Análise da obra “O Livro dos Espíritos – A obra interminável”

Sob um título muito interessante, encontrei, hoje, essa obra, um compêndio de perguntas e respostas, distribuída gratuitamente, em PDF, na Internet. Fui então analisá-la, razão pela qual deixo, aqui, minhas observações sobre esse trabalho.

Devo destacar que a intenção não é de denegrir ou zombar dos esforços que muitos fazem, e que, creio eu, tem uma boa intenção, quase sempre. Contudo, precisamos, quando falamos em Espiritismo, entender que essa ciência, em definitivo, não se faz de opiniões isoladas, e que qualquer comunicação espírita que não tenha atendido ao método do duplo controle da razão e da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos não pode ser tomada, senão, como uma opinião. No artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos” já apontamos, segundo o Espiritismo, as diversas razões para isso.

Essa obra assim inicia:

Esta obra, elaborada por espíritos encarnados e desencarnados, está estruturada em perguntas e respostas, notas explicativas e textos complementares, notas de rodapé e preces. Destina-se a todos que desejam iniciar ou aprofundar seu vínculo com o Criador através da leitura instrutiva e reflexiva, da oração, da prática do amor e da caridade, do autoconhecimento e da busca constante por reforma íntima

Até bem pouco tempo atrás eu não veria nisso problema algum. Hoje, porém, eu entendo que existe um grande equívoco na tão falada “reforma íntima”, que nunca esteve, nem com essas palavras, nem com outras, na obra de Allan Kardec. Por quê? Simplesmente porque não se reforma o que não está estragado. Ora, somos Espíritos em evolução, errando e acertando e, algumas vezes, adquirindo maus hábitos que se tornam imperfeições. Quando existe a imperfeição, haveremos de ter algum trabalho em nos desapegar dela – aí sim havendo um certo trabalho de “reforma” – contudo não podemos admitir como pressuposto generalizado o fato de que todos nós devamos nos reformar, como o Movimento Espírita tem apregoado largamente. Isso coloca um grande peso de culpa nas costas daqueles que estão simplesmente buscando aprender e evoluir, mas que passam a se acreditar, sempre, como “coisas quebradas” – e isso está, no fundo, ligado às falsas concepções da queda pelo pecado.

Complementação

No capítulo I – Complementação – I – Propósito da Obra, diz-se o seguinte:

1. Com qual propósito foi lançado O Livro dos Espíritos, em 1857, por Allan Kardec?
— Libertar os encarnados através da verdade, instruí-los e, consequentemente, levá-los à prática do bem.

A. Esse propósito foi alcançado?
— Sim; obviamente que depende do livre-arbítrio de cada indivíduo, mas tudo está nos planos de Deus.

B. Diante disso, é necessário complementá-lo?
— Sim, as comunicações e formas de entendimento modificam-se com o passar do tempo, e é importante que os ensinamentos acompanhem essas mudanças.

Nota: A intenção jamais será contestar o que já foi escrito, e sim afirmá-lo com mais clareza e objetividade, para que não haja dubiedade de entendimento, trazendo a verdade de modo mais explícito, com o intuito de promovermos a prática outrora exemplificada pelo mestre Jesus.

É claro que, para complementar alguma coisa, sobretudo quando se trata de complementar o Espiritismo, através de “comunicações de Espíritos Superiores”, é totalmente necessário que uma série de quesitos se cumpra:

  1. O ser humano deve estar preparado para isso, tendo conhecido e entendido profundamente, e de forma contextualizada, tudo aquilo que deu base à formação dessa Doutrina. Como veremos, esse primeiro ponto não foi atendido.
  2. Quando os Espíritos demandam auxiliar o homem a alcançar novos conhecimentos, eles agem distribuindo o mesmo conhecimento através de todos os cantos do mundo, simultaneamente. Isso é necessário a fim de que, à luz da lógica e da razão, os pesquisadores da doutrina possam confrontar as ideias transmitidas por todos os lados, realizando o mesmo método científico que Kardec realizou. Talvez os pesquisadores tenham realizado uma certa análise racional, mas, desde que isso não se dá pela universalidade dos ensinamentos dos Espíritos e desde que não nos foi dado conhecer o método empregado – que parece consistir apenas de perguntas e respostas realizadas a alguns Espíritos, supostamente superiores, através de um médium ou mais, do mesmo grupo, esse segundo ponto também não foi atendido.

Logo em seguida, apresenta-se o seguinte:

2. Quando a primeira obra foi lançada, o intuito era a criação de uma nova religião?
— No lançamento da primeira obra, a intenção era auxiliar na transformação da humanidade mediante o conhecimento, fazendo-a abdicar do orgulho e do egoísmo, potencializando a prática do amor através da caridade. Toda religião criada com o intuito de agregar ao invés de segregar os encarnados é positivamente encarada (ver item V – Religião não pode causar divisão).

E, em complemento a isso, vamos buscar o que é apresentado no item V do mesmo capítulo:

16. Como promover a integração do Espiritismo com as demais religiões?
— O conteúdo deve ser o guia de vossa consciência; esta não possui religião, apenas o discernimento do certo e do errado. Logo, tudo aquilo que a agradar deverá ser fator de união, e não de segregação.

Ora, o interlocutor parte do conceito errado de que o Espiritismo é mais uma religião, em contrário àquilo que Allan Kardec já demonstrou, no passado (leia mais clicando aqui). Assim, enviesa, com um conceito prévio, a característica da resposta.

Sobre a confiabilidade da obra, há o que segue:

7. O que garante que este trabalho seja oriundo de espíritos elevados?

— A garantia está na coesão e no conteúdo, alinhando-os ao que sentis no âmago, para entender se há coerência ou não. Ao filtrar, através da consciência, percebereis que a intenção da obra não é a de demonstrar a elevação de quem vos instrui, assim como não é a de vos convencer que apenas há uma nova comunicação, mas, sim, de fazer-vos praticar o amor e o bem.

Grifos meus.

Quando o Espírito supostamente diz que a garantia está na coesão e no conteúdo, “alinhando-os ao que sentis no âmago”, está apenas afirmando que as respostas serão coesas, já que nascem de uma mesma ideia, em um mesmo grupo – o que está em contrário com o método de Kardec – e abrem o precedente para que esse grupo, baseado em suas ideias, e vendo-as corroboradas pelos Espíritos, apenas as confirmem. Depois, em “ao filtrar, através da consciência”, abre-se a precedência para que o “filtro” seja a própria consciência, e não a lógica racional e científica de Kardec que, aliás, nunca se deu por satisfeito com qualquer ideia espírita, sem julgá-la sob o crivo da razão e, muitas vezes, lutava contra elas, de acordo com a ciência, para aceitá-las apenas quando verificava que a ideia atendia, com excelência, a todas as questões envolvidas.

Segue o autor:

8. O que Kardec diria a respeito de um complemento de sua obra de codificação?

— Que jamais pretendeu ser dono da verdade absoluta, mas abrir o caminho para que, por meio da ciência e das descobertas, as atualizações acontecessem de forma natural e constante. Diria, ainda, que a verdade acompanha a evolução moral humana; logo, necessita de atualizações conforme evoluímos.

Além disso, diria Kardec que, sem o método do duplo controle, os estudiosos seriam facilmente levados ao engano.

A. Como os espíritas que têm como verdade o fato de a primeira obra ser imutável poderão receber este complemento?

— Esperamos que o recebam com muito amor, mas, se assim não o for, obtê-lo-ão pela coerência, rebuscando na própria consciência o discernimento necessário.
Nada é imutável, apenas Deus. Todos sois aprendizes do eterno progresso; hoje conheceis mais do que ontem e menos do que amanhã.

É preciso muito cuidado com os conteúdos “complicados” que se encontram escondidos sob as diversas verdades, tomadas como refrões. Não digo que os Espíritos comunicantes tenham necessariamente desejado realizar uma mistificação, mas, no mínimo, refletiam as mesmas tendências e os mesmos pensamentos do grupo em questão, que se acreditava no papel de trazer, por ele mesmo, a atualização do Espiritismo, o que também está em contrário às lúcidas palavras de Allan Kardec na Revista Espírita de dezembro de 1868.

Uma outra questão é que precisamos notar as crenças das quais se achavam imbuídos os envolvidos nessa pesquisa: por que a necessidade de copiar a forma de se expressar como naquela época, imitando a linguagem de O Livro dos Espíritos? “Obtê-lo-ão”? Ninguém mais utiliza essas palavras, atualmente, e é natural que os Espíritos se comunicassem de forma diferente, hoje em dia, já que eles não se prendem às linguagens.

Sobre o trabalho dos encarnados, é dito que:

12. Os participantes podem ter sido influenciados por falsos profetas?

— Conhecemos a veracidade de algo pelo conteúdo. A forma de realização também tem relevância. Falsos profetas fazem bastante alarde, mas não conseguem sustentar a mentira por muito tempo.

O simples fato de esta obra ter sido concluída com tanto esforço, dedicação e de maneira despretensiosa já anula essa possibilidade.

Ora, Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, desmentem essas afirmações: as ideias erradas foram mantidas do início ao fim, e foi produzida com bastante esforço das partes envolvidas. Se o esforço é despretensioso ou não, é outro problema. Aliás, o Espírito não precisa querer mentir para produzir uma obra com conceitos errados: basta que ele acredite nesses conceitos, apresentando-os. Vemos isso em André Luiz o tempo todo.

Outra crítica à obra é que ela não deixa claro, senão nas perguntas e respostas, de quem é o texto apresentado: é do grupo? É do revisor? É do Espírito? Assim acontece em cada uma das introduções aos capítulos.

Elementos Gerais do Universo

O capítulo II se inicia com um texto falando sobre quatro mudanças energéticas do globo terrestre, algo que mais parece ter saído das doutrinas orientais, que tanto falam das energias, do que da Doutrina Espírita. O texto é atribuído a Sócrates, um nome de peso, como que para dar mais confiabilidade a ela.

24. Existe hierarquia predeterminada na Criação ou ela é fruto do processo evolutivo?
— Na Criação, a “hierarquia” é consequência do processo evolutivo; conforme a evolução acontece, o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica.

Apesar de o autor lançar nota em comparação à questão nº 29 de OLE (O Livro dos Espíritos), a resposta não tem nada do que diria um Espírito conhecedor das verdades doutrinárias registradas por Kardec. Em OLE, os Espíritos respondem suscintamente que os Espíritos pertencem a diferentes ordens, e não a diferentes hierarquias, que são conceitos bastante diferentes. Além disso, o Espírito diz que “o ser ou elemento aumenta sua posição hierárquica”: ora, acaso elementos evoluem?

Em seguida, em III – Descobertas Científicas, o autor, quem quer que ele seja, parte de um pressuposto errado, segundo o Espiritismo, de que a moral deve avançar para que, apenas depois, avancemos em ciência. Isso está claramente em oposto àquilo que eles mesmos apresentaram, pouco antes, na nota 27, de O Livro dos Espíritos, e confirmado pelas observações:

O Livro dos Espíritos, questão 780: “O progresso moral segue sempre o progresso intelectual? — É a sua consequência, mas não o segue sempre imediatamente.”

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Grifo meu.

Quando o autor diz que “um passo por vez. Solidificando a moral, a ciência dará saltos e desvendará muitos mistérios“, está deixando de lado o fato notório de que o Espírito somente progride moralmente quando faz um esforço de sua vontade consciente. Isso demanda avanço intelectual.

No parágrafo imediatamente anterior, é dito que “O avanço tecnológico poderá ser a salvação ou a destruição do planeta. É por esse motivo que os homens só irão possuir mais respostas quando tiverem a moral compatível com esse privilégio“. É como se dissessemos que Deus coloca um limite para a inteligência humana, devendo o homem primeiro aprender a amar para depois aprender a construir foguetes. Isso seria ilógico, porque é a consequência da construção do foguete, que gera a bomba que é utilizada para dizimar milhares de pessoas, que justamente promove o avanço moral, pelas consequências do ato.

Em seguida, é feita a seguinte pergunta:

28. Qual é a relação entre a ciência material e a espiritual?

— Na ciência material, os recursos são limitados, já na espiritual, são ilimitados. A ciência espiritual complementa a material, pois, oferecendo recursos infinitos, faz com que os avanços científicos aconteçam pelo uso da inteligência humana.

O que é falso. A ciência humana avança pelo desenvolvimento do intelecto do homem, e não por revelações científicas dos Espíritos, que, aliás, nada tem de materialista. Espíritos não desenvolvem automóveis super tecnológicos, porque eles não precisam da matéria, de maneira alguma, senão quando encarnam para avançar.

Na questão 35, outra incongruência é encontrada:

35. Desde a primeira obra, houve relevantes progressos na ciência.
Como os espíritos enxergam esse avanço?

— Com naturalidade, pois é um reflexo do esforço coletivo da humanidade. Entretanto, a utilização dessas descobertas nem sempre foi positiva; elas foram permitidas por Deus para que os encarnados as utilizassem para o bem, mas, em muitas ocasiões, utilizaram-nas para o mal.

Deus não permite nem proibe a utilização da ciência, nem seu avanço. Ela está de acordo com a capacidade da intelectualidade humana. O ser humano, pelo uso da inteligência, muitas vezes comete erros e, com eles, aprende. Isso não é fazer o mal: é o fruto do desenvolvimento.

O capítulo segue com uma enorme quantidade de perguntas e respostas sobre conceitos científicos que, na verdade, não levam a lugar algum. Não vou repetí-los aqui, mas deixo a questão: estaria nisso a “atualização científica” da Doutrina? Ora, sabemos que, no que tange à ciência, um dos pontos que mais foi estudado por Allan Kardec, embora limitado à ciência de sua época, é a questão do Fluido Cósmico Universal e do perispírito. Não seria esse um conhecimento importantíssimo em que avançar, frente às nossas descobertas científicas?

Outra questão: os Espíritos superiores, como demonstra Kardec em A Gênese, cap. XVI – Teoria da Presciência, não tem os nossos referenciais materiais para falar em questão de tempo ou questões que pertencem à ciência humana. É por isso que, mesmo na época de Kardec, eles jamais entraram no âmbito das particularidades, cabendo ao homem, no papel de pesquisador, tirar suas conclusões, com base nas observações, e não nas “revelações”.

Criação – A Infância do Espírito

Esse capítulo inicia com um questionamento respondido de forma totalmente contrária à Doutrina dos Espíritos:

60. O período de infância dos espíritos ocorre em um mundo primitivo?
— Sim, na maioria dos casos, a infância espiritual inicia-se no mundo primitivo, onde começa o estágio hominal.

A. Por que na maioria?
— A evolução de cada ser depende de suas escolhas, livre-arbítrio e merecimento. Em casos raros, o animal também pode dar saltos evolutivos, a ponto de passar a infância espiritual em outros mundos.

Nota: Nesses casos, em que o salto ocorre do mundo animal terrestre para gerar uma infância em outro mundo, há merecimento daquele espírito, que, através de seu esforço e resignação, ainda que com poucas ferramentas intelectuais, conseguiu evoluir a ponto de não necessitar vivenciar a infância em um mundo de provas e expiações. Embora pareça confuso aos vossos olhos, isso é uma prova de que Deus reconhece o esforço de forma individual e particular.

Grifos meus.

