre ser adquiridas com paciência, vontade e exercício. O Sr. D… não necessitou de muita paciência; dispunha da vontade e do fervor, aliados à aptidão natural. Poucos dias bastaram para levar sua faculdade ao mais alto grau”

E segue com a apresentação da dissertação moral, do qual destacamos o seguinte trecho:

“Ele se debate na sua impotência, vítima do horrível suplício da inveja, feliz ainda se essas ideias funestas não o levam às bordas de um abismo. Entrando nessa via, a si mesmo pergunta se não deve obter pela violência aquilo que julga ser-lhe devido; se não irá expor aos olhos de todos o terrível mal que o devora. Se esse infeliz tivesse olhado somente para baixo de sua posição, teria visto a quantidade daqueles que sofrem sem um lamento e ainda bendizem o Criador, porque a desgraça é um benefício de que Deus se serve para fazer a pobre criatura avançar até o seu trono eterno.”

Comentários

Vejamos o espaço que Kardec dava aos conteúdos de fundo moral, sem tirar espaço do aspecto principal do Espiritismo, que era a investigação científica para a ininterrupta formação de toda uma Doutrina.

Hoje, infelizmente, se faz o contrário. Espiritismo virou apenas moral, centros espíritas se resumem a palestras e passes e chegamos ao cúmulo de ouvir opiniões do tipo “neste momento, precisamos deixar de lado até mesmo as reuniões de assistência aos Espíritos, pois o que mais importa é nossa mudança urgente a fim de não perder o direito de continuar reencarnando na Terra, que está entrando em uma nova era”.


1. Alfred Jean Baptiste Didier?

Esse médium foi muito ativo na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – SPEE, sendo muito utilizado por Lamennais. Após sua saída da Sociedade, em 1865, se dedicou à pintura




Correspondência – Marius M

Nessa carta, um assinante da Revista Espírita diz que há cerca de 18 meses evocavam em seu pequeno círculo íntimo um antigo antepassado, falecido em 1756, virtuoso e superior.  

Esse Espírito disse a eles estar encarnado em Júpiter e reproduziu os mesmos detalhes que Mozart (e outros) também descreveu a Kardec, tanto fisicamente quanto moralmente, e até mesmo quanto à condição dos animais.  

Como houvesse coisas que tínhamos dificuldade de compreender, nosso parente ajuntou estas palavras notáveis: “Não é de admirar que não compreendais coisas para as quais não foram feitos os vossos sentidos, mas, à medida que avançardes na Ciência, compreendê-las-eis melhor pelo pensamento e elas deixarão de vos parecer extraordinárias. Não está longe a época em que recebereis mais completos esclarecimentos sobre este ponto. Estão os Espíritos encarregados de vos instruir a respeito, a fim de vos dar um objetivo e de vos motivar para bem.” Lendo vossa descrição e o anúncio dos desenhos de que falais, naturalmente pensamos que era chegado o momento.

O Sr. Marius segue fazendo observações a respeito das conclusões morais que tiraram dessas comunicações, sendo que, para eles, se tornou muito importante a necessidade de se elevarem pelo aperfeiçoamento próprio a fim de que possam merecer viver, um dia, em um lugar como esse. Também fala a respeito dos céticos, que jamais acreditariam em tais relatos.  

Fazemos uma ideia de países que nunca vimos, pela descrição dos viajantes, quando entre eles há coincidência. Por que não se daria o mesmo em relação aos Espíritos?  

Por que não poderíamos ou não deveríamos, portanto, acreditar nos vários relatos mais atuais que existem a respeito de “cidades espirituais”? Já vamos falar sobre isso.

 Em resposta, Kardec diz:

Somos felizes pela comunicação que nos promete a respeito de Júpiter. A coincidência que assinala não é a única, como podemos ver no artigo sobre o assunto. Ora, seja qual for a opinião que se tenha a respeito, não deixa de ser matéria de observação. O mundo espírita está cheio de mistérios que devem ser estudados com muito cuidado. As consequências morais que daí extrai o nosso correspondente são caracterizadas por uma lógica que a ninguém passará despercebida.    

Sobre os desenhos, dos quais o Sr. Marius solicitou uma impressão, Kardec diz que seria demasiado complicado e caro para reproduzi-los. Diz, porém, que o assunto estava em solução, pois o médium desenhista, Sr. Sardou, tornara-se médium gravador, passando a fazer os desenhos diretamente sobre o cobre!

Conclusões

Se Kardec e seu correspondente, dentre tantos outros, apresentaram relatos de cidades diáfanas em Júpiter, porque, então, não poderíamos aceitar os relatos sobre os mais diversos tipos de lugares no plano espiritual, conforme outros relatos mais atuais atestam?    

Bem, aqui temos alguns problemas a considerar. O primeiro deles é que, na época de Kardec, pela enorme dificuldade de comunicação entre as distâncias, os relatos que eram obtidos em pontos distintos da Europa e das Américas poderia ser mais facilmente aceito sem a sombra das ideias pré-concebidas ou “contaminadas”.    

Além disso, precisamos considerar o que fica muito evidente em toda a obra de Kardec: a importância da Concordância Universal do Ensinamento dos Espíritos.

Outro problema a se destacar é que os relatos de Júpiter falam de um planeta, onde existe uma civilização de Espíritos encarnados, embora em matéria muito mais sutil que a nossa, sendo que as estruturas moleculares gerais respeitam as mesmas características de sutileza.    

Já os relatos como os de André Luiz, dentre tantos outros, fazem entender que tais cidades estariam localizadas no espaço errante, isto é, os Espíritos entre as encarnações fariam criação e uso dessas cidades. Isso não é de todo impossível, embora alguns detalhes desses relatos não pareçam fazer muito sentido. Contudo…    

É algo do qual nunca antes nenhum Espírito havia falado. Na verdade, os relatos de Espíritos errantes apontam para o contrário: o de que apenas os Espíritos muito materialistas se prenderiam a tais conceitos e “locais”.

A grande questão aqui, portanto, é apenas destacar o cuidado que devemos ter. Não devemos descartar nem aceitar uma ideia ou conceito que não tenha passado pela CUEE. E aqui, fica uma lição de modo geral, porque, junto com tais ideias, muitas vezes são transmitidas ideias controversas, complicadas e, às vezes, até contrárias à Doutrina.

Lembramos que Ramatis (supostamente) também se aventurou a dar tais tipos de descrições, no caso sobre Marte. Contudo, foi uma comunicação isolada, com detalhes estranhos e supérfluos, além de muitos deles já terem sido desmentidos pela Ciência humana.

Hoje, a disseminação fácil de certas ideias torna muito fácil a “contaminação” das comunicações, até porque os psicógrafos mecânicos parecem estar em falta e, como tais médiuns eram comumente colocados em estado de “transe hipnótico”, o magnetismo também precisa voltar a ser estudado, entendido e praticado.  

Portanto, para investigar esses temas de importância, será necessário tomar um caminho diverso, com ainda mais rigor científico do que aquele já empregado por Kardec.    

O caminho ainda é longo.




Correspondência – Sr. Jobard

 Nessa seção são apresentadas algumas correspondências de interesse. A primeira delas é uma carta do Sr. Jobard (Marcellin Jobard), uma verdadeira proclamação de suas crenças no Espiritismo:

Recebo e leio com avidez a vossa Revista Espírita e recomendo aos meus amigos, não a simples leitura, mas o estudo aprofundado do vosso Livro dos Espíritos. Muito lamento que minhas preocupações físicas não me deixem tempo para os estudos metafísicos, embora os tenha levado bastante longe para sentir quanto estais perto da verdade absoluta, sobretudo quando vejo a perfeita coincidência que existe entre as respostas que nos dão ─ a mim e a vós. Os próprios Espíritos que vos atribuem pessoalmente a redação dos vossos escritos ficam estupefatos com a profundidade e com a lógica que aí encontram.

Marcellin Jobard (17 de maio de 1792, Baissey – 27 de outubro de 1861, Bruxelas) foi um litógrafo, fotógrafo e inventor belga de origem francesa.

Fundador do primeiro estabelecimento importante de litografia da Bélgica, primeiro fotógrafo belga, diretor do Museu da Indústria de Bruxelas de 1841 a 1861, Marcellin Jobard desempenhou um papel hoje pouco conhecido no desenvolvimento artístico, científico e industrial da Bélgica durante o século XIX.

Kardec apresenta uma comunicação desse Espírito (após sua morte, em 1861) em O Céu e o Inferno – Segunda Parte – Capítulo II – Espíritos felizes » Sr. Jobard

Quanto a mim, que conheço o fenômeno e a vossa lealdade, não duvido da exatidão das explicações que vos são dadas e abjuro todas as ideias que a respeito publiquei, quando, com o Sr. Babinet, eu pensava que só houvesse nisso fenômenos físicos ou palhaçadas indignas da atenção dos sábios.

