Em defesa de Allan Kardec: sobre as adulterações

Estou me afastando totalmente da discussão a respeito de provas e evidências das adulterações em suas obras. É minha opinião de que se tornaram uma enorme perda de tempo. Explico:

De início, ao meu ver, provas e evidências da adulteração foram muito contundentes((Fatos detalhadamente apresentados em “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Nem céu, nem inferno”, de Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio.)).

Depois, surgiram evidências que poderiam indicar que não ocorreram adulterações e que tudo foi fruto do trabalho do próprio Kardec, segundo a interpretação de alguns, e isso levado por indícios e evidências de que ele, Kardec, tinha a clara intenção de publicar novas edições, com alterações, de O Céu e o Inferno e de A Gênese. Eu destaco que, a meu ver, até o momento, todas as evidências apontam que Kardec, ao menos em A Gênese, teria iniciado um trabalho nesse sentido, trabalho esse que nunca foi concluído e que deu espaço, justamente, a quem quer que teria a intenção de causar estragos da única forma possível em uma Doutrina inatacável: adulterando-se seus postulados, em sua origem.

Há quem discorde, claro. Mas tem um grande porém, nesse assunto, que não consigo ignorar: a questão justamente ligada à ciência espírita e a Allan Kardec como o probo, perspicaz, paciente, cuidadoso e honesto cientista que foi. De duas, uma: ou ele escreveu coisas muito importantes e sérias sob uma ansiedade que ele nunca teve, tendo depois retrocedido em suas opiniões — o que demonstraria uma grave falha em seu método e representaria um grande perigo para toda a Doutrina Espírita — ou ele foi muito cuidadoso, até o fim, e só concluiu o que deveria ser concluído, após anos de pesquisa e sob a orientação dos Espíritos superiores, como ele sempre buscou fazer.

Ora, ele mesmo disse, anos antes da publicação dessas obras, que certos assuntos doutrinários precisavam ainda aguardar alguns anos e que ele não publicaria nada muito cedo, sem que o desenvolvimento da Doutrina desse lugar a isso. O Céu e o Inferno e A Gênese foram, justamente, essa conclusão. Não vejo como, portanto, principalmente na primeira obra, fazer mudanças que, em certos pontos, alteram completamente o entendimento da ideia e que, em A Gênese, fazem o conceito ou postulado doutrinário ficarem incompletos ou mal entendidos. Mas não é só: Kardec foi muito austero nessas duas obras, justamente no que tange aos pontos mais sensíveis, e que davam motivo a temer nos adversários do Espiritismo, e foi justamente nesses pontos onde houveram as “alterações”.

Vamos a alguns exemplos:

Em A Gênese, capítulo III, item 19, a partir da 5.ª edição, o texto encontra-se assim:

“O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.

Contudo, na 4.ª edição, hoje recuperada e traduzia para o português pela editora FEAL, existe o seguinte complemento:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Ora, parece crível que Kardec tirasse essa conclusão tão importante, profunda e libertadora desse postulado?

Um pouco mais adiante, no capítulo XVIII, “Os tempos são chegados”, o seguinte trecho foi suprimido (removido) a partir da 5.ª edição da obra. Leia com atenção:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal — ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas e, por isso, dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL

Se a supressão desse trecho não parece algo realizado justamente por um adversário da Doutrina, não sei o que mais pareceria.

Já em O Céu e o Inferno, a partir da 4.ª edição, temos, dentre outras coisas, a supressão de importantes postulados, como estes (cap. VIII):

Pelos exemplos que o Espiritismo coloca diante de nossos olhos, ensina-nos que a alma no mundo invisível sofre por todo o mal que fez, assim como por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre. Que a alma não é condenada a uma penalidade absoluta, uniforme e por um tempo determinado, mas que sofre as consequências naturais de todas as suas más ações, até que se tenha melhorado pelos esforços da sua própria vontade. Ela carrega em si mesma seu próprio castigo, e isso onde quer se encontre, para o que não há necessidade de um lugar circunscrito. O Inferno, então, está onde quer que existam almas sofredoras, como o Céu está em toda parte onde existam almas felizes, o que não impede que umas e outras se agrupem, por afinidade de posição, ao redor de certos pontos.

O Céu e o Inferno, Cap. IV, item 6.º, parágrafo suprimido na adulteração, p. 85

Sendo todos os espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento.

Allan Kardec, O Céu e o Inferno, 3.ª edição — Editora FEAL

Constatamos, então, uma grande perda, pela supressão desses postulados. Há diversos outros pontos, que, de acordo com certo entendimento, podem até ser ressignificados sob uma possível autoria de Allan Kardec, mas o fato é que existem, também nessa obra, alterações estranhas e que não fazem sentido. Basta comparar o capítulo “As penas futuras segundo o Espiritismo“, de O Céu e o Inferno, completamente desfigurado na “alteração”.

Tem mais: admitir que as todas as alterações existentes nessas obras foram realizadas por Kardec, significa dizer que ele teria realizado um erro grotesco, e não apenas uma vez, mas duas: não ter obtido a permissão necessária, do governo, para a impressão de novas edições dessas obras. Nunca conheci esse Kardec descuidado e afoito que têm apresentado por aí.

Conhecendo um pouquinho da face extremamente séria, conscienciosa e cuidadosa do professor Rivail quanto a essa ciência (como com as outras), não posso admitir as teorias das alterações por seu próprio punho, sobretudo das supressões, e, do ponto de vista científico, tudo o que vi até agora, sem contar as conclusões forçadas sob cadeias de lógica com alguns problemas, no máximo, indica uma intenção de editar uma nova edição, o que nunca foi concluído e que, justamente, deu lugar às adulterações posteriores à sua morte, através da alteração do tipos móveis((peças utilizadas para realizar impressões prévias, naquele tempo. Essas impressões eram analisadas e corrigidas, através da alteração dos tipos (letras, pontuações, etc.) e, quando se verificava que a obra estava finalizada, eram utilizadas para a impressão da matriz, sendo esta utilizada para a impressão em larga escala)) existentes.

Aliás, de posse dos manuscritos de Kardec, disponibilizados pelo CDOR, da FEAL, foi possível identificar que:

Algumas cartas manuscritas demonstram que, em fevereiro de 1868, Kardec estava interessado em acrescentar trechos em A Gênese, pois era de seu costume, depois de um tempo do lançamento, revisar suas obras. Para isso, pediu conselhos aos espíritos para organizar esse trabalho.

Alguns amigos espirituais deram orientações para uma revisão da obra, com a expressa indicação para não alterar em nada as questões doutrinárias, como se percebe pelos seguintes trechos desta comunicação:

Minha opinião é que não há absolutamente nada de doutrina a ser retirado; tudo aí é útil e satisfatório sob todos os aspectos” e

É necessário deixar intactas todas as teorias que aparecem pela primeira vez aos olhos do público”.

No caso, além da demonstração jurídica da adulteração de A Gênese, também esta comunicação reforça o fato em razão das alterações doutrinárias identificadas na obra, com a supressão de diversos trechos em que Kardec critica a moral heterônoma do fanatismo religioso, dentre outras manipulações.

Ainda nesta comunicação, o espírito sugeriu também que ele trabalhasse sem pressa e sem dedicar muito tempo:

Sobretudo, não se apresse demais. (…) Comece a trabalhar imediatamente, mas não de forma exagerada. Não se apresse”.

https://espirito.org.br/autonomia/ncni-conselhos-sobre-a-genese/

Ora, o que observamos nas alterações de A Gênese, senão pressa e descuido?

Essa recomendação era justificada porque Kardec, em meio a sua difícil condição de saúde, tinha questões prioritárias para se preocupar, como a Revista Espírita e o projeto para a continuidade do Espiritismo através da fase de direção coletiva.

Essa é minha conclusão. Contudo, podemos até chegar a dizer que essas questões de adulteração ou não são um mero “detalhe”, um “tropeço” mesmo, que será superado quando a ciência for restaurada em sua essência. Ora, essa essência segue inalterada e está disponível para o nosso estudo. Basta estudá-la, de forma honesta, pois o homem honesto e humilde se rende frente aos resultados da investigação científica. Mas, finalizo, esse estudo precisa ser contextualizado, e um dos maiores pesquisadores desse contexto, Paulo Henrique de Figueiredo, está sendo colocado para baixo do tapete, por muitos, apenas porque ele compartilha da opinião da adulteração. E essa atitude, definitivamente, não é ciência.




As cisões e a busca por unidade no movimento espírita

Este é um artigo sucinto, trazendo uma reflexão, creio eu, importante.

É de longa data o assunto em questão: a busca por uma unificação do Movimento Espírita. Sabemos que, principalmente no Brasil, desde o início do movimento espírita, existem as cisões, ou seja, as divisões em grupos de ideologias. Há, inclusive, dentro do movimento, as cisões políticas, algo que jamais deveria existir, já que o Espiritismo visa, antes de tudo, a transformação do indivíduo, pela própria vontade e pela razão, e não por força maior, ou seja, uma modificação social através da modificação individual. A política (vista pelo viés simplista, conforme o que é feito geralmente), por outro lado, visa essa transformação de cima para baixo, por força de lei.

Devemos observar: isso, é claro, não significa dizer que o espírita não pode se envolver com a política. Muito pelo contrário: deveria. Mas com quais olhos? Certamente, não os da vaidade e do orgulho das opiniões, mas baseado na Doutrina Espírita. Imaginemos o que poderia fazer, com a força política, pessoas bem compenetradas da essência científica, moral e filosófica do Espiritismo, da transformação pela base, da pedagogia da autonomia, desde a escola infantil e, enfim, aqueles que entendam, profundamente, o bem e seu poder de transformação social, respeitando, porém, SEMPRE (desde que o ato não implique o mal direto para outros e respeitando as leis vigentes) o livre-arbítrio de cada um, que é um princípio fundamental do Espiritismo? Ora, o grande problema, sempre, tem sido as opiniões reservadas, quando, de um lado, alguns pensam que resolverão tudo com as armas e, do outro, alguns acham que resolverão tudo à base da força, tomando de uns para dar aos outros.

Mas voltemos ao ponto fundamental: havendo as cisões sob uma mesma bandeira, é natural, então, nascerem as diversas propostas de unificação, inspiradas mesmo naquela célebre e justa recomendação do Espírito de Verdade, em O Evangelho Segundo o Espiritismo — “Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo”. Como, então, alcançar esse objetivo?

Ora, reconhecendo-nos Espíritos em diferentes graus de evolução, com diferentes formas de entendimento, com diferentes conhecimentos e diferentes formas de ver o mundo — enfim, cada um, em si, um verdadeiro universo — é claro que não podemos supor que uma unificação signifique uma igualação de ideias. Isso seria impossível. Também seria impossível e mesmo errôneo supor que essa unificação seria a irmanação de todos os espíritas sob uma mesma entidade reguladora, tal qual se tem tentado fazer desde há muito, pois o Espiritismo não pode estar encerrado sob hierarquias, entidades ou mesmo pessoas. O próprio Kardec, que tão conscienciosamente conduziu os primeiros anos da formação da Doutrina, sabia disso: depois de sua morte, quem assumiria o seu posto? Quem tomaria esse direito? Não. Desde o início, Kardec propôs as diretrizes daquilo que muito bem conduziria o Espiritismo após sua morte, que, em resumo, seria:

1. Como princípio básico de uma ciência, o Espiritismo jamais estaria fechado ao questionamento, desde que este nasça do propósito honesto do indivíduo que não aceita a nada sem raciocinar, nem à curiosidade, desde que esta nasça do princípio investigativo da busca pelo conhecimento; porém, desde o momento em que o indivíduo não se renda à lógica dos fatos e das evidências, fartamente sustentados pela razão e pelo método científico, não pode ser considerado a sério e, gastar tempo com este, significaria perder tempo com aquele que, apresentando-se uma maçã, dirá que se trata de um limão, simplesmente por desejar cultivar o orgulho, e não a humildade.

