A verdadeira psicologia

A palavra psicologia significa, literalmente, “estudo da alma” (ψυχή, psyché, “alma” – λογία, logia, “tratado”, “estudo”). Não é, porém, o que vemos refletido nos estudos atuais – e de longa data – sobre o tema, pois, por mais que essa área se aproxime do entendimento da alma como “o princípio inteligente, a racionalidade e o pensamento”, ainda procura na matéria cerebral a origem de todas as características do indivíduo ((

“Nosso cérebro, involuntariamente, procura elementos para se apoiar, reforçar suas convicções ou seus interesses, o que o leve a um estilo de vida individualizado, próprio. Não importa o que você utiliza para fortalecer ou motivar seus desejos, suas esperanças, todas as variadas formas são válidas. Pessoas que não acreditam em nada tendem a ser pessimistas e negativas, pois para elas, nada poderá ocorrer para que haja mudança nas suas vidas. Pois o domínio da razão, prende o homem ao que é terreno. A genética explica a origem da fé.”

SOUZA, Andreia Maria S. “O que é alma: significado em psicologia e psicanálise”. Disponível em https://www.psicanaliseclinica.com/alma-o-que-e/. Acesso em 10/09/2022. Grifos nossos.

Como se vê, mesmo a fé, para a psicologia moderna, ainda é materialista, condicionada, para ela, à genética, e não à alma (necessariamente, portanto, em progresso).

)).

A área de pesquisa do ser humano, de sua “psyché” (psique) está predominantemente caracterizada pelas ideias aristotélicas que definem o ser como um resultado do corpo – ideias essas que, varando pelos séculos, criaram, em contrário à filosofia de Sócrates e Platão, autônoma e espiritualista em essência, uma lamentável doutrina heterônoma e materialista, que, além de retirar do ser os princípios da autonomia e da vontade, fizeram surgir as absurdas ideias de racismo, eugenia e, no campo individual, da heteronomia, que, do indivíduo, contamina seu meio social e, por fim, define as estruturas sociais, filosóficas e políticas.

Pautada e contaminada pela ideia aristotélica, onde o indivíduo atribui, quando puramente materialista, todas as suas características morais à genética do corpo e, quando “espiritualista”, a um ou mais seres atuantes como árbitros (como se Deus, ou “os deuses”, fossem seres vingativos, interferentes) ou impelentes ao mal – o diabo, o(s) demônio(s), etc. – a sociedade se descarateriza como social, tornando-se predominantemente egoísta e insulando o ser em si mesmo, visando o atendimento de suas necessidades materiais, ao invés de levá-lo à compreensão de sua vontade como princípio de tudo, no exercício diário e solidário com o outro.

As religiões, enfim, tiraram, por interesses sectários, a autonomia do indivíduo, para o subordinarem a caprichos e castigos de outros seres, interferentes, belicosos e vingativos, quando não maldosos, ao passo que a ciência, não vendo racionalidade nos princípios dogmáticos das religiões, negando-a em completo, renegou a espiritualidade humana, para, então, cair no mesmo erro, tirando a autonomia do indivíduo ao transformá-lo em “boneco-de-ventríloquo” da química corporal. Não é à toa que a eugenia darwinista se fundamentava em Aristóteles, pois, se por um lado acerta na observação do fato natural da seleção, por outro, estende-o ao ser humano, colocando-o, uma vez mais, como efeito de seu corpo, e não como fator determinante sobre ele. Dizia Darwin: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”.

Não sabíamos nós, porém, que, por expressiva quantidade de tempo, e na capital do mundo dos séculos XVIII e XIX, nasceu uma corrente filosófica que retomou os conceitos da autonomia do indivíduo como princípio fundamental da existência e da definição do (ou de) ser. Uma filosofia que definiu as ciências morais francesas ((Diz Paulo Henrique de Figueiredo em “Autonomia”: A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosofia, de Paul Janet, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:

a) As ciências exatas ou matemáticas.

b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).

c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.

As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:

  • As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).
  • As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafia, numismática, geografia) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.
  • As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografia etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.
  • As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano (JANET, 1885, p. 15-17).)) e que passou a ser matéria fundamental na Escola Normal, na formação dos professores, e que depois passou a ser adotada nos liceus e nos colégios, mas que foi sorrateiramente apagada da história humana, juntamente a duas outras ciências filosóficas de mesmo fundamento, como veremos a seguir.