As respostas atribuídas a uma origem espiritual estão em total contrariedade ao Espiritismo, como dissemos. A evolução não dá saltos, muito menos de um Espírito vivenciando a fase animal, onde não tem consciência de si mesmo, nem livre-arbítrio, para vivenciar logo em seguida uma fase humana. Aliás, está em total contradita à resposta dada em OLE: “Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus”. Além disso, comete-se o erro absurdo de supor que um Espírito possa evoluir sem passar pelas provas, ao menos, que são as vicissitudes materiais que estimulam-no ao desenvolvimento intelectual e moral.

Logo em seguida, em II – Princípio material, na pergunta 62:

62. As moléculas possuem princípio espiritual?

— Não, elas são partes da matéria. Possuem fluidos vitais, que, por sua vez, as sustentam.
Os movimentos moleculares iniciam-se no princípio vital e são compostos por fluidos vitais e magnéticos. As moléculas são exclusivamente orgânicas, e não espirituais, porém servem ao espírito, por meio da matéria, quando compõem o organismo humano.

Grifos meus

O primeiro erro está em supor o fluido vital, que era uma teoria materialista da ciência da época de Kardec que, não podendo explicar o invisível, supôs a existência de partículas imponderáveis, como o fluido calórico, o fluido elétrico, etc. Allan Kardec, que inicialmente partiu dessa ideia, em A Gênese, abandonou-a, ficando apenas com o termo “princípio vital”, genérico, e com a teoria de Mesmer – a de que tudo o que existe, em questão de matéria e energia (é óbvio que os Espíritos não fazem parte de nenhum dos dois) se originam do Fluido Cósmico Universal. Isso está bem explicado em A Gênese:

O princípio vital é algo distinto, tendo uma existência própria? Ou então, para ser
integrado no sistema de unidade do elemento gerador, é apenas um estado particular, uma
das modificações do fluido cósmico universal, que se torna princípio de vida, como se torna
luz, fogo, calor, eletricidade? É nesse último sentido que a questão é resolvida pelas
comunicações reproduzidas anteriormente. (Cap. VI, Uranografia geral).

A Gênese – Editora FEAL

Me espanta, aliás, que aos pesquisadores, tão compenetrados de fórmulas científicas, as quais discutiram com os Espíritos, tenha faltado esse princípio fundamental teorizado por Mesmer e sustentado pela ciência moderna. Veremos, logo mais, que esse mesmo erro provocou outros enganos, na “atualização” de O Livro dos Espíritos, pelo grupo em questão.

Chegado a este ponto, agora noto que errei: as notas são quase todas, senão todas, dos Espíritos. Me pergunto o que fizeram os pesquisadores além de analisá-las, segundo suas ideias, e aceitá-las.

Fluidos no Universo

O capítulo em questão comete os mesmos erros citados acima: não tendo conhecido e compreendido a ciência do magnetismo de Mesmer e as concusões de Kardec, partem dos falsos pressupostos de uma ciência ultrapassada. Ou seja: para complementar o Espiritismo que, segundo pressupostos, estaria ultrapassado em ciência, utilizam uma ciência que o próprio Espiritismo já ultrapassou, há mais de 100 anos. Estranho, não?

É assim que se repete uma opinião erradíssima e que, aliás, seria prontamente corrigida por um Espírito superior:

74. É o fluido vital que determina o tempo de permanência humana na Terra?
— A quantidade de fluido vital é Determinada por Deus, porém, através das vossas escolhas, podeis encurtar ou prolongar o tempo de permanência no
orbe.

Em primeiro lugar, como demonstramos, não existe fluido vital, muito menos uma quantidade dele. Em segundo lugar, não é Deus quem determina nada, mas nós mesmos. É exatamente por isso que animais, sem o livre-arbítrio, morrem, de causas naturais, quase todos numa mesma idade, segundo suas espécie e raça, ao passo que o homem morre, das mesmas causas, nas mais diversas idades. E o fundamento disso também está em A Gênese, apresentado por Kardec:

Para ser mais exato, é preciso dizer que é o próprio Espírito que elabora seu envoltório e o adapta às suas novas necessidades. Ele aperfeiçoa, desenvolve e completa seu organismo à medida que experimenta a necessidade de manifestar novas faculdades. Em uma palavra, ele o molda de acordo com sua inteligência. Deus lhe fornece os materiais. Cabe a ele fazer uso. É dessa forma que as raças mais avançadas têm um organismo, ou se preferem, uma ferramenta mais aperfeiçoada que a das raças primitivas. Assim se explica igualmente o estilo especial que o caráter do Espírito imprime aos traços da fisionomia e as maneiras do corpo.

KARDEC, Allan. A Gênese. Editora FEAL.

Os erros, baseados nesses falsos conceitos, seguem a mancheias, no capítulo. Não vou comentá-los. No capítulo seguinte, “Transmissão Energética e Fluídica”, os autores continuam repetindo conceitos falsos, baseados nos mesmos erros, de origem materialista, difundidos pelos fluidistas do passado, que se contrapunham às ideias das ciências do Magnetismo e do Espiritismo. É assim que repetem, ipsis leteris, a erradíssima ideia de que o passe seria uma “transmissão energética e/ou fluídica”. Isso é falso, tão falso quanto as ideias que os supostos Espíritos repetem na resposta à pergunta nº 92:

  • “O magnetismo instiga a curiosidade e é uma ciência intrigante, mas exige o conhecimento necessário para não oferecer riscos a quem o pratica ou a quem o recebe. Não podeis incluir sua prática na Doutrina ou confundi-lo com fluido magnético.” – Não existe fluido magético, então do que é que esse Espírito está falando?
  • “Magnetizar é uma atividade antiga, que se utiliza do fluido vital” – não existe fluido vital!
  • “Fluido magnético é diferente de magnetismo e é exalado sempre que há a necessidade, através do concurso dos desencarnados ou de encarnados com o devido preparo” – mesmo erro, com um agravante: o magetismo é a interação da vontade, através do pensamento consciente, sobre a vontade do outro, que também precisa estar conscientemente com vontade de ser ajudado. Não há transferência de nada ((Mesmer – A Ciência Negada do Magnetismo Animal, por Paulo Henrique de Figueiredo)).

Retorno à Vida Espiritual

É claro que, pelo que vimos, não poderia faltar, ainda que em contrário a tudo aquilo que o Espiritismo já ensinou e que a razão confirma, uma grande discussão a respeito dos conceitos de “colônias espirituais”, umbral, dores físicas nos Espíritos, etc. É a velha mania de querer materializar o mundo dos Espíritos.

Sexualidade, Sexo e Moral

Para completar nossa análise, nos reportamos à questão nº 505, Parte Terceira, cap. III – aborto:

505. Ocorrendo concepção mediante o estupro, é correto abortar?

— Não, não é correto em nenhuma circunstância, pois todos deveis passar pelas vossas próprias provas. Ninguém é mãe ou filho por casualidade. A lei divina é sábia e tem como principal meta corrigir ou atenuar sofrimentos. A lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações. Interromper a reencarnação de um espírito, mesmo decorrente de um estupro, não é correto: somente trará mais dor e ampliará o sofrimento dos envolvidos. A preservação da vida diante da dor da violência é um ato de amor. Que possais sempre combater o mal com o amor, por mais difícil que seja.

Grifos meus

Um completo desparate! Em contrário daquilo que encontramos em O Livro dos Espíritos, pergunta 359,

359. No caso em que o nascimento da criança puser em perigo a vida da mãe, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?

“Preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.”

A resposta à questão nº 505, da obra em análise, afirma que jamais o aborto deve ser cometido. Pior: que se a mulher foi estuprada, é porque, nas palavras dos Espíritos, “a lei de causa e efeito gera responsabilidades por todos os vossos atos, desta e de outras encarnações“. Em outras palavras: o que está sendo dito nessa obra, que visa complementar e atualizar o Espiritismo é que a mulher estuprada apenas está pagando, pela lei de talião, uma falta de outra vida. Isso é um absurdo completo e desmoralizante. Preciso reafirmar, em encontro a OLE, que o aborto é preferível quando a mãe está em risco, e quem somos nós para avaliar o risco emocional e psicológico de uma mulher que tenha passado por tal trauma, que nasce do crime praticado por escolha do outro, e não pelo efeito de uma suposta cobrança de dívidas!

Conclusão

A obra, em si, parece uma verdadeira luta de incongruências, falsos conceitos, e algumas verdades. Parece que, se há realmente a participação de mais de um Espírito, esses Espíritos tem conhecimentos diferentes, pois a contradição é frequente. Há diversas ideias absurdas e erradas, em contradita com os postulados mais básicos do Espiritismo, como há algumas verdades espalhadas pelo meio. Que fazer, então? Cremos que o melhor é seguir o conselho do Espírito de Erasto:

[…] é melhor repelir dez verdades momentaneamente do que admitir uma só mentira, uma única teoria falsa, porque sobre essa teoria, sobre essa mentira podereis construir todo um sistema que desmoronaria ao primeiro sopro da verdade, como um monumento erigido sobre areia movediça, ao passo que se hoje rejeitardes certas verdades, certos princípios, porque não vos são demonstrados logicamente, logo um fato brutal ou uma demonstração irrefutável virá afirmar-vos a sua autenticidade.

Resta reafirmar que a intenção deste artigo não é nada mais que a de alertar, inclusive ao grupo de onde se originou esse livro, que tenham muito cuidado para não se envolverem sob essas teias de falsas ideias, que muito custarão sua tranquilidade, no futuro. Que estudem a fundo Allan Kardec, inclusive – e principalmente – na Revista Espírita. Que estudem as novas obras, que vêm recuperar os os conhecimentos esquecidos no tempo. Que deixem de lado, pelo menos por ora, os conceitos resultantes de obras mediúnicas, de modo a buscarem o aprendizado necessário. E que não se esqueçam, jamais, da importantíssima exortação de Allan Kardec, em A Gênese:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

É claro que o Espiritismo, até certo ponto, na parte que tange ao conhecimento humano, é interminável, mas não será sobre erros que ele será continuado, principalmente quando se parte do erro fundamental, que é tratar os Espíritos como reveladores, não respeitando o método necessário, pois os Espíritos não são reveladores da verdade, a Doutrina não se faz apenas por perguntas e respostas, mas também pela investigação e a observação dos Espíritos de todas as ordens, dos mais inferiores aos mais superiores.

É interessante notar, além disso, que, em se tratando de supostos Espíritos superiores, conforme pressupõem os pesquisadores humanos envolvidos, em nenhum momento corrigiram os erros flagrantes dos últimos, já que o conhecimento doutrinário já existe. Ao invés disso, sempre corroboraram as informações e os conceitos errados dos quais partiam os encarnados.

O erro principal desta obra surge da ausência de observação, como demonstramos, das características fundamentais da ciência espírita, tão bem explicada por Allan Kardec na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo (grifos meus):

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.”

Num momento em que os esforços pela retomada do Espiritismo se multiplicam, se multiplicam os esforços contrários, com a finalidade (tola, convenhamos) de causar confusão e atraso. É necessário estar em guarda, sobretudo no que tange ao frequente convite das sombras, instigado pelas imperfeições humanas, quais a vaidade e o orgulho. Ora, haverá algo mais instigante, nesse sentido, do que se dizer o novo eleito a continuar o grandiosíssimo trabalho de Allan Kardec? Não sejamos nós, e não seja você, em seu grupo e em suas palestras, a auxiliar o trabalho dos Espíritos que ainda não entenderam o bem e que contrários ao progresso da humanidade.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.” – Espírito de Verdade




Revisitando André Luiz: Ação e Reação

Depois da descoberta de que, de Espiritismo, eu não conhecia nada (o que se deu há quase um ano) e com a confirmação de que uma série de dúvidas que eu sempre mantive em minha mente, e que vieram se acentuando conforme passei a colocar a cabeça para funcionar, deixei de ler as obras realizadas através da mediunidade de Chico Xavier.

Recentemente, porém, instigado pela sugestão de uma moça, em um grupo, que recomendou estudar a obra Ação e Reação para entendermos o porque os animais sofrem dores, encontrei diversas incongruências, desde as várias já conhecidas, entre os “ensinamentos” transmitidos por André Luiz e os postulados doutrinários do Espiritismo, passados pelo duplo controle do crivo da razão e do ensinamento geral dos Espíritos.

Não mais posso deixar passar, cegamente, diversos conceitos que, antes, eram mais ou menos aceitos sem raciocinar. Não após passar a conhecer Allan Kardec em sua essência, através dos estudos da Revista Espírita, e também após começar a entender os conceitos de autonomia e moral, fundamentados pelo Espiritualismo Racional e desenvolvidos pelo Espiritismo.

Resgates coletivos? Ação e reação? Olha, se tem alguma forma de tirar algo de útil, dessa obra, é primeiro necessário conhecer o Espiritismo, profundamente, entendendo-o como desenvolvimento do Espiritualismo Racional e fazendo uso de seus conceitos, pois as mais absurdas ideias têm se espalhado, na Doutrina, por conta desse desconhecimento.

Veja só que complicado:

“Em nosso estudo, porém, analisamos a dor-expiação, que vem de dentro para fora, marcando a criatura no caminho dos séculos, detendo-a em complicados labirintos de aflição, para regenerá-la, perante a Justiça… É muito diferente… “

Ora, está estabelecido, pelo estudo do Espiritismo, que a expiação e a dor não andam inerentemente juntos. O trecho acima leva o leitor incauto a entender que, perante a “Justiça [divina]”, o ser se regenera pela dor, sendo que a dor é uma condição inerente ao Espírito encarnado, e difere de sofrimento moral. Da dor física, sofre o mau e o bom. A expiação pode passar bem longe da dor, mas contar apenas com dificuldades, muitas vezes moralmente sofridas, que visam, segundo o planejamento do Espírito, dar-lhe as oportunidades para o aprendizado.

Contudo, de posse dos novos (na verdade, antigos) conhecimentos, poderíamos dar todo um significado diferente para esse trecho, pela simples observação do termo “que vem de dentro para fora”, o que implica que essa dor está vindo da consciência para o exterior.

É preciso muito cuidado para se ater sobre essas obras — que, na verdade, são romances, e não fontes de estudos — pois sabemos das enormes reservas que Kardec sempre teve com relação às ideias espirituais não passadas pelo duplo controle da razão e do ensinamento geral dos Espíritos. Além disso, sem estar de posse dos conhecimentos mencionados, os romances, em geral, conduzem os leitores para um caminho totalmente adverso do que ensina o Espiritismo, em verdade, e podem causar (como têm causado) mais mal do que bem.

Portanto, aos estudos!




Um ultrage: o materialismo e o dogma religioso no seio do Movimento Espírita

Imagem de capa: foto de Asiama Junior no Pexels

Ontem mesmo, escrevia aqui, neste blog, o artigo “Espiritismo Raiz“, falando das subversões absurdas sendo realizados por pessoas que adotam o título de Espíritas, mas que, de Espiritismo, não falam nada. Falam, muito, de conceitos de certos Espíritos, o que, em definitivo, não constitui a Doutrina. Indivíduos, esses, que sob as falsas vestes do “evangelizador”, com dulcíferas palavras do Evangelho de Jesus (já vimos um caso desses na prática, apresentado por Kardec, no artigo Obsedados e Subjugados: os Perigos do Espiritismo), as tomam para, lenta e progressivamente, subvertê-lo às mais absurdas e escancaradas ideias, ainda anteriores ao próprio Cristo, dignas do tempo em que o ser humano tinha consciência escravizada pelas ideias religiosas da heteronomia, do pecado e do castigo.