2. Do ponto de vista da organização doutrinária, Kardec, junto a seus colaboradores, propôs, conforme apresentado na Revista Espírita de dezembro de 1868 (cerca de apenas quatro meses antes de sua morte) a “Constituição transitória do Espiritismo” (leia clicando aqui) que, em resumo, recomendava que o Espiritismo passasse a se constituir não mais sob nenhuma figura ou entidade centralizadora, mas através de inúmeros grupos de estudos e pesquisa, constituídos pelo mundo, e coordenados, mas não regulados, por um comitê central, que, segundo Kardec…

… será, pois, a cabeça, o verdadeiro chefe do Espiritismo, chefe coletivo que nada pode sem o assentimento da maioria e, em certos casos, sem o de um congresso ou assembleia geral. Suficientemente numeroso para se esclarecer pela discussão, não o será bastante para que aí haja confusão.

[…]

É claro que aqui se trata de uma autoridade moral, no que concerne à interpretação e à aplicação dos princípios da doutrina, e não de um poder disciplinar qualquer. Essa autoridade será, em matéria de Espiritismo, o que é a de uma Academia em matéria de ciência.

O brilhantismo, a racionalidade, a genialidade mesmo do Professor Rivail é, realmente, digna de um Espírito que se preparou para a missão que tinha à frente. A unidade do Espiritismo, portanto, não estaria representada pela força deste ou daquele indivíduo, ou grupo, desta ou daquela entidade: estaria no todo, nos princípios básicos da ciência e da doutrina espíritas. Não caberia a ninguém, individualmente, dar regras, aceitar ou rejeitar a adoção de novos princípios e mesmo de novos adeptos.

Ora, se isso chegou a ser publicado, de seu próprio punho, quando ainda estava em vida, perguntamos: o que é que aconteceu com o movimento espírita para chegarmos no cenário atual, onde as dissidências se dão, por toda parte, basicamente pelo desrespeito aos princípios básicos da Doutrina e dessa organização sabiamente proposta por Allan Kardec, pouco antes de sua morte? Bem, são quatro os pontos principais:

  1. Desvios doutrinários após sua morte, por aqueles que deveriam ter dado continuidade em seu trabalho. Isso se deu por interesses pessoais, como o dinheiro, a fama (vaidade) e o orgulho. Os Espíritos contrários ao bem, por serem ignorantes dele, encontraram nas imperfeições humanas a brecha necessária para a realizarem a única coisa que poderiam contra uma doutrina tão fortemente estabelecida. Assim, obtiveram, por Pierre Leymarie ou por outros ((Leymarie não se encontrava à frente da Sociedade Anônima, que substituiu a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, senão a partir de 1872, ano no qual foi lançada a edição adulterada de O Céu e o Inferno)): as adulterações de O Céu e o Inferno e A Gênese((Fatos detalhadamente apresentados em “O Legado de Allan Kardec”, de Simoni Privato, e “Nem céu, nem inferno”, de Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio.)), as duas obras finais de Kardec que encerravam os princípios doutrinários de mais de 15 anos de aprendizados e investigações; os fatos que mancharam e ensombrearam a Doutrina Espírita, como o “Processo dos Espíritas“, a frequente veiculação de ideias antidoutrinárias, na Revista Espírita, dentre outros((Fatos largamente detalhados nas obras supracitadas e também em “Muita Luz” (Beacoup de Lumiere), de Berthe Fropo. O PDF pode ser facilmente encontrado no Google.)).
  2. As guerras que se seguiram poucas décadas depois e que lançaram o mundo no materialismo, quer pelas dificuldades e desgraças do povo, quer pelas lutas armadas.
  3. Os interesses pessoais ou a incapacidade de compreensão da verdadeira essência do Espiritismo por parte daqueles que tomaram as rédeas do movimento espírita nascente no Brasil e que encontraram, em Roustaing, uma teoria mais próxima de seus propósitos ou de suas capacidades de compreensão. Estes, ligados à política — vejam só, uma vez mais a política — e/ou à imprensa e com capacidade de penetração, fizeram essas ideias se propagarem a fartamente pelo país.
  4. O desinteresse pelos estudos dos adeptos do Espiritismo que, se houvessem se dedicado a essa necessidade, teriam encontrado isto mesmo que acabamos de apresentar.

Eu diria que, de todos, o quarto e último tópico é o mais sério de todos, pois quaisquer tropeços, conscientes ou não, seriam muitas vezes corrigidos por um estudo dedicado dos conteúdos doutrinários existentes ou pela investigação científica junto aos Espíritos, assim como Kardec fazia.

Constatamos, enfim, que as cisões existentes no movimento Espírita se dão muito menos por ideologia doutrinária, e muito mais por ausência ou presença dos princípios científicos necessários, seguindo os passos de Allan Kardec. De um lado, estão aqueles que compreendem a necessidade do método, do princípio da concordância universal dos ensinamentos dos Espíritos, do não aceitar uma opinião isolada, seja de quem for, como se fosse a expressão da verdade e da sabedoria e, por isso, parte da Doutrina e da importância, da utilidade e da necessidade das evocações espíritas, com todos os devidos cuidados sempre destacados por Kardec; do outro, estão aqueles que pensam que Kardec está superado pelo tempo, que os Espíritos têm que ser deixados em paz e que cabe a este ou aquele a tarefa de profeta da revelação.

A unidade, então, no Espiritismo, não é impossível. Contudo, como fica claro, para ela existir, é necessário respeitar a constituição, o método e os postulados dessa ciência. As divergências de opinião e de interpretações sempre existirão, mas, desde que se cumpra os princípios básicos dessa ciência, elas serão progressivamente superadas ou afastadas.

De tudo, tiramos o seguinte: a unidade não deve ser procurada naquele que insiste em dizer que a maçã é um limão, mas sim naquele que, mesmo supondo que seja um limão, frente à razão, entenda e concorde: sim, é uma maçã. Em outras palavras: o Espiritismo é uma ciência muito bem estabelecida e fundamentada. Procuremos a unidade, baseados nesta ciência, em todos aqueles que queiram estudá-la e pesquisá-la como necessário, sem a pretensão de unir a todos sob uma mesma entidade ou um só líder, mas espalhando, pelos quatro cantos do mundo, a necessidade da formação de grupos de estudos aplicados sobre essa ciência. Com o tempo, quando estivermos prontos, isso dará espaço à retomada dos estudos, instigados pelos próprios Espíritos, dos princípios novos da Doutrina, com a coordenação de um comitê central ou mais.

Não se enganem: não procuramos números, mas qualidade. Os verdadeiros espalhadores dessa Doutrina não serão a maioria, em princípio, mas serão aqueles que auxiliarão no processo de retomada da essência do Espiritismo, divulgando-a a todos que puderem. Embora poucos, eles se encontram por toda a parte, muitas vezes esperando um pequeno empurrão para retomar a caminhada. Quanto àqueles que insistem no espiritismo sem os Espíritos, ou no espiritismo à Roustaing, entendamos que eles praticam uma nova religião, e não a Doutrina Espírita. Como diria Kardec, deixemo-los, pois a razão prevalecerá, e as opiniões divergentes serão abafadas pelo tempo e pela ciência, como sempre aconteceu na história da humanidade.

Em “espíritas, amai-vos”, temos a necessidade do respeito e da compreensão que somente podem nascer da humildade que surge da exploração científica e da razão, que leva o indivíduo ao aperfeiçoamento; em “instruí-vos”, temos reforçada a necessidade de estudar a Doutrina, de modo que possamos parar de ser comandados cegamente pelas opiniões.




31 de Março: Aniversário de morte de Allan Kardec

Dia 31 de março. Data pouco conhecida ou pouco lembrada no meio Espírita, é o dia em que morreu, em 1869, o querido e emérito professor, cientista, filósofo e estudioso dos fenômenos espíritas, Hypolite Leon Denizard Rivail – grafado dessa forma, mesmo, conforme ele próprio corrigiu, em documento de punho próprio, disponibilizado pelo CDOR. Esse foi Allan Kardec, aquele que dedicou seus últimos anos de vida e fez, em pouco mais de uma década, aquilo que poucos fazem em uma vida: obteve, pela observação racional e metodológica dos fenômenos espíritas, naturais e inteligentes, toda uma Doutrina, consoladora em sua essência e que, um dia, será reconhecida como a grande revolução no pensamento humano a respeito da vida, da sociedade, da caridade e da verdade sobre o bem.

O triste dia

Com uma beleza poética, Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, assim se expressa, sobre a morte de Kardec:

Como sentia que sua encarnação passava de maneira célere e constatava que suas tarefas doutrinárias continuavam aumentando, Allan Kardec evitava perder tempo. […] Ali [na Passagem Sainte-Anne] trabalhava desde a manhã até a noite e, frequentemente, desde a noite até a manhã, sem ao menos poder descansar, uma vez que estava só para ocupar-se de um trabalho cuja dimensão dificilmente se pode imaginar e que aumentava à medida que o espiritismo se difundia.

Como o contrato de aluguel do imóvel na Passagem Sainte-Anne estava para vencer, Allan Kardec pretendia deixá-lo no dia 1º de abril de 1869 e retirar-se para a Villa Ségur, onde tinha a intenção de concentrar-se mais na elaboração de textos doutrinários. Nessa mesma data, o escritório para assinatura e expedição da Revista Espírita, bem como a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seriam transferidos da Passagem Sainte-Anne para a sede da Livraria Espírita, na rua de Lille, nº 72.

Na quarta-feira, 31 de março, Allan Kardec encontrava-se na Passagem Sainte-Anne organizando seus livros e papéis para a mudança, que já havia começado e que deveria terminar no dia seguinte. Durante a manhã, recebeu um funcionário de uma livraria que desejava adquirir um número da Revista Espírita. Ao lhe entregar o exemplar, subitamente Allan Kardec perdeu os sentidos e tombou no solo sem haver dito sequer uma palavra.

[…]

Até o último instante de sua existência física, Allan Kardec deixou profundos ensinamentos. Morreu como viveu: trabalhando pelo Espiritismo. Suas mãos laboriosas despediram-se deste mundo entregando a Revista Espírita — periódico no qual deixou registrados seus ensinamentos, suas lutas, suas vitórias e, naquele último momento, sua imortalidade.

[…]

No cemitério, os curiosos procuravam posicionar-se nos lugares de onde podiam escutar os discursos. No entanto, quando o ataúde desceu para o fundo da cova, a emoção calou as palavras; fez-se um grande silêncio.

E esse silêncio parece ter se arrastado até os dias atuais, em que a grande parte do movimento espírita, em realidade, não conhece Allan Kardec e, muito menos, seu trabalho na formação da Doutrina Espírita — o Espiritismo.

Allan Kardec esquecido

Com grande tristeza, podemos averiguar que, nos pontos históricos que envolvem esse grande trabalho, o nome de Kardec não existe, nem como Allan Kardec, nem como Rivail: foi apagado pelo tempo, assim como fizeram com todos os cientistas que se dedicaram a estudar o Espiritismo e o Magnetismo. Não há uma placa dedicatória a Kardec. Não há um busto. Não há uma inscrição na parede ou na calçada, quando, por muito menos, personalidades do satirismo ou do horror merecem uma gravação dedicada, sob a luz dos holofotes, nas calçadas da fama que existem, mundo afora. Não. Nas ruas da França, parece que o único lugar em que o querido professor merece uma lembrança é no cemitério, como que por obrigação, e onde, morto e enterrado, não chama a atenção de ninguém com suas ideias “subversivas”.