Foi no início do século XIX que Maine de Biran e, depois, Victor Cousin, entre outros, retomaram o conceito da vontade como princípio elaborado psicologicamente pela alma, definindo o livre-arbítrio. Para esses pensadores – numa época em que, como vimos, a filosofia era tratada como ciência – a autonomia do indivíduo está fundamentada na vontade como caraterística da alma. Desse princípio fundamental, nasceram os princípios que afastaram o ser da heteronomia, colocando-o como agente autônomo de si mesmo e, por sua ação solidária, da sociedade. O indivíduo não era mais um reflexo de sua genética (ou, como pensavam na época, de suas disposições biliares ((A bile branca definia o bem e a bile negra definia o mal, na química corporal. Partindo desse princípio, muitos médicos aplicavam as sangrias, tantas vezes mortais, buscando eliminar do corpo a bile negra.)), mas o reflexo primário de sua vontade.

Isso revolucionou a psicologia da época e transformou totalmente as ciências morais, pois colocou o indivíduo na condição de único responsável real por suas condições e escolhas morais. Mais: passou a tratar dos temas morais, sob esses princípios, de forma a separar o que era externo ao indivíduo – as emoções (na época chamadas paixões), os prazeres, a dor física, etc – do que era interno ao indivíduo – as escolhas, nascidas da vontade de sua alma (sendo que a alma seria, para eles, o ser que define a vontade e que sobrevive à morte, sem, porém, investigá-la nesse estado) que, por fim, determinariam seu estado de felicidade ou de infelicidade.

Esse conhecimento é fantástico e merece ser recuperado e estudado! Veja: hoje, definimos (ou confundimos) nosso estado de felicidade e infelicidade pelos fatores externos – se não tenho dinheiro para viajar, ou se tenho um corpo debilitado, ou se perdi pessoas queridos, me acho infeliz, sendo que a felicidade, para o pensamento materialista vigente, estaria nas coisas do mundo – as festas, as viagens, o dinheiro, etc. Ao compreender essa moral definida por essa filosofia espiritualista – o espiritualismo racional, como ficou conhecida – passamos a separar as coisas: posso estar infeliz por uma condição ou acontecimento, ou não ter prazeres por conta de não ter dinheiro, ou por ter uma saúde debilitada, ou limitações corporais, mas não é isso que define minha felicidade, pois esta é uma construção da vontade de minha alma no que tange à moral, isto é, no meu esforço pelo desapego de tudo aquilo que nasce das condições exteriores à minha vontade. Por exemplo: como condição exterior à minha vontade, definida pela minha alma, existe o impulso corporal de reagir com violência a determinada situação; ao permitir que esse ímpeto, que nasce do instinto de proteção, domine minha vontade, posso realizar ações que me façam, posteriormente, arrepender-me (quando me conscientizar), pelo que sofrerei. Se me apegar a tal modo de agir, desenvolverei um hábito e, daí, um vício, que me fará sofrer indefinidamente, até que, me arrependendo, resolva, de forma consciente, buscar me desapegar desse erro, num esforço que só pode ser autônomo, e não impositivo.

Talvez quem tenha melhor definido esses conceitos seja Paul Janet, em duas obras principais: “Pequenos Elementos de Moral”, uma obra muito sucinta e simples de ler (recomendamos a leitura!), disponível para download aqui e também disponível no Amazon Kindle, e “Tratado Elementar de Philosophia“, uma obra bastante maior e mais complexa.

Mas não para por aí. Mencionamos a questão da bile negra e da bile branca, que tomou os conceitos médicos da época e que, pelas absurdas ações impostas aos doentes, como a sangria ou os “remédios”, que misturavam até veneno, debilitavam e, por vezes, matavam os doentes. Contrário a essas ideias, ainda no século XVIII, Mesmer, ao observar alguns pacientes, chegou – de forma muito resumida – a elaborar conceitos também autônomos no tratamento da saúde, teorizando que o indivíduo poderia também se curar pela ação de sua vontade. Hahnemann, com a homeopatia, seguiu o mesmo princípio. Para Mesmer, o agente externo, agindo através da vontade do indivíduo doente – o que ficou conhecido por magnetismo – poderia auxiliá-lo a atingir, através de um trabalho persistente, curas que, para muitos, seriam impossíveis e, em alguns casos, quase milagrosas (o que, de fato, não era: trava-se apenas de uma ciência desconhecida). Tal era a exatidão de suas teorias que, já naquela época, e contra as teorias científicas de então, elas se alinhavam aos conceitos ora vigentes e demonstrados pela física moderna, como os da Teoria Quântica de Campos e da existência de uma matéria elementar, “quintessenciada”, que dá origem a toda a matéria (matéria escura). É todo um conhecimento que demandaria um verdadeiro livro para tratá-lo. Como esse livro já existe, recomendamos sua leitura: “Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”, de Paulo Henrique de Figueiredo.