Não desanimeis, como eu não desanimo, ante a indiferença de vossos contemporâneos. O que está escrito, está escrito; o que está semeado germinará. A ideia de que a vida é uma afinação das almas, uma prova e uma expiação, é grande, consoladora, progressiva e natural.

Em resposta, Kardec elogia a posição do Sr. Jobard, sendo homem tão reconhecido, e o questiona sobre a possibilidade de publicar sua “adesão” na Revista Espírita.    

Importante, antes, notar a índole de Kardec: Os elogios contidos na carta do Sr. Jobard nos teriam impossibilitado de publicá-la, se tivessem sido dirigidos pessoalmente a nós.    

Em resposta, Jobard teria se afirmado “humilhado” pelas perguntas de Kardec, como se ele se sentisse comparado com os tolos. Contudo, informando-se consciente das dificuldades dos adeptos das novas ideias, reafirma suas decisões, fazendo uma interessante e profunda digressão.

A propósito do magnetismo, há mais de quarenta anos, fiz este raciocínio simples: é impossível que homens tão apreciáveis escrevam milhares de volumes para me fazerem crer na existência de uma coisa inexistente. Então fiz experiências por muito tempo, mas em vão, enquanto não tinha fé em obter aquilo que buscava. Fui, entretanto, bem recompensado por minha perseverança, pois consegui produzir todos os fenômenos de que ouvia falar. Depois fiz uma pausa de quinze anos. As mesas tinham surgido e eu quis ter uma ideia clara. Hoje surge o Espiritismo e eu ajo da mesma maneira.

Quando aparecer algo de novo, correrei com o mesmo ardor que emprego em acompanhar todas as descobertas modernas. É a curiosidade que me arrasta, e lamento que os selvagens não sejam curiosos, pois assim continuam selvagens. A curiosidade é a mãe da instrução.

Sei perfeitamente que essa febre de aprender, muito me prejudicou e que se tivesse ficado nessa respeitável mediocridade que conduz às honras e à fortuna, eu teria tirado a minha fatia, mas há muito tempo eu disse, de mim para mim, que me achava apenas de passagem neste albergue ordinário, onde não vale a pena fazer as malas. O que me fez suportar sem dor as adversidades, as injustiças e os roubos de que fui vítima privilegiada, foi a ideia de que aqui não existe uma felicidade ou uma desgraça pela qual valha a pena nos alegrarmos ou nos afligirmos.

Vi evocar uma pessoa viva. Ela teve uma síncope até que seu Espírito voltou. Evocai-me, para ver o que vos direi. Evocai também o Dr. Muhr, falecido no Cairo, a 4 de junho. Ele era um grande espírita e médico homeopata. Perguntai-lhe se ainda crê nos gnomos. Certamente está em Júpiter, pois era um grande Espírito, mesmo aqui na Terra; um verdadeiro profeta a ensinar, e meu melhor amigo. Estará ele contente com o artigo necrológico que lhe escrevi?    

Nota: Kardec faz a evocação e a apresenta na edição de novembro de 1858




Um pouquinho sobre a psicografia

O estudo da Revista Espírita de Julho de 1858 nos abriu espaço para um aparte importante, a respeito da Psicografia. Falamos sobre os tópicos seguintes em nosso encontro, conforme poderão ver abaixo.

De O Livro dos Médiuns    

178. De todos os meios de comunicação, a escrita manual é o mais simples, mais cômodo e, sobretudo, mais completo. Para ele devem tender todos os esforços, porquanto permite se estabeleçam, com os Espíritos, relações tão continuadas e regulares, como as que existem entre nós. Com tanto mais afinco deve ser empregado, quanto é por ele que os Espíritos revelam melhor sua natureza e o grau do seu aperfeiçoamento, ou da sua inferioridade. Pela facilidade que encontram em exprimir-se por esse meio, eles nos revelam seus mais íntimos pensamentos e nos facultam julgá-los e apreciar-lhes o valor. Para o médium, a faculdade de escrever é, além disso, a mais suscetível de desenvolver-se pelo exercício.

Médiuns Mecânicos

São aqueles cujo movimento do lápis, da caneta ou mesmo das mãos sobre um teclado se dão de forma independente à sua vontade. O movimento é ininterrupto e o médium não tem a menor consciência do que escreve.    

179. […] Quando se dá, no caso, a inconsciência absoluta, têm-se os médiuns chamados passivos ou mecânicos. É preciosa esta faculdade, por não permitir dúvida alguma sobre a independência do pensamento daquele que escreve.

Médiuns Intuitivos    

São aqueles que escrevem sob a influência do Espírito, tendo consciência do que escrevem.    

180. […] é possível reconhecer-se o pensamento sugerido, por não ser nunca preconcebido; nasce à medida que a escrita vai sendo traçada e, amiúde, é contrário à ideia que antecipadamente se formara. Pode mesmo estar fora dos limites dos conhecimentos e capacidades do médium.

Médiuns Semimecânicos

181. No médium puramente mecânico, o movimento da mão independe da vontade; no médium intuitivo, o movimento é voluntário e facultativo. O médium semimecânico participa de ambos esses gêneros. Sente que à sua mão uma impulsão é dada, mau grado seu, mas, ao mesmo tempo, tem consciência do que escreve, à medida que as palavras se formam. No primeiro o pensamento vem depois do ato da escrita; no segundo, precede-o; no terceiro, acompanha-o. Estes últimos médiuns são os mais numerosos.

Médiuns Inspirados    

São aqueles que escrevam conscientemente, mas cuja origem do conteúdo seja do contato com outros Espíritos. São como intuitivos, com a diferença que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível. Nesse caso, é muito mais difícil distinguir o pensamento próprio do que aquele que lhe é sugerido.    

182. […] Pode dizer-se que todos são médiuns, porquanto não há quem não tenha seus Espíritos protetores e familiares, a se esforçarem por sugerir aos protegidos salutares ideias.

Se todos estivessem bem compenetrados desta verdade, ninguém deixaria de recorrer com frequência à inspiração do seu anjo de guarda, nos momentos em que se não sabe o que dizer, ou fazer. Que cada um, pois, o invoque com fervor e confiança, em caso de necessidade, e muito frequentemente se admirará das ideias que lhe surgem como por encanto, quer se trate de uma resolução a tomar, quer de alguma coisa a compor. Se nenhuma ideia surge, é que é preciso esperar.

Médiuns de Pressentimentos

184. O pressentimento é uma intuição vaga das coisas futuras. Algumas pessoas têm essa faculdade mais ou menos desenvolvida. Pode ser devida a uma espécie de dupla vista, que lhes permite entrever as consequências das coisas atuais e a filiação dos acontecimentos. Mas, muitas vezes, também é resultado de comunicações ocultas, e sobretudo neste caso é que se pode dar aos que dela são dotados o nome de médiuns de pressentimentos, que constituem uma variedade dos médiuns inspirados.




Há perigo na evocação de Espíritos inferiores?

278. Uma questão importante se apresenta aqui, a de saber se há ou não inconveniente em evocar maus Espíritos.  Isso depende do fim que se tenha em vista e do ascendente que se possa exercer sobre eles. O inconveniente é nulo, quando são chamados com um fim sério, qual o de os instruir e melhorar; é, ao contrário, muito grande, quando chamados por mera curiosidade ou por divertimento, ou, ainda, quando quem os chama se põe na dependência deles, pedindo-lhes um serviço qualquer. Os bons Espíritos, nesse caso, podem muito bem dar-lhes o poder de fazerem o que se lhes pede, o que não exclui seja severamente punido mais tarde o temerário que ousou solicitar-lhe o auxílio e supô-los mais poderosos do que Deus. Será em vão que prometa a si mesmo, quem assim proceda, fazer dali em diante bom uso do auxílio pedido e despedir o servidor, uma vez prestado o serviço. Esse mesmo serviço que se solicitou, por mínimo que seja, constitui um verdadeiro pacto firmado com o mau Espírito e este não larga facilmente a sua presa. (Veja-se o n.º 212.)  

279. Ninguém exerce ascendentes sobre os Espíritos inferiores, senão pela superioridade moral. Os Espíritos perversos sentem que os homens de bem os dominam. Contra quem só lhes oponha a energia da vontade, espécie de força bruta, eles lutam e muitas vezes são os mais fortes. A alguém que procurava domar um Espírito rebelde, unicamente pela ação da sua vontade, respondeu àquele: Deixa-me em paz, com teus ares de matamouros, que não vales mais do que eu; dir-se-ia um ladrão a pregar moral a outro ladrão.  