Passage Sanite-Anne, lugar que dava acesso àquela que foi a primeira sede da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas

Rue des Martyrs, 8 (porta rosê), onde Kardec viveu com sua esposa, Amélie, no 2° andar

Mas a grande questão aqui não é apenas o esquecimento da figura de Allan Kardec, mas do seu papel como cientista espírita e da sua metodologia, da sua honestidade, da sua humildade e da sua seriedade no estudo do Espiritismo. Não cultuamos Kardec, mas reconhecemos seu trabalho e sua dedicação. Em uma paródia muito pertinente, há quem acredite, hoje, que a gravidade é uma grande farsa, por não ter estudado e compreendido o estudo de Isaac Newton, que principiou as ciências físicas, como hoje as conhecemos. Dá-se o mesmo com o Espiritismo.

Uma Doutrina desconhecida

Dizíamos que o Movimento Espírita desconhece Kardec e seu trabalho. Sim, de tal forma que, de fato, em grande parte, desconhecem a própria Doutrina que dizem professar. Poucos sabem do enorme desvio que a Doutrina, ou, antes, o Movimento Espírita, sofreu após a morte de Kardec, pelas mãos de Leymarie e com a influência de Roustaing e seus seguidores; poucos sabem que as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” foram adulteradas, respectivamente nas edições 5.ª e 4.ª; poucos sabem que essa influência se espalhou e se instalou no Movimento Espírita nascente, aqui no Brasil, logo em seus primeiros passos; poucos sabem que o próprio Bezerra de Menezes, por suas inclinações religiosas, preferiu as ideias roustainguistas sobre as espiritistas e que, por isso, as difundiu no Brasil; poucos sabem, ainda, que Kardec planejava dar início, a partir de abril de 1869, a uma nova fase do Espiritismo, sem figuras ou entidades centralizadoras e sem hierarquias, de modo que ninguém pudesse ditar regras — cenário totalmente diferente do que vivemos em nosso país, onde, desde os primórdios do Movimento Espírita, uma Federação se autointitulou centralizadora e regradora — a mesma Federação que chegou a colocar, também, Roustaing acima de Kardec.

No Brasil, país onde o Espiritismo parece ter conquistado o maior número de adeptos, vivemos um movimento espiritista religioso, com rituais e paramentos, onde “o telefone só toca de lá para cá” virou lei e, pior, onde as ideias de pecado e castigo, carma, “lei de causa e efeito” ou “lei de ação e reação”, que nunca fizeram parte dessa Doutrina, passaram a ser tomadas como doutrinárias.

Que me desculpe o querido Chico, mas, na afirmação sobre o telefone, ele errou, ou foi mal entendido. Contudo, erram ainda mais os adeptos, que, por falta de estudo e de forma irrefletida, passaram a tomar opiniões de médiuns e de Espíritos como se fossem a lei ou a expressão inquestionável da verdade e da sabedoria. É por isso que reafirmamos: o Movimento Espírita desconhece o Espiritismo, pois o ponto fundamental da Doutrina é aquele com o qual Kardec inicia sua última obra, A Gênese, apresentando, logo na primeira página:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

O Movimento desconhece, muito mais, a formação da Doutrina, apresentada largamente na Revista Espírita (leia este artigo), onde Kardec, número após número, demonstra várias evocações de Espíritos das mais diversas categorias (conforme a escala espírita), afirmando sua utilidade. Kardec evocou assassinos e cientistas, sábios e ignorantes, suicidas há poucos dias de sua morte, reis e rainhas e, de todos, sempre obteve ensinamentos importantes, que, progressivamente, através do método da busca pela concordância universal, sob o julgamento da razão, do bom-senso e da ciência humana, foram constituindo toda uma Doutrina e que, depois, serviram de base para a formação das demais obras e para a complementação de O Livro dos Espíritos.

As adulterações desconhecidas

Mas não podemos culpar, de todo, apenas a falta de empenho no estudo, pois muitos estudaram, mas estudaram sem saber que estudavam algo adulterado, como foi o caso de A Gênese e O Céu e o Inferno[1]. Ora, um dos pontos mais controversos de OCI nasceu de uma adulteração, pois a seguinte frase não existia na obra original, escrita por Kardec:

Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.

Texto inserido na versão adulterada de OCI, a partir da 4a edição

Sabemos hoje, por documentos históricos, que não apenas essas obras, mas todo o movimento espírita, sob as mãos de Leymarie, foi adulterado e subvertido, em nome do dinheiro e da vaidade. Um dos piores casos foi aquele conhecido como “O processo dos espíritas“, que manchou a reputação do Espiritismo na sociedade francesa.

O contexto de Allan Kardec

Também não conhecíamos o contexto de Kardec, onde O Espiritualismo Racional e as Ciências Morais davam base à formação educacional francesa, como podemos averiguar largamente em “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, por Paulo Henrique de Figueiredo, obra essa que também apresenta a face puramente autônoma do Espiritismo, completamente afastado de noções como as de carma, largamente presentes no Movimento Espírita atual. Não apenas isso, temos também a questão do Magnetismo, citado constantemente por Kardec como ciência gêmea do Espiritismo, de modo que uma sem a outra ficariam incompletas. Ora, Mesmer, “pai” do Magnetismo, só passou a ser compreendido recentemente, através da recuperação e da tradução de suas obras, culminando no livro Mesmer: A ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.

Enfim: nós precisamos recuperar Kardec. Precisamos estudá-lo em suas obras e na Revista Espírita; precisamos compreender o contexto no qual estava inserido; precisamos conhecer o Magnetismo; precisamos compreender o Espiritismo como ciência, que de fato é, e não como religião, que nunca foi, senão sob a compreensão da religião natural, conforme o entendimento do Espiritualismo Racional. E, entendendo o Espiritismo em sua essência, precisamos fazê-lo sair dos círculos fechados dos centros espíritas, para fazê-lo conquistar a sociedade através de suas ideias renovadoras e verdadeiramente consoladoras. Mas, para isso, a mudança precisa começar pelo indivíduo, se espalhando, então, para a família e para a sociedade.

Kardec superado?

Muitos pensam e afirmam o seguinte: “Kardec está superado no passado, então esqueçamo-lo e sigamos com o estudo dessas novas concepções que temos hoje”, o que é um erro profundo.

Espiritismo é ciência, tanto sob o aspecto das ciências morais francesas, no contexto de seu nascimento, quanto do ponto de vista de uma ciência de observação, que deduz, infere, analisa empiricamente, como fica muito claro para todos que estudam-no em suas fontes. Como ciência, tem uma base, sem a qual não se pode avançar. O Físico Nuclear também precisa passar por Newton, para depois chegar a Einstein e, depois, nos atuais cientistas.

No Espiritismo, tem pelo menos duas coisas que não mudaram, com relação ao nosso estado atual: a moral e os Espíritos. A primeira precisa ser estudada desde Jesus, e mesmo antes, sendo essa uma das propostas centrais do Espiritismo. Já os Espíritos continuam pertencendo a toda aquela escala, proposta por Kardec e refinada pelos Espíritos, e continuam se comunicando conosco, nos influenciando e conduzindo pelas mesmas formas que sempre utilizaram. Desde que, nisso, de forma inegável, há uma ciência, é necessário estudá-la e compreendê-la.

É por esquecer Kardec que, hoje, se aceita no movimento espírita conteúdos perniciosos, irracionais e antidoutrinários.

Se temos muito a aprender? Ora, mas é claro que sim! E os Espíritos nos ensinam aquilo que nós estamos prontos para entender, segundo o progresso da nossa ciência material. Kardec “arranhou” em assuntos científicos tão profundos, mas que ainda não podiam ser entendidos. Imaginem o que ele poderia alcançar se, naquela época, soubéssemos o que conhecemos hoje? Imagine, aliás, o que um pesquisador sério, elevado e honesto como ele poderia obter, segundo a ciência atual, a respeito de tudo aquilo que não pôde ser aprofundado naquela época?

Mas isso, meus caros, somente será feito no momento certo. Por isso, faço minhas as palavras do Paulo Henrique de Figueiredo: estudemos, estudemos, estudemos, até cansar. Entendamos o Espiritismo na Revista Espírita e nos seus complementos. Estudemos as obras de Kardec, as de Bozzano, as que, hoje, estudam o contexto do Espiritismo, inserido no Espiritualismo Racional, e estudemos ainda o magnetismo de Mesmer.

Quando estivermos prontos, como outrora, os próprios Espíritos nos buscarão e, quem sabe, eles precisem voltar a girar mesas e tocar tambores invisíveis de modo a chamar nossa atenção.

Uma motivação a mais para o estudo

E, se te falta ainda uma motivação para se afundar nesses estudos, deixo a seguinte reflexão:

O que nos afasta da felicidade real são nossas imperfeições, nossos vícios morais, nossas paixões desenfreadas. Somente o Espírito que venceu suas imperfeições, através das provas, e que desenvolveu seu raciocínio, através do conhecimento, consegue progredir no caminho da evolução espiritual. Todos nós o faremos, mais cedo ou mais tarde, mas a velocidade depende da vontade de cada um, galgada na razão, pois somente faz a verdadeira mudança o Espírito que realmente entende, racionalmente.

Diz Kardec, em A Gênese: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.

Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra (que deu base a todas as traduções e edições futuras), que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, importantíssimo, omitido pela adulteração:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Tudo o que vivemos, portanto, como nos mostra a Doutrina, jamais se trata de castigo, mas, sim, de oportunidades para a nossa evolução. O Espiritismo é autônomo em sua essência — “Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta” [RE — outubro de 1858].

Se isso tudo não te motiva a estudar Kardec, não sabemos o que mais faria.


1. A editora FEAL já tem as traduções dessas obras, segundo o texto original. O contexto das adulterações de A Gênese pode ser entendido através da leitura da obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; já o das adulterações de O Céu e o Inferno pode ser entendido na obra “Nem céu, nem inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo”, por Lucas Sampaio e Paulo Henrique de Figueiredo




A eutanásia de Alain Delon e o Espiritismo

O ator francês Alain Delon afirmou que praticará eutanásia, segundo informa a matéria da Veja SP. Alain, que considera o suicídio assistido “a coisa mais lógica e natural”, disse, numa postagem no Instagram:

“Tomei a minha decisão há muito tempo, acho que a minha vida foi linda mas também muito difícil. Nunca gostei de envelhecer. Todas essas dores e desafios do cotidiano me deixam paralisado”

Infelizmente o ator não conhece o Espiritismo, o que seria quase cômico, se não fosse trágico, por ser, justamente, nascido na terra onde a Doutrina Espírita nasceu, há mais de 160 anos. Mas não falo, aqui, do Espiritismo-religião do movimento espírita atual, aquele que diz que o suicida sentirá o corpo sendo roído por vermes, ou que ficará sofrendo no “vale dos suicidas”, ou que renascerá em um corpo defeituoso. Já falamos sobre a irrealidade dessas afirmações genéricas neste artigo.

Não: aqui falamos do Espiritismo em sua essência científica, doutrina cuja teoria nasceu da observação racional dos ensinamentos universalmente concordantes dos Espíritos. Essa Doutrina, em sua essência, nos mostra o seguinte: a vida é uma oportunidade de aprendizado e elevação. Terminá-la antes do tempo, por conta própria, é uma grande perda de tempo, pois nos distancia da elevação e do aprendizado possibilitado pelas provas e pelas oportunidades da vida.

Acontece que cada segundo sobre a Terra, por difícil que seja, se bem enfrentado e vencido, nos aproxima do objetivo final, que é a felicidade dos bons e dos justos. Como alcançar, porém, esse estado de felicidade, sem nos livrarmos das imperfeições e das paixões — o que somente se faz através das provas da vida, da vontade e do aprendizado?

Isso, é claro, é totalmente diferente do caso da eutanásia animal.

O ator, infelizmente, não está atento para esse fato da nossa realidade espiritual. Do outro lado, após cometer o ato, provavelmente um dia verá a inutilidade do mesmo… E é isso. Não há punição: há erro, nascido da ignorância. Entender melhor essas questões alavanca nosso progresso, nos permitindo alcançar mais cedo a felicidade, de acordo com nosso empenho em nos elevarmos pelo próprio esforço. Desejamos a ele, e a outros, que possam cedo compreender essas questões.