Mencionamos também a questão de o estudo dos espiritualistas racionais estar limitado à compreensão da alma como agente da vontade, exterior ao corpo e dominante sobre ele, sobrevivente à morte (por mera inferência racional dos postulados anteriores), mas de posterior destino desconhecido, posto que inobservável. Acontece, porém, que “algo” vinha acontecendo, ganhando terreno para o estabelecimento de uma nova ciência, nascida, na época, como todas as outras: pela observação racional e metodológica dos fatos da natureza.

Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:

“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”

[…]

Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)

[…]

“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”

FIGUEIREDO. Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal.

Chegamos, portanto, ao nascimento da ciência espírita, uma ciência, e não, como muitos julgam, uma “religião”. Posto no corrente dos fatos que pululavam pela Europa (e pelo mundo, na verdade) e, afastando, pela investigação, as charlatanices que visavam apenas atrair curiosos e suas bolsas de dinheiro, o professor Rivail ((Hippolyte Leon Denizard Rivail.)) colocou-se, após muita insistência de alguns conhecidos, a um estudo que culminou naquilo que ficou conhecido como Espiritismo, que, ao invés de nascer, como todas as doutrinas religiosas, da opinião isolada de um indivíduo ou de um grupo, nasceu da análise racional de milhares de comunicações, obtidas de todos os “cantos” do mundo, da mesma forma que os magnetizadores que o precederam também obtiveram as suas: através de indivíduos colocados em estado de sonambulismo, induzido pelo magnetismo (de Mesmer). Um fato estava firmado, sustentado pela razão: a alma, antes ininvestigável, poderia, por sua vontade, se comunicar através da alma do indivíduo colocado em estado sonambúlico.

Através dessas comunicações, Allan Kardec, nome adotado por Rivail com a finalidade de não confundir seus trabalhos como educador e cientista com seus novos estudos, inaugurou uma nova era no estudo psicológico, pois, agora, plenamente alinhado aos conceitos já elaborados pelo espiritualismo racional, estudava a alma em seu estado, após a morte, de felicidade ou infelicidade, frutos de suas escolhas. Não só: contra as ideias pré-concebidas que tinha, junto a outros estudiosos, a respeito da origem da alma, comunicações de incontáveis Espíritos evidenciaram, pela razão, a lei da reencarnação como elemento necessário ao progresso incessante do Espírito ((Destaca Kardec, em sua Revista:

“Sem dúvida, dizem alguns contraditores, vós estáveis imbuídos de tais ideias e por isso os Espíritos concordaram com vossa maneira de ver. É um erro que prova, mais uma vez, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se, antes de julgar, tais pessoas se tivessem dado ao trabalho de ler o que escrevemos sobre o Espiritismo, ter-se-iam poupado ao trabalho de uma objeção tão leviana. Repetiremos, pois, o que já dissemos a respeito, isto é, que quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema.

Aos olhos de algumas pessoas, talvez pareça singular o uso do termo evidência, em semelhante assunto, entretanto não será impróprio para quem se habituou a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos uma evidência moral.

Não é aqui o lugar para explicar esses fatos, só compreensíveis através de um estudo contínuo e perseverante. Nosso objetivo era apenas refutar a ideia de que esta doutrina não passa de uma tradução do nosso pensamento.”

KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1858.

)), em suas escolhas de retorno à matéria, para dar prosseguimento ao seu aprendizado e, em muitos casos, para, após o processo de arrependimento, mediante suas escolhas, e não por uma imposição arbitrária, dar lugar às provas necessárias para a busca pelo desapego de hábitos e vícios que, transformados em imperfeições, os levaram ao sofrimento.

Tais estudos complementaram aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde explicar e demonstraram que a autonomia do ser, definida por sua vontade e pelo seu livre-arbítrio, era, sim, fator determinante em seu progresso e, consequentemente, em seu estado de felicidade ou infelicidade, à medida que a felicidade estaria em quanto mais próximo da lei natural estivesse, ao passo que a infelicidade estaria em lutar contra ela, desenvolvendo apegos. Em reconhecendo o estado de infelicidade e seu motivo, o Espírito escolheria novas oportunidades que proporcionassem aprendizado, não sendo, em nenhuma hipótese, o efeito de um castigo imposto pelo erro cometido.