282. 11.ª. Haverá inconveniente em se evocarem Espíritos inferiores? E será de temer que, chamando-os, o evocador lhes fique sob o domínio? “Eles não dominam senão os que se deixam dominar. Aquele que é assistido por bons Espíritos nada tem que temer. Impõe-se aos Espíritos inferiores e não estes a ele. Isolados, os médiuns, sobretudo os que começam, devem abster-se de tais evocações. (N.º 278.)




O Espiritismo e o esquecimento do passado: como nos modificar, sem conhecer o que fizemos e o que somos?

Nós temos o esquecimento geral da vida passada por um motivo muito importante: a fim de que o passado, conhecido objetivamente, em seus pormenores, não atrapalhe nossa caminhada. Veja: é conveniente, para Espíritos de nossa evolução, por exemplo, não lembrar que fizemos mal ao familiar que hoje nos ajuda, o que poderia nos entravar o aprendizado.

Contudo, esse esquecimento não total. Não somos uma página em branco, em cada encarnação. Temos, em cada uma delas, uma personalidade mais ou menos nova, diferente, moldada segundo a criação da família e os costumes da sociedade na qual estamos inseridos, mas o nosso verdadeiro “eu” está demonstra suas virtudes e suas imperfeições desde os primeiros passos da infância.

No cerne do nosso Espírito, por assim dizer, encontra-se o que realmente somos – aliás, é isso o que atrai ou repele os Espíritos bons ou maus, e é por isso que uma modificação apenas superficial (e muito menos os rituais) não os afasta ou atrai. Durante a vida, muitas vezes vestimos uma máscara de orgulho e vaidade, que visa esconder, de nós mesmos e dos outros, nossa verdadeira face – sobretudo no que tange às imperfeições morais. Nos ditraímos com as coisas mundanas, sem muita coragem de enfrentar nosso eu interior. Contudo, é justamente a isso que o Espiritismo vem chamar a atenção, repetindo e ampliando os ensinamentos de Jesus: precisamos deixar de lado essa máscara, aprendendo a olhar para dentro de nós com o olhar duro e julgador que guardamos para olhar os defeitos dos outros.

Quando agimos assim, descombrimos, quase sempre – o que pode ser muito auxiliado por um psicólogo – um conjunto de imperfeições, muitas delas ligadas ao cultivo das paixões. Quem toma esse passo, longe de se sentir culpado, deve se sentir feliz pela bravura em se analisar friamente. Com isso, devemos passar a nos conduzir sem esmorecer, mas com calma, passo a passo, no caminho do afastamento dessas imperfeições, desenvolvendo melhores virtudes.

Isso, em si, que até me arrepia em pensar, constitui toda uma filosofia capaz de modificar completamente os rumos de um Espírito que se sinta cansado de sofrer por suas imperfeições, e, em si, isso sim representa a essência do Espiritismo, e não quaisquer conceitos de pecado e de castigo, já que culpa e punição vivem apenas em nossas mentes.

Deixamos a indicação do seguinte vídeo, do grupo de estudos Espiritismo para Todos, com uma profunda digressão a esse respeito:




O Espiritismo tem preconceito contra a umbanda?

Talvez muitos espíritas tenham, da mesma forma que muitos umbandistas tem, em relação ao Espiritismo, e da mesma forma que praticamente todo ser humano pode ter preconceitos. Ficar apontando e definindo “lados” é, definitivamente, algo que não ajuda muito no progresso humano. De qualquer forma, aproveito o ensejo para lembrar o seguinte:

Em primeiro lugar, é necessário separar o que Espiritismo do que é o “Movimento Espírita”. O primeiro é uma doutrina sólida e científica, racional, baseada no ensinamento concorde dos Espíritos, dados por toda a parte e por todos os tempos. O segundo, é o conjunto das pessoas que se consideram atraídas pelas ideias dessa Doutrina e que, contudo, nem sempre agem de acordo com seus postulados – infelizmente é o que mais acontece hoje em dia.

O Espiritismo, como Doutrina Científica, não força nada a ninguém: apresenta suas conclusões e deixa a cada um a liberdade de aceitá-las ou não. Contudo, muitas pessoas, ditas espiritualistas, mesmo tendo conhecimento da existência dessa Doutrina, escolhem não se informar a respeito dela, julgando o livro pela capa, isto é, agindo preconceituosamente a seu respeito, afirmando que se trata de mais uma religião, ou que se trata de mais uma opinião, ou que, ainda, O Livro dos Espíritos – obra básica dessa Doutrina – não passa de mais um livro, escrito por Kardec, conforme suas próprias ideias.

Quantas são as pessoas que se metem em dificuldades, no que tange ao contato com os Espíritos, e que, quando convidadas a estudar a Doutrina Espírita (que se chama assim porque pertence aos Espíritos, e não a um só homem ou grupo) preferem continuar em suas velhas concepções, resistindo a buscar novos conhecimentos?

Diz-se que a umbanda nasceu de uma cisão dentro de um centro Espírita, quando os participantes daquele grupo não aceitaram a comunicação de um “preto velho” naquele meio. Ora, se é verdade, também não são menos culpáveis do que os outros indivíduos, que insistem em considerar a base da Ciência Espírita como “letra morta e superada”.

Disso tudo, fica um aprendizado: para entender o Espiritismo, sendo ele uma ciência, nascido, aliás, como um desenvolvimento do Espiritualismo Racional, que também era uma doutrina científica que abarcava o estudo da psicologia, da metafísica e da moral, não prescinde do estudo de suas obras básicas, assim como, para entender a Física não prescinde do estudo de Isaac Newton e de Einstein. Assim como a Física apresenta seus postulados, mas muitas pessoas insistam em ignorá-la para dizer que a força gravitacional não existe, o mesmo é feito a respeito do Espiritismo, que não é uma “religião superior”, onde existem as “únicas verdades”, mas que é, sim, a única Doutrina Científica, até hoje, dedicada a estudar racionalmente as nossas relações com os Espíritos.

Aliás, quem estuda o Espiritismo sabe que ele, frente às outras religiões, vem demonstrar a verdade sobre tudo aquilo que sempre existiu mas, que nem sempre foi bem compreendido, da mesma forma que mostra os erros, frutos da inobservância da razão ou mesmo do desconhecimento de certas informações que, a seu tempo, começaram a ser ensinadas. São os demais indivíduos que, por orgulho ou interesses pessoais, muitas vezes não suportam ver um dogma desmentido, e escolhem atacar de volta à Doutrina Espirita. Reflitamos. Ao invés de escolher lados, entendamos: o Espiritismo, como ciência, pode ser estudado por todos os espiritualistas modernos, assim como o Magnetismo, ciência irmã da primeira. Mas, sem estudar e entender, tudo vai continuar na mesma: espíritas criando falsos conceitos a respeito das comunicações espíritas (espirituais) nas religiões diversas e as religiões diversas deixando de sorver conhecimentos tão libertadores, consoladores e progressistas como os do Espiritismo.




Espiritismo e a eutanásia (sacríficio) de animais terminais

Surgiu esse assunto, sempre tão presente, em um grupo do Facebook: segundo o Espiritismo, há problema em sacrificar um animal em estado terminal, isto é, em submetê-lo à eutanásia?

Adianto que não — e não se trata de opinião minha. Mas, antes de mais nada, é importante lembrar que não devemos fazê-los sofrer desnecessariamente, em nenhum caso — e isso corrobora a visão aqui apresentada.

Aqui, precisamos recuperar alguns postulados da Doutrina Espírita, obtidos, como sempre, através da análise racional e concordante dos ensinamentos dos Espíritos. Em O Livro dos Espíritos, vamos encontrar uma importante elucidação a esse respeito:

O livre-arbítrio e o sofrimento moral nos animais

595. Gozam de livre-arbítrio os animais, para a prática dos seus atos?

“Os animais não são simples máquinas, como supondes. Contudo, a liberdade de ação de que desfrutam é limitada pelas suas necessidades, e não se pode comparar à do homem. Sendo bem inferiores a este, não têm os mesmos deveres que ele. A liberdade, possuem-na restrita aos atos da vida material.”

Animais possuem certa liberdade, é claro, e nós podemos constatar que alguns deles a tem de forma superior a outros, como uma espécie de inteligência mais avançada, que, contudo, ainda está restrita aos atos da vida material. Assim, os animais estão preocupados em sobreviver, e tudo fazem para isso. Por mais difícil que seja de admitir, há mais de relação de dependência, hábito e necessidade do que de amor, neles, em relação a nós, pois o amor é algo que se desenvolve com o avanço do Espírito. Claro: não podemos julgar o ponto no qual essa capacidade espiritual começa a existir, de forma que não podemos julgar absolutamente sobre isso.