Encerro deixando para reflexão o assunto, conforme abordagem em O Evangelho Segundo o Espiritismo:

Será lícito abreviar a vida de um doente que sofra sem esperança de cura?
28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador. Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim?

Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até à borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar ideias diversas das que tinha? Ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a hora derradeira. A iência não se terá enganado nunca em suas previsões?

Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.

O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alma, é inapto a compreender essas coisas; o espírita, porém, que já sabe o que se passa no além-túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Minorai os derradeiros sofrimentos, quanto o puderdes; mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro.

S. Luís.
Paris, 1860




As religiões e o novo mundo

Este será um artigo muito suscinto, mas de grandes reflexões.

As religiões, por mais que se afastem da verdade por conta de seus dogmas, que visam manter o povo na ignorância, em razão da sede de poder e de controle, tem a sua utilidade. É claro que todas elas avançam – basta comparar, em geral, a Igreja Católica de 150 anos atrás, ou ainda muito menos, com a de hoje – embora avancem a passos muito lentos e apenas quando se veem forçadas a isso, na maioria das vezes. Com tudo isso, elas sempre foram receptáculos de uma certa verdade, transmitida entre os séculos, até o momento em que o homem pudesse entender e avançar sobre essas ideias.

É fato que, por conta dessa sede de controle e domínio, os dogmas criados para esse fim mantiveram por muito tempo as consciências sob a irreflexão do medo e da obediência cega, mas, uma vez mais, os tempos são chegados. Vejamos as fileiras das igrejas: a cada dia mais, vão se esvaziando. Contudo, esses que daí saem, não encontramos quem dê resposta melhor, encontram a única resposta que existe, que é no materialismo.

Vivemos exatamente o mesmo processo enfrentado entre os séculos XVIII e XIX, de onde, em pouco tempo (relativamente falando) veremos surgir um movimento contrário a tudo isso, buscando no espiritualismo a resposta que nem as religiões nem o materialismo podem dar.

Contudo, hoje, temos vantagem. Os estudos importantíssimos sobre o Espiritualismo Racional, por Paulo Henrique de Figueiredo (principalmente), podem alavancar esse processo; o Espiritismo, desta vez, não precisa nascer do zero, mas precisa apenas ser retomado em sua essência original – aquilo que muitos estudos recentes, inclusive os do Paulo, tem auxiliado muito a realizar. Estamos muito mais pertos de uma revolução de ideias, o que não se dará pela política, que é coercitiva, mas pela vontade individual, que responde à razão e ao livre-arbítrio.

Meu amigo leitor, creio que em algumas décadas poderemos ver um novo mundo. Para isso, contudo, há que se abalar as bases sociais – desta vez, não através da força, mas através das ideias da caridade e do bem e, sobretudo, da autonomia através da vontade e da razão – e, para isso, cabe a cada um de nós estudar exaustivamente todas essas fontes de conhecimento a fim de levar adiante, em cada situação possível, e para fora do meio espírita, esse conhecimento consolador e transformador.

E podemos começar desde já, tecendo, por exemplo, propostas de aproximação da educação, hoje predominantemente heterônoma, vivenciada sob os aspectos do pecado e do castigo, com as propostas pestalozziana e espírita, autônomas em toda a sua essência.

Temos muito a fazer. E esse processo não visa derrogar as religiões, como nunca visou: visa, antes de tudo, trazer o fortalecimento da verdade que há nelas e afastar aquilo que há de erros e inverdades.

Recomendamos também a leitura do artigo “Espiritismo e o mundo de regeneração: como chegaremos a ele?




O que é a Revista Espírita e como estudá-la?

No momento em que escrevo este artigo, estamos entrando no estudo da 10.ª edição da Revista Espírita — outubro de 1858. Começamos esse estudo semanal (clique aqui para conhecê-lo), transmitindo-o ao-vivo, sabendo, por uma intuição, que ele seria muito importante e útil, mas, de fato, não sabíamos o que esperar desse estudo. A verdade é que, senão pela leitura de algumas citações de trechos dessa obra, não sabíamos nem sequer do que se tratava a Revista Espírita.

Ouça ao podcast:

Hoje, então, passadas nove edições dessa publicação, dentre as 136 das quais o próprio Kardec esteve à frente, de janeiro de 1858 a abril de 1869 (ele morreu em março, mas já havia deixado pronta essa última e importante edição, da qual falaremos mais adiante) — e continuamos nos perguntando onde é que ele arrumava tempo e disposição para isso, coisa digna de missionário — já conseguimos vislumbrar um pouco do brilhantismo de Rivail no encadeamento lógico do desenvolvimento dos temas que, agora compreendemos um pouco, dão base e rumo ao crescimento e ao fortalecimento da Doutrina Espírita — lembremos que as próximas obras foram produzidas, em grande parte, justamente a partir de muitos dos temas e estudos desenvolvidos na Revista Espírita.

Importa dizer, antes de tudo, que a Revista Espírita, como demonstra o nome, foi um periódico mensal, onde Allan Kardec apresentava diversos temas, sendo alguns deles totalmente doutrinários, outros deles ligados às questões sociais, histórias e científicas e outros nos quais percebemos uma crescente e ininterrupta elaboração de pesquisas e conhecimentos que foram dando cada vez mais base à Doutrina Espírita.

Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos

Muitos não sabem, mas esse é o subtítulo completo desse periódico: jornal de estudos psicológicos. E isso é importante ser destacado, pois, pelos olhos de hoje, não parece que psicologia tem muito a ver com um jornal espírita, não é mesmo? É aqui que entra o valoroso e importante trabalho de Paulo Henrique de Figueiredo, um dos mais expoentes pesquisadores espíritas da atualidade, que foi buscar, no passado, um conhecimento esquecido, varrido para baixo do tapete: em resumo, aquele que se encerrava no contexto do Espiritualismo Racional, sobre o qual já falamos um pouco aqui. É somente através do estudo desse conhecimento esquecido que poderemos, adiantamos, contextualizar muito do que se fala na R.E. e, sobre isso, destacamos a importância da obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, desse mesmo autor.

No contexto de Kardec, a Psicologia não tinha a característica terapêutica materialista de hoje: ela era uma ciência moral, espiritualista, inserida no contexto do Espiritualismo Racional, e seu principal objetivo era investigar e analisar as leis naturais que regem a natureza humana, inclusive de forma experimental.

Nesse contexto, a Psicologia compreendia o ser humano como um ser constituído de corpo e de alma. A alma, que sobreviveria ao corpo, era a causa primária da psique, não sendo esta um efeito apenas material de química e estímulos. Tratamos um pouco disso nos estudos baseados no artigo “O Período Psicológico”, que você pode ler aqui.

O nascimento da Revista e sua finalidade

Kardec criou a Revista Espírita baseado, em parte, nas sugestões de um Espírito que se comunicou através da Srta. Hermance Dufaux (é com H, mesmo) que, segundo Canuto de Abreu, cooperou para a transmissão de valiosas orientações para esse periódico:

No final de 1857, Kardec teve a ideia de publicar um periódico espírita e quis ouvir a opinião dos guias espirituais. Hermance foi a médium escolhida e, através dela, um Espírito deu várias e ótimas orientações ao Mestre de Lion. O órgão ganhou o nome de “Revista Espírita” e foi lançado em janeiro do ano seguinte.

Um dos maiores interesses de Kardec era o de se corresponder, de forma facilitada, com os adeptos do Espiritismo espalhados pela Europa. Através da Revista, uma publicação de fácil circulação e de interesse geral — Kardec, nela, abordava até os fatos cotidianos e de grande interesse, envolvendo os Espíritos — a Doutrina foi rapidamente permeando as massas, que liam avidamente suas folhas. Não faltaram as cartas de assinantes, milhares delas, muitas das quais Kardec sequer encontrava tempo para responder.

Destacamos a palavra “assinantes” de propósito: Kardec, ou melhor, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cobrava por uma assinatura desse periódico, mas jamais para enriquecimento próprio, e sim com a finalidade de obter recursos para baratear custos das obras, fornecer apoio social, etc. Fizemos uma citação a esse respeito no artigo Propagação do Espiritismo.

Dizíamos dos propósitos da Revista. Bem sabemos que Kardec identificou, logo de início, com sua perspicácia de pesquisador formado, desde criança, pelo método investigativo da Natureza, de Pestalozzi, que…

… A opinião isolada de um Espírito não passa disso — uma opinião — portanto, não pode ser tomada, isoladamente, como se fosse fonte inquestionável da verdade, já que Espíritos de todos os tipos podem se comunicar, sendo que os Espíritos enganadores tomam os nomes até mesmo dos santos e de Jesus, sem pudor, principalmente quando percebem que não são questionados.

Portanto, Kardec buscava um meio de fortalecer o princípio básico e inexorável da Doutrina, que é o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos, que deve, além disso, atender à lógica, à razão, ao bom-senso e à ciência já formada, tanto da parte dos homens, quanto da parte dos Espíritos, pelo mesmo método. Ora, como já podemos perceber, através da Revista Espírita, onde recebia os diversos relatos de várias partes do mundo, através de seus correspondentes, o mestre lionês obteve justamente isso, em grande parte! Vemos um exemplo disso na carta do Sr. Jobard, em julho de 1858, e nas observações de um correspondente em setembro de 1858.

As evocações de Kardec

Há também um aspecto ainda mais importante apresentado na Revista, que demonstra claramente uma face pouquíssimo conhecida do Espiritismo, no atual movimento espírita: o da natureza e da utilidade das evocações de Espíritos. Ora, num momento onde virou lei a famosa frase do querido Chico Xavier — “o telefone só toca de lá para cá” — sobre a qual já fizemos uma análise no artigo “O Espiritismo sem os Espíritos” — qual não foi nosso espanto (pelo menos para aqueles que não conhecíamos essa realidade) ao verificarmos que Kardec fazia uso das evocações com tanta naturalidade — mas com a necessária seriedade — como aquela que usamos para conversar com as pessoas ao nosso redor.

Em praticamente todas as edições, Kardec apresenta evocações de Espíritos, as quais realizava com a finalidade de obter melhores compreensões a respeito da moral compreendida em certos acontecimentos, bem como o de tentar sondar alguns fatos científicos envolvendo fenômenos Espíritas, como se deu em “Uma nova descoberta fotográfica“, de julho de 1858.

Foi assim que, número após número, Kardec apresentou as mais diversas evocações, algumas feitas por ele mesmo e outras feitas por correspondentes seus. Evocaram-se Espíritos de suicidas, de loucos, de assassinos, de reis, de plebeus, de gente de grande moral e benevolência e de Espíritos inferiores. Muitos desses, diga-se de passagem, a pouquíssimos dias de sua morte, o que contraria aquilo que grande parte do movimento espírita atual tem dito.

Importa destacar, é claro, que as evocações não tinham a finalidade de atenderem à curiosidade vazia e inferior ou à diversão de ninguém: além dos ensinamentos que se podiam colher de todas elas, para os Espíritos superiores sempre foi uma felicidade nos ajudar e, para os inferiores, muitas vezes forneceram preciosos momentos de reflexão e de reequilíbrio.

Fortalecimento da Doutrina e descontrução de falsos ou inconpletos conceitos

A forma para o Espírito

Para dar um exemplo prático, nessas desconstruções de ideias fartamente enraizadas atualmente, temos, ainda que em primórdios, uma delas que começou a chamar nossa atenção: a questão da forma para o Espírito errante (entre as encarnações). É de praxe, hoje em dia, a concepção de todo um mundo fantástico e cheio até mesmo de automóveis no plano espiritual… Contudo, Kardec, a partir de certa edição, passa a sondar o que é a forma para os Espíritos, através de perguntas como “de que forma lhe veríamos se pudéssemos vê-lo com nossos olhos?” ou “vê outros Espíritos? De que forma?”.