Eis que, logo em seguida à conclusão desse artigo, indo aos grupos Espíritas para compartilhamento, me deparo, no maior deles, com centenas de milhares de seguidores, a seguinte postagem, de um dos administradores do grupo:

LIMPEZA DE DNA DE VÁRIAS GERAÇÕES

Eu, _____________ ( seu nome), quebro, destruo, desintegro e pulverizo toda a negatividade que trago instaurada da árvore genealógica de meu Pai e minha Mãe, desde a primeira geração que formou suas famílias até a herança que recebemos deles nesta vida((Essa ideia está diretamente subordinada ao dogma do pecado original, que, apesar de partir de uma figura de linguagem, em uma época muito afastada, foi instituído pela Igreja Católica Romana como tal, com a finalidade de aprisionar as consciências dos fiéis a seu bel-prazer)).

[…]

Estou tirando tudo isso do meu ADN((O ácido desoxirribonucleico é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos e alguns vírus, e que transmitem as características hereditárias de cada ser vivo (ref: Wikipédia). Essa frase resume tudo: em contrário à demonstração, pelo Espiritismo, da alma e de suas relações com os Espíritos como o princípio de tudo o que concerne o ser encarnado, ela é totalmente materialista!))!
DECRETO E INSTAURO AQUI E AGORA:
Um sistema de saúde, amor, abundância, prosperidade, serenidade, confiança e felicidade guiado sob as leis universais.

Fiquei e continuo perplexo e estupefato! Consideraria válido encontrar uma mensagem desse teor em um grupo de religiosos ligados às ideias do pecado original e do materialismo, contrários ao Espiritismo e sua doutrina libertadora… Mas dentro de um grupo “Espírita“, que institui, como a primeira de suas regras, que “nosso principal objetivo é o ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA“, e pelas mãos de um administrador?! Jamais! Ora, chega a ser um desrespeito à própria Doutrina Espírita e ao empenho de Kardec em combater, à luz da razão e com grande esforço, justamente esses dois sistemas contrários ao Espiritismo e à libertação do homem: o materialismo e o dogmatismo religioso.

A intenção, aqui, não é descer ao nível do ataque pessoal. Cada um com a sua consciência e com os resultados de suas ações. O que desejo, de modo firme, é destacar os seguintes dois pontos, importantíssimos:

  1. Cuidado, prezado leitor, com a onda de moralismo evangélico espalhado no meio espírita! O Evangelho é, sim, muito importante, mas é preciso que o Espiritismo seja estudado para bem compreendê-lo. Existem muitos “lobos em pele de cordeiro” que se escondem sob as palavras do Evangelho, mas que, na verdade, disseminam ideias contrárias a ele.
  2. Estivemos por muito tempo absorvidos na inação e na ausência dos estudos. É por conta disso que as falsas ideias se disseminam a galope. É nossa responsabilidade, frente à doutrina e a nós mesmos, estudá-la, aplicar suas consequências morais em nossas próprias vidas e disseminá-la em sua essência! Não podemos mais aceitar que tais ideias continuem sendo disseminadas no meio espírita, minando a Doutrina de dentro para fora!

O espírita não estuda sequer o Evangelho Segundo o Espiritismo, pois, se estudasse, poderia estar em guarda. Não é à toa que São Luís assim se expressa, sobre os falsos profetas:

Se vos disserem: “O Cristo está aqui”, não vades; ao contrário, tende-vos em guarda, porquanto numerosos serão os falsos profetas. Não vedes que as folhas da figueira começam a branquear; não vedes os seus múltiplos rebentos aguardando a época da floração; e não vos disse o Cristo: Conhece-se a árvore pelo fruto? Se, pois, são amargos os frutos, já sabeis que má é a árvore; se, porém, são doces e saudáveis, direis: “Nada que seja puro pode provir de fonte má.”

É assim, meus irmãos, que deveis julgar; são as obras que deveis examinar. Se os que se dizem investidos de poder divino revelam sinais de uma missão de natureza elevada, isto é, se possuem no mais alto grau as virtudes cristãs e eternas: a caridade, o amor, a indulgência, a bondade que concilia os corações; se, em apoio das palavras, apresentam os atos, podereis então dizer: Estes são realmente enviados de Deus.

Desconfiai, porém, das palavras melífluas, desconfiai dos escribas e dos fariseus que oram nas praças públicas, vestidos de longas túnicas. Desconfiai dos que pretendem ter o monopólio da verdade!

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Grifos meus.

O Espírito de Erasto, na mesma obra, diz o seguinte:

Os falsos profetas não se encontram unicamente entre os encarnados. Há-os também, e em muito maior número, entre os Espíritos orgulhosos que, aparentando amor e caridade, semeiam a desunião e retardam a obra de emancipação da humanidade, lançando-lhe de través seus sistemas absurdos, depois de terem feito que seus médiuns os aceitem. E, para melhor fascinarem aqueles a quem desejam iludir, para darem mais peso às suas teorias, se apropriam sem escrúpulo de nomes que só com muito respeito os homens pronunciam.

Ibidem. Idem.

Essa exortação, porém, não carrega o significado de que não devemos estar a postos contra os lobos travestidos de cordeiro, pois são eles mesmos que semeiam a desuniam ao lançar, no meio das ideias consoladoras, o fruto espinhoso das velhas religiões. Kardec, aliás, destaca a necessidade de afastar de se afastar desses indivíduos, inclusive quando médiuns:

Deve-se observar que, quando os bons Espíritos veem que um médium deixa de ser bem assistido e se torna, pelas suas imperfeições, presa dos Espíritos enganadores, quase sempre fazem surgir circunstâncias que lhes desvendam os defeitos e o afastam das pessoas sérias e bem-intencionadas, cuja boa-fé poderia ser laqueada. Neste caso, quaisquer que sejam as faculdades que possua, seu afastamento não é de causar saudades.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1862. Grifo meu.

Nada disso significa que devemos combater com rudeza ou ódio, muito pelo contrário, pois estaríamos em erro também. Mas devemos combater as falsas ideias pela disseminação do verdadeiro Espiritismo, aquele que é verdadeiramente consolador. E como fazer isso? Entendendo o Espiritismo e seu contexto! É preciso compreender o Espiritualismo Racional((recomendamos estudar o livro Pequenos Elementos de Moral, de Paul Janet, além de estudar a obra Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, por Paulo Henrique de Figueiredo, ou acompanhar os vários vídeos tratando desse assunto, com esse autor, no Youtube)), é preciso estudar a essência Doutrinária em suas obras não adulteradas((como sempre, recomendamos estudar as obras O Céu e o Inferno e A Gênese conforme as edições da editora FEAL, traduzidas e comentadas, dentre outros, por Paulo Henrique de Figueiredo, bem como acompanhar também o estudo dessas obras no canal Espiritismo para Todos)) e é preciso estudar a Revista Espírita, como temos feito, de modo a entender o que realmente é o Espiritismo e como foi a formação dessa doutrina.

Enfim: é tempo de se movimentar. Não é somente o meio espírita que carece da recuperação das ideias da teoria moral desenvolvida pelo Espiritismo e fundamentadas pelo Espiritualismo Racional: é toda a humanidade.

Faça a sua parte.




Espiritismo Raiz e Eduardo Sabbag

Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. Não é, de maneira alguma, adotar ideias místicas nascidas de opiniões próprias e alheias, como infelizmente o Eduardo Sabbag, do cana Espiritismo Raiz, infelizmente tem feito. Mais um indivíduo com um potencial tão grande de auxiliar o progresso humano, mas que vê apenas a superfície do Espiritismo e favorece o atraso, pela divulgação de falsas ideias.

Tempos difíceis, esses que vivemos. Por toda a parte, mina-se a doutrina espírita dos mais variados absurdos. Por meio dos incautos, dos desavisados e da grande massa dos resistentes ao estudo necessário, o Espiritismo sofre tanto quanto a Física de Isaac Newton sofreria se não houvesse os estudiosos da Física para defendê-la de ideias como a não existência da Lei da Gravidade ou como sofreria a Astronomia se não houvessem que a defendesse contra as ideias persistentes do geocentrismo ou da Terra plana.

É claro que a base doutrinária será entendida de forma mais ou menos clara, a depender do progresso que o próprio Espírito tenha feito nesse sentido. É ao que Kardec se refere quando diz das ideias inatas, que encontram, em muitos, a plena aceitação racional, porque, para eles, elas são tão naturais quanto averiguar que o vapor da água é o fruto de sua evaporação. Contudo, o que se constata, largamente, é que a ausência do “instruí-vos”, deixa a nau à deriva, ao sabor do vento.

“Espíritas!, amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo. Todas as verdades são encontradas no Cristianismo; os erros que nele criaram raiz são de origem humana. E eis que, além do túmulo, em que acreditáveis o nada, vozes vêm clamar-vos: Irmãos! nada perece. Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade!” – (Espírito de Verdade. Paris, 1860.)

Allan Kardec – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. VI, item 5.

A exortação do Espírito de Verdade, ao recomendar o “instruí-vos”, deixa clara a necessidade de estudar a Doutrina Espírita, as vozes além do túmulo – o que requer metodologia científica. Mas os “espíritas” se esqueceram de quem foi Allan Kardec. Enterraram seu trabalho, junto ao seu corpo, e passaram a se limitar a conhecer o básico do essencial: a lei da reencarnação e as nossas relações com os Espíritos. Nem isso, porém, sobreviveu de forma ilesa às ideias absurdas, pois a reencarnação, de lei consoladora, se recheou de ideias de pecado e de castigo, e as nossas relações com os Espíritos perderam o objetivo de esclarecimento de outrora, convertendo-se, novamente, no mesmo tipo de relação que, pasmemos, tinha o homem com os Espíritos antes da vinda do Cristo.

932. Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?“

Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.”(O Livro dos Espíritos)

Sim, o cenário do Movimento Espírita é de entristecer. Com a morte de Allan Kardec, não voltamos apenas décadas, mas milênios, pois, sem a necessária instrução, nos deixamos uma vez mais subjugar pelas ideias aprisionantes das consciências e, por conseguinte, do progresso. Esvaziou-se a Doutrina do seu aspecto filosófico.

O “espírita” responde ao censo, dizendo, “essa é minha religião”, mas não sabe que o que diz abraçar é uma ciência, e não uma religião. Diz que a lê e estuda, mas nunca estudou Kardec a fundo: prefere ler romances, repletos das ideias de uns e outros, por mais absurdas que sejam. Aposentou o raciocínio e, com ele, a própria autonomia, num cenário que, para ele, parece muito mais cômodo – sem saber, porém, que também é dos mais sofridos. Abraça as ideias de carma, “lei do retorno”, “lei de ação e reação” e aceita profecias mediúnicas sem nem sequer questionar a própria consciência. E, enfim, quando é apresentado à razão, pelos poucos que tentam demonstrar o verdadeiro Espiritismo, aquele que Kardec estudou, dedicando vida, saúde e recursos, enfim, quando tem chamada a atenção, luta ferrenhamente por se manter agarrado ao cabresto que o conduz.

Desola-nos sair da caverna, atraídos pela luz, para verificar que, por toda a parte, essa luz está abafada pelo pó e pelas teias dos velhos conceitos religiosos. Dói ver as consciências inconscientes, presas aos conceitos materialistas e mesquinhos, sem a capacidade, por escolha própria, de ver o quanto sofrem pelo desconhecimento!

Vejam aquele! Ao seu lado, um Espírito bondoso, cheio de luz, sopra em seus ouvidos o bom conselho. O conduz, num momento de elevação mental, para a porta do conhecimento. Alguém lhe convida: “vamos estudar?”. Mas a luz se apaga de sua consciência: “quem é esse para me mandar estudar? Já li O Livro dos Espíritos e já passei por toda a a famosa coleção daquele Espírito que ensinou sobre o umbral e a vida espiritual – embora nem espiritualizado ele fosse. Além disso, sou médium e, nas minhas viagens astrais, vejo a verdade com meus próprios olhos!”.

Olhem aquele outro: é voluntário no centro espírita, mas não estuda. Uma mãe, em pleno sofrimento, veio buscá-lo: seu filho, nascido com deficiências físicas, lhe requer demais as energias. Está cansada. Seu filho se atormenta diariamente sob pesadas comoções: gritos, contorções. O voluntário tenta confortá-la com base no que conhece, e lhe diz que seu filho está sofrendo a lei de ação e reação, pois, provavelmente, foi um suicida na vida anterior. A mulher se horroriza e se afasta: “quem é esse para dizer tal coisa do meu amado filho? Esse Espiritismo não presta pra nada!”.

Ali vai mais uma. Está desesperada, pois disseram-lhe, em certo centro espírita, que o homem que ama é sua alma gêmea. Acontece, porém, que o homem desposou outra mulher. Que será dela, agora? Como poderá viver pela metade? Melhor acabar com seu próprio sofrimento, pensa ela. Num átimo de inspiração, vai ao centro espírita do caso anterior, onde conversa com o mesmo voluntário, que lhe diz que ela não deve jamais pensar em cometer o suicídio, pois, se assim fizer, ela ficará anos vagando no umbral ou no vale dos suicidas, e que ela deve suportar essa “prova”, pois deve ser consequência de um débito de vida passada. Ela houve, pesarosa, mas, saindo dali, pensa: não será melhor sofrer o castigo lá, do que ficar sofrendo aqui?

Eis um homem: está perseguido por pensamentos de autodestruição também. Ouve vozes: mate-se, chega de sofrer, dizem elas. Ele chega ao mesmo centro. O rapaz o diagnostica com obsessores, manda-o fazer uma famosa oração para afastar Espíritos e também lhe recomenda limpar a casa com anil. O cenário não muda e, depois de alguns meses, o homem acaba por tirar a própria vida.

Outro dia, outro cenário, busca o voluntário uma mulher. Está sofrendo abusos psicológicos e físicos de seu marido, que, viciado no álcool, volta ao lar com as piores companhias. Ela expõe todo o cenário. O voluntário lhe diz que ela está deve estar sofrendo a consequência da lei de ação e reação, pois deve ter feito um mal ao seu marido na vida passada. Por isso, deve suportar a tudo com coragem, de modo a “resgatar esse débito”.

Como dissemos, o cenário é, sim, um tanto desolador. Mas, se estamos conscientes disso, é porque precisamos fazer a nossa parte, começando por estudar, por conhecer, porque o Espírito só avança em moral pela própria vontade consciente. Espiritismo raiz é se debruçar sobre Allan Kardec, contextualizado pelo conhecimento do Espiritualismo Racional e do Magnetismo Animal. É estudá-lo com cuidado, em suas páginas originais, longe das adulterações de O Céu e o Inferno e A Gênese. É entender e retomar os aspectos filosófico e moral do Espiritismo, para, vivendo em nossas próprias vidas, sermos peças atuantes, e não mais inoperantes, na transformação social.

Há muitos falando, escrevendo, atuando em nome de algo que se chama Espiritismo no cartaz, mas que é dogma na essência, porque ainda há poucos estudando e atuando, em nome da Doutrina, inspirados no modelo probo e consciencioso de Allan Kardec, um homem que, com seu esforço, ajudou a formar a Doutrina com a maior capacidade de alavancar a mudança do mundo.

Espíritas: instruí-vos!




Punição e recompensa: você precisa estudar Paul Janet para entender Allan Kardec

Paul-Alexandre-René Janet

Nasceu em 30 de abril de 1823, em Paris, e morreu em 4 de outubro de de 1899, na mesma cidade.