Eis, prezado leitor, os fatos da verdadeira revolução psicológica e filosófica que, por mais de um século, ficou desconhecida pela sociedade, varrida para baixo do tapete por uma forte reação materialista. Outrora reconhecida como ciência, hoje, sob o império de um entendimento materialista – e inexato – do que é ciência, é tratada como pseudociência, descreditada e desacreditada sob essa classificação. Eis os fatos que, atualmente, são inconcebíveis de serem abordados nas salas de aula das turmas de filosofia, medicina, psicologia e afins. Eis os fatos, enfim, que levaram todo o mundo a mergulhar ou se manter sob os temíveis princípios que tiram do ser a autonomia e que transformam o homem numa verdadeira massa de carne, definida por sua química corporal e, por conseguinte, pelo seu DNA. Não se busca, hoje, em geral, investigar a origem da infelicidade, da depressão ou dos distúrbios pela investigação da alma e de sua vontade: busca-se, pelo contrário, investigar qual é gene da psicopatia, não se cogitando que as “anomalias” seriam definidas pela alma, e não o contrário.

Acontece, porém, que o ser humano, exatamente pelo progresso espiritual, que não cessa, a cada dia mais busca a autonomia, porque, lenta e progressivamente, se aproxima, pela própria razão, da constatação e do entendimento desses princípios, já que o progresso do Espírito não se dá apenas no estado de encarnação. Começam a ganhar força, tanto na sociedade em geral, como nos meios científicos, as ideias autônomas que, a cada dia mais, voltam a se aproximar dessa verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano, no passado. É por isso que, veementemente, indicamos o estudo das obras citadas para, depois, indicar, àqueles que se sintam compelidos a isso, o estudo da Revista Espírita, elaborada por Kardec, de janeiro de 1858 a abril de 1869, onde fica exposta, com muita clareza, a formação dessa doutrina filosófica e moral que, para ser bem entendida, carece da compreensão do contexto em que nasceu e se formou.

Dissemos da verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano. O Espiritismo, tendo sido a única doutrina científica e filosófica que se aprofundou no estudo da psicologia do Espírito após a morte do corpo – eis a razão de a Revista Espírita receber, como subtítulo, “Jornal de Estudos Psicológicos” – estudou os fatos que lhes foram dados de forma racional e com metodologia científica (que pode ser muito bem entendida através do estudo sério da obra de Allan Kardec, e sobre a qual já falamos algumas vezes, em nossos artigos).

Devidamente contextualizada em sua época, a Doutrina Espírita, era de tal maneira racional e lógica, clara e, de certa forma, simples, que “convertia” ((Claro que o sentido aqui dado a “converter” é o de adotar princípios e ideias de uma doutrina, e não de afiliar-se a um sistema religioso qualquer.)) incontáveis pessoas, até mesmo ateus e materialistas, desde as classes operárias até os ocupantes dos mais altos postos sociais. Hoje, porém, o Movimento Espírita, contaminado, por mais de um século, por adulterações nas duas obras finais de Kardec e por ideias incutidas em seu meio, perdeu justamente essa característica racional e lógica de uma ciência observacional. Atualmente, muitos se afastam do meio espírita justamente por verem seus raciocínios chocados contra falsos conceitos de pagamento de dívidas, carma, castigo divino através da reencarnação e aceitação desarrazoada de qualquer suposta psicografia espírita, sem submetê-la, como recomendava Kardec, ao crivo da razão.

Eis o porquê da necessidade de estudar e conhecer o Espiritismo nas obras [originais ((As obras O Céu e o Inferno e A Gênese foram respectivamente adulteradas em suas 4a e 5a edições, mas a editora FEAL já tem, atualmente, as obras originais, com enorme quantidade de notas contextualizatórias de Paulo Henrique de Figueiredo.))] de Kardec. O Espiritismo nunca foi uma religião, nem nasceu com o intuito de disputar com as religiões um posto que não lhe compete ((Diria Kardec, na Revista Espírita de 1862:

“A propósito da questão dos milagres do Espiritismo que nos foi proposta, e que tratamos no nosso último número, igualmente se propõe esta: ‘Os mártires selaram com o seu sangue a verdade do Cristianismo; onde estão os mártires do Espiritismo?’