Foi assim que, em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei natural, apenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”. É, portanto, matéria, mas uma matéria muito sutil, extraída do fluido cósmico universal[1]).

Significa então que os estudos de Kardec desmentem André Luiz? Bem, apesar de a metodologia de Kardec ser bastante lógica, deixando pouco espaço para erro, seria talvez precipitado tirar conclusões baseados apenas nesses dois Espíritos — ainda não sabemos se existem, mais adiante, mais evocações que deem suporte a essa tese — mas também não estamos dizendo que Chico Xavier errou, já que ele foi uma ferramenta dos Espíritos, nem que André Luiz mentiu, mas sim que ele falou segundo suas concepções e seus entendimentos. Quem sabe, ele poderia estar falando de uma situação de “encarnação” de Espíritos, em matéria mais sutil? Também não descartamos a existência de verdadeiras cidades, formadas pelos Espíritos ainda muito dependentes da matéria e da forma — o que, em suma, não é nada bom, mas compreendemos que seja uma fase.

O suicídio

Outro tema que foi fartamente desconstruído de suas concepções modernas é aquele a respeito do suicídio. Reinam, hoje, no meio espírita, as afirmações de que o suicida fica no “umbral” ou no “vale dos suicidas”; o de que ele ficará preso ao corpo, “sentindo-o” ser roído pelos vermes; o de que ele ficará anos em perturbação extrema, sendo impossível se comunicar; e, ainda, o de que o suicida amanhã nascerá com defeitos físicos de modo a “resgatar um débito cármico” (esse último trecho causa aversão até para escrever).

Bem, até o momento, Kardec já fez a evocação de dois suicidas: O Suicida da Samaritana, em junho de 1858, e Suicídio por Amor — setembro de 1858 — onde um rapaz se matou à porta da namorada, num ápice das emoções, pois ela se obstinara em não aceitá-lo de volta, após uma grande discussão.

O primeiro é evocado cerca de dois meses após o episódio fatídico: “Peço a Deus Todo-Poderoso permita ao Espírito do indivíduo que se suicidou a 7 de abril de 1858, nos banhos da Samaritana, venha comunicar-se conosco” — notem a simplicidade na evocação. Esse Espírito denotou um grande sofrimento moral, que vinha desde antes de sua morte, a qual buscou por um desespero em não saber lidar com os desgostos e as provações da vida. São Luís encerra a comunicação dizendo apenas que o suicídio interrompe a vida bruscamente, o que pode provocar uma certa dificuldade momentânea de se desapegar do corpo.

O segundo é evocado sete ou oito meses após o suicídio. Esse espírito já não sofre tanto, pois entendeu a falta de utilidade no que fez, e que o fez por um ato irrefletido levado pelas paixões (emoções) incontidas. Nesse, há apenas um “aprisionamento mental” ao momento do ato, que ficava se repetindo na mente desse Espírito, já que a ele se ligava com arrependimento.

Em nenhum deles, nenhuma menção àquilo que se tornou lugar-comum no meio Espírita, que, na verdade, são meias-verdades: existem as diversas possibilidades, segundo a mentalidade de cada um, mas o espírita atual insiste em tomar a exceção por regra.

A moral autônoma

Paulo Henrique de Figueiredo muito tem falado e defendido a essência do Espiritismo como moral autônoma. E muito tem sido criticado por alguns poucos que ainda não conseguiram ver isso na Doutrina. Aqui, há mais um conceito atual desconstruído pelo estudo da Revista Espírita. Não vou me aprofundar sobre o assunto, pois neste artigo já apresentei o conceito. Apenas quero destacar que, na própria Revista, nós vemos esse conceito muito bem fundamentado, e não por Kardec, apenas, mas pelos Espíritos.

Logo na primeira edição da RE, em janeiro de 1858, temos o artigo “Uma conversão“, que apresenta a seguinte sequência de perguntas e respostas, feitas ao pai falecido de um rapaz, por esse mesmo rapaz, que buscava acreditar no Espiritismo:

15. — Seremos punidos ou recompensados de acordo com nossos atos? — Se você fizer o mal, sofrerá.

16. — Serei recompensado se fizer o bem? — Avançará em seu caminho.

17. — Estou no bom caminho? — Faça o bem e estará.

Observe a profundidade moral desse simples diálogo. Não há castigo e recompensa, mas apenas nós mesmos, diante de nossa própria consciência, segundo nossas escolhas.

Mais adiante, em outubro de 1858, no artigo “Assassinato de cinco crianças por outra de doze anos — Problema moral“, Kardec questiona a São Luís sobre a possibilidade daquele Espírito, do assassino, voltar a encarnar sobre a Terra, e não sobre um planeta ainda mais atrasado:

11. ─ Então pode ele encontrar na Terra os meios de expiar sua falta, sem ser obrigado a regressar a um mundo inferior?

─ Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta.

Prezado(a) amigo(a), vê a beleza da Doutrina Espírita, verdadeiramente consoladora e autônoma, transparecida em sua face original? Nada de carma. Nada de “ação e reação”. Nada de “lei do retorno”. Estudemos, estudemos, porque o movimento espírita atual, inundado de conceitos exíguos e contrários à Doutrina dos Espíritos, anda muito afastado de suas essência e realidade originais!

Como estudar a Revista Espírita

Muito bem: já apresentamos a importância inestimável desse periódico de Kardec; já apresentamos, também, a profundidade que ele tem e o encadeamento lógico e racional de algo que vai formando o corpo de uma Doutrina Científica, muito bem estabelecida, que é o Espiritismo. Resta saber: como estudar esses 136 números dessa publicação?

Cremos haver duas formas principais, sobre as quais, aliás, estamos discutindo e nos adequando, no momento, de modo a chegar no melhor método. A primeira delas é aquela que respeita a forma cronológica, edição a edição; a segunda é aquela que “passa a perna”, no bom sentido, em Kardec, e avança por assuntos, de forma mais ou menos cronológica. Explico:

Na primeira modalidade, que é o que fizemos até então, pegamos a Revisa, edição por edição, e nos dedicamos a estudá-la individualmente, em primeiro lugar, a fim de extrair de cada número e assunto o melhor entendimento, enriquecendo o estudo. Isso porque existem, nela, assuntos acessórios, que não apresentam grande ganho em trazer para o estudo em grupo, como é o caso dos fenômenos apresentados por Kardec, no que chamaríamos hoje de “causos espíritas”. Não que não sejam artigos úteis, pois reforçam muito o entendimento a respeito do fato dos fenômenos espíritas, principalmente para aqueles que ainda tem dúvidas sobre eles.

Já outros assuntos são tão importantes e profundos que merecem uma atenção especial, por vezes buscando complementos não só em Kardec, mas também em obras complementares de outros pesquisadores contemporâneos ou não de Kardec. Por diversas vezes já encontramos grande utilidade em abordar não apenas demais obras de Kardec que, se fôssemos nos basear pela cronologia correta, sequer haviam sido publicadas, mas também obras como as de Ernesto Bozzano e aquelas recentes de Paulo Henrique.

Outra forma de realizar esse estudo é, como dissemos, “passar a perna” em Kardec e avançar sobre os assuntos em todos os anos da Revista e da obra completa do Professor. Mas isso no bom sentido: Kardec, cronologicamente, o que é óbvio, vai amadurecendo a própria compreensão a respeito da Doutrina dos Espíritos, através da pesquisa incessante. Assim, podemos ver, por exemplo, Kardec falando em fluido vital, em 1858, mas, em A Gênese, descartando os fluidos e ficando com a tese de Mesmer, do Magnetismo Animal e do princípio vital. Portanto, pode-se desrespeitar a ordem cronológica de modo a estudar os assuntos abordados na Revista, complementando-os e relembrando-os conforme se avança pelos números, na ordem.

No momento, estamos optando por um meio-termo: descartamos o aprofundamento nos assuntos acessórios, nos atendo aos assuntos principais e, deles, fazendo o devido aprofundamento, conforme observamos a necessidade. Talvez passaremos a abordar mais de uma edição num mesmo estudo, quando verificarmos que os assuntos de mais de uma delas é construído e complementado sequencialmente. Apena não julgamos útil avançar a passos grandes demais, pois compreender a construção do pensamento de Kardec, de seu método, dos ensinamentos dos Espíritos nas entrelinhas, é algo que julgamos muito proveitoso e importante.

O fim da Revista Espírita sob a tutela de Kardec

Chegamos, enfim, ao final do artigo, citando o fim da Revista Espírita com a morte de Allan Kardec. “Mas, Paulo, a Revista Espírita continuou sendo veiculada por muitos anos após sua morte”. Sim, continuou… Mas, infelizmente, foi subvertida pelos interesses mesquinhos do dinheiro e da vaidade. Enquanto esteve sob Kardec, foi uma publicação metódica, bem formulada e, sobretudo, impessoal, voltada aos interesses do Espiritismo, isto é, da Doutrina dos Espíritos, que não pertence a nenhum encarnado e nem sai das ideias de nenhum deles, de forma isolada.

Após a morte de Kardec, aqueles que assumiram e subverteram a Sociedade (para mais detalhes leia O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato) passaram a utilizar desse periódico para veicular os mais completos absurdos, dentre eles, sob a direção de Pierre Leymarie, artigos promovendo um falso médium, que dizia obter fotografias dos Espíritos. A promoção era literal, pois, na Revista Espírita, chegou-se a dar a indicação e os valores cobrados para se obter uma suposta fotografia de um parente morto. O caso rendeu um grande processo judicial contra Leymarie e seus associados, naquilo que ficou conhecido como O Processo dos Espíritas e que manchou absurdamente a reputação da Doutrina perante a sociedade.

Mas não parou por aí. A Revista Espírita, depois de 1869, passou a ser constantemente lugar de veiculação de absurdos artigos, muitos contrários à Doutrina até então formada pela metodologia indispensável aplicada por Kardec. É por isso que, juntamente aos demais estragos causados à Doutrina, que, hoje, ficamos com a Revista apenas sob o tempo em que ela esteve sob as conscienciosas mãos de Allan Kardec, e é por todo o exposto, até aqui, que…

… Convidamos a todos a montarem grupos de estudos sobre essa publicação, juntando a isso as pesquisas mais atuais, de modo que o aprendizado do Espiritismo, como Doutrina Científica que é, possa, a cada dia mais, sair dos círculos dos estudiosos espíritas e espalhar suas influências sobre a sociedade, que está desesperada em busca de respostas, uma vez mais.

Para isso, recomendamos observar as obras recomendadas para estudo, bem como acompanhar os estudos do grupo Espiritismo para Todos, no YouTube.


1. Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em A Gênese (FEAL, 2018):

“Havia a teoria do fluido cósmico universal, adotada inicialmente por Franz Anton Mesmer (na Ciência do Magnetismo Animal), segundo a qual o Universo seria composto de um só elemento gerador, ocupando plenamente o espaço, dividido em inúmeras fases de densidade, progressivamente, desde a matéria tangível, líquida, gasosa, o éter e demais condições ainda mais sutis, imperceptíveis aos sentidos. Nessa outra teoria, as forças não seriam substâncias, mas estados de vibração em diversos níveis sutis do fluido universal. Por exemplo, a luz seria um estado de vibração do éter. Por analogia, considerando a adoção nessa obra da teoria do único elemento gerador como explicação universal dos fenômenos físicos, os fluidos espirituais estariam entre os estados mais sutis do fluido cósmico universal”. Recomendamos a obra Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.




O tapa de Will Smith: reflexões

Para quem não viu, ontem, na noite da premiação do Óscar 2022, Will Smith, ao subir ao palco, deu uma grande bofetada no rosto do apresentador, Chris Rock. Acontece que, pouco antes, este havia feito uma piada, associando a esposa de Will, que sofre de perca de cabelos por conta de uma doença, com a protagonista de um filme antigo, onde a protagonista tem os cabelos raspados.