Estudante da École normale supérieure em 1841, agrégé em filosofia em 1844 (primeiro) e doutor em letras em 1848, tornou-se professor de filosofia moral em Bourges (1845-1848), em Estrasburgo (1848-1857), depois em lógica em o Lycée Louis-le-Grand em Paris ( 1857 – 1864 ). A partir de 1862, foi professor adjunto de filosofia na Sorbonne, depois em 1864, ocupou a cátedra de história da filosofia nesta universidade até 1898. Foi eleito membro da Academia de ciências morais e políticas em 1864 e também foi membro do Conselho Superior da Instrução Pública em 1880.

A sua obra centra-se principalmente na filosofia, na política e na ética , em consonância com o ecletismo de Victor Cousin e, através dele, de Hegel.

https://pt.frwiki.wiki/wiki/Paul_Janet_%28philosophe%29

Janet foi contemporâneo de Allan Kardec. Suas obras demonstram, com excelência, o contexto filosófico no qual o codificador estava inserido, fazendo uso de seus conceitos.

Muitos, ao lerem Kardec, supõem que ele, devido às palavras que utilizou em suas obras, estava apenas reproduzindo ideias e conceitos originários da Igreja Católica. Nada mais longe da verdade, como veremos a seguir, pois, Kardec estava, na verdade, usando os conceitos largamente difundidos e compreendidos no meio da sociedade culta francesa que, aliás, era a classe que mais se interessava pelo estudo do Espiritismo.

Paulo Henrique de Figueiredo explica:

Durante o século dezenove, o que chamamos de ciências humanas foram estabelecidas a partir de um pressuposto espiritualista para sua constituição. Enquanto isso, nas ciências naturais, como Física e Química, predominavam o materialismo. Essa condição é muito diferente do que estamos habituados atualmente, quando a universidade é quase completamente orientada pelo pensamento materialista.

Essa corrente de pensamento era conhecida como Espiritualismo Racional. Pois era completamente independente das religiões formais e seus dogmas. A base fundamental era a psicologia, ciência da alma, que tinha como diretriz: “O ser humano é uma alma encarnada”.

Como está extensamente explicado no livro Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo, Allan Kardec fez da psicologia a base conceitual para desenvolver a Doutrina Espírita. Seu jornal de publicação mensal era a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos.

O Espiritualismo Racional foi ensinado, desde 1830, na Universidade de Paris, também na Escola Normal, onde os professores se formavam, e também nos Liceus, na educação dos jovens. Para estes, haviam manuais, como o de Paul Janet. Esse manual foi traduzido para diversos idiomas e adotado em muitos países, inclusive no Brasil.

Esse manual é de fundamental importância para se compreender a base conceitual dos estudos de Kardec, principalmente quanto à moral espírita.

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Tratado de Filosofia Paul Janet. Portal do Espírito, 22 de julho de 2019. Disponível em <https://espirito.org.br/autonomia/livros-tratado-de-filosofia-paul-janet>. Acesso em 19 de maior de 2022.

Utilizando, dissemos, os conceitos do Espiritualismo Racional, que era ensinado na Universidade de Paris e na Escola Normal Superior de Paris, Kardec desenvolve os mais diversos conceitos filosóficos da Doutrina Espírita, à luz dos ensinamentos concordes dos Espíritos. Assim, vai dar um desenvolvimento profundo às ideias da moral tratada por esses estudiosos, abordando os conceitos de dor e prazer, bem e mal, dever, caridade desinteressada, liberdade, mérito, punição e recompensa. Vamos, a título de ilustração, demonstrar a construção desses últimos dois conceitos:

A recompensa e a punição

Em sua obra Pequenos Elementos de Moral, disponível para download, em PDF, neste link, Janet constrói os diversos conceitos filosóficos que vão dar suporte àqueles da recompensa e da punição. Ele assim se expressa: “o prazer, considerado como a consequência devida à realização do bem, chama-se recompensa, e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição”.

O prazer, para ele, é a busca de vivenciar aquilo que a vida permite, sendo que existiriam, assim, os prazeres bons e os prazeres ruins, variando, nesse intervalo, segundo certeza, pureza, intensidade, duração, etc. Assim, o prazer fugitivo da embriaguez seria um mau prazer, enquanto que o prazer durável da saúde seria um bom prazer:

Há prazeres muito vivos, mas passageiros e fugitivos, como os prazeres das paixões ((Assim define o dicionário Oxford: “no kantismo, inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e afastá-la da desejável capacidade de autonomia e escolha racional.”. Esse é o sentido de paixão, utilizado por Kardec e pelos filósofos de sua época)). Há outros que são duráveis e contínuos, como os da saúde, da segurança, da comodidade, da consideração. Sacrificar-se-ão esses prazeres que duram toda a vida a prazeres que duram apenas uma hora?

JANET, 1870 ((JANET, Paul. Pequenos Elementos de Moral. Tradução por Maria Leonor Loureiro. Paris, 1870))

Portanto, moralmente, o ser humano deveria buscar, sempre, os bons prazeres, que não produzam arrependimentos, preterindo-os aos maus prazeres, que geram arrependimentos e complicações:

A experiência nos ensina que não se deve buscar os prazeres sem discernimento e sem distinção, que é preciso usar a razão para compará-los entre si, sacrificar o presente incerto e passageiro a um futuro durável, preferir os prazeres simples e pacíficos, não seguidos de arrependimentos, aos prazeres tumultuosos e perigosos das paixões etc., numa palavra, sacrificar o agradável ao útil.

Ibidem

Fica claro, portanto, que o conceito de recompensa, utilizado nesse contexto, está ligado ao entendimento do regozijo de ter realizado uma ação ligada ao bem, ao passo que a punição é a dor gerada como consequência legítima do mal. Não existe nenhuma atribuição, portanto, a uma imposição mecânica de uma suposta “lei do retorno” ou “lei de reparação”, por Deus ou pelo “Universo”, pela má ação, como muitos insistem em apregoar, nem existem prêmios dados pela boa ação. Tudo é uma consequência moral, do próprio indivíduo para consigo mesmo, o que depende, necessariamente, do conhecimento da Lei:

Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita o desconhecimento da lei. Há, portanto, em todo homem um certo conhecimento da lei, quer dizer, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que se chama a consciência ou às vezes o senso moral.

Ibidem

Porém, para que o indivíduo aja moralmente, é preciso que tenha o livre-arbítrio:

Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um e outro sentimentos diferentes. É preciso ainda, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro ((Aqui os estudos do Espiritismo nos conduzem a outro entendimento: na verdade, o homem não escolhe entre bem e mal, porque, no fundo, se escolhe mal, é porque ainda não conhece a lei. O Espírito que realmente conhece e entende a Lei de Deus somente faz o bem, sempre.)); não se pode ordenar-lhe o que ele não poderia fazer, nem lhe proibir o que ele seria forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.

Ibidem

Mas é importante lembrar que o homem, como uma alma encarnada, é um conceito básico do Espiritualismo Racional, como define Janet, na mesma obra:

Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá, portanto, um legislador moral: é assim que a moral nos eleva a Deus. Sendo toda sanção humana ou terrestre demonstrada insuficiente pela observação, a lei moral precisa de uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.

Disso tudo, nasce o entendimento do vício e da virtude:

As ações humanas, dissemos nós, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, por causa da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime etc., por outro lado, a ação má ora é uma simples falta, ora um crime. Ela é condenável, baixa, odiosa, execrável etc.

Se, em um agente, se considerar o hábito das boas ações, uma tendência constante a se conformar à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício.

Ibidem

O mal, porém, é um julgamento de si mesmo (ninguém pode fazer mal ao outro ((Pelo princípio racional da autonomia, desenvolvido até aqui, o indivíduo pode apenas praticar um mal físico contra outrem, mas nunca um mal moral. Um sujeito pode roubar os pertences de outra pessoa, o que a ela causará algumas dificuldades, mas, em verdade, ele faz o mal a si mesmo, pois fere a lei moral, pelo que sofrerá a depender de seu estado de consciência. A vítima, por sua vez, à parte do contratempo material, poderá ou não fazer o mal a si mesma, à medida que se apegue ou não ao acontecido e gere, para ela mesma, algum sofrimento. Isto também dependerá de sua consciência da lei moral))), que depende da consciência do que se faz:

O julgamento que se faz de si mesmo difere segundo o princípio da ação que se admite. Aquele que perdeu no jogo pode afligir-se consigo mesmo e com sua imprudência ((Ou seja: ele pode perceber que fez um mal a si mesmo, perdendo dinheiro no jogo)); mas aquele que tem consciência de ter enganado no jogo (ainda que tenha ganhado por esse meio) deve desprezar-se quando julga a si mesmo do ponto de vista da lei moral ((Porque, ao se conscientizar do que fez, percebe que prejudicou o outro, e isso lhe gera remorso)).

Ibidem

E então, pouco mais adiante, ainda na mesma obra, Janet desenvolve o entendimento da satisfação moral e do arrependimento:

Relativamente às nossas próprias ações, os sentimentos se modificam conforme a ação esteja por fazer ou já feita. No primeiro caso, sentimos de um lado uma certa atração pelo bem (quando a paixão não é suficientemente forte para sufocá-lo), de outro, uma repugnância ou aversão pelo mal (mais ou menos atenuada segundo as circunstâncias pelo hábito ou pela violência do desejo). Esses dois sentimentos não receberam usualmente nomes particulares.

Quando ao contrário a ação foi realizada, o prazer que daí resulta, se agimos bem, chama-se satisfação moral, e se agimos mal, remorso ou arrependimento.

O remorso é a dor abrasadora, e, como indica a palavra, a chaga que tortura o coração após uma ação condenável. Esse sofrimento pode se encontrar naqueles mesmos que não têm nenhum pesar por terem feito mal e voltariam a fazê-lo. Ele não tem, portanto, nenhum caráter moral, e deve ser considerado como uma espécie de castigo infligido ao crime pela própria natureza. “A malícia, disse Montaigne, envenena-se com seu próprio veneno. O vício deixa como que uma úlcera na carne, um arrependimento na alma, que sempre se arranha e ensanguenta a si mesma.”

O arrependimento é também, como o remorso, um sofrimento que nasce da má ação; mas junta-se a ele o pesar por a tê-la realizado, e o desejo (ou a firme resolução) de não mais realizá-la.

Para Janet, então, o remorso não seria, ainda, o sofrimento gerado pelo arrependimento, mas apenas uma certa tortura por realizar a ação condenável. Em outras palavras, não se sofre porque se realizou o mal, mas apenas porque o que se realizou é reprovável. E então, Kardec, em O Céu e o Inferno ((Lembrando, sempre, que essa obra foi adulterada e mutilada a partir da quarta edição francesa, que serviu de base a todas as demais edições e traduções. Os temas abordados neste artigo foram os que mais sofreram com essas adulterações)), falando de castigo, que tem, para Janet, o mesmo significado que punição ((Diz Janet: “A ideia de punição ou castigo também não se explicaria se o bem fosse apenas o útil. Não se pune um homem por ter sido inábil; pune-se por ter sido culpado”)), assim se expressa:

A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução por Emanuel G. Dutra, Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. 2021.

Ou seja: Deus não pronuncia castigos ou punições contra o indivíduo. É ele mesmo quem se pune, através das consequências legítimas do mal realizado. Então, para encerrar esse sofrimento, precisa se arrepender, em primeiro lugar, isto é, identificar que fez algo condenável (remorso) e juntar a isso o pesar de tê-lo realizado (arrependimento, que é moral), bem como o desejo de não mais realizá-lo. Para alcançar esse entendimento, é preciso que o Espírito avance em inteligência e, para reparar o mal realizado (que já ficou claro que cometeu contra si mesmo, e não contra outrem, do que decorre que ele deve reparar em si a origem desse mal), o Espiritismo demonstra, sem possibilidade de erro, a existência da lei da reencarnação.

Tudo isso, enfim, para entender os conceitos de punição e recompensa. Eis que, de acordo com todo o exposto, Kardec diz, em trecho anterior àquele supracitado:

A punição é sempre a consequência natural da falta cometida. O espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que, estando sua atenção concentrada incessantemente sobre as consequências desse mal, compreende-lhe melhor os inconvenientes e é motivado a corrigir-se.

E então, em razão de tudo isso, Kardec assim inicia o capítulo IV essa obra – O Inferno:

O homem sempre acreditou intuitivamente que a vida futura deveria ser mais ou menos feliz na razão do bem e do mal praticado neste mundo. A ideia, porém, que ele faz dessa vida futura está na proporção do desenvolvimento de seu senso moral e da noção mais ou menos justa que tem do bem e do mal. As penas e as recompensas são o reflexo dos instintos que nele predominam.

Mas cabe lembrar que, utilizando desses conceitos filosóficos de seu tempo, Kardec, ao mesmo tempo, os desenvolveu pelas consequências morais da ciência espírita.

O espiritualismo em Kardec

Cabe, antes de encerrar, lembrar que Allan Kardec várias vezes utilizou a palavra espiritualismo em sua obra. É ao Espiritualismo Racional que ele se refere:

Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857

Isso fica, enfim, comprovado pelo seguinte trecho da Revista Espírita de 1868:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Conclusão

Eis aqui claramente apresentada a prova de que não podemos conhecer e compreender a filosofia de Kardec sem compreender a filosofia e a moral de seu tempo, plenamente inseridas no contexto do Espiritualismo Racional francês, assim como não podemos compreender plenamente a ciência espírita sem o entendimento das ciências do Magnetismo [de Mesmer] e da Psicologia (esta também inserida no ER, sob a divisão das ciências morais).

Ficou claramente evidenciado que Kardec não fazia uso de conceitos religiosos dogmáticos, mas apenas de palavras que, se encontrando nesses conceitos, foram ressignificadas primeiramente sob a filosofia de então e, depois, sob a filosofia espírita.

Portanto, faz-se muito necessário o estudo e a difusão desse conhecimento. Uma vez mais, convidamos o leitor a estudar e distribuir, em todos os meios espíritas possíveis, a obra referida neste artigo, bem como o presente texto, que resulta de um esforço realizado também nesse sentido.




Ninguém é professor de Espiritismo

Imagem de capa: Foto de Andrea Piacquadio no Pexels

Muito tem sofrido a Doutrina Espírita por conta dos indivíduos que acham que, porque leram Kardec — o que é bem diferente de estudar e compreender Kardec, o que requer conhecimentos outros, devidamente contextualizados, como é o caso do Espiritualismo Racional — creem que podem se colocar na posição de ensinar, à sua moda, o que é o Espiritismo e, pior, como são os conceitos e temas que sequer foram abordados ou desenvolvido no espaço de tempo em que o Espiritismo se desenvolveu como deve ser: como ciência.

Veja: O Espiritismo é uma lei natural. Como tal, sempre existiu e sempre existirá e, dessa lei, conhecemos apenas uma pequena parte, a doutrina nomeada como Espiritismo. Reconhecer, porém, que conhecemos muito pouco dessa lei da natureza não significa dizer que o que conhecemos é inválido e, em certos aspectos, conclusivo, desde que esteja muito bem fundamentado, com segurança, nos conceitos doutrinários. Significa apenas reconhecer que a ciência espírita não está concluída, mas, sim, que é a base, assim como os estudos de Isaac Newton deram base à Física.

Nosso papel primeiro deve ser o de estudante humilde, porque, na maioria das vezes, nem sequer entendemos todos os conceitos brilhantemente desenvolvidos por Allan Kardec em suas obras. Aliás, sabendo que as suas duas últimas obras, O Céu e o Inferno e A Gênese foram adulteradas e que o Espiritualismo Racional e o Magnetismo foram quase apagados pelo tempo, temos que reconhecer que aprendemos muita coisa errada e que outras tantas deixamos de aprender.