Estais, pois, muito instados a ver os Espíritas colocados sobre a fogueira e lançados às feras! O que deve fazer supor que a boa vontade não vos faltaria se isso ocorresse ainda. Quereis, pois, a toda força elevar o Espiritismo à situação de uma religião! Notai bem que jamais ele teve essa pretensão; jamais se colocou como rival do Cristianismo, do qual declara ser o filho; que ele combate os seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo. Ainda uma vez, é uma filosofia repousando sobre as bases fundamentais de toda religião, e sobre a moral do Cristo; se renegasse o Cristianismo, se desmentiria, se suicidaria. São esses inimigos que o mostram como uma nova seita, que lhe dá sacerdotes e grandes sacerdotes. Gritarão tanto, e tão frequentemente, que é uma religião, que se poderia acabar por nisto crer. É necessário ser uma religião para ter seus mártires? A ciência, as artes, o gênio, o trabalho, em todos os tempos, não tiveram seus mártires, assim como todas as ideias novas?”

Allan Kardec – Revista Espírita de 1862

)). É, antes de tudo, uma ciência moral, como demonstramos, mas também uma ciência nascida da observação dos fatos da natureza. Estudado como tal, afasta preconceitos e ataca o único real inimigo da autonomia humana, o materialismo, demonstrando-o falso e insustentável.




Devemos publicar tudo quanto dizem os Espíritos?

“Os sofrimentos do jovem Werther” trata-se de um romance epistolar de Goethe, de 1774, onde o seu protagonista, um rapaz da alta aristocracia alemã, troca correspondências com um amigo chamado Guilherme, contando sobre suas viagens e experiências cotidianas (vide ao parágrafo introdutório do artigo), até o encontro com a bela Charlotte.

Embora ambos, Werther e Charlotte, vivam, de fato, uma história de amor, o rapaz não pode ser correspondido completamente por sua amada, já que a mesma é casada com outro homem. Werther, por sua vez, não vê outra saída e põe um fim em sua vida, dando um tiro na própria cabeça. O momento de seu suicídio é um dos episódios mais comoventes do livro e, considerado por muitos, da história da literatura.

O tom realístico e perturbador do romance provocou uma verdadeira comoção entre os jovens da época, que atraídos pelo espírito passional e depressivo de seu respectivo protagonista, resolveram seguir o mesmo rumo, pondo fim em suas próprias vidas. Foi grande o número de suicídios relacionado à leitura do pequeno-grande romance de Goethe, tornando-se rapidamente uma obra maldita para a igreja. Na psicanálise criou-se um termo chamado Efeito Werther, em referência ao personagem e caracterizado por sua fenomenologia suicida.

E o que essa história tem a ver com os Espíritos? Ora, tudo! Goethe foi uma personalidade de um Espírito encarnado – Espírito esse que, aliás, posteriormente se mostrou muito arrependido das ideias lançadas às mentes desavisadas, quando, em 1859, evocado por Kardec, responde assim, conforme apresentado na Revista Espírita desse ano:

12. ─ Que pensais do Werther?

─ Agora lhe reprovo o desenlace.

13. ─ Não teria essa obra feito muito mal, exaltando paixões?

─ Fez, e causou desgraças.

14. ─ Foi a causa de muitos suicídios. Sois por isso responsável?

─ Desde que houve uma influência maléfica espalhada por mim, é exatamente por isso que sofro ainda e de que me arrependo.

Somos responsáveis por aquilo que dizemos e, se não podemos nos responsabilizar totalmente pelas ações que os outros tomem em decorrência das nossas próprias – posto que é da autonomia e da vontade do outro a escolha entre agir desta ou daquela forma – somos, ao menos, em grande parte responsáveis por induzir outras mentes nos erros das imperfeições que, muitas vezes, atrapalham a nós mesmos.

Seguimos, portanto, esta breve reflexão, apresentando, integralmente, um artigo de Allan Kardec, na Revista Espírita de novembro de 1859 – “Devemos publicar tudo quanto os Espíritos dizem”?

Esta pergunta nos foi dirigida por um dos nossos correspondentes.