Will se levantou, foi em direção a Chris, se “armou”, como podemos ver no comportamento físico e lhe desferiu um grande tapa no rosto. Não, não parece ter se tratado de encenação, como podemos ver no vídeo ao lado e, mesmo que fosse, a reflexão permaneceria, como poderíamos fazer a respeito de um filme.

E o que é que isso tem a ver com nosso assunto, aqui? Bem, na verdade, muito, assim como acontece com muitos dos acontecimentos cotidianos. Vejamos:

Em primeiro lugar, podemos justificar a ação de Will?

Bem, não estamos aqui para julgar ninguém, mas apenas para analisar ações que possam nos dar balisa para reflexões oportunas. Podemos, à primeira vista, colocar em cena a questão da defesa: Will estaria apenas defendendo a imagem e a honra de sua esposa, o que justificaria o ato.

Fosse há pouco mais de um século, o caso daria um belo duelo: haveria um desafio de onde, provavelmente, apenas um deles sairia vivo. Aliás, o “tapa na cara” vem justamente desse hábito passado: o desafiador, atingido em sua honra, com a mão ou com uma luva, batia no rosto do ofensor, desafiando-o para um duelo de armas.

757. Pode-se considerar o duelo como um caso de legítima defesa?

“Não; é um assassínio e um costume absurdo, digno dos bárbaros. Com uma civilização mais adiantada e mais moral, o homem compreenderá que o duelo é tão ridículo quanto os combates que outrora se consideravam como o juízo de Deus.”

O Livro dos Espíritos

Duelar, seja como for, é algo que torna o homem ridículo. Desperdiçam-se vidas e desenrolam-se sofrimentos em matéria de disputas banais que tem, aliás, quase sempre, a honra como ponto central da contenda.

759. Que valor tem o que se chama ponto de honra, em matéria de duelo?

“Orgulho e vaidade: dupla chaga da humanidade.”

Os dois trechos acima foram extraídos de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Claro, não estamos aqui falando de um duelo até a morte — coisa que, de formas diferentes, ainda acontece — mas podemos recorrer ao Livro dos Espíritos, em matéria da opinião concordante dos Espíritos a esse respeito. Se você não sabe do que se trata o Espiritismo, que é uma ciência cuja teoria nasceu da observação racional e metodológica das manifestações e das comunicações espirituais, clique aqui para acessar uma dissertação de mestrado sobre o assunto.

Lembrando: não estamos aqui tomando essa obra como um código sagrado, mas, sim, trazendo-a para dar suporte, através da Doutrina dos Espíritos, à nossa reflexão. E vemos, afinal, aquilo que racionalmente se torna escancarado aos nossos olhos, mas que raramente queremos admitir: por trás de tudo está o orgulho ferido e a vaidade ameaçada. Afinal, no caso em questão, a resposta poderia ter sido superior: Will poderia ter aproveitado o ensejo para dar diversas lições morais sobre as questões ali envolvidas. Mas existem mais dos aspectos encerrados na questão; vamos a eles:

As paixões

No passado, lá no século XIX, era muito comum e claro o uso do termo paixão para designar o forte apego humano a um objeto, tema, pessoa ou sentimento. Assim, um homem apaixonado, naquela época, seria um homem desvairado no apego a determinada questão.

Hoje, é mais comum estar a palavra emoção associada a esse contexto. Contudo, entendendo o significado da primeira, julgo que a segunda não representa tão bem o grau elevado de apego, quanto a primeira. Por exemplo: um homem pode estar sentindo a emoção da raiva, mas essa emoção pode estar em diversos graus, sendo que, em até certo limite, essa emoção, que emana do instinto, é útil e benéfica (e.g.: quando sentimos raiva ao tentar abrir uma tampa rosqueada que não se solta: a raiva nos dá ainda mais força para abri-la, porém, se incontida, muitas vezes nos machuca no processo). Por outro lado, ao dizer que o homem está vivenciando a paixão da raiva, entende-se muito bem que ele esta num grau de apego muito elevado a essa emoção que, apesar de emanar do instinto, que é sempre útil e equilibrado, chegou num estado de loucura e incontenção.

E, então, segue, na mesma sequência, um complemento de Kardec à pergunta anterior, em OLE:

[759] a) — Mas não há casos em que a honra se acha verdadeiramente empenhada e em que uma recusa seria covardia?

“Isso depende dos usos e costumes. Cada país e cada século tem a esse respeito um modo de ver diferente. Quando os homens forem melhores e estiverem mais adiantados em moral, compreenderão que o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos.”

É “bonito” ver que os próprios Espíritos, quando superiores, não nos julgam com desprezo. Eles denotam, sempre, que tudo está de acordo com a nossa evolução, isto é, com o nosso tempo e os costumes de cada povo. Um exemplo simples: antigamente, os samurais japoneses tiravam a própria vida, com uma adaga, ao se reconhecerem culpados e sem honra.

Mas o ponto principal está no final do parágrafo: “o verdadeiro ponto de honra está acima das paixões terrenas e que não é matando, nem se deixando matar, que repararão agravos”. É em superando as paixões que encontraremos o verdadeiro ponto de honra, o verdadeiro sentimento, a verdadeira caridade. É através dessa superação que avançaremos para um novo estágio de sociedade, mas isso somente se faz pela vontade e pela escolha individual. Como, então, chegar a esse novo estado das coisas terrenas?

Kardec, em A Gênese (capítulo III), conclui: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.“. Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5a edição dessa obra, que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4a edição, temos o seguinte encerramento:

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.

Muito importante esse encerramento original. Vai justamente mostrar o ponto central: domamos as paixões através de nossa vontade, no esforço realizado através de muitas encarnações, frente às provas e as expiações.

Portanto, aqui, tomando o caso de Will como exemplo, poderíamos dizer: foi um ímpeto de paixões que o levou a agir daquela forma. Provavelmente, agora se arrependa, em alguma parte, pelo que fez. E se tivesse uma arma e, num ímpeto, houvesse tomado a vida de Chris Rock? Bem, talvez, em algum momento, passasse a sentir uma culpa enorme. Essa culpa poderia lhe travar a jornada, por se achar sob um peso enorme do remorso e, principalmente, se acreditar que pecou e merece castigo. Como retomar a caminhada? Entendendo, afinal, que cometeu um erro, justamente por não saber lidar com as paixões. Perguntamos, enfim: que importa mais: castigar-se ou procurar formas de exercitar o aprendizado da contenção dessas paixões? Já que o segundo caso permite aprendizado e evolução, enquanto o primeiro paralisa, ficamos com a segunda opção. Há, então, uma última reflexão:

Quem foi que motivou todo esse desentendimento?

Bem, sabemos, pelo estudo do Espiritismo, que estamos o tempo todo cercados por uma “nuvem de testemunhas”, como diria Kardec. Espíritos estão o tempo todo por toda parte e, por ser um planeta ainda muito atrasado, é natural supor que existam em maioria os Espíritos imperfeitos.

Na Revista Espírita de Outubro de 1858, no artigo “O mal do medo”, Kardec cita um ensinamento de São Luís:

Os Espíritos malévolos gostam de se divertir. Cuidado com eles! Aquele que julga dizer uma frase agradável às pessoas que o cercam e que diverte uma sociedade com piadas e atos, por vezes se engana, e mesmo muitas vezes, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o cercam, com ele de tal modo se identificam, que pouco a pouco o enganam a respeito de seus pensamentos, enganando também àqueles que o ouvem. Nesse caso, pensais estar tratando com um homem de espírito, que no entanto não passa de um ignorante. Pensai bem, e compreendereis o que eu vos digo.

Não que estejamos, aqui, afirmando que o apresentador seja um ignorante em qualquer aspecto. Apenas destacamos o trecho pois, muitas vezes, entre gracejos que alegram o público, somos alimentados mentalmente por Espíritos que visam nada mais que se divertir. Quando não estamos atentos a isso e não nos vigiamos, podemos levar muito longe essa identificação, até que, à custa de nossa infelicidade, caímos em ciladas como estas. Ora, seria demais supor que, fôssemos videntes, veríamos uma multidão de Espíritos inferiores, ao lado do ator, se matando de rir após ver a bofetada provocada pela péssima sugestão que possam ter dado, mentalmente, ao apresentador?

E isso tira a responsabilidade desse apresentador? Muito longe disso. Se vamos a um bar e cedemos às más sugestões de “amigos” levianos que nos incitem a uma briga, a culpa é deles ou é nossa? Cremos já estar bem respondida a questão.

É assim, enfim, que tiramos, da teoria espírita, lições diversas para o dia-a-dia, como, aliás, Kardec frequentemente fazia na Revista Espírita. Rogamos que essa teoria possa se espalhar mais e mais, a fim de influenciar positivamente a sociedade que, talvez mais do que nunca, procura tantas respostas para as questões morais e sociais da humanidade.

https://youtube.com/watch?v=u8NtoM5IiCk



Efeitos do suicídio, segundo o Espiritismo

Muito temos falado sobre o suicídio segundo o Espiritismo e, talvez, nem sempre nossas posições tenham sido absolutamente claras e concisas. Em razão disso, cremos necessário realizar nova abordagem, de forma sucinta e clara.

por Paulo Degering R. Jr.

Leia até o fim

O suicida, desde que tenha consciência do que faz, terá algum sofrimento moral ao constatar a perda de tempo que foi interromper a própria vida. Disse “desde que tenha consciência do que faz” porque, algumas vezes, não há essa consciência. Outrossim, quase sempre terá uma dificuldade maior de se desprender do corpo, que, longe de estar enfraquecido, encontrava-se na plenitude de suas forças.

Kardec assim se expressou, em O Livro dos Espíritos:

Não é geral este efeito; mas, em caso algum, o suicida fica isento das consequências da sua falta de coragem e, cedo ou tarde, expia, de um modo ou de outro, a culpa em que incorreu. Assim é que certos Espíritos, que foram muito desgraçados na Terra, disseram ter-se suicidado na existência precedente e submetido voluntariamente a novas provas, para tentarem suportá-las com mais resignação.

Note a palavra destacada: voluntariamente. O suicida pode, em uma nova encarnação, escolher provas rudes a fim de tentar vencê-las, aprendendo a suportar as vicissitudes com maior resignação.

Mas aí vão te dizer: leia o livro “Memórias de um suicida”

O livro “Memórias de um suicida”

Nesse livro, de forma muito resumida, um Espírito fala de seus extremos padecimentos após a morte. Foi nele que foi criada a imagem do “vale dos suicidas”, algo como um “local” onde os Espíritos suicidas ficariam “purgando” suas faltas.

Acontece que Espíritos não buscam locais. Espíritos buscam Espíritos ou situações, de acordo com suas crenças e suas ideias — conscientemente ou não. Os Espíritos — todos eles — se atraem por afinidade e por sentimentos, como, por exemplo, pelo amor ou pelo ódio, mas também pela mesma sintonia de pensamentos. Espíritos que se julguem culpados, muitas vezes, se jogam num verdadeiro inferno mental, numa situação que é muitas vezes partilhada por outros Espíritos em situação semelhante, que, então, juntos, podem formar verdadeiras paisagens de sofrimento, através da ação mental sobre a matéria fluídica.

Então Yvonne do Amaral Pereira errou ou mentiu?