O que se tem, hoje, em geral, é um conhecimento muito parco e superficial, além de muitas vezes distorcido, do Espiritismo “contido” nas obras de Kardec. Não bastasse isso, colocando Kardec no esquecimento, passamos a admitir como doutrinários conceitos outros que, na maioria das vezes, não passaram pelo crivo da razão, nem pelo controle do método científico, tão bem desenvolvido pelo codificador. E, munidos de toda essa falta de conhecimento, muitos têm desejado ditar o Espiritismo, segundo suas visões e concepções. É por isso que, daquilo que não temos certeza, por não haver nada conclusivo no Espiritismo, não podemos nada afirmar, embora possamos afirmar, paradoxalmente, que muitas certezas, hoje persistentes no movimento espírita, não são exatas, como a existência do umbral.

Não vamos muito além. Nossos textos e estudos são fartos de apontamentos e de exemplos sobre tudo o que dissemos, acima. Terminamos reafirmando: não somos professores, mas estudantes, e jamais estaremos fechados a reavaliar qualquer ideia ou conteúdo que se mostre errado um incompleto, de acordo com uma irretorquível e irrecusável lógica dos fatos que, porventura, tenhamos vindo a não compreender ou conhecer completamente.

É a isso, pelo bem da humanidade, que convidamos a todos.




O tratado de filosofia social de Allan Kardec

Você sabia que Kardec tem um verdadeiro “tratado de filosofia social”? Pois é. Vamos demonstrá-lo a seguir, mas, antes, vamos falar um pouquinho sobre o atual estado da sociedade humana.

Muito se tem falado do momento que passamos: das transformações sociais, das comoções, do período de transição que atravessamos em rumo a um planeta de regeneração. Contudo, há uma enorme sombra pairando sobre o imaginário coletivo, acostumado às ideias materialistas ou emergencialistas. Parece que, para onde quer que olhemos, não existe mais que tristeza, dor e desprezo. Acostumamo-nos a olhar para o próximo como inimigo, como alguém disposto a nos fazer o mal ou, na melhor das hipóteses, a ignorar nossa mera existência. Acontece, porém, que somos uma sociedade afastada dos conceitos essenciais da espiritualidade e do bem. Dizemos ser espíritas, ou espiritualistas, para, contudo, por falta de estudar o Espiritismo, materializar o mundo dos Espíritos, que deveria ser o alvo da consolação, afastado das misérias da carne e, quando tratamos do ser humano, nos acostumamos a esquecer que, por dentro e por fora daquele corpo, existe um Espírito que a tudo comanda, e que é a origem de toda a sua ação.

Como veremos em Kardec, é uma falsa suposição acreditar que “a humanidade está perdida”, como muito se tem ouvido. Não: a humanidade está apenas distraída, porque deixou de conhecer aquilo que dá base ao desenvolvimento moral. Eis o que vamos recuperar, neste artigo.

Esquecemos, temos dito, de Kardec, mas também desconhecemos tudo aquilo que se chamou de elementos de moral, existentes no Espiritualismo Racional e tão bem definidos por Paul Janet ((JANET, Paul. PEQUENOS ELEMENTOS DE MORAL)) para, depois, servirem de base e serem desenvolvidos, na prática, pelo estudo do Espiritismo. Estava, com os espiritualistas racionais, a teoria, fundamentada na razão, de que o ser humano é um Espírito encarnado, respondendo às leis de Deus, mas foi com Kardec, principalmente, que essa teoria foi desenvolvida de forma prática, pelo estudo das manifestações espíritas, estudo esse que, pelas mãos de Allan Kardec, se estendeu por cerca de doze anos, e que culminou nos tratados de filosofia mais belos e elevados que a humanidade jamais conheceu, porque se baseiam em nós mesmos, Espíritos, em nossa jornada rumo à felicidade.

Contido nas páginas originais de A Gênese ((Utilizamos a obra da editora FEAL, baseada na 1.ª edição francesa, original)), antes da adulteração post-mortem de sua quinta edição, no encerramento dessa obra de teor científico e moral, estão as reflexões de Kardec sobre o tema social e da evolução da humanidade. Vamos a ele:

Sinais dos tempos

Sob esse título, Kardec inicia o capítulo XVIII da obra, o último, e talvez o mais belo de todos. Kardec, na data de lançamento dessa obra, estava a pouco mais de um ano de sua morte. Nele, ele demonstra que a humanidade segue o movimento do progresso de forma inevitável, posto que é uma Lei da Natureza, isto é, uma Lei de Deus, que nunca descansa. Segundo Kardec:

A humanidade realizou até o presente incontestáveis progressos. Os homens, por sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado em relação às Ciências, Artes e ao bem-estar material. Ainda lhes resta um imenso progresso a realizar: fazer reinar entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade para assegurar o bem-estar moral.

Saindo do estado da infância, a humanidade entrou numa nova era, onde o necessário desenvolvimento moral viria se realizar, destruindo, em si, todos as paixões, isto é, tudo aquilo que pudesse dar azo às imperfeições:

Não é mais somente o desenvolvimento da inteligência que é necessário aos homens, é a elevação dos sentimentos e, portanto, é preciso destruir tudo o que possa superexcitar em si o egoísmo e o orgulho.

Precisamos compreender que Kardec via a tudo isso com um otimismo enorme. Inserido no contexto do Espiritualismo Racional e das Ciências Morais e com o rápido desenvolvimento e a larga aceitação do Espiritismo pelos homens cultos, ele previa que, com a exceção de algumas dificuldades, a revolução moral pelo Espiritismo se daria a largos passos. Não poderia prever, contudo, que, após sua morte, tudo tomaria um rumo tão adverso, com a proibição do ensino das Ciências Morais na França, o desvio do Movimento Espírita, principalmente por Leymarie ((Para bem compreender esses fatos, é importante ler O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato)), e as guerras, enfim, que acabaram de lançar o mundo na necessária busca pelo cuidado na sobrevivência diária — em outras palavras, o homem teve que se preocupar muito mais com as questões da matéria, não tendo ensejo, por muito tempo, para cuidar das coisas do Espírito.

Kardec acreditava que esse período marcava, em definitivo, uma nova fase moral para o Espírito humano:

Esse é o período no qual entramos a partir de agora e marcará uma das fases principais da humanidade. Essa fase, que está em elaboração neste momento, é o complemento necessário do estado anterior, como a idade adulta é o complemento da juventude. Podia, pois, ser prevista e anunciada antecipadamente, por isso podemos dizer que os tempos marcados por Deus são chegados.

Neste tempo aqui não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Tende a se estabelecer uma nova ordem de coisas, e os homens que são os seus maiores opositores, sem saber, contribuem para isso.

E então, completa, como se estivesse falando exatamente dos momentos atuais, onde filósofos combatem a espiritualidade:

É nesse preciso momento, quando se encontra excessivamente oprimida em sua esfera material, onde a vida intelectual transborda e o sentimento de espiritualidade floresce, que homens se dizendo filósofos pretendem preencher o vazio com doutrinas do neantismo ((Doutrina do nada, niilismo)) e materialismo! Estranha aberração! Esses homens, que pretendem impulsionar a humanidade, esforçam-se em circunscrevê-la nos limites da matéria, da qual almeja escapar. Ocultam a perspectiva da vida infinita e lhe dizem, mostrando o túmulo: Nec plus ultra ((Expressão latina que significa “nada além!”))!

O Espírito social

Então, como dizíamos, olhando para o resultado de mais de cem anos de materialismo exacerbado e negação da espiritualidade humana, vemos, na sociedade, o mal das paixões instalado: a guerra, a violência, o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a avareza, enfim, tudo aquilo que é resultado do não conhecimento de algo melhor e mais importante, toma o meio social, onde não é possível identificar a máxima do Evangelho, “faz a outrem o que gostarias que fosse feito a ti mesmo. – Não faças a outrem o que não gostarias que te fizessem.”. Vivemos também sob um tratado de filosofia social, mas ele é materialista e niilista!

O homem, estacionado nas ideias materialistas, se esquece de que existe um futuro. Se esquece de que, além do corpo, existe a sua verdadeira vida, a vida eterna, que se estende desde muito ao infinito, e ignora, portanto, que cabe aos seus esforços em viver o bem, pelo cumprimento das leis divinas para consigo e para com todos os outros, alcançar mais cedo ou mais tarde a felicidade reservada aos bons. Diz Kardec:

Pela lei da pluralidade das existências, o homem se relaciona ao que fez e ao que fará com os homens do passado e os do futuro; já não pode dizer que nada tem em comum com os mortos, pois uns e outros se encontram constantemente, neste e no outro mundo, para ascender juntos a escala do progresso, prestando um mútuo apoio. A fraternidade não mais se restringe a alguns indivíduos unidos pelo acaso durante a curta duração efêmera de uma vida, mas é perpétua como a vida do Espírito, universal como a humanidade, a qual constitui uma grande família onde todos os membros são solidários uns com os outros, qualquer seja a época em que viveram.

Ora, como desejar uma humanidade fraterna se ela vive o hoje, desejando o amanhã, somente com o propósito de abastecer suas necessidades e seus prazeres materiais individuais, ignorando que, além de dores e gozos, inerentes à matéria, o Espírito continua, tão evoluído quanto tenha se esforçado por fazer? Veja: a ação do Espírito junto à sociedade não é uma imposição, mas uma consequência, pois aquele que compreende e passa a viver o bem em si, por obrigação moral estende aos outros a mão amiga:

A fraternidade será a pedra angular da nova ordem social, mas não há fraternidade real, sólida e efetiva sem estar apoiada sobre uma base inabalável. Essa base é a fé; não a fé em tais ou quais dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se apedrejam mutuamente, pois, ao se amaldiçoarem, mantêm o antagonismo. Mas a fé nos princípios fundamentais que todos podem aceitar: Deus, a alma, o futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL ILIMITADO, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES. Quando os homens estão convencidos de que Deus é o mesmo para todos; que Deus, soberanamente justo e bom, não pode querer nada que seja injusto; que o mal vem deles e não Dele, então todos serão considerados filhos do mesmo Pai e estenderão as mãos uns aos outros.

A respeito do materialismo de seu tempo, Kardec diz que “um sinal não menos característico do período no qual entramos é a reação evidente que se opera no sentido das ideias espiritualistas ((A reação pelas ideias espiritualistas ocorreu em oposição ao período materialista pós-Revolução Francesa, representado pelos ideólogos (Destutt de Tracy, Cabanis, Volney, etc.). Os espiritualistas racionais, depois de 1830, como Royer-Collard, Victor Cousin, Théodore Jouffroy, entre outros, estabeleceram na Universidade de Paris (e nos colégios) as Ciências Filosóficas, entre elas a Moral Teórica e Prática, a Psicologia Experimental, a Teodiceia, considerando o ser humano como “alma encarnada”. Segundo Kardec, o Espiritismo se encontra entre essas Ciências, dando desenvolvimento a elas. (N. do E.))); uma repulsão instintiva se manifesta contra as ideias materialistas“. Hoje, pelo contrário, vemos as ideias materialistas sendo defendidas por todos os lados. Contudo, vemos um outro movimento: a sociedade, a cada dia mais, repulsa as ideias dogmáticas das religiões, causando um esvaziamento massivo das fileiras das organizações religiosas – inclusive do Movimento Espírita Brasileiro, que se transformou numa religião, cheia de dogmas. Interessante notar que as religiões que ainda detém alguma atração sobre as pessoas são, justamente, aquelas que passam mais tempo cultivando as ideias materialistas do que o contrário.

Esse, na verdade, é um movimento positivo. Não podemos esquecer que o movimento espiritualista, que deu margem ao nascimento do Espiritualismo Racional e, depois, ao Espiritismo, nasceu em contraposição às ideias materialistas de seu tempo, que, por sua vez, também nasceram em contraposição aos dogmas das religiões. O homem se tornou materialista por não ter nada melhor em que acreditar, até que as filosofias espiritualistas e espírita se desenvolveram — razão pela qual, justamente, ganharam tantos adeptos em pouco tempo e entre as classes mais cultas da sociedade.

O movimento que se opera no presente, depois de um gigantesco tombo que se estendeu por mais de um século, conduz também a esse resultado, e já podemos ver sinais nascentes desse trabalho que se opera, sendo que a recuperação da filosofia espiritualista e da ciência espírita e do magnetismo são os primeiros passos a dar suporte a tudo isso:

A nova geração marchará para a realização de todas as ideias humanitárias compatíveis com o grau de adiantamento ao qual tenha chegado. O Espiritismo, avançando para o mesmo alvo e realizando seus objetivos, se reencontrará com ela no mesmo terreno. Os homens favoráveis ao progresso encontrarão nas ideias espíritas um poderoso recurso, e o Espiritismo encontrará, nos homens novos, Espíritos plenamente dispostos a aceitá-lo. Diante dessa combinação de circunstâncias, o que poderá fazer quem quiser se colocar em seu caminho?

O Espiritismo não criou a renovação social, pois a maturidade da humanidade faz dessa renovação uma necessidade. Por seu poder moralizador, por suas tendências progressivas, pela elevação de seus propósitos, pela generalidade das questões que ela abraça, o Espiritismo está, mais que todas as outras doutrinas, apto a secundar o movimento regenerador.

Curioso: em certos momentos, parece que Kardec esta escrevendo sobre o momento atual. É que o cenário se repete: a humanidade, não tendo conseguido aproveitar, antes, o desenvolvimento das ideias espiritualistas, apenas se atrasou. Mas, como sempre, tendo conhecido o ápice do mal, o homem passa a buscar novas respostas para sua desolação moral.

A idade da regeneração: o trecho que não conhecíamos

Na adulteração dessa obra conclusiva, as perdas foram enormes, sobretudo pelas inúmeras supressões realizadas. Se desejar, compare esse último capítulo e verá o quanto ele foi mutilado. Na versão original, existe um pensamento muito profundo, mas também duro, de Allan Kardec, a respeito da resistência encontrada, pelo Espiritismo, dentre aqueles que, em definitivo, ainda não estão prontos para essa ordem de ideias, porque sua idade espiritual ainda não alcançou tal desenvoltura. Acompanhe:

Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau, mas muitos têm, por intuição, o germe das ideias novas que as circunstâncias farão desabrochar. Então, eles se mostrarão mais avançados do que se possa supor e seguirão com empenho a iniciativa da maioria ((Os indivíduos, em maioria, estão apenas distraídos. Não são necessariamente maus, nem empregam sua inteligência para o mal, mas apenas não a empregam para o bem. dêem-lhes coisas melhores, e eles rapidamente voltarão a raciocinar)).

Há, entretanto, os que são essencialmente refratários a essas ideias, mesmo entre os mais inteligentes, e que certamente não as aceitarão, pelo menos nesta existência; em alguns casos, de boa-fé, por convicção; outros por interesse. São aqueles cujos interesses materiais estão ligados à atual conjuntura e que não estão adiantados o suficiente para deles abrir mão, pois o bem geral importa menos que seu bem pessoal – ficam apreensivos ao menor movimento reformador. A verdade é para eles uma questão secundária, ou, melhor dizendo, a verdade para certas pessoas está inteiramente naquilo que não lhes causa nenhum transtorno. Todas as ideias progressivas são, de seu ponto de vista, ideias subversivas, e por isso dedicam a elas um ódio implacável e lhe fazem uma guerra obstinada. São inteligentes o suficiente para ver no Espiritismo um auxiliar das ideias progressistas e dos elementos da transformação que temem e, por não se sentirem à sua altura, eles se esforçam por destruí- lo. Caso o julgassem sem valor e sem importância, não se preocupariam com ele. Nós já o dissemos em outro lugar: “Quanto mais uma ideia é grandiosa, mais encontra adversários, e pode-se medir sua importância pela violência dos ataques dos quais seja objeto”.