O ponto mais importante, aqui, é constatar que os animais não tem livre-arbítrio, isto é, não tem consciência, como nós temos, sobre seus atos. A partir do momento em que o livre-arbítrio se desenvolve, mesmo nos estados mais latentes, o Espírito passa a ter livre-arbítrio, isto é, passa a escolher sobre suas ações e, dessas escolhas, se felicita ou sofre pelos seus resultados. Assim, enfim, constatamos que os animais não podem fazer mal: eles matam uns aos outros, atacam o ser humano, reproduzem-se, mas tudo submetido ao instinto. Não há mal no leão que mata a zebra: há necessidade instintiva de sobreviver. Também não houve mal na orca que matou sua treinadora afogada: há curiosidade, instinto, mas não um ato refletido.

Dissemos que o animal ainda não possui livre-arbítrio. Se ainda não possui, um dia possuirá. E o que é o livre-arbítrio, senão um atributo do Espírito, princípio inteligente da Criação? Então os animais tem alma? Sim:

597. Pois que os animais possuem uma inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio independente da matéria?

“Há, e que sobrevive ao corpo.”

a) – Será esse princípio uma alma semelhante à do homem?

“É também uma alma, se quiserdes, dependendo isto do sentido que se der a esta palavra. É, porém, inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus.”

598. Após a morte, conserva a alma dos animais a sua individualidade e a consciência de si mesma?

“Conserva sua individualidade; quanto à consciência do seu eu, não. A vida inteligente lhe permanece em estado latente.”

Vemos que é um Espírito — ou uma alma, sendo o Espírito encarnado — ainda em estágio evolutivo muito distante daquele do Espírito humano terrestre: como se fosse a mesma distância, segundo os Espíritos, que nos separa de Deus. Sequer tem consciência de si mesmos. É uma distância gigantesca, mas a informação importante é: sim, eles têm Espíritos. Resta então uma questão: os animais sofrem? De que forma?

O sofrimento do animal

Nós, Espíritos em estágio humano, sofremos de duas formas: moralmente, como resultado de nossas escolhas, e materialmente, quando encarnados (o Espírito não sofre materialmente quando desencarnado, de forma que todos os relatos do tipo são resultados de uma exteriorização mental de um sofrimento moral).

A dor moral, como dissemos, nasce da constatação de um erro que cometemos. E não poderia haver erro se não tivéssemos a capacidade de escolha, pois, sem ela, estaríamos apenas respondendo a estímulos externos, através do instinto. Ora, sendo esse exatamente o caso dos animais, é racional supor que eles não possam sofrer dores morais por conta de seus atos — afinal, imagine a dor moral que um leão teria após matar, de quando em quando, um outro animal para comer!

O Espírito no estágio do animal não precisa sequer do tempo na erraticidade que o Espírito humano precisa, onde analisa seu passado, suas escolhas, suas dificuldades, etc.:

600. Sobrevivendo ao corpo em que habitou, a alma do animal vem a achar-se, depois da morte, num estado de erraticidade, como a do homem?

“Fica numa espécie de erraticidade, pois que não mais se acha unida ao corpo, mas não é um Espírito errante. O Espírito errante é um ser que pensa e obra por sua livre vontade. De idêntica faculdade não dispõe o dos animais. A consciência de si mesmo é o que constitui o principal atributo do Espírito. O do animal, depois da morte, é classificado pelos Espíritos a quem incumbe essa tarefa e utilizado quase imediatamente; não lhe é dado tempo de entrar em relação com outras criaturas.”

Vemos, no trecho destacado, uma informação importante, que desmente algumas teorias de “céu de cachorros”, “paraíso dos animais”, etc. O Espírito, nesse estado evolutivo, precisa apenas experienciar reencarnações sucessivas, onde se desenvolvem e, de forma alguma, expia suas faltas – porque não as cometem:

602. Os animais progridem, como o homem, por ato da própria vontade, ou pela força das coisas?

“Pela força das coisas, razão por que não estão sujeitos à expiação.”

Afinal, há problema em submeter um animal à eutanásia?

Racionalmente, após os conhecimentos apresentados, é fácil constatar que não, pois, como o animal ainda não tem sofrimento moral, não necessita passar por sofrimentos materiais a fim de obter um aprendizado qualquer. Isso é justamente o oposto do caso do Espírito em estágio de livre-arbítrio, pois as dores físicas, muitas vezes planejadas por ele próprio antes de encarnar, oferecem preciosos cadinhos de purificação do Espírito, que reflete sobre seus atos, suas escolhas, seus erros e acertos.

Note, porém, que de forma alguma estamos afirmando, com isso, que o Espírito precise sempre passar por uma dor para aprender alguma coisa, como é apregoado pelos defensores da doutrina da “lei de ação e reação”, onde, para esses, o Espírito sempre precisará passar por uma dor de mesmo gênero e de mesma intensidade a fim de entender que a dor que ele tenha feito outro passar, dói. Esquecem-se que o Espírito pode constatar seu erro, sofrer por isso, mas, então, com mais lucidez, planejar uma vida com oportunidades e provas — e, às vezes, expiações — onde possa enfrentar suas imperfeições e buscar se livrar delas através do aprendizado.

Conclusão

Não precisamos fazer o animal passar por dores desnecessárias — dores essas, muitas vezes, frutos dos estilos de vida e de alimentação aos quais os submetemos — pois ele não colhe frutos morais dessa dor, que é apenas física. Já o caso é outro para o Espírito humano, que jamais deve ser submetido à eutanásia, como ensinam os Espírito em O Livro dos Espíritos:

Questão 953- Quando uma pessoa vê diante de si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns instantes os seus sofrimentos, apressando voluntariamente sua morte?

“É sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado às aparências, esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no último momento?”




A cultura organizacional de um centro espírita

por Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 188 – mar/abr 2022, p. 9-11

O presente artigo reforça nossas observações recentes, a respeito do Movimento Espírita, e demonstra que não estamos sozinhos nesse caminho.

Apesar de diferentes portes e complexidades dos serviços oferecidos, todas as instituições efetivamente espíritas possuem, como característica identitária comum, a estruturação teórica de seus princípios e valores no ensino dos Espíritos organizados e apresentados por Allan Kardec. Muito mais do que a denominação formal ostentada em sua fachada e documentos, é a cultura interna pautada pelo conteúdo das obras kardequianas que torna-se o elemento central que faz com que qualquer centro espírita seja, assim, reconhecido como tal.

Historicamente, pode-se apontar a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), fundada em 01/04/1858, como o primeiro centro espírita do mundo e serviu de referência para a constituição de inúmeros grupos voltados para o estudo e prática do Espiritismo.

Ainda que tenha sido o modelo para formação de outros centros, a cultura organizacional da SPEE era única, pois o conjunto de práticas, rotinas, normas, necessidades, preocupações e expectativas de seus membros é algo que não se reproduz. Igualmente, cada instituição espírita, do passado ou do presente, reflete aspectos particulares de seus fundadores, mantenedores e colaboradores que lhe dá uma característica singular e sujeita a modificações com o tempo, mas sempre distinta de outras organizações.

Pode-se, então, afirmar que o centro espírita possui uma identidade comum em Kardec, compartilhada com outras instituições espíritas, e uma microcultura própria, decorrente da atuação direta de seus participantes, que o diferencia em maior ou menor grau dos demais centros.

A pluralidade microcultural é determinada, também, pela maturidade doutrinária dos dirigentes de cada casa.

Um problema crítico de identidade é gerado quando a microcultura da instituição conflita com a identidade comum que a faria ser reconhecida como espírita. Em outras palavras, quando os princípios e valores espíritas passam a ser reinterpretados e ressignificados devido à imaturidade doutrinária e/ou interesses particulares dos dirigentes, afasta-se a casa do direcionamento kardequiano e a aproxima de um contexto espiritualista, mas não espírita.

O dinamismo doutrinário, a necessidade de agregação de novos conhecimentos e a atualização conceitual costumam ser utilizados indevidamente para justificar a subversão ou abandono do ensino dos Espíritos na obra kardequiana. Opiniões isoladas de autores desencarnados passam a ser assumidas como novas verdades que se autolegitimam por terem sido reveladas por supostas comunicações mediúnicas e por médiuns infalíveis. O método do controle universal adotado por Kardec também é inutilizado ou deturpado pelos novidadeiros, desvalorizando-se os cuidados necessários para se aceitar uma informação como válida.