Não necessariamente. Em se tratando de Espíritos, sabemos que são como nós — com as mesmas virtudes e imperfeições. Assim, podem falar com sabedoria real, ou com falsas ideias, nas quais acreditam. Muitas vezes podem até mesmo enganar. Não sabemos quem foi esse Espírito que psicografou através de Yvonne. Provavelmente era um Espírito sofredor, com as ideias bastante limitadas sobre o mundo espiritual. O que sabemos é que, sem sombra de dúvidas, não podemos desrespeitar o princípio básico da ciência espírita: o da concordância universal do ensinamento dos Espíritos. Diria Kardec, em A Gênese, logo nas primeiras linhas:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Os problemas dos falsos conceitos no Movimento Espírita

No meio espírita é lugar-comum, hoje em dia, ouvir afirmações do tipo “o suicida vai para o vale dos suicidas”, ou “o suicida encontrará enorme sofrimento, pois ficará preso ao corpo e sentirá os vermes o roendo” ou, ainda, “o suicida, na próxima encarnação, virá com um corpo defeituoso, para ‘resgatar’ suas faltas”. Nada disso reflete a realidade do suicídio segundo o Espiritismo, de forma genérica.

O movimento espírita atual passou a adotar diversos falsos conceitos e meias verdades, obtidas através de relatos individuais e isolados de alguns Espíritos, como se fosse a verdade inquestionável sobre todas as situações. Diria uma colega nossa: os espíritas modernos passaram a colocar todo um universo de possibilidades variáveis em “caixinhas”. Por exemplo: se matou? Vai para a “caixinha” do vale dos suicidas. Queimou uma pessoa? Vai para a “caixinha” de “morte em incêndio na próxima vida”. Tudo isso, como regra geral, não é uma verdade.

Infelizmente, muitos de nós — eu inclusive — por falta de estudos prévios e, muitas vezes, de bom grado, querendo auxiliar, soltamos essas frases que, muitas vezes, causam revolta e afastamento das pessoas que vem buscar, justamente no Espiritismo, uma resposta diferente daquilo que tanto se diz por aí.

Acontece que, no último ano, após o início dos nossos estudos sobre a Revista Espírita, muitos conceitos se aclararam, outros foram substituídos e outros tantos foram esquecidos. Kardec, já nas primeiras edições da RE, em 1858, faz evocações de pelo menos três espíritos suicidas, analisando seus casos individuais. Outros que foram feitos em outras ocasiões constam também em números posteriores, bem como no livro O Céu e o Inferno (da Editora FEAL, correspondente ao original, não adulterado). E, analisando essas comunicações, fica uma lição muito grande, que tentaremos explicar objetivamente a seguir.

Importa, antes, lembrar que o Espiritismo, como Doutrina Científica, não vem frear o homem pela imposição do medo, pois o freio das paixões por esse tipo de dispositivo é apenas temporário e sem grandes resultados. Não: o Espiritismo vem apresentar a verdade baseada na análise dos fatos, através do estudo racional e concordante das comunicações dos Espíritos dadas por todas as partes e por todos os tempos. Ao estudar o Espiritismo, não é mais pelo medo que somos guiados, mas pela razão, e é apenas quando o Espírito entra no estado da razão que ele realmente toma decisões melhores e mais claras.

Pois, bem: quanto ao assunto do suicídio, repetimos que, pautados nesses estudos, os resultados inicialmente destacados não podem ser tomados como regra geral. Sim, existem Espíritos em enorme perturbação que acreditam estar sendo roídos pelos vermes, pois sua mente ficou parada sobre a visão do corpo dilacerado. Existem também aqueles que se veem em locais infernais, por acreditarem que assim devem ser e por se lançarem em situações mentais infernais, onde, sozinhos ou em grupo, criam verdadeiros cenários diabólicos ou purgatoriais. Além destes, existem aqueles que acreditam piamente que a morte é o encerrar da vida e, então, entram em sono mais ou menos prolongado, como também existem aqueles raros que, depois do ato fatídico, momentaneamente se veem libertos da dor física, crendo-se, então, livres da dor moral, que ainda não sabem distinguir da primeira.

Portanto, a situação de cada um, após a morte por suicídio, vai variar muito, de caso a caso e conforme o — grau de consciência sobre aquilo que fazem. É por isso que um Espírito que tira a vida num ímpeto de desespero quase sempre tem um grau de culpa — perante a própria consciência — muito menor do que aquele que, conhecendo o Espiritismo e a doutrina da escolha das provas e expiações, após tirar a vida do próprio corpo, cai em profunda sensação de culpa e em pesadas lamentações, pois se arrepende de ter desistido das provas oportunas para seu próprio adiantamento. Além disso, importa dizer que, quase sempre, esses atos causam dor naqueles que nos amam, o que aumenta a amargura do Espírito ao avaliar a extensão dos resultados de seu ato.

O que buscamos dizer, afinal, é que o Espírito não sofre materialmente, de forma alguma. Pode acreditar que sofre e, mentalmente, criar uma falsa sensação de dor física, mas, na verdade, o sofrimento é moral e condizente com o grau de consciência e de culpa que tem, perante a si próprio, quanto ao mal realizado contra si próprio. Diríamos que, sendo o suicídio o abandono das provas escolhidas por si próprio, quase sempre acompanhará um sofrimento moral menor ou maior, mas nunca representará um termo nas oportunidades concedidas por Deus para nossa evolução, nem tampouco ocasionará, via-de-regra, um sofrimento expiatório na próxima encarnação. Uma vez mais, depende da mentalidade, das crenças e do conhecimento de cada um.

Mas, afinal, adianta se matar?

Sabemos que, quase sempre, o suicídio é uma tentativa de fuga para uma dor ou desespero com os quais não se sabe lidar. Veja, porém: o fato de aquela situação estar acontecendo é justamente uma oportunidade importante de aprendizado, de modo a lidar com essas situações. Se não sabemos lidar, é porque ainda temos imperfeições adquiridas ou paixões, isto é, emoções com as quais ainda não sabemos completamente lidar. Chegar ao ato extremo de tirar a vida do corpo apenas prolongará esse estado de ignorância ou de imperfeição, com um consequente sofrimento moral, já que não vencemos a prova, isto é, não adquirimos experiência e força para superá-la.

Onde, então, encontrar forças? Ora, estamos encarnados por um motivo: para aprender e para desapegar de possíveis imperfeições criadas por nós mesmos. No mundo dos Espíritos — o Espaço — o tempo não existe, de modo que o Espírito que tenha desenvolvido imperfeições fica incessantemente ocupado delas, seja em uma ilusão de prazeres, seja em uma autoperseguição causada por remorso. Assim, se tivermos desenvolvido uma imperfeição qualquer, essa imperfeição será, para nós, motivo de inquietações que parecem intermináveis — eis a explicação do porquê certos Espíritos, em estado de sofrimento, dizerem que tal situação lhes parece não ter fim.

Bem, dizia eu do motivo da encarnação, que, longe da falsa ideia de ser um castigo, é, pelo contrário, uma bênção divina, pois oferece oportunidade de aprendizado comum e de desapego às imperfeições adquiridas. Aqui, é possível nos colocar em contato com pessoas de todo tipo, exercitar diversas atividades, etc., tudo o que nos leva a sair, ou, pelo menos, quebrar o ciclo, dessas situações de sofrimento moral. Qual é, porém, o primeiro e maior erro que aquele que sofre moralmente costuma fazer — induzido também por Espíritos imperfeitos? Isolar-se. Aí está o primeiro passo para a queda, pois o isolamento causará justamente esse cenário de autoperseguição interminável. Não cometa esse erro, e busque ajudar quem o cometa, se possível traçando o raciocínio acima.

Ante uma prova difícil, quem disse que precisamos atravessá-la sozinha? Muitas vezes, esse pensamento de enfrentamento solitário é também originado de falsas ideias ou mesmo de um certo orgulho, que se transforma numa carapaça, por medo de se expor. Decerto não sairemos à rua contando de nossas dificuldades para qualquer um que passe, mas, com certeza, havendo o propósito de buscar auxílio, você o encontrará, talvez não no primeiro psicólogo, talvez não no primeiro amigo, talvez não no primeiro grupo de atividades qualquer, mas você o encontrará, porque você não está sozinho: ao seu lado, te conduzindo para o bem, existe um bom Espírito, mais elevado que você — seu anjo da guarda ou Espírito protetor. O importante é não se isolar, nem se isolar em si mesmo. Busque. Busque um grupo de atividades de caridade, busque um grupo de caminhada matinal, busque, sobretudo, ser útil, e isso te fará gravitar para situações e pessoas que poderão, lenta e progressivamente, auxiliar na sua construção.

Cabe a cada um de nós a vontade por se modificar ou não, por aprender ou não, mas esse trabalho é muito favorecido pelo desenvolvimento da razão — eis o motivo de tanto defendermos o estudo do Espiritismo. Através de nossa modificação, nos tornaremos mais fortes e avançaremos vários degraus em uma só vida e, quem sabe, amanhã não necessitemos de voltar para este mesmo gênero de situação dolorida, talvez conquistado a felicidade de poder viver em mundos melhores ou que, se aqui reencarnarmos, estejamos muito mais fortalecidos e preparados.

Não estou, aqui, falando da boca para fora: falo daquilo que eu mesmo vivi e aprendi. Passei por uma inquietação do tipo, passei pelo isolamento, passei pela autoperseguição. Me permiti, porém, ser influenciado por bons Espíritos, e isso me moveu a várias situações que, lenta e progressivamente, me trouxeram até aqui. Uma dessas situações foi muito interessante: resolvi visitar um asilo próximo de minha casa, onde tive contato com vários idosos que muito me ensinaram sobre a perseverança; fui acolhido com muito carinho por um grupo católico de orações, cuja dirigente era médium e, provavelmente, não sabia; mas o mais interessante, é que, na prateleira dessa instituição, onde havia o predomínio do catolicismo, estavam, na estante da sala comum, dispostos alguns exemplares da Revista Espírita, que eu cheguei a pegar em mãos, cheguei a folhear, por cima, mas acabei não lendo naquele momento. Somente vim conhecer a Revista cerca de um ano depois. Avalie por si mesmo os caminhos pelos quais os bons Espíritos nos conduzem, nos deixando a liberdade de seguir adiante ou não, abrir a porta ou mantê-la fechada.

Lembre-se, afinal: ninguém pode nos fazer o mal, senão nós mesmos. Interromper a própria vida é perda de tempo, que gera culpa e remorso e não interrompe o sofrimento moral causado pelas imperfeições que ainda possam existir em nós((Lembrando que ignorância e imperfeição são coisas diferentes. A imperfeição é adquirida pelo hábito em repetir um erro; já a ignorância pode conduzir ao erro, mas, desde que o superemos, é apenas um erro)).

E se alguém próximo a você está pensando em se matar, leve a ele esse tipo de pensamento. Se alguém já tirou a própria vida, nas suas preces por essa pessoa, converse com esse Espírito, de modo que ele possa deixar a sensação de impotência ante a culpa, se levantar e retomar o caminho evolutivo.

Estudemos, justamente, a fim de tirar, da cabeça das pessoas e do movimento Espírita, as falsas ideias que mais atrapalham do que ajudam. Um Espírito que não quer sair de dentro do caixão, o faz porque acredita que somente o próprio Jesus virá pegá-lo pela mão, no dia do juízo final. Não façamos como esses aprisionadores de consciências, não criemos falsas concepções no pensamento das pessoas. A matéria e as sensações, depois da morte, não são nada. Tudo o que importa é o pensamento, a vontade e a razão. E, por fim, não tomemos a opinião de Espíritos isolados como se fossem a pura verdade — independentemente do médium que a tenha possibilitado.

Recomendamos os vídeos seguintes:




Espiritismo e o mundo de regeneração: como chegaremos a ele?