O número de retardatários é ainda grande, sem dúvida, mas o que podem eles contra a onda que sobe, senão lançar nela algumas pedras? Essa onda é a geração que se ergue, ao passo que eles desaparecem com a geração que se vai cada dia a largos passos. Até aí, defenderão o terreno passo a passo; há, pois, uma luta inevitável, mas uma luta desigual, porque é aquela do passado decrépito que cai em trapos contra o futuro jovem; da estagnação contra o progresso, da criatura contra a vontade de Deus, porque os tempos assinalados por Ele são chegados.

Infelizmente, por tudo o que ocorreu, os indivíduos inteligentes, mas refratários, encontraram espaço para fazerem proliferar suas ideias que, hoje, entravam o progresso da humanidade. Os retardatários, “nem cá, nem lá”, não tendo em que se inspirar, apenas permaneceram, em maioria, retardatários. São Espíritos que, muitas vezes, não querem o mal, mas não tem um entendimento qualquer do que seja o bem e da necessidade da própria transformação, razão pela qual caem no conto do materialismo, operando como massas a favor dos primeiros.

O planeta de regeneração

Muitos acreditam que o planeta de regeneração será alcançado por uma imposição divina, onde, num passe de mágica, os maus serão expulsos e os bons conquistarão seu merecido paraíso. Nada mais longe da verdade (e da razão). Kardec destaca que

Para que os homens sejam felizes sobre a Terra é preciso que ela seja povoada apenas por bons Espíritos, encarnados e desencarnados, que só queiram o bem. Esse tempo tendo chegado, uma grande emigração acontecerá nesse momento entre seus habitantes. Os que fazem o mal pelo mal e não são tocados pelo sentimento do bem, não sendo mais digno da Terra transformada, serão excluídos, porque trariam de novo a discórdia e a confusão e seriam um obstáculo ao progresso. Esses vão expiar seu endurecimento uns em mundos inferiores, outros entre raças terrestres atrasadas que serão o equivalente aos mundos inferiores, onde levarão seus conhecimentos adquiridos e que terão por missão fazê-los avançar. Serão substituídos por Espíritos melhores que farão reinar entre eles a justiça, a paz e a fraternidade.

O planeta Terra somente se transformará para melhor quando os Espíritos que nela encarnam tiverem se transformado para melhor. Essa transformação não se dará num átimo temporal, contudo: ela se faz no dia-a-dia, no processo de desencarnação e encarnação de Espíritos, pois uma parte dos Espíritos que antes encarnavam aqui, não mais encarnarão, por não estarem mais aptos a viverem aqui.

Isso, é claro, demonstra a lentidão desse processo. Contudo, esse processo pode ser alavancado por uma nova ordem de ideias, quais as do Espiritismo, que nasceu justamente para isso:

A nova geração, devendo fundar a era do progresso moral, distingue-se por uma inteligência e uma razão geralmente precoces, somadas ao sentimento inato do bem e das crenças espiritualistas. É o sinal incontestável de um certo grau de adiantamento anterior. Não será jamais composta exclusivamente de Espíritos eminentemente superiores, mas dos que, tendo já progredido, estão dispostos a assimilar todas as ideias progressivas e aptos a secundar o movimento regenerador.

Não devemos crer, porém, que todos os retardatários serão expulsos da Terra, embora essa ideia agrade a muitos de nós, por julgarmos que assim seria melhor, a fim de nos livrarmos daqueles que causam embaraço à felicidade geral. Precisamos reconhecer que é um pensamento bastante mesquinho e, também, ausente de razão. Explica o codificador:

Não se deve entender por essa emigração de Espíritos que todos aqueles retardatários serão expulsos da Terra e relegados a mundos inferiores. Pelo contrário, muitos voltarão, porque haviam cedido à influência das circunstâncias e do mal exemplo. Neles, a aparência era pior que a essência. Uma vez livres da influência da matéria e dos preconceitos do mundo corporal, a maior parte desses Espíritos verá as coisas de maneira completamente diferente de como as viam em vida, o que está de acordo com numerosos exemplos. Nesse caso, são ajudados pelos Espíritos benévolos, que se interessam por eles e se apressam a esclarecê-los e a mostrar o caminho equivocado que tinham seguido. Pelas nossas preces e exortações, podemos nós mesmos contribuir para sua melhora porque há uma solidariedade perpétua entre os mortos e os vivos.

Olhemos para esses que nos desagradam, por nos julgarmos superiores. Reconhecemos que, em muitos, realmente existem os maus hábitos e as imperfeições que chegam a causar incômodos gerais. Contudo, observêmo-los mais a fundo: que é que há de mal, neles? Muitas vezes, nada. São Espíritos que, na vida material observada, esquecidos dos propósitos maiores da evolução, apenas se encontram absortos em suas preocupações ou alegrias passageiras, como nós tantas vezes estivemos. Não são criaturas repugnantes, mas apenas Espíritos que, na vida presente, não puderam aprender e se desenvolver como os outros, mas que, ainda assim, têm a simpatia dos bons Espíritos e deveriam ter também a nossa, para que, saindo de nosso egoísmo, possamos estender-lhes a palavra amiga, se possível o conhecimento e, ao menos, o bom pensamento, através da prece. Consegue imaginar a alegria de ver, amanhã, reencarnando conosco, aquele que antes causava a inquietação, agora mais concernido do bem e da sua necessidade de progresso?

A regeneração da humanidade não tem absolutamente necessidade da renovação integral dos Espíritos, pois basta uma modificação em suas disposições morais. Essa modificação se opera entre todos aqueles que estão predispostos, toda vez que sejam subtraídos da influência perniciosa do mundo. Portanto, aqueles que retornam nem sempre são outros Espíritos, mas, frequentemente, os mesmos Espíritos, pensando e sentindo de outra forma.

Os cataclismos, as mortes em massa, longe de servirem para cumprirem um “carma coletivo” (sic ((Isso é um completo absurdo, uma ideia que nunca esteve na Doutrina Espírita e, ademais, algo irracional, como já tratamos neste artigo.)) ), cumprem as leis da Natureza. Ainda assim, aceleram as modificações sociais:

Quando esse melhoramento é isolado e individual, ele passa despercebido e fica sem influência ostensiva sobre o mundo. Outro efeito acontece quando o melhoramento se produz simultaneamente sobre grandes massas, pois então, conforme as proporções numa geração, as ideias de um povo ou de uma raça podem ser profundamente modificadas.

É o que se nota quase sempre após as grandes calamidades dizimarem as populações. Os flagelos destruidores destroem apenas os corpos, mas não atingem o Espírito. Elesativam o movimento de ingresso e saída entre o mundo corporal e o espiritual e, por conseguinte, o movimento progressivo dos Espíritos encarnados e desencarnados. É de se notar que, em todas as épocas da história, às grandes crises sociais se seguiram eras de progresso.

Conclusão

Está muito claro, portanto, que as modificações sociais não se darão pela ordem da imposição, nem a política, nem a das armas, nem a das leis humanas e, ainda muito menos, pela ação do “dedo de Deus”, quem em nada interfere em nosso avanço.

Não: o avanço social será uma consequência do avanço moral, e isto somente se dará pela retomada, justamente, da moral esquecida, e será impulsionada se for combinada com o conhecimento prático trazido pelo Espiritismo, capaz de causar uma revolução de ideias a nível individual e, daí, para a sociedade. É óbvio, pelo exposto, que essa revolução de ideias está ligada à transformação moral do indivíduo, e não ao emprego deste ou daquele viés político — não custa repetir.

Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa.

Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar. Eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras.

Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862 > fevereiro > Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses

Em outras palavras, não adianta subir ao palanque ou ir às ruas com cartazes pedindo mudanças, quando nós mesmos não fazemos a nossa parte. A mudança modifica pelo exemplo, contagia, porque todo mundo quer ser feliz (é por isso que, misturando alegrias com felicidade, os perfis do Instagram de pessoas ricas e “bem de vida” ganham tantos seguidores).

Cuidemos, portanto, de nos melhorar, pela consequência moral que tem todo o estudo do Espiritismo. Cuidemos, também, de fazer a nossa parte: de estudar essa Doutrina, com dedicação, de modo a bem compreendê-la, espalhando sua real face de ciência consoladora, afastada dos dogmas e das ideias que materializam e aprisionam o Espírito nos falsos conceitos de pecado, castigo, etc. Nos esforcemos por recuperar os conhecimentos dos grandes filósofos espiritualistas, mas também os conhecimentos esquecidos do Magnetismo. Nos empenhemos em levar, à sociedade, também esses conceitos, começando por nos esforçar em fazer, do ensino infantil, algo melhor, mais autônomo e cooperativo, fraterno, afastado das ideias de castigos, das recompensas e dos “jeitinhos”, baseado, enfim, na educação de grandes pensadores humanistas, como Rousseau e Pestalozzi, que primavam pela razão e na humildade na perseguição das respostas, através do método científico… E, então, estaremos traçando um novo caminho para a mudança social.

Foto de capa: CONSELHO ESPÍRITA INTERNACIONAL (CEI) – https://cei-spiritistcouncil.com/obras-de-allan-kardec-para-download/




Deus interfere em nossas vidas?

Permanece, em muitas mentes, a antiga imagem de Deus, atrelada aos conceitos de uma humanidade que não podia compreender aquilo que estava fora da matéria e das figuras humanas. Assim, criaram um Deus à sua imagem: um senhor barbudo, sentado num trono acima das nuvens, olhando – e julgando – a tudo e a todos.

Contudo, a mentalidade humana não é mais assim. Em mais de dois mil anos, se desenvolveu em razão e em ciência, e já não aceita mais, tão facilmente, os velhos dogmas das religiões humanas. Aliás, em questão de ciência, desde que sabemos que o céu não é uma abóbada e que, para todos os lados, se estende o Universo infinito, já não podemos mais supor essa imagem de Deus. Além disso, a razão mostra que Deus não se ocupa de nós diretamente, controlando nossas vidas. Longe disso, está demonstrado, pelo estudo do Espiritismo, que Deus age através de suas Leis, que são as Leis Naturais, que governam a tudo com perfeição.

Nasce, porém, uma dúvida: será que Deus está por toda a parte, como dizem? Será que Deus nos ouve? Será que aquele provérbio que diz que “nem uma folha cai sem a vontade de Deus” está correto?

Como sempre, o estudo do Espiritismo clareia o horizonte pela razão irretorquível. Vamos demonstrar a beleza das conclusões de Kardec, em A Gênese, mas lembramos ser importante se basear na nova edição, da FEAL, que é uma tradução baseada na quarta edição dessa obra, já que a quinta edição – a que deu base a todas as outras edições e traduções – foi adulterada.

Assim se expressa Allan Kardec, na obra citada:

20. A providência é a solicitude de Deus para com todas as criaturas. Deus está por toda parte, tudo vê e a tudo preside, mesmo as pequenas coisas; e é nisso que consiste sua ação providencial.“Como Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, pode imiscuir-se em detalhe ínfimos, preocupar-se com os menores atos e pensamentos de cada indivíduo? Essa é a pergunta que a incredulidade faz a si mesma, de onde ela conclui que, admitindo a existência de Deus, sua ação só deva se fazer sobre as leis gerais do Universo; que este funciona por toda eternidade, em virtude dessas leis, às quais cada criatura acha-se submetida em sua esfera de atividade, sem que seja necessário o concurso incessante da providência.

21. Em seu estado atual de inferioridade, os homens dificilmente compreendem um Deus infinito, porque, sendo eles mesmos restritos e limitados, só o entendem restrito e limitado como eles. Representam-no como um ser circunscrito e fazem dele uma imagem semelhante a si próprios. Os quadros que o pintam com traços humanos só contribuem para manter esse erro no espírito dos povos, que nele adoram mais a forma do que o pensamento. Para muita gente, ele é um soberano poderoso, sentado em um trono inacessível, perdido na imensidão dos céus; e por terem suas faculdades e percepções limitadas, não compreendem que Deus possa ou se digne a intervir diretamente nas pequenas coisas.

22. Ante a impossibilidade de compreender a essência da divindade, o homem só pode fazer dela uma ideia aproximada por meio de comparações, necessariamente muito imperfeitas, mas que podem, pelo menos, mostrar-lhe a possibilidade daquilo que, num primeiro momento, lhe parece impossível.

Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar em todos os corpos. É evidente que cada molécula desse fluido, encontrando-se com cada molécula da matéria, produzirá sobre os corpos uma ação idêntica àquela que produziria a totalidade do fluido. É o que a Química demonstra todos os dias, em proporções limitadas.

Esse fluido, não sendo inteligente, age mecanicamente, somente pelas forças materiais; mas, se o supusermos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, já não agirá às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, entenderá e sentirá.

[…]

23. Por mais elevados que sejam, os Espíritos são criaturas limitadas em suas faculdades, em seu poder e na extensão de suas percepções, e não saberiam, sob esse aspecto, aproximar-se de Deus. Mas podemos nos servir deles, como ponto de comparação. O que o Espírito não pode executar, senão em um limite restrito, Deus, que é infinito, executa-o em proporções infinitas. Há ainda a diferença de que a ação do Espírito está momentaneamente subordinada às circunstâncias, e a de Deus é permanente; o pensamento do Espírito abarca durante um tempo um espaço circunscrito, o de Deus abarca o Universo e a eternidade. Em uma palavra, entre os Espíritos e Deus existe a distância do finito ao infinito.

24. O fluido perispiritual não é o pensamento do Espírito, mas o agente e o intermediário desse pensamento; como é ele que o transmite, de alguma forma, impregnado dele. Pela impossibilidade em que estamos de isolar o pensamento, parece-nos que ele e o fluido se confundem, como acontece com o som e o ar, de maneira que podemos, por assim dizer, materializá-lo. Da mesma forma que dizemos que o ar se torna sonoro, tomando o efeito pela causa, podemos dizer que o fluido se torna inteligente.

25. Que seja ou não assim quanto ao pensamento de Deus, quer dizer, que ele atue diretamente ou por intermédio de um fluido, para nosso raciocínio, vamos representá-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente, preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da criação: a natureza inteira está imersa no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades do todo, cada átomo desse fluido, se assim podemos nos exprimir, possuiria o pensamento, isto é, os atributos essenciais da divindade, e estando esse fluido por toda parte, tudo está sujeito à sua ação inteligente, à sua previsão, à sua solicitude. Não haverá um ser, por mais ínfimo que seja, que não esteja de alguma forma imerso nele. Estamos, assim, constantemente em presença da divindade e não podemos subtrair uma só de nossas ações, do seu olhar; nosso pensamento está em contato incessante com seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus lê nas mais profundas entranhas do nosso coração; estamos nele, como ele está em nós, conforme a palavra de Cristo.