Respondemo-la da maneira seguinte:

Seria bom publicar tudo quanto dizem e pensam os homens?
Quem quer que possua uma noção do Espiritismo, por superficial que seja, sabe que o mundo invisível é composto de todos aqueles que deixaram na Terra o envoltório visível. Despojando-se, porém, do homem carnal, nem todos se revestiram, por isso mesmo, da túnica dos anjos. Há, portanto, Espíritos de todos os graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade. Eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres levianos, desatentos e brincalhões; falsos sábios, vãos e orgulhosos de um saber incompleto; hipócritas, malévolos e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não conhecêssemos a fisiologia deste mundo, há sensuais, vilões e devassos que se arrastam na lama. Ao lado desses, assim como na Terra, há seres bons, humanos, benevolentes, esclarecidos e dotados de sublimes virtudes. Como, entretanto, o nosso mundo não está na primeira nem na última posição, embora mais vizinho da última que da primeira, disso resulta que o mundo dos Espíritos abrange seres mais avançados intelectual e moralmente do que os nossos homens mais esclarecidos, e outros que estão em situação inferior à dos homens mais inferiores.

Desde que esses seres têm um meio patente de comunicar-se com os homens e de exprimir os seus pensamentos por sinais inteligíveis, suas comunicações devem ser efetivamente o reflexo de seus sentimentos, de suas qualidades ou de seus vícios.

De acordo com o caráter e a elevação dos Espíritos, as comunicações poderão ser levianas, triviais, grosseiras e até mesmo obscenas, ou marcadas pela elevação intelectual, pela sabedoria e pela sublimidade. Eles se revelam por sua própria linguagem. Daí a necessidade de não aceitar cegamente tudo quanto vem do mundo oculto, e de tudo submeter a um severo controle. Com as comunicações de certos Espíritos, do mesmo modo que com os discursos de certos homens, poder-se-ia fazer uma coletânea muito pouco edificante. Temos sob os olhos uma pequena obra inglesa, publicada na América, que é prova disto. Dela pode-se dizer que uma senhora não a recomendaria como leitura à filha. Por isto, não a recomendamos aos nossos leitores.

Há pessoas que acham isto engraçado e divertido. Que se deliciem na intimidade, mas que o guardem para si próprias. O que é ainda menos concebível é que se vangloriem de obter comunicações indecorosas. Isto é sempre indício de simpatias que não podem ser motivo de vaidade, sobretudo quando essas comunicações são espontâneas e persistentes, como acontece a certas pessoas. Isto absolutamente não permite que façamos um julgamento apressado de sua moralidade atual, pois conhecemos pessoas afligidas por esse gênero de obsessão, ao qual de modo algum se presta o seu caráter. Entretanto, como todos os efeitos, este também deve ter uma causa, e se não a encontramos na existência presente, devemos procurá-la numa experiência anterior. Se essa causa não está em nós, está fora de nós. Contudo, há sempre um motivo para estarmos nessa situação, mesmo que esse motivo seja apenas a fraqueza de caráter. Conhecida a causa, de nós depende fazê-la
cessar.

Ao lado dessas comunicações francamente más, e que chocam qualquer ouvido um pouco delicado, outras há que são simplesmente triviais ou ridículas. Haverá algum inconveniente em publicá-las? Se forem divulgadas pelo que valem, haverá apenas um mal menor. Se o forem a título de estudo do gênero, com as devidas precauções e com os comentários e as restrições necessárias, poderão até mesmo ser instrutivas, na medida em que contribuam para se conhecer o mundo espírita em todas as suas nuanças. Com prudência e habilidade, tudo pode ser dito. O mal está em apresentar como sérias, coisas que chocam o bom-senso, a razão ou asconveniências. Neste caso, o perigo é maior do que se pensa.

Para começar, tais publicações têm o inconveniente de induzir em erro as pessoas que não estão em condições de examiná-las e discernir o verdadeiro e do falso, principalmente numa questão tão nova como o Espiritismo. Em segundo lugar, são armas fornecidas aos adversários, que não perdem a oportunidade de tirar desse fato argumentos contra a alta moralidade do ensino espírita, porque, diga-se mais uma vez, o mal está em apresentar seriamente coisas notoriamente absurdas. Alguns poderão até mesmo ver uma profanação no papel ridículo que emprestamos a certas personagens justamente veneradas, às quais atribuímos uma linguagem indigna delas. As pessoas que estudaram a fundo a ciência espírita sabem que atitude convém adotar em semelhantes casos. Sabem que os Espíritos zombeteiros não têm o menor escrúpulo de enfeitar-se com nomes respeitáveis, mas sabem também que esses Espíritos só abusam daqueles que gostam de se deixar abusar e que não sabem ou não querem destruir suas artimanhas pelos meios de controle já conhecidos. O público, que ignora isto, vê apenas uma coisa: um absurdo oferecido à sua admiração como se fosse coisa séria, e em razão disso diz para si mesmo que se todos os espíritas são como esse, não desmerecem o epíteto com que foram agraciados. Sem a menor dúvida, tal julgamento é precipitado. Vós acusais com justa razão os seus autores de leviandade e lhes dizeis: estudai o assunto e não examineis apenas uma face da medalha. Há, porém, tanta gente que julga a priori, sem se dar ao trabalho de erguer uma palha, principalmente quando não existe boa vontade, que é necessário evitar tudo quanto lhes possa dar motivos para censuras, tendo em vista que se a má vontade juntar-se à malevolência, o que é muito comum, ficarão encantadas por encontrarem o que criticar.