Hoje estive “filosofando” sobre esse assunto, e cheguei nas seguintes ideias que, destaco, são baseadas na minha forma de ver o tema e no conhecimento que tenho do Espiritismo – o que pode não refletir a mais completa realidade. A seguir, estão expostas as minhas considerações:

Reflitamos: a modificação não vem de cima para baixo, como imposição, mas de baixo para cima, do indivíduo para a sociedade, como escolha. Portanto, o planeta não será transformando senão pela mudança dos seus habitantes. E quando falamos em regeneração, o que é um Espírito que se regenera, deixando de passar por provas e expiações? No meu entendimento, é o Espírito que passa a olhar para dentro de si mesmo, deixando de planejar vidas que visem apenas trazer “sofrimentos reparadores”, para planejar vidas que lhes dêem mais oportunidades de aprendizado para abafar suas imperfeições. E de que forma isso se dá? Apenas pela vontade, alimentada pela razão. Portanto, como entendo, é justamente o conhecimento reforçado pelo Espiritismo que vai nos possibilitar conquistar um novo “ambiente” terrestre.

Enquanto os Espíritos continuarem agrilhoados às velhas concepções aprisionantes da consciência, continuarão errando e, por uma errada concepção de pecado e castigo, continuarão buscando expiar os erros, através do sofrimento material, apenas, aplicando muitas vezes a si mesmo a “lei de Talião” – olho por olho, dente por dente. Contudo, à medida que entendam que o que realmente precisam é se fortalecerem pelo aprendizado e pela razão, em contato com conhecimentos valorosos, para assim lidarem com suas imperfeições, passarão a planejar, ao meu ver, com mais sabedoria suas vidas.

Afinal, o que é que causa mais sofrimento: uma dor física, que termina com a morte, ou uma dor moral, que se estende enquanto o fator que a originou não for resolvido? Não é como agimos aqui? Quando cometemos um erro, muitas vezes queremos ser castigados a fim de aliviar nossa consciência, de forma a querer deixar de lado o verdadeiro problema, que é nossa imperfeição e o sofrimento moral que dela se origina, pelos erros. O indivíduo mais maduro, porém, sabe que o castigo não resolve, e busca encarar de frente seus próprios problemas, que o fizeram errar.

Por exemplo: naquele caso do Assassino Lemaire (RE – Março de 1858) ele sabia que tinha que lidar com suas imperfeições. De que forma pensou em fazer isso? Planejou nascer em meio ao crime, mas malogrou em sua tentativa, pois o ambiente foi mais forte que ele, que ainda não tinha a vontade e a razão muito fortalecidas. Ao falhar em sua tentativa, foi mais um a espalahar a criminalidade, aliando outros Espíritos às suas intenções. E se – e se! – ele, mais consciente, tivesse planejado uma vida diferente? E se, em vez de se colocar sob o ambiente do crime, para lutar com suas paixões, ele tivesse escolhido uma família firme e bondosa, que lhe desse uma educação melhor e lhe colocasse em contato com conteúdos que pudessem lhe ajudar a reforçar a vontade de vencer suas imperfeições, através da razão? Talvez ele tivesse conseguido vencer muitas de suas imperfeições, além de não ser mais um a avolumar a criminalidade.

Não seria isso, como um entendimento geral, gerando decisões melhores, ótimo para o planeta? Não causaria uma enorme mudança à sociedade? Penso que sim. Mas isso requer, em primeiro plano, que o Espírito SE enfrente: que ele se coloque sob a ótica crítica e que enfrente seus próprios “demônios”. Ora, numa sociedade que insiste em acreditar, porque é mais fácil, na imposição de castigos divinos, vemos o quão longe ainda estamos dessa nova era neste planeta… O que não nos impede de, em nós, fazermos um esforço hercúleo para domar nossas paixões, desenvolver nossas virtudes e buscarmos nos elevarmos, no bem, a fim de que possamos conquistar a possibilidade de encarnar em mundos mais felizes.

Quem sabe….

Finalizo com Kardec, em A Gênese (4a edição, original – o trecho foi suprimido na 5a edição, que muitos dizem não ter sido adulterada):

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria. Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal – ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas, e por isso dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí-lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

Kardec, A Gênese, 4a Edição – FEAL




Contradições na linguagem dos Espíritos

Esse artigo tece um complemento importante ao artigo “Espíritos impostores – O falso padre Ambrósio”, de Julho de 1858, o qual nos serviu de base para o artigo chamado “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos“. Clique aqui para ler.

Nessa edição, Kardec inicia abordando o problema de certas contradições nas comunicações espíritas: “À primeira vista essas contradições parecem realmente uma das principais pedras de tropeço da Ciência Espírita

Lembrando que o Espiritismo é uma ciência, e não uma religião, por alguns fatores:

  • Ele é um desenvolvimento do Espiritualismo Racional[1]
  • Ele é, objetivamente, uma ciência positiva – expressão sempre usada por Kardec – no sentido de um conhecimento formado a partir dos métodos de observação e experimentação dos fatos.
  • Ele somente pode ser visto como religião do ponto de vista da religião natural, conforme abordada pelo ER, e o aspecto “moral” vem justamente sob essa mesma origem!

Kardec destaca que toda ciência, em seu início, tem suas contradições, que somente vão sumindo conforme essa ciência se desenvolve e se passa a entender aquilo que, antes, não se entendia.

“Aliás, os Espíritos sempre nos disseram que não nos inquietássemos com essas pequenas divergências e que em pouco tempo todos seriam levados à unidade de crença. Com efeito, esta predição se realiza diariamente, à medida que mais e mais penetramos nas causas desses fenômenos misteriosos e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências manifestadas na origem tendem evidentemente a um enfraquecimento. Pode-se mesmo dizer que atualmente não passam de opiniões pessoais isoladas[2].”

Embora o Espiritismo esteja na Natureza e tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta Antiguidade, é um fato que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto em nossos dias.

[…]

Estava reservado ao nosso século, no qual o progresso recebe um impulso incessante, trazer à plena luz uma ciência que, por assim dizer, apenas existia em estado latente. Só há alguns anos é que os fenômenos foram observados seriamente[3]. Na verdade o Espiritismo é uma ciência nova, que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial.
Em princípio esta ciência pareceu muito simples. Para as criaturas superficiais não passava da arte de mover as mesas. Uma observação mais atenta, entretanto, revelou que era, por suas ramificações e por suas consequências, muito mais complexa do que se imaginava. As mesas girantes são como a maçã de Newton, que na sua queda encerra o sistema do mundo
.

Kardec aponta que, para cada nova descoberta, múltiplas hipóteses surgem, não necessariamente erradas, pois cada um vê segundo suas concepções e seus conhecimentos e raciocínio. A unidade somente pode surgir, numa ciência, quando ela avança através do método científico: se uma hipótese se demonstrar incorreta, pela evidência, ela deve ser abandonada em favor da verdade

De que lado está a verdade?

É o que cabe ao futuro[4] demonstrar. Mas a tendência geral não poderia oscilar. Evidentemente, um princípio domina e reúne pouco a pouco os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva unirá todos a uma origem comum e em breve veremos que em definitivo a divergência será mais acessória que fundamental.

As várias teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas nasceram do cérebro humano; outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanam de homens que, confiando demasiado nas próprias luzes, creem possuir a chave daquilo que buscam, quando o mais das vezes apenas encontraram uma gazua [chave falsa]. Isto nada tem de surpreendente, mas que, entre os Espíritos, uns dissessem uma coisa e outros dissessem outra, era menos concebível. No entanto, agora isto é perfeitamente explicável.

A princípio, fez-se uma ideia absolutamente falsa da natureza dos Espíritos. Eles foram imaginados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo saber tudo. […] À notícia das recentes manifestações, a primeira ideia que em geral veio à mente da maior parte das criaturas foi de que isto era um meio de penetrar todas as coisas ocultas; um novo modo de adivinhação menos sujeito à dúvida que os processos vulgares.

Lembrando que Kardec analisou com profundidade e atenção todas as manifestações e comunicações com as quais teve contato, de onde obteve a Escala Espírita, da qual um simples estudo que a muitos poderia salvar das dificuldades nas quais se metem.

Baseado no estudo feito com muita racionalidade e bom-senso a respeito das comunicações dos diferentes Espíritos, Kardec continua o longo artigo dando exemplos simples de como se expressam os Espíritos das diferentes ordens e classificações. Toda a contradição nasce da inobservância desse ponto fundamental, além da insistência em se obter respostas que não podem ser dadas, a cujas perguntas respondem os Espíritos inferiores, sem escrúpulos quaisquer.

Kardec dá o exemplo da possibilidade de “um dia” o homem chegar à Lua e, lá encontrar seus habitantes: como poderiam esses conhecerem a humanidade através do relato de alguns poucos.

As causas das contradições da linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:

1º. ─ O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;

2º. ─ O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia, ignorância ou malevolência, tomando um nome de empréstimo, dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas pelo Espírito cujo nome usurparam;

3º. ─ As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre as comunicações e alterar ou deformar o pensamento do Espírito;

4º. ─ A insistência por obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que é dada por um Espírito inferior;

5º. ─ A própria vontade do Espírito, que fala conforme o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem tudo dizer a toda gente;

6º. ─ A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;

7º. ─ A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, de acordo com as suas ideias, os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.

São muitas as dificuldades, das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo. Também nunca dissemos que a Ciência espírita é fácil. O observador sério, que tudo aprofunda maduramente, com paciência e perseverança, apreende uma porção de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por tais detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como nos ensina a conhecer os homens.


1 – Desde 1832, na Universidade Sorbonne, Paris, a escola do espiritualismo racional se estabeleceu como filosofia oficial, estruturando as ciências humanas, que na França chamam de ciências morais. Morais porque o objeto de seu estudo são os fatos derivados da ação humana; ciências como historia, direito, filosofia, letras, entre outras. Diferindo das ciências naturais, que se dedicam aos fenômenos da natureza.

Entre as ciências morais, havia o grupo das ciências filosóficas, com a proposta de compreender o ser humano, por meio das seguintes disciplinas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmología racional). (FIGUEIREDO, 2019)

2 – O mesmo que acontece hoje em dia. Apenas pelo método científico honesto essas contradições, que se instalaram largamente no movimento espírita, poderão ser dissipadas

3 – A confiança dos pesquisadores do século XIX no poder da ciência para descrever a realidade propiciou a investigação, por intermédio da observação dos fenômenos mediúnicos, do espiritualismo moderno (o estudo das obras de Paulo Henrique de Figueiredo complementam largamente esse tema). Muitos estudiosos e livres- pensadores, com base na observação das mesas girantes, dançantes e falantes passaram a considerar a possibilidade de investigar cientificamente a sobrevivência post-mortem do ser humano (PIMENTEL, 2014 – clique para ler).

Kardec tem o primeiro contato com o Espiritismo em 1854, quando um amigo seu, o magnetizador Auguste Fortier relata que o “fluido magnético”, empregado por um magnetizador, agora estava fazendo as mesas se moverem. Kardec recebe a notícia com desinteresse, já que supunha que o fluido magnético ou elétrico poderia explicar o fenômeno.

Meses depois, o Sr. Fortier buscava-o novamente, para, desta vez, dizer que as mesas não apenas se moviam, mas respondiam de forma inteligente às perguntas dos assistentes. Kardec, cético, ainda via nisso um “conto para fazer-nos dormir em pé”.

Cerca de um ano depois, em 1855, outro amigo, Sr. Carlotti, fala pela primeira vez da intervenção dos Espíritos nas sessões. O depoimento entusiasmado desse amigo aumentou a desconfiança de Kardec. Foi depois de algum tempo, no mesmo ano, que o Sr. Pâtier, homem instruído, grave, calma e friamente convenceu Rivail a assistir uma sessão mediúnica.

“Utilizando de sua vasta erudição, como professor, escritor e membro de diversas sociedades científicas, ele realizou uma ampla abordagem da causa dos fenômenos psíquicos surgidos a partir das mesas girantes. Kardec propôs uma abordagem empírica e racional para o assunto, até então, considerado metafísico, na qual foram produzidas várias discussões pertinentes sobre aspectos epistemológicos e metodológicos de exploração dos fenômenos mediúnicos” (Ibidem)

4. Vejamos a humildade de Kardec, que nunca disse: “a verdade está comigo”.