Para estender sua solicitude sobre todas as criaturas, Deus não tem necessidade de lançar seu olhar do alto da imensidão. Para que ouça nossas preces, não tem necessidade de transpor o espaço, nem que elas sejam ditas com voz retumbante, porque estando Deus incessantemente ao nosso lado, nossos pensamentos repercutem nele; são como os sons de um sino que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

26. Longe de nós o pensamento de materializar a divindade. A imagem de um fluido inteligente universal é, evidentemente, apenas uma comparação capaz de dar uma ideia mais justa de Deus, que as pinturas que o representam sob uma figura humana. Essa comparação só objetiva a compreensão da possibilidade de Deus estar por toda parte e de se ocupar de tudo.

Vemos, portanto, que o Fluido Cósmico Universal, que origina toda a matéria, em qualquer estado possível, permeia a tudo. É esse fluido, conforme demonstra o Espiritismo, que conduz o pensamento por toda a parte. É por isso que é fácil entender que Deus está em tudo e que não é necessário se ajoelhar, olhar para o alto e formular certas palavras: ele ouve e conhece nossos mais íntimos pensamentos e necessidades.

Aliás, é esse mesmo fluido que conduz o nosso pensamento através do espaço infinito e chega até o pensamento de um Espírito em que pensemos:

Os fluidos espirituais que constituem um dos estados do fluido cósmico universal são a atmosfera dos seres espirituais. É o elemento de onde eles extraem os materiais sobre os quais agem; o meio onde se passam os fenômenos especiais, perceptíveis à vista e ao ouvido do Espírito e que escapam aos sentidos carnais impressionados somente pela matéria tangível. É, enfim, o veículo do pensamento, como o ar é o veículo do som

ibidem

É por esse motivo, que os Espíritos – bons ou maus – vêm, quase sempre prontamente, ao nosso chamado mental. E é em decorrência desse princípio que precisamos reconhecer que nunca estamos desprovidos de companhia, já que essa companhia não precisa ser “física”, como um Espírito que fique conosco durante todo o tempo. Um bom Espírito, inclusive um Espírito protetor ou anjo guardião, não precisa estar “plantado” ao nosso lado: basta que seu pensamento esteja projetado sobre nós e, da mesma forma, que o nosso pensamento esteja projetado sobre o dele.

É pela mesma ação dos fluidos que nos fazemos capazes de assimilar intuições e influências boas ou más, mesmo que de forma inconsciente. Se estamos nos esforçando em viver no bem (e não apenas fazer o bem, o que é muito diferente) nossos pensamentos moldam a vibração dos fluidos à nossa volta, nos tornando mais acessíveis aos bons Espíritos. O mesmo ocorre, em sentido contrário, quando estamos desligados do bem, isto é, mergulhados nas paixões e nos maus hábitos. É por isso que, nesse estado, é dito, nas obras do Espiritismo, que os bons Espíritos se afastam de nós. Não é que eles voltem suas costas para nós e nossas necessidades, pois, mesmo o Espírito mais apegado ao mal, ainda assim contará com a simpatia de Espíritos superiores, mas é que, nesse estado mental, adensamos nossos perispírito e os fluidos ao nosso redor, nos tornando inacessíveis aos bons fluidos, isto é, aos bons pensamentos dos Espíritos superiores.

Perguntamos, então: como sair do último estado? Ora, relativamente simples: através do esforço constante e dedicado na melhoria dos próprios pensamentos e ações, o que pode ser muito auxiliado pela ação da prece, que é (deve ser) uma ação honesta de buscar, pelo pensamento, modificar as próprias disposições mentais a fim de pedir auxílio, o que já ficou demonstrado que não é difícil, já que Deus está à nossa volta e em nós. Basta desejar a própria modificação, honestamente, reconhecendo a própria situação de penúria, causada pelo mau uso das faculdades da inteligência, e os bons Espíritos virão em nosso socorro, para dar suporte à nossa ação, mas jamais para fazer o trabalho que deve ser feito por nós. E de que forma eles agirão? Nos influenciando, e as pessoas à nossa volta, para nos conduzir às oportunidades, e também às provas, necessárias para a nossa modificação.

O fato de serem os Espíritos que vêm nos acudir, e não o próprio Deus em pessoa, não O diminui em absolutamente nada, pois é por Sua Criação e por Suas Leis que tudo age. É nesse sentido que podemos explicar aquele provérbio citado acima: “nem uma folha cai sem que Deus queira”, quer dizer que até mesmo uma folha que cai de uma árvore está respondendo a uma Lei da Natureza, Criação de Deus, e não que Deus tome de Sua atenção para dizer “esta folha vai cair agora, mas aquela outra, não”. É lógico entender que Deus sabe de tudo, pois, se não soubesse, não seria Deus, mas, da mesma forma, é lógico entender que ele não precisa interferir em nada, por sua criação ser perfeita.

Chegados a este ponto, não podemos deixar de destacar a total incoerência pregada pelas religiões humanas, por todos os tempos, que visam, para fins de controle de seus fiéis, “roubar” Deus para si, afirmando que Deus está somente dentro da Igreja, ou que Deus beneficia mais àqueles que seguem aquela religião, lhes conferindo prêmios e títulos de posses, riquezas materiais, etc.

A Kardec, um Espírito disse que “Deus não permitiria” que um Espírito inferior se materializasse numa forma horrenda, para assustar. Nós havíamos constatado que é claro que existia uma lei que ainda não conhecemos. Então, num dos últimos estudos da Revista Espírita, outro Espírito deu a entender que as materializações e os fenômenos físicos, causados por Espíritos inferiores, sempre se dão por “comando” de Espíritos superiores, com um propósito. É por isso, segundo entendemos, que um Espírito inferior não poderia se materializar de forma horrenda: porque um Espírito superior não o ajudaria a fazê-lo.

A criação divina é, entendemos, autônoma. Deus, intervindo, praticaria a heteronomia. Então, se ele poderia intervir em certos aspectos, por que não interviria em todos? Por que Ele próprio não interviria, por exemplo, para extinguir uma guerra ou a violência, ou, antes, para sequer deixá-la iniciar? Caímos, então, nas questões que aqueles que se guiam pelos princípios heterônomos das religiões caem, muitas vezes causando, neles, um completo abandono da espiritualidade.

Racionalmente, entendemos que Deus fez suas leis, e são elas que agem no Universo. Sua própria criação, que nos parece imperfeita, quando olhamos de um aspecto muito mesquinho de nossas vistas inferiores, é, na verdade, perfeita no todo, e se regula por si própria no caminho da evolução.

Isso tudo explicado dessa forma, fica racionalmente fácil entender que não existe destino predeterminado por Deus em nossas vidas, e que nós agimos segundo nosso livre-arbítrio, sempre, desde que conquistamos nossa consciência. Mas isso é assunto para outro artigo.

Encerremos com essa belíssima reflexão, dada por São Luís e Santo Agostinho, a respeito da doutrina dos anjos guardiões, em O Livro dos Espíritos:

495. Poderá dar-se que o Espírito protetor abandone o seu protegido, por se lhe mostrar este rebelde aos conselhos?

“Afasta-se, quando vê que seus conselhos são inúteis e que mais forte é, no seu protegido, a decisão de submeter-se à influência dos Espíritos inferiores. Mas não o abandona completamente e sempre se faz ouvir. É então o homem quem tapa os ouvidos. O protetor volta desde que este o chame.

“É uma doutrina, esta, dos anjos guardiães, que, pelo seu encanto e doçura, deveria converter os mais incrédulos. Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdes sempre junto de vós seres que vos são superiores, prontos sempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar na ascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros e dedicados amigos do que todos os que mais intimamente se vos liguem na Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordem de Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí permanecendo por amor de Deus, desempenham bela, porém penosa missão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nem nos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de devassidão, nem na solidão, estais separados desses amigos a quem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa alma sente, ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderados conselhos.

“Ah! se conhecêsseis bem esta verdade! Quanto vos ajudaria nos momentos de crise! Quanto vos livraria dos maus Espíritos! Mas, oh! Quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjo constrangido a vos observar: “Não te aconselhei isto? Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo, nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz da verdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos da mentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães; estabelecei entre eles e vós essa terna intimidade que reina entre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada, pois que eles têm o olhar de Deus e não podeis enganá-los. Pensai no futuro; procurai adiantar-vos na vida presente. Assim fazendo, encurtareis vossas provas e mais felizes tornareis as vossas existências. Vamos, homens, coragem! De uma vez por todas, lançai para longe todos os preconceitos e pensamentos ocultos. Entrai na nova senda que diante dos passos se vos abre. Caminhai! Tendes guias, segui-os, que não falhareis em atingir a meta, porquanto essa meta é o próprio Deus.

“Aos que considerem impossível que Espíritos verdadeiramente elevados se consagrem a tarefa tão laboriosa e de todos os instantes, diremos que nós vos influenciamos as almas, estando embora muitos milhões de léguas distantes de vós. O espaço, para nós, nada é, e não obstante viverem noutro mundo, os nossos Espíritos conservam suas ligações com os vossos. Gozamos de qualidades que não podeis compreender, mas ficai certos de que Deus não nos impôs tarefa superior às nossas forças e de que não vos deixou sós na Terra, sem amigos e sem amparo. Cada anjo guardião tem o seu protegido, pelo qual vela, como o pai pelo filho. Alegra-se, quando o vê no bom caminho; sofre, quando ele lhe despreza os conselhos.

“Não receeis fatigar-nos com as vossas perguntas. Ao contrário, procurai estar sempre em relação conosco. Sereis assim mais fortes e mais felizes. São essas comunicações de cada um com o seu Espírito familiar que fazem sejam médiuns todos os homens, médiuns ignorados hoje, mas que se manifestarão mais tarde e se espalharão qual oceano sem margens, levando de roldão a incredulidade e a ignorância. Homens doutos, instruí os vossos semelhantes; homens de talento, educai os vossos irmãos. Não imaginais que obra fazeis desse modo: a do Cristo, a que Deus vos impõe. Para que vos outorgou Deus a inteligência e o saber, senão para os repartirdes com os vossos irmãos, senão para fazerdes que se adiantem pela senda que conduz à bem-aventurança, à felicidade eterna?”
São Luís, Santo Agostinho




As ilusões de um Espírito apegado às riquezas

Extraído da obra “Instruções psicofônicas”, de Chico Xavier.

O irmão “F” nome pelo qual passaremos a designar o companheiro, cuja mensagem vamos transcrever, foi na Terra grande banqueiro. Certamente não foi um criminoso, na acepção comum do termo, mas, pelo conteúdo espiritual de suas manifestações, parece haver sido um desses homens “nem frios, nem quentes”, do símbolo evangélico, que, trazendo a mente amornada na ideia do ouro, durante a existência na carne, ficou por ela dominado em seus primeiros tempos, além da morte.

“[…] Conturbado e aflito, senti necessidade da confissão. Afinal, eu era um católico que relaxara a própria fé. Sem que ninguém me escutasse os apelos, pedi a presença de um padre. Avancei para o confessionário e pus-me de joelhos, mas, em poucos momentos, o confessionário convertia-se para mim num guichê de banco. Sobressaltado, ergui meus olhos para o altar. O altar, porém, transformara-se em cofre forte. Intentei consolar-me com a visão do missal, mas o livro do culto, de repente, surgiu metamorfoseado num velho livro de minha propriedade, em que eu lançava, às ocultas, as minhas notas de rendimento real. Diligenciei isolar-me. Temia a loucura completa. Ainda assim, levantei meu olhar para a imagem da Virgem Maria. Naturalmente, ela teria pena de mim, contudo, ante a minha atenção, a imagem reduziu-se a uma joia de alto preço… Fez-se toda de ouro, de ouro puro…

[…]

Demandei uma caixa d’água que me era familiar no alto do bairro de Santo Antônio. A água, ali, corria em jorros. Podia debruçar-me… Podia beber como se eu fora um animal e, prostrado, não mais de joelhos, mas de rastros, imploraria a graça de Deus. Achei a água corrente, a água límpida visitada pela luz do sol e estireime no chão… Mas, no momento preciso em que meus lábios sequiosos tocaram o líquido puro, apenas o ouro, o ouro apareceu… Reconheci haver descido à condição de um alienado mental. Lembrei-me, então, de velho amigo… Cícero Pereira… Cícero era espírita e, por esse motivo, tornou-se para mim alguém que eu supunha, em minha triste cegueira, haver deixado na retaguarda da loucura. Bastou a recordação para que a voz dele se me fizesse ouvida. Acudia-me ao chamado. Amparou-me. Conversou comigo […]

Um ótimo exemplo de que não se pode tomar cegamente as comunicações de um Espírito como se fossem a expressão da verdade. Imaginem se esse Espírito, sendo levado a uma reunião de auxílio espiritual, contasse apenas a parte da ilusão em questão e as pessoas desavisadas saíssem afirmando que, no mundo dos Espíritos, existe ouro…




Onde fica o umbral? E Nosso Lar? Esses lugares existem?

O umbral e “Nosso Lar” existem? Onde fica? Resposta curta: não existem como as pessoas acreditam, por falta de conhecimento do Espiritismo. Mas, como isto é um grupo de estudos, você não deve simplesmente aceitar esta resposta, sem raciocinar, da mesma forma que não deve aceitar as ideias isoladas de quaisquer Espíritos, seja pelo médium que for.

Por que é que muitos Espíritos, antes do Espiritismo ou sob outras religiões, dizem que, depois da morte, se constataram no Inferno? Por que é que, na época dos romanos, os Espíritos diziam estar no Tártaro? Por que é que os Espíritos que conheceram o Espiritismo (esse distorcido) dizem que se constataram no umbral ou no vale dos suicidas, e não no inferno? É muito claro que isso se deve às suas próprias concepções, porque, se um ou outro fossem uma realidade, haveria, sempre, uma uniformidade nas ideias apresentadas pelos Espíritos, em todo o tempo e por toda a parte.

Portanto, é fácil notar que se tratam de concepções do imaginário. São uma abominação? É claro que não: fazem parte da nossa evolução. Contudo, o Espiritismo não veio para continuar essas ideias, de uma maneira mais agradável: veio para apresentar a realidade, ajudando o ser humano a se desfazer dessas concepções limitantes e que atrasam o seu passo. Ora, é fato que o Espiritismo tem esse propósito de alavancar o progresso, como toda ciência, pois, se não fosse assim e sendo o Espírito imortal, poderia Deus, em suas Leis, deixar que cada um chegue ao progresso através das infinitas encarnações, aprendendo por tentativa e erro, apenas, e sem nenhum suporte. Mas Ele, sendo todo bondade, nos confere as ferramentas, sendo a maior delas a inteligência e a razão; cabe a nós utilizá-las ou não, segundo nossa vontade.

O papel do médium

O papel do médium é não interferir na comunicação de um Espírito e, através dele, podem se comunicar qualquer tipo de Espíritos, dependendo da circunstância e do propósito, seja do médium, seja dos Espíritos superiores. Já o papel do estudioso é analisar e julgar essas comunicações, com base na ciência já adquirida e no crivo da razão((Leia o artigo “O papel do pesquisador e do médium nas comunicações com os Espíritos“)).

Após a morte de Kardec e com todo o desvio que o Movimento Espírita tomou, principalmente com a verdadeira plantação de joio que foram as ideias de Roustaing, os espíritas, afastados dos estudos, deixaram de raciocinar e começaram a permitir que diversas ideias, sem base doutrinária, passassem a inundar o imaginário dos adeptos da Doutrina. Assim, conceitos fantásticos e supersticiosos começaram a transformar lenta e progressivamente o Movimento que, hoje, se apresenta como uma religião, repleta de dogmas e falsos conceitos.