Não por acaso a relação entre poder e cultura nas organizações é amplamente explorada na literatura científica da área de Ciências Sociais Aplicadas. A influência exercida por líderes, principalmente carismáticos, nas instituições pode mudar e consolidar a cultura organizacional no longo prazo e fazer com que as referências doutrinárias espíritas migrem de sua base kardequiana para novos arcabouços teóricos, geralmente sincréticos e místicos.

Foi, justamente, o sincretismo com a Teosofia, Catolicismo e orientalismo, além de pitadas supersticiosas, alguns dos fatores que impactaram negativamente o desenvolvimento do Movimento Espírita Francês a partir da desencarnação de Allan Kardec. O reflexo do desvirtuamento cultural foi a disseminação do roustainguismo, por exemplo, em alguns grupos nascentes, inclusive brasileiros. Uma vez implantada a microcultura sincrética, é visível o seu impacto nocivo na questão identitária espírita.

Equivocadamente, alguns mais afoitos e distantes da análise criteriosa sob métodos sociológicos, confundem as inúmeras microculturas organizacionais com a própria identidade comum espírita, levando-os a supor que existam “vários espiritismos”. O que existe, de fato, é uma esperada heterogeneidade microcultural que não representa, por si mesma, a Doutrina Espírita, a qual é única. Assim, só há um Espiritismo, mas diferentes graus de maturidade doutrinária de seus adeptos.

Quanto mais coerente com o ensino dos Espíritos apresentados por Allan Kardec, mais próximo da identidade espírita encontra-se o profitente. O próprio codificador reconheceu e classificou os diferentes tipos de espíritas, sinalizando que não há uniformidade estrita nem que os pensamentos e atos isolados daquele que se declara adepto caracterizará, necessariamente, a doutrina.

No livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, em seu capítulo XVII, item 4, explicita-se as características do verdadeiro espírita, porém mesmo nesse item a leitura apressada impede a real compreensão de seu significado mais profundo. Destaca-se o seguinte trecho:

“Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da Doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes (grifo meu). Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más.”

               Conforme se depreende, trata-se de interpretação limitada a caracterização do verdadeiro espírita apenas pela transformação moral e pelos esforços para domar as más inclinações, uma vez que essas atitudes, ainda que extremamente positivas e necessárias, podem ser feitas por qualquer ser humano, seja qual for a crença ou orientação filosófica que possua, inclusive ateus. Para ser bom, não precisa ser espírita. Por isso que a máxima é fora da caridade (não do Espiritismo) não há salvação. Existem ateus moralmente mais elevados que muitos religiosos.

Por outro lado, para ser espírita, deve-se compreender e vivenciar os princípios doutrinários e, para isso, deve-se estudar e se instruir sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, segundo o Espiritismo. A Ciência tem, portanto, papel de destaque na produção e avanço no conhecimento sobre a realidade que nos cerca, adentrando, inclusive em propostas espiritualistas, mesmo que desagradando pesquisadores ainda presos no materialismo.

Considerando que não basta ser bom para ser um espírita verdadeiro, uma organização espírita deve, imperiosamente, ser conduzida conforme os princípios e valores doutrinários. Desvios conceituais incorporados na microcultura organizacional sob a alegação de que a única coisa que importa é se esforçar para se transformar moralmente gera espaços para sutis ou claras infiltrações antidoutrinárias.

Em síntese, o movimento espírita, composto por milhares de instituições e profitentes, expressa rica diversidade microcultural e graus de maturidade doutrinária, mas o Espiritismo é único, expressando o ensino dos Espíritos que foram validados pelo método do controle universal e marcha, lado a lado, com os avanços científicos desde que devidamente validados, superando o estágio hipotético. A cultura organizacional do verdadeiro centro espírita tem, portanto, Kardec como lastro, afasta posturas sincréticas, místicas e supersticiosas, e acolhe o convite para o diálogo baseado em fatos e na fé raciocinada para a produção e avanço do conhecimento, os quais não ocorrem por simples opinião mediúnica.




O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos

Neste estudo em grupo, tratamos do artigo em questão de uma forma um tanto diferente, pois notamos que ele nos dava ensejo a um aprofundamento bastante importante a respeito da mediunidade e das diferenças existentes entre como ela era tratada no Espiritismo, como doutrina científica nascida da observação racional dos fatos e das comunicações espíritas (espirituais) e como ela é tratada hoje. Assim, abordamos os seguintes tópicos principais:

  • Qual é a influência do médium na comunicação?
  • Animismo e o medo de ser médium
  • Podemos e devemos julgar as comunicações mediúnicas? De que forma?
  • Mitos: não podemos evocar Espíritos; evocar Espíritos provoca obsessões
  • Lições aprendidas: a distância entre o “movimento espírita” atual e o Espiritismo original; a necessidade da retomada dos estudos

Baseado no artigo “Espíritos impostores — o falso Padre Ambrósio” — Revista Espírita de julho de 1858

Esperamos que, tanto o vídeo de nosso debate, quanto esta leitura, sejam de grande proveito para você!

Os escolhos da mediunidade

Reconhecemos: estudar Kardec por conta própria, nem sempre é fácil. É uma linguagem difícil e, muitas vezes, repleta de referências a neologismos e ao contexto no qual o professor Rivail estava inserido, de forma que se faz muito oportuna tal contextualização¹, em primeiro plano, quanto o emprego de pesquisas na web, durante a leitura.

“Escolho” significa, no sentido figurado, uma dificuldade. E Kardec abre o referido artigo falando sobre tais dificuldades:

Um dos escolhos apresentados pelas comunicações espíritas é o dos Espíritos impostores, que podem induzir em erro quanto a sua identidade e que, ao abrigo de um nome respeitável, tentam passar os mais grosseiros absurdos. Em muitas ocasiões esse perigo nos tem sido explicado. Entretanto, ele nada é para quem perscruta tanto a forma quanto o conteúdo da linguagem dos seres invisíveis com os quais entra em comunicação. […] Nada é mais fácil do que se premunir contra fraudes semelhantes, por menor que seja nossa boa vontade.

Kardec parece tornar bastante simples, banal mesmo, essa tarefa de identificar a comunicação de um Espírito impostor, não? Mas por que, então, hoje em dia, tantos absurdos tem sido aceitos, via comunicações mediúnicas, como se fossem a legítima expressão de um Espírito sério e honesto, conhecedor das verdades absolutas?

Acontece que o “movimento espírita” (eu chamo de movimento a fim de distinguir o Espiritismo daquilo que fazem os seus adeptos, nem sempre bem informados e conhecedores da Doutrina) anda bastante esquecido dos postulados mais básicos da Doutrina dos Espíritos. Ora, logo no início da segunda parte de O Livro dos Espíritos, nos itens 100 a 113, Kardec nos apresenta, didaticamente, uma escala geral, nomeada por ele “Escala Espírita“, onde, agrupando de uma forma mais ou menos geral, o caríssimo professor nos demonstra as características gerais dos Espíritos em suas diferentes escalas evolutivas, agrupando-os em três ordens principais: Espíritos Imperfeitos (terceira ordem), Espíritos Bons (segunda ordem) e Espíritos Puros (primeira ordem).

Constatado é, até mesmo pela observação lógica de nossa condição evolutiva, que nós nos colocamos em contato principalmente os os Espíritos das duas últimas ordens, especialmente com os da terceira, com os quais mais facilmente nos afinizamos mentalmente. Também é fato conhecido que os Espíritos se diferem de nós, encarnados, apenas por não terem a constrição do corpo físico e, pela ausência deste, terem o pensamento mais liberto, em geral, do abafamento do cérebro físico. Portanto, assim como nós, eles não mudam de opinião ou de conhecimentos simplesmente por deixarem a matéria por meio da desencarnação e, assim como nós, podem falar do que sabem, do que acreditam que sabem ou, então, podem procurar enganar, por maldade ostensiva ou por orgulho em querer dizer do que reconhecidamente não sabem.

Nós já reproduzimos a Escala Espírita em um artigo anterior, mas vamos destacar alguns detalhes importantes dessa terceira ordem de Espíritos, que é onde se concentram os problemas nas comunicações mediúnicas.

Como se comunicam os Espíritos da terceira ordem – Espíritos Imperfeitos

Décima Classe – Espíritos Impuros

São inclinados ao mal, com o que se preocupam. Dão conselhos traiçoeiros, desleais, sopram a discórdia e a desconfiança e se mascaram de todas as maneiras para melhor enganar.

Na linguagem, são triviais, grosseiros, apresentam baixeza de inclinações e não conseguem enganar por muito tempo com uma falsa sensatez.

Nona Classe – Espíritos Levianos

São ignorantes, malévolos, inconsequentes e zombeteiros. Metem-se em tudo, respondem a tudo, sem se preocupar com a verdade. Gostam de causar pequenos aborrecimentos e pequenas alegrias; de produzir discórdias; de induzir maliciosamente ao erro por mistificações e por travessuras.