Mais tarde, quando o Espiritismo estiver vulgarizado, mais conhecido e compreendido pelas massas, tais publicações não terão mais influência do que hoje teria um livro de heresias científicas. Até lá, nunca seria demasiada a circunspecção, porque há comunicações que podem prejudicar essencialmente a causa que querem defender, em escala muito maior que os grosseiros ataques e as injúrias de certos adversários. Se algumas fossem feitas com tal objetivo, não teriam menor êxito. O erro de certos autores é escrever sobre um assunto antes de tê-lo aprofundado suficientemente, dando lugar, assim, a uma crítica fundamentada. Eles se queixam do julgamento temerário de seus antagonistas, sem atentar para o fato de que muitas vezes são eles mesmos que revelam seu ponto fraco. Aliás, a despeito de todas as precauções, seria presunção suporem-se ao abrigo de toda crítica, a princípio porque é impossível contentar a todo o mundo; depois, porque há os que riem de tudo, mesmo das coisas mais sérias, uns por sua condição, outros por seu caráter. Riem muito da religião. Não é, pois, de admirar que riam dos Espíritos, que não conhecem. Se pelo menos essas brincadeiras fossem espirituosas, haveria compensação. Infelizmente, elas em geral não brilham nem pela finura, nem pelo bom gosto, nem pela urbanidade e muito menos pela lógica. Façamos, pois, o melhor que pudermos, trazendo para nosso lado a razão e a conveniência, e assim traremos para o nosso lado também os trocistas.

Essas considerações serão facilmente compreendidas por todos, mas há uma não menos importante, pois se refere à própria natureza das comunicações espíritas, e por isso não devemos omiti-la. Os Espíritos vão aonde acham simpatia e onde sabem que serão ouvidos. As comunicações grosseiras e inconvenientes, ou simplesmente falsas, absurdas e ridículas, só podem emanar de Espíritos inferiores.

O simples bom-senso o indica. Esses Espíritos fazem o que fazem os homens que se veem complacentemente escutados. Ligam-se àqueles que admiram as suas tolices e muitas vezes se apoderam deles e os dominam a ponto de fasciná-los e subjugá-los.

A importância que, pela publicidade, é dada às suas comunicações, os atrai, excita e encoraja. O único e verdadeiro meio de afastá-los é provar-lhes que não nos deixamos enganar, rejeitando impiedosamente, como apócrifo e suspeito, tudo aquilo que não for racional; tudo aquilo que desmentir a superioridade que se atribui ao Espírito que se manifesta e de cujo nome ele se serve. Então, quando vê que perde o seu tempo, ele se afasta.

Julgamos ter respondido satisfatoriamente à pergunta do nosso correspondente sobre a conveniência e a oportunidade de certas publicações espíritas. Publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte, seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento. Esta é, pelo menos, a nossa opinião pessoal, que submetemos à apreciação daqueles que, desinteressados pela questão, podem julgar com imparcialidade, pondo de lado qualquer consideração individual. Como todo mundo, temos o direito de dizer a nossa maneira de pensar sobre a ciência que é objeto de nossos estudos, e de tratá-la à nossa maneira, não pretendendo impor nossas ideias a quem quer que seja, nem apresentá-las como leis. Os que partilham da nossa maneira de ver é porque creem, como nós, estar com a verdade. O futuro mostrará quem está errado e quem tem razão.

Se temos responsabilidade por nossas ações, não temos menos responsabilidade por propagar falsas ou danosas ideias, resultantes do pensamento alheio, por ostensiva ausência de cuidado e de estudo. Tratamos de Espiritismo, e esse assunto é sério. Não façamos menos, nessa matéria, do que o necessário, que é estudá-lo sem cessar, em todo seu contexto, nunca dando por afirmativas finais aquilo que não tenhamos encontrado concluído nas teses doutrinárias. Lembramos sempre que o próprio Allan Kardec deixou diversos assuntos em aberto, pela impossibilidade de avançar sobre eles, naquela época, mas exortamos para que isso não seja motivo para, levianamente, aceitar qualquer comunicação posterior como complemento desses assuntos, pois, sem o conhecimento e a metodologia necessária, cairíamos no erro de não observar tudo aquilo que Kardec apontou no texto acima, resumo de anos de estudo frente ao Espiritismo.