O que existe no Espiritismo

Ora, prezado leitor, está lá em O Livro dos Espíritos a seguinte conclusão, apresentada na pergunta 1012 de O Livro dos Espíritos:

1012((Nota dos Revisores: Note-se que, na numeração dos itens do livro, Kardec salteou o n.° 1011. Apesar do lapso evidente, o texto foi mantido assim nas quatorze edições que se seguiram até a desencarnação de Allan Kardec. Para evitar confusões, a presente edição não procurou “acertar” a numeração.)). Haverá no universo lugares circunscritos para as penas e gozos dos Espíritos, segundo seu merecimento? 

“Já respondemos a essa pergunta. As penas e os gozos são inerentes ao grau de perfeição dos Espíritos. Cada um tira de si mesmo o princípio de sua felicidade ou de sua desgraça. E como eles estão por toda parte, nenhum lugar circunscrito ou fechado existe especialmente destinado a uma ou outra coisa. Quanto aos encarnados, esses são mais ou menos felizes ou desgraçados, conforme seja mais ou menos adiantado o mundo em que habitam.”

a) — De acordo, então, com o que vindes de dizer, o inferno e o paraíso não existem, tais como o homem os imagina?

“São simples alegorias: por toda parte há Espíritos ditosos e desditosos. Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia; mas podem reunir-se onde queiram, quando são perfeitos.”

A localização absoluta das regiões das penas e das recompensas só na imaginação do homem existe. Provém da sua tendência a materializar e circunscrever as coisas, cuja essência infinita não lhe é possível compreender.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1860

Está muito claro que os lugares, no mundo dos Espíritos, não existem por si. São meras alegorias e, principalmente, estados de consciência. O Espírito feliz está “no céu”, enquanto o Espírito infeliz e sofredor está “no inferno” de sua própria consciência.

Notemos, porém, um detalhe importante, na pergunta 1012-a: “Entretanto, conforme também já dissemos, os Espíritos de uma mesma ordem se reúnem por simpatia“. Isto quer dizer que, conforme suas ideias e seus estados de evolução, os Espíritos podem se reunir. Ora, sabendo que os Espíritos menos evoluídos se prendem aos conceitos da matéria e sabendo que, pela ação da vontade, o Espírito pode atuar sobre a matéria fluídica, proveniente do Fluido Cósmico Universal, é fácil conceber que, em conjunto, os Espíritos sofredores reunidos possam criar verdadeiras paisagens infernais ou purgatoriais, que, contudo, existem apenas enquanto esses Espíritos as plasmarem, isto é, não são lugares que os precedem, mas que existem apenas como criações desses agrupamentos de inteligências.

Também não podemos esquecer que nós, mentalmente, somos capazes de criar verdadeiras ilusões, em razão de nossas ideias, crença, medos, etc. Portanto, é fácil entender quando um Espírito sofredor se diz machucado, com fome, sede ou mesmo cansado.

Importante: os Espíritos, no Espiritismo, foram categóricos a esse respeito: não existem lugares circunscritos. Por outro lado, sobre outros conceitos, eles disseram: “calma. Isso não pode ser entendido ainda. Aguarde o desenvolvimento da Doutrina”. Isso demonstra que é falsa a ideia de que tais conceitos não puderam ser ensinados naquele tempo (o que nem sequer faz sentido).

Não paremos por aqui, porém. Em julho de 1858, no artigo “O tambor de Berezina“, Kardec faz as seguintes perguntas, após realizar uma série de indagações tentando compreender o estado moral e racional daquele Espírito, que foi um soldado em sua última encarnação:

28. ─ Vês outros Espíritos ao teu redor? ─ Sim, muitos.

29. ─ Como sabes que são Espíritos? ─ Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. ─ Com que aparência os vês? ─ Como se podem ver Espíritos, mas não pelos olhos.

31. ─ E tu, sob que forma aqui estás? ─ Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tambor.

32. ─ E vês os outros Espíritos com as formas que tinham em vida? ─ Não. Nós não tomamos uma aparência senão quando somos evocados. Fora disso vemo-nos sem forma.

A última resposta foi bastante interessante, mas, até o momento, era apenas a opinião de um Espírito. Digno de nota, a metodologia de Kardec, sondando os assuntos de interesse, ao invés de fazer perguntas diretas que poderiam ser respondidas de forma enviesada. Então, em setembro do mesmo ano, no artigo “Palestras de além-túmulo — Senhora Schwabenhaus. Letargia Extática“, Kardec faz as seguintes perguntas, obtendo as seguintes respostas. Notem bem:

29. ─ Sob que forma estais entre nós? ─ Sob minha última forma feminina.

30. ─ Vós nos vedes tão distintamente quanto se estivésseis viva? ─ Sim.

31. ─ Desde que aqui vos encontrais com a forma que tínheis na Terra, é pelos olhos que nos vedes? ─ Não, o Espírito não tem olhos. Só me encontro sob minha última forma para satisfazer às leis que regem os Espíritos quando evocados e obrigados a retomar aquilo a que chamais perispírito.

Vejamos, então: já são dois os Espíritos, de elevações diferentes, além daquele que respondeu às perguntas de OLE, dizendo a mesma coisa: para o Espírito liberto da matéria, não há forma, como a que compreendemos. Eles assumem o perispírito, atendendo a uma lei naturalapenas quando precisam agir materialmente, quando, por exemplo, se aproximam de nós para se comunicar (com materialmente quero dizer: eles precisam assumir o perispírito para poder se colocar em comunicação conosco, o que, antes de tudo, se dá através dessa “roupagem”).

O ensinamento geral e a razão

Kardec sempre destacou, como método indispensável à formação da ciência espírita, o duplo controle da razão e do ensinamento geral dos Espíritos. Mas não é só: o ensinamento, destaca Kardec, quando deve ser espalhado, é dado simultaneamente sobre vários pontos do globo. Os conceitos ora apresentados, contudo, não se estabeleceram dessa forma: eles foram trazidos por um Espírito ou médium, em uma época, e, com o passar do tempo, começaram a ser admitidos por outros indivíduos, que passaram a reproduzí-los. É como se fosse uma pirâmide invertida, no tempo: atualmente, a partir de uma construção de teorias ilusórias do passado, uma série de outras foram desenvolvidas, em contrário à própria Doutrina Espírita e recuperando diversos conceitos das velhas religiões.

“Mas eu vi em viagem astral”

Para o estudioso da Doutrina, é muito claro que as ideias do indivíduo tem papel fundamental naquilo que vê e conforme sua mente física interpreta essas “visões”.

Kardec, em A Gênese, cap. XIV, destaca que:

27. ​A visão espiritual é necessariamente incompleta e imperfeita entre os Espíritos encarnados e, por consequência, sujeita a aberrações. Tendo sede na própria alma, o estado desta deve influir sobre as percepções. Conforme o grau de seu desenvolvimento, as circunstâncias e o estado moral do indivíduo, ela pode dar, seja no sono, seja no estado de vigília: 1.º) a percepção de certos fatos materiais reais, como o conhecimento de ocorrências que se passam ao longe, os detalhes descritivos de uma localidade, as causas de uma doença e os remédios convenientes; 2.º) a percepção de coisas igualmente reais do mundo espiritual, como a visão dos Espíritos; 3.º) imagens fantásticas criadas pela imaginação, análogas às criações fluídicas do pensamento (veja acima, no 14). Essas criações estão sempre em relação com as disposições morais do Espírito que as cria. É assim que o pensamento de pessoas fortemente imbuídas e preocupadas com certas crenças religiosas lhes apresenta o inferno, suas caldeiras, suas torturas e seus demônios, do modo que elas mesmas imaginam: é por vezes toda uma epopeia; os pagãos vendo o Olimpo e o Tártaro, como os cristãos veem o inferno e o paraíso. Se, ao despertar ou sair do êxtase, essas pessoas conservam uma lembrança precisa de suas visões, consideram-nas como realidade e confirmação de sua crença, embora sejam apenas o produto dos próprios pensamentos. É preciso fazer uma distinção muito rigorosa das visões estáticas antes de aceitá-las. Nesse sentido, o remédio para a excessiva credulidade é o estudo das leis que regem o mundo espiritual.

28. ​Os sonhos propriamente ditos apresentam as três naturezas de visões descritas anteriormente. Às duas primeiras pertencem os sonhos de previsão, pressentimentos e advertências. Na terceira, isto é, nas criações fluídicas do pensamento pode-se encontrar a causa de certas imagens fantásticas, que nada têm de real em relação à vida material, mas que têm, para o Espírito, uma realidade tal que o corpo sofre um impacto, como se tem visto cabelos embranquecerem sob a impressão de um sonho. Essas criações podem ser provocadas por crenças exaltadas, lembranças, gostos, desejos, paixões, medo, remorsos, preocupações habituais, necessidades do corpo ou mal-estar relativo às funções do organismo; enfim, por outros Espíritos, com objetivo benévolo ou malévolo, conforme sua natureza.

Quer dizer, prezado leitor, que, conforme a ciência espírita, os lugares, no mundo dos Espíritos, não passam de falsos conceitos. Infelizmente, caídos na curiosidade novidadeira e ausentes desses alicerces, os Espíritas passaram a admitir os frutos das ideias isoladas de certos Espíritos como se fossem a plena verdade.

Resta afirmar, portanto, que não existe umbral, não existe vale dos suicidas e não existem colônias espirituais como acreditamos: existem Espíritos que se reúnem, segundo suas ideias, e que, quanto mais distraídos do propósito do intervalo entre as encarnações, que deveria ser o de refletir e aprender, reforçando sua vontade para vencer suas imperfeições na próxima encarnação, criam cenários “materiais”, replicando os hábitos terrestres, o que constitui, para eles, um verdadeiro atraso em direção à felicidade.

Ensinar os falsos conceitos de umbral, vale dos suicidas, hospitais espirituais, etc., que são a representação externa do sofrimento moral, é deixar de ensinar o que realmente importa: a análise dos próprios erros e acertos, a compreensão de que tudo depende da própria vontade e a necessária ação para a própria evolução. Para um Espírito que sofre, e para nós mesmos, digamos: qualquer sofrimento ou necessidade fisiológica, no mundo espiritual, são sensações FALSAS, uma espécie de repercussão moral((ver O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. VI, item 257)) . Ora, é conclusão de Kardec que a morte do corpo provoca a saída do Espírito, se desligando, o perispírito, célula a célula((ver A Gênese, cap. XI)). Desde que todas as células estão mortas e o perispírito “solto” (o que não vai levar mais do que 24 horas após a morte cerebral) não existe nenhuma repercussão do corpo para o Espírito, senão por uma externalização de um sofrimento moral!

Portanto, você não vai passar “pelo umbral”, mas terá, sim, que enfrentar sua própria consciência, uma hora ou outra, e sua consciência, dependendo de como estiver e dos conceitos que carregar, poderá lhe indicar muito claramente o caminho de reajuste, ou então poderá lhe fixar em estados de perda de tempo. O céu ou o inferno estará em sua própria consciência. Portanto, cuide de aprender o Espiritismo e tirar, dele, as consequências morais em reforço à sua própria vontade. Assim alcançará, mais cedo, a felicidade almejada, que não é viver numa casinha aconchegante numa colônia espiritual onde os Espíritos se preocupam em trabalhar para ganhar dinheiro em troca, mas, sim, a possibilidade de agir no bem, através do espaço infinito, fazendo a sua parte na criação divina.

E não se engane: o Espírito se transporta pelo pensamento, onde quer que ele projete esse pensamento. Não precisa de ônibus voador.

Onde está a chave para entender tudo isso, então?

Está em A Gênese, de Allan Kardec. Leia com atenção:

14. Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade, que são para o Espírito o que a mão é para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem no fluido essa ou aquela direção; eles os aglomeram, combinam ou dispersam e formam conjuntos com uma aparência, uma forma, uma cor determinada; mudam suas propriedades, como um químico muda as de um gás ou de outros corpos, combinando-os segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.

Algumas vezes, essas transformações são o resultado de uma intenção, mas frequentemente são o produto de um pensamento inconsciente, pois basta o Espírito pensar numa coisa para que ela seja feita.

É assim, por exemplo, que um Espírito se apresenta à vista de um encarnado, dotado da vista espiritual, sob a aparência que tinha quando estava vivo, na época em que o conheceu, embora já tenha tido várias outras encarnações. Ele se apresenta com as vestes, os sinais externos, enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. que tinha; um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não digo que tenham conservado tais aparências; não, certamente, porque, como Espírito, ele não é coxo nem maneta, nem caolho nem decapitado. Mas seu pensamento, se reportando à época em que era assim, seu perispírito toma instantaneamente essa aparência, a qual muda também instantaneamente. Se ele havia sido uma vez negro e outra vez branco, ele se apresentará como negro ou como branco, de acordo com qual das duas encarnações ele seja evocado e para onde vá seu pensamento.

Por um efeito análogo, o pensamento do Espírito cria fluidicamente os objetos que estava habituado a utilizar. Um avaro manejará ouro; um militar terá suas armas e seu uniforme; um fumante, seu cachimbo; um trabalhador, sua charrua e seus bois; uma velha mulher, sua roca. Esses objetos fluídicos são tão reais para o Espírito quanto seriam no estado material para o homem encarnado. Mas, pelo fato de serem criados pelo pensamento, sua existência é tão efêmera quanto ele [o pensamento].

É muito fácil compreender, portanto, aquilo que dissemos: “por que existe? Porque acreditam”. Precisamos reconhecer, portanto, a necessidade de compreender e de separar o que á falso do que é verdadeiro, porque, a partir do momento em que alguém diga que, no mundo dos Espíritos, existem bichos-papões comedores de criancinhas, ou Espíritos que vampirizam o fluido perispiritual dos encarnados (o que não pode acontecer, conhecendo o princípio das leis universais que regem matéria e Espírito), e que as pessoas passem a, irrefletidamente, acreditar, sem raciocinar, nesses conceitos, elas próprias, depois de morrerem, a depender de seu estado de consciência, fabricarão suas próprias assombrações, isto é, pela ação do pensamento, criarão tais imagens e, então, em suas comunicações mediúnicas, reproduzirão as mesmas ideias, provavelmente aumentadas aqui e ali, afinal, “quem conta um conto, aumenta um ponto”.

Entende o problema, amigo leitor?

Vídeo explicativo, com Paulo Henrique de Figueiredo

Conclusão

Com tudo isso, estamos dizendo que Chico Xavier estava errado? NÃO, pelo princípio de Chico Xavier ser apenas o médium. Contudo, André Luiz, que nem sequer era uma pessoa espiritualista, na Terra, apresentou a sua verdade das coisas, segundo suas concepções. E, desde que essa opinião não encontra base doutrinária e racional, não pode fazer parte do Espiritismo.

É importante destacar, porém, que, se tais criações existem, é porque Deus permite. Na verdade, isso é algo ligado à própria benevolência divina, que garante, a cada um, o desenvolvimento gradual e sem choques. No artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864, consta uma importante comunicação espiritual, da qual tiramos o seguinte trecho:

Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.

Vemos, portanto, que a existência de tais “lugares” é um fato, permitido pela benevolência divina, àqueles que ainda não estão desenvolvidos para compreender algo acima e fora da matéria e das necessidades materiais.

Finalizamos lembrando aquilo que está estampado em nossa página inicial:

Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da doutrina espírita e lhe assegura a perpetuidade.

Allan Kardec – A Gênese