Suas comunicações são quase sempre espirituosas e alegres, mas quase sempre sem profundidade.

Oitava Classe – Espíritos pseudossábios

Dispõem de conhecimentos bastante amplos, porém, creem saber mais do que realmente sabem.

É uma mistura de algumas verdades com os erros mais absurdos, através dos quais penetram a presunção, o orgulho, o ciúme e a obstinação, de que ainda não puderam despir-se.

Ora, temos, aqui, um conhecimento de base já bastante importante a respeito da forma como se expressam esses Espíritos, não? E é claro que, como bons espíritas, não pararemos aqui e buscaremos estudar O Livro dos Espíritos e as demais obras, a fim de adquirir ainda mais conhecimentos que possam auxiliar no nosso contato com os Espíritos. Afinal, não é à toa que Kardec, na introdução de O Livro dos Médiuns, começa assim:

Todos os dias a experiência nos traz a confirmação de que as dificuldades e os desenganos, com que muitos topam na prática do Espiritismo, se originam da ignorância dos princípios desta ciência, e feliz nos sentimos de haver podido comprovar que o nosso trabalho, feito com o objetivo de precaver os adeptos contra os escolhos de um noviciado, produziu frutos e que à leitura desta obra devem muitos o terem logrado evitá-los.

Natural é, entre os que se ocupam com o Espiritismo, o desejo de poderem pôr-se em comunicação com os Espíritos. Esta obra se destina a lhes achanar o caminho, levando-os a tirar proveito dos nossos longos e laboriosos estudos, porquanto muito falsa ideia formaria aquele que pensasse bastar, para se considerar perito nesta matéria, saber colocar os dedos sobre uma mesa, a fim de fazê-la mover-se, ou segurar um lápis, a fim de escrever.

Uma coisa é certa: Kardec não tinha tempo a perder com palavras vazias destinadas a enfeitar um orgulho ou uma vaidade que, conforme ficou muito bem demonstrado, ele não as tinha. Portanto, temos nós é que deixar o orgulho de lado e nos dedicar a estudar, ao invés de ficarmos achando que sabemos de tudo simplesmente por termos qualquer contato prático com os Espíritos! Dessa forma, fica muito mais fácil julgar uma comunicação espiritual ou tentar penetrar a real face do Espírito que se comunica – e Kardec, nesse mesmo artigo (do falso Pe. Ambrósio) vai dar uma lição simples e clara de como fazê-lo. Trataremos disso mais à frente.

Como lidar com Espíritos mistificadores?

Mistificar significa enganar, ludibriar. E vamos destacar duas perguntas feitas por Kardec, diretamente ao Espírito mistificador (o do falso Pe. Ambrósio, que ele havia evocado) que trazem questões importantes, tratadas a seguir.

“14. ─ Que pensas do que disseste em seu nome?

Penso como pensavam os que me escutavam.”

A questão aqui é: quem os escutava? O médium estaria o escutando, necessariamente? Em outras palavras: seria culpa daquele médium aquela falsa comunicação?

“16. ─ Por que não sustentas a impostura em nossa presença?

Porque minha linguagem é uma pedra de toque [material utilizado para avaliar a pureza de um material], com a qual não vos podeis enganar.”

Por que naquele meio (o de Kardec) aquele Espírito afirma que não conseguiria enganar?

Mas, para responder a essas perguntas, vamos avançar em nossas reflexões, o que deixará muito claras as respostas.

Animismo

Pensamos ser importante levantar, aqui, a questão do animismo, já que é algo que persegue e tira o sono de muitos médiuns e dirigentes de grupos espíritas. O animismo é o conceito no qual o médium apresenta conteúdos próprios, de seus próprios pensamentos, ao invés de apresentar puramente o pensamento do Espírito que se comunica.

É algo que, realmente, acontece muito, sendo motivo de muitos medos, como dissemos, pois criou-se a hipótese de que o médium precisa ser uma ferramenta totalmente passiva para a comunicação espiritual. Isso não deixa de ser uma verdade, quando falamos na comunicação de um Espírito através de um médium. Contudo, não deve ser transformada em ferramenta de perseguição ou autoperseguição. A importância da questão, aqui, está ligada à honestidade do médium:

  • Quando o médium age de forma totalmente honesta, buscando ser uma boa ferramenta para os Espíritos, despido de vaidade e de orgulho, sua mediunidade poderá ser desenvolvida mediante à prática e favorecida pelo estudo. Assim, em mais ou menos tempo, as comunicações dadas através dele serão cada vez mais “limpas”, expressando o pensamento original do Espírito. Não deve, portanto, o animismo, nesse caso, ser algo a se temer, pois está relacionado ao grau do desenvolvimento da mediunidade, considerando que, nos primeiros estágios, o médium comumente completará pensamentos ou os traduzirá segundo ideias próprias, que não necessariamente são contrárias às do Espírito.

  • Quando o médium age conscientemente (sob o olhar da lucidez material) expressando ideias que não são de um Espírito, isto é, quando ele não está agindo como médium, mas apenas por si próprio, em estado de vigília, mas tenta enganar, como se fosse uma comunicação mediúnica, expressando os mais terríveis disparates, este sim é um caso grave, um problema diretamente ligado à moral do médium, que precisa ser tratado com fraternidade mas com firmeza, a fim de que esse médium não ponha a harmonia do grupo em cheque. Quando age de forma isolada, nesse caso, é preciso que apenas não seja levado de forma séria, como, infelizmente, muitos espíritas tem feito.

O médium honesto deve aprender que, sempre que estiver desconcentrado ou que não se comunique nenhum Espírito, deve informar ao grupo, sem nenhum medo de ser atingido em um amor-próprio que, nesse caso em especial, jamais deveria existir. Infelizmente, os centros espíritas atuais, com as reuniões mediúnicas abertas ao público, fizeram cair sobre os ombros dos médiuns uma responsabilidade deletéria de ter que estar sempre pronto e à disposição para os fenômenos mediúnicos, o que não é lógico, já que, sendo a mediunidade uma capacidade radicada no organismo, como uma sexto sentido, também pode apresentar entraves diversos, assim como um resfriado pode tirar nossa capacidade olfativa.

Mas há um terceiro aspecto a se considerar: às vezes o animismo pode ser bem-vindo, conforme fica expresso na seguinte questão de O.L.M. (O Livro dos Médiuns):

223 – 2.ª. As comunicações escritas ou verbais também podem emanar do próprio Espírito encarnado no médium?

“A alma do médium pode comunicar-se, como a de qualquer outro. Se goza de certo grau de liberdade, recobra suas qualidades de Espírito.[…] Porque, ficai sabendo, entre os Espíritos que evocais, alguns há que estão encarnados na Terra. Eles, então, vos falam como Espíritos e não como homens. Por que não se havia de dar o mesmo com o médium?”

De tal forma, se o Espírito do próprio médium pode comunicar-se – o que acontece mais facilmente nos estados de sonambulismo e de êxtase, conforme a resposta à pergunta 223-3a deixa claro – é claro que poderá também trazer conhecimentos válidos e importantes, da mesma forma que faria um Espírito liberto da matéria.

Creio que o assunto do animismo está relativamente bem entendido pelo que foi exposto. Mas e a respeito do medo que médium pode ter de transmitir uma comunicação de baixo teor, isto é, uma comunicação frívola, de linguajar indecente ou enganosa? Cremos que a abordagem seguinte responderá bem a esse respeito.

Influência moral do médium

Levantada a questão do medo que o médium pode ter de dar lugar a uma comunicação de teor menos elevado, precisamos refletir a respeito do papel do médium nesse sentido. Kardec aborda, claro, esse questionamento em OLM, buscando identificar a ligação da moral do médium com a capacidade mediúnica. Vejamos:

226. 1.ª. O desenvolvimento da mediunidade guarda relação com o desenvolvimento moral dos médiuns?

“Não; a faculdade propriamente dita se radica no organismo; independe do moral. O mesmo não se dá, porém, com o seu uso, que pode ser bom, ou mau, conforme as qualidades do médium.”

5.ª. Nas lições ditadas, de modo geral, ao médium, sem aplicação pessoal, não figura ele como instrumento passivo, para instrução de outrem?
“Muitas vezes, os avisos e conselhos não lhe são dirigidos pessoalmente, mas a outros a quem não nos podemos dirigir, senão por intermédio dele, que, entretanto, deve tomar a parte que lhe caiba em tais avisos e conselhos, se não o cega o amor-próprio.