Também é de nossa opinião que “publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte, seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento”! Goethe tomou a decisão de publicar algo que foi fruto de sua mente – e, muito provavelmente, de outras mentes espirituais, que o induziram a tais ideias. E se essas mesmas mentes, ou o próprio Espírito de Goethe, nos comunicasse um romance de tal teor, por vias mediúnicas? Deveríamos simplesmente publicá-lo?

Note que, de forma alguma, este Grupo se coloca em tom de crítica quanto ao médium. Afinal, ele é a ferramenta de intercâmbio das ideias. O problema que aqui se destaca é no que tange à análise dessas comunicações e o uso que se faz delas e, por aí, pode o leitor imaginar o quanto lamentamos as diversas publicações de supostas cartas psicografadas ou mesmo livros que, indiscriminadamente, favorecem o espalhamento e a inculcação de falsas ideias ligadas aos dogmas da queda pelo pecado, do castigo divino, do apego às coisas da matéria mesmo no mundo espiritual, etc.




Aforismos espíritas sobre o suicídio

– o suicídio é um erro, é claro. Pode ser resultante de um grande desespero, de uma total ausência de fé no futuro – fruto do materialismo – pode ser fruto de um hábito – sempre que ele enfrenta uma dificuldade, ele escolhe desistir -, etc., mas o fato, visto já no estudo do primeiro ano da Revista Espírita (1858), é que não podemos atrelar a ação do suicídio a efeitos padronizados, como, por exemplo, dizer que esse espírito vai ficar sofrendo no “vale dos suicidas” (que não é um lugar, como muitos pensam). Cada caso é um caso. E, afinal, é um erro, como tantos outros. Não tem nada de “pecado maior” ou “crime maior” perante a Deus. Deus não cobra.

– Lembro, enfim, que o estudo sério da Doutrina Espírita em sua originalidade, afastada dos dogmas religiosos do pecado, da queda e do castigo, atrelados à sua irmã gêmea inseparável – a ciência do Magnetismo – conduziu e conduz muitos descrentes à fé raciocinada e à reconquista do ânimo pela vida.

– a Doutrina Espírita não é uma doutrina de falsas ideias, mas uma Doutrina que reconduz o Espírito à responsabilidade sobre si mesmo, pela autonomia e pela consciência.

– De resto, penso que a melhor forma de auxiliar alguém em estado de depressão ou desistência, é demonstrar que:

1. Ele não está sendo castigado por nada. Dores e tristezas, alegrias e prazeres são parte *da matéria*, e todos nós passamos por eles. Felicidade, porém, é conquista do Espírito, que caminha em direção ao bem e ao aperfeiçoamento de si mesmo, enquanto a infelicidade é fruto das imperfeições, desenvolvidas por ações autônomas e conscientes do Espírito, ligadas às sensações, aos prazeres e às paixões. Um Espírito feliz também passará por dores e tristezas, na carne, mas isso não definirá seu estado de felicidade ou infelicidade. Portanto, para podermos atingir a felicidade e a paz interior, precisamos aprender e nos colocar, com toda honestidade, sob análise constante de nós mesmos, buscando nos desapegar desses fatores que nos levam às imperfeições – lembrando que errar e aprender é uma coisa, todo mundo faz no processo de aprendizado, ao passo que errar e se apegar ao erro, num esforço consciente, por conta de prazeres e paixões é que é o grande problema.

2. As dificuldades enfrentadas, por vezes, são fruto das escolhas erradas, ainda nesta vida. Outras vezes, são planejadas como provas, com a finalidade de auxiliar a vencer uma imperfeição. De qualquer forma, são oportunidades que precisam ser encaradas, e o conhecimento espírita ajuda *demais* nesse processo.

3. Interromper uma vida através do suicídio direto ou indireto apenas fará com que o sofrimento *moral* se prolongue por mais tempo, pois, sendo ele originário das imperfeições, apenas cessará quando essas forem vencidas, pelo esforço autônomo e consciente.

4. Tentar ajudar alguém a vencer as ideias do suicídio através