A questão primeira reforça o que dissemos a respeito de a faculdade mediúnica estar radicada no organismo, o que significa que tanto o bom quanto o mau podem ser médiuns de maior ou menor capacidade. Contudo – e aí está o principal objetivo da faculdade mediúnica – o bom ou o mau uso que fazemos dela é que dará os rumos de nossa moral e da vontade de utiliza-la para o progresso próprio, a serviço da humanidade, ou não.

A questão quinta diz assim: o médium, por mais que seja intrumento passivo, precisa estar sempre atento para as comunicações que intermedia, pois, por mais que sejam direcionadas a outrem, podem ter aplicação pessoal – o que reforça o pensamento anterior.

226. 6.ª. Visto que as qualidades morais do médium afastam os Espíritos imperfeitos, como é que um médium dotado de boas qualidades transmite respostas falsas, ou grosseiras?

“Conheces, porventura, todos os escaninhos da alma humana? Demais, pode a criatura ser leviana e frívola, sem que seja viciosa. Também isso se dá, porque, às vezes, ele necessita de uma lição, a fim de manter-se em guarda.”

A questão sexta aponta que, muitas vezes, uma comunicação de baixo teor pode se dar pela simpatia dos médiuns com Espíritos que pensem como ele ou que tenham as mesmas inclinações, mesmo que isso não seja visível no médium, no dia-a-dia. Também podem se dar porque ele, às vezes, precisa de uma lição para se manter em guarda, ou então, supomos, para que o grupo de estudos se mantenha em guarda, pois supomos que um bom médium ainda assim possa intermediar uma comunicação desse teor a fim de colocar à prova a atenção daquele grupo.

Tudo isso, porém, é muito válido se o grupo ou o indivíduo estão atentos e se tratam com seriedade e honestidade das comunicações. Caso contrário, tais comunicações, que acontecerão com mais frequência, levarão à queda de um ou de outro.

226. 8.ª. Será absolutamente impossível se obtenham boas comunicações por um médium imperfeito?

“Um médium imperfeito pode algumas vezes obter boas coisas, porque, se dispõe de uma bela faculdade, não é raro que os bons Espíritos se sirvam dele, à falta de outro, em circunstâncias especiais; porém, isso só acontece momentaneamente, porquanto, desde que os Espíritos encontrem um que mais lhes convenha, dão preferência a este.”

Os Espíritos se comunicam no meio simpático a eles, de preferência.

Nota. Deve-se observar que, quando os bons Espíritos veem que um médium deixa de ser bem assistido e se torna, pelas suas imperfeições, presa dos Espíritos enganadores, quase sempre fazem surgir circunstâncias que lhes desvendam os defeitos e o afastam das pessoas sérias e bem-intencionadas, cuja boa-fé poderia ser laqueada. Neste caso, quaisquer que sejam as faculdades que possua, seu afastamento não é de causar saudades.

Um médium de moral complicada mas de boas capacidades mediúnicas pode ser utlizado por bons Espíritos em situações específicas, como quando não há outro ou quando os Espíritos julgam que produzirão um bem ou que poderão evitar um mal ao fazê-lo. Fora disso, se afastam.

A nota de Kardec diz tudo: se um médium, por suas inclinações, deixa de ser bem assistido (por bons Espíritos) e se torna presa de Espíritos inferiores, é, pelos próprios bons Espíritos, afastado das pessoas sérias e bem intencionadas.

Conclusões sobre a influência moral do médium

  • Um médium de boa moral pode ser alvo de um Espírito mistificador. Isso pode se dar como um alerta, como no caso que Kardec vai abordar.
  • Um médium de moral “questionável” pode ser utilizado, se tiver uma mediunidade poderosa, por um Espírito elevado. Contudo, muito mais frequentemente será alvo de Espíritos inferiores, que acabarão por fazê-lo tombar, sobretudo quando utiliza da própria mediunidade para fins “questionáveis”.

O Falso Padre Ambrósio

Kardec, com a finalidade de estudar o problema, aborda o caso ocorrido na Spiritualiste de la Nouvelle-Orléans (clique aqui para baixar o original, em Francês), onde dois Espíritos engandores haviam se fazido passar pelo Padre Ambrósio e por Clemente XIV, tecendo um diálogo por demais frívolo e vazio.

Kardec faz, então, a evocação dos três Espíritos: O verdadeiro Padre Ambrósio, o falso Pe. Ambrósio e o falso Clemente XIV, mas, antes, declara:

Apressemo-nos, entretanto, em declarar que esse círculo não recebe apenas comunicações de tal ordem; há outras de caráter muito diverso, nas quais encontramos toda a sublimidade do pensamento e da expressão dos Espíritos superiores.

Como é possível verificar na revista original e também na tradução livre feita pela nossa colaboradora, Ariane, na segunda parte (terceira página do documento), as comunicações do verdadeiro Pe. Ambrósio são de cunho bastante mais elevado e profundo.

A conversa de Kardec com os Espíritos e nossas reflexões

Ao Espírito do verdadeiro Pe. Ambrósio:

5. ─ Como pudestes permitir coisas semelhantes em vosso nome? Por que não viestes desmascarar os impostores?

─ Porque nem sempre posso impedir que homens e Espíritos se divirtam.

6. ─ Compreendemo-lo quanto aos Espíritos. Mas, quanto às pessoas que recolheram as palavras, são gente séria; não buscavam divertimentos.

─ Uma razão a mais. Eles deviam pensar logo que tais palavras não poderiam deixar de ser a linguagem de Espíritos zombeteiros.

Nem sempre os bons Espíritos podem impedir tais situações, pois, acima de tudo, respeitam o livre-arbítrio dos demais. Além disso, podem permitir tais situações a fim de que sirva de alerta para o grupo ou indivíduo.

7. ─ Por que os Espíritos não ensinam em Nova Orleans, princípios perfeitamente idênticos aos que aqui ensinam?

─ Em breve lhes servirá a doutrina que vos é ditada. Haverá apenas uma.

8. ─ Desde que essa doutrina deverá ser ali ensinada mais tarde, parece-nos que se o fosse imediatamente aceleraria o progresso e evitaria que alguns tivessem dúvidas prejudiciais.

─ Os desígnios de Deus são sempre impenetráveis. Não há outras coisas que, à vista dos meios que ele emprega para atingir seus objetivos, parecem-vos incompreensíveis? É preciso que o homem se habitue a distinguir o verdadeiro do falso. Nem todos poderiam receber a luz de um jacto sem serem ofuscados.

O Espírito do verdadeiro Pe. Ambrósio deixa claro: a Doutrina Espírita encontrou, na França e no contexto Kardec, a base necessária para se fazer luzir com toda a força, sem ofuscar, já que as ciências estavam muito bem preparadas para receber seus ensinamentos, tratando-os racionalmente e com método científico.

Uma grande lição de Kardec

Falávamos, antes, sobre a necessidade de buscar distinguir as comunicações dos Espíritos, identificando se são honestas ou produtos de enganações e se são de Espíritos mais ou menos sábios (lembrando que uma comunicação pode ser séria e honesta, mas, ainda assim, de pouca ou nenhuma sabedoria). Vejamos, então, as seguintes perguntas e respostas trocadas entre Kardec e o verdadeiro Pe. Ambrósio:

 9. ─ Teríeis a bondade de nos dar vossa opinião pessoal relativamente à reencarnação?  

Os Espíritos são criados ignorantes e imperfeitos. Uma única encarnação não bastaria para que tudo aprendessem. É necessário que reencarnem, a fim de gozarem a felicidade que Deus lhes reserva.  

10. Dá-se a reencarnação na Terra ou somente em outros globos?  

A reencarnação se dá conforme o progresso do Espírito, em mundos mais perfeitos ou menos perfeitos.  

11. Isto não esclarece se pode ocorrer na Terra.  

Sim, pode ocorrer na Terra, e se o Espírito a pede como missão, ser-lhe-á mais meritório do que se a pedisse para avançar mais rapi­damente em mundos mais perfeitos.

Ora, Kardec estava falando sobre um assunto completamente diferente. De repente, começa a perguntar sobre reencarnação? Por que?

Simples: porque ele estava buscando sondar os conhecimentos daquele Espírito, a fim de saber se estava realmente falando com um Espírito sábio ou se falava com um Espírito enganador. Brilhante, não? É assim que deveríamos proceder, ainda hoje e sempre, mas, para isso, é preciso que estejamos atentos, que tenhamos conhecimentos e que saiamos da condição de simples espectadores passivos das comunicações espirituais.

Kardec continua, perguntando, agora, ao falso Pe. Ambrósio:

15. ─ Por que te serviste de um nome respeitável para dizer semelhantes tolices?

Aos nossos olhos os nomes nada valem. As obras são tudo. Como pelo que eu dizia, podiam ver o que eu era realmente, não liguei importância à substituição do nome.

Veja só: o Espírito enganador sabe que os “ouvintes” (sabemos que era através da psicografia a comunicação) poderiam julgar quem ele realmente era, através do que expressava. Portanto, não ligou qualquer importância por utilizar o nome do Pe. Ambrósio.

Lições aprendidas

Vivemos um Espiritismo muito distanciado do Espiritismo “de Kardec” (entre aspas, pois sabemos que o Espiritismo não pertence a ele nem saiu de sua cabeça). E isso não é bom, porque o Espiritismo “de Kardec” é aquela doutrina científica, nascida com base na observação racional dos fenômenos espíritas e na concordância universal do ensinamento dos Espíritos.

Hoje, no meio Espírita, por um lado se persegue o médium pelo “animismo”; por outro, tratam-se muitos médiuns como oráculos, como se suas opiniões — porque qualquer pensamento individual, frente à Doutrina, que não tenha passado pelo crivo da razão e da concordância universal, só pode ser tomado como opinião — de si mesmos ou dos Espíritos que se comunicam, pudessem ser tomadas como a suma expressão da verdade e da sabedoria. Acabamos de ver o quão falsa e perigosa é essa premissa.

Não devemos evocar os Espíritos?

Além disso, criaram-se vários mitos, como o que diz que não devemos evocar os Espíritos (o que só é válido em caso de falta de bons propósitos, o que constituiria, nas palavras de Kardec, uma verdadeira profanação) e como o que diz que as evocações podem resultar em obsessões espirituais. Ora, os Espíritos estão ao nosso redor o tempo todo, e se aproximam de nós segundo suas afinidades com o que somos e pensamos, nas profundidades de nossa alma. Para nos obsediar, basta que queiram se utilizar de nossa ausência de vontade e da nossa permissão e, para isso, não necessitam se comunicar conosco por via mediúnica.

Compete destacar que, se um médium ou grupo mediúnico se torna alvo de obsessão espiritual, é porque ali há um problema moral, ligado às imperfeições de cada um, sobre as quais precisam vigiar. Kardec e inúmeros outros pesquisadores se serviam de médiuns educados e equilibrados para evocar todo tipo de Espírito, sem que nunca sofressem de obsessões por fazê-lo. Apenas para reforçar: essas evocações tinham um propósito sério e eram feitas por pessoas sérias. Fossem feitas por mera curiosidade vazia ou diversão, estariam relacionadas a um problema moral e, então, temos aí o problema destacado.

Essa questão, da possibilidade e da validade ou não de se evocar os Espíritos, já foi muito bem abordada por Kardec em seu artigo “O Espiritismo sem os Espíritos”, na RE de Janeiro de 1866, sobre o qual tecemos algumas considerações importantes em artigo homônimo (clique aqui para acessá-lo).

Também, na Revista de 1858, no artigo “Obsedados e Subjugados” Kardec aborda a questão dos perigos do Espiritismo de forma mais detalhada. Sugerimos a leitura do artigo surgido de nossos estudos.

O Espiritismo precisa de defesa

Muitos afirmam que o Espiritismo não precisa de defesa e, muito mais, que ele precisa de atualização, pois estaria defasado. Começo dizendo que o Espiritismo precisa de defesa SIM. Afirmações contrárias a isso parecem sair de Espíritos contrários à propagação dessa Doutrina, Espíritos esses que, aliás, jamais leram Kardec, que saia em defesa do Espiritismo sempre que oportuno. Não se trata de uma defesa que ataca as religiões ou as crenças, mas uma defesa que aponte as imprecisões e os erros, frente ao Espiritismo, nas afirmações e nas práticas ditas espíritas.

Há muito eu ouço, no meio espírita, em diversas partes: os tempos são chegados. Por muito tempo pensei que se tratava apenas de um aviso a respeito das dificuldades que atravessamos. Contudo, hoje reflito: analisando friamente, vivemos realmente algo muito diferente do que já vivemos em outras épocas da humanidade? Ou será que os Espíritos estavam informando de que são chegados os tempos de restabelecer o que foi corrompido?

Uma coisa é fato: é tempo de começarmos a reorganizar pensamentos e retomar estudos esquecidos ou perdidos durante muito tempo. Alguns pesquisadores tem trazido informações muito importantes, com base em documentos e obras originais, até então desconhecidas, nos permitindo conhecer não apenas o Espiritismo em sua essência, mas também as ciências que lhe deram lugar ou que, junto a ele, formam um conjunto indissociável.

Paulo Henrique de Figueiredo, na obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, nos traz informações a respeito do Espiritualismo Racional. Este formava as Ciências Morais da época e que deram base ao Espiritismo, sendo este, segundo pensamento do próprio professor Rivail, um desenvolvimento do primeiro; na obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo, traz informações importantíssimas a respeito do Magnetismo, ciência essa tantas vezes citadas não só por Kardec, mas pelos próprios Espíritos. Por ser o magnetismo uma Ciência muito bem estabelecida em seu tempo, jamais teve explicações aprofundadas por Kardec, que não poderia imaginar que ela seria extinta nas décadas seguintes; e Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, nos dá informações relativas não apenas a uma suposta adulteração de A Gênese, assunto esse ainda cheio de discussões controversas, atualmente, mas também dá informações importantíssimas a respeito do completo desvio que a Sociedade Espírita Parisiense, depois transformada em Sociedade Anônima e conduzida por Pierre Gaetan Leymarie, sofreu nas mãos deste senhor.

Com base nesses estudos e nos estudos de Kardec, os Espíritas honestamente interessados em ver o retorno de um trabalho sério de pesquisa, junto aos Espíritos, nos moldes de Kardec, precisam fazer a sua parte em defender a Doutrina, divulgando sem acusar e, sobretudo, instigando os grupos mediúnicos a voltar a registrar as comunicações com os Espíritos, aprofundando-se nelas e saindo da mera condição de espectadores pacientes, vivendo sob a mal compreendida frase, que se tornou lema, “o telefone toca de lá pra cá”, para voltar a realizar evocações sérias e que produzam material importante que, um dia, poderá ser analisado de forma independente, novamente (leia este sucinto artigo a respeito dessa reflexão).

Conclusão

Infelizmente, o movimento espírita está bastante distanciado de Kardec e do Espiritismo em sua real face. Passou-se a aceitar os mais diversos despautérios, alegadamente transmitidos por fontes mediúnicas, algumas bastante conhecidas, o que tem causado muito dano não só ao movimento, em si, que está a cada dia mais esvaziado, mas também à imagem do Espiritismo ante à sociedade, que aprendeu, em boa parte, a ver o Espiritismo como aquela opinião que vêm à tona sempre que acontece um desastre qualquer para dizer que, ali, foram vitimados pessoas que estavam resgatando um débito coletivo, sendo, por isso, culpados e merecedores daquele acontecimento. E esse tipo de pensamento é largamente reproduzido acerca das tragédias individuais ou coletivas, causando aversão e distanciamento.

Não bastasse isso, o Espiritismo, desde a morte de Kardec ( em 1869), passou a ser inundado por ideias roustainguistas (de Jean-Baptiste Roustaing), “doutrina” essa que se instalou no meio espírita brasileiro desde antes do início do século XX, inclusive por grande simpatia de Bezerra de Menezes às suas ideias. Embora a FEB, autointitulada “cúpula do Espiritismo no Brasil”, só tenha adotado a obrigação do estudo das obras de Roustaing a partir de 1917 (leia mais aqui), a influência roustainguista (ou rustenistas) já era forte há bastante tempo nesse meio.

Depois, vieram as influências ramatissistas, seguindo o mesmo padrão: ideias de um Espírito claramente pseudossábio (Ramatis), que acredita saber mais do que sabe e que quer se colocar com caraterísticas messiânicas, reescrevendo a verdade e colocando Kardec no lixo, contrariando a Doutrina Espírita e a própria Ciência em inúmeros pontos e, para finalizar, sem citar outros exemplos vários, veio o divinismo, também com o mesmo teor messiânico, dessa vez através de um indivíduo que se autoproclama a reencarnação de Kardec e que também produz os mais diversos tipos de ideias contrárias àquilo que já estava estabelecido pela concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos e pela razão.

Enfim: o Movimento Espírita está esquecido de Kardec, a ponto de quase não haver Espiritismo em muitos pontos, e sim um espiritualismo religioso (no sentido da religião dogmática e cheia de rituais, hierarquias e sacerdotes). Precisamos, repito, fazer a nossa parte, ativamente, mas sem contendas, isto é, buscando os grupos e os indivíduos honestamente interessados nessa tarefa, de modo a auxiliar no trabalho de restabelecimento, pois,

o que é de base, não se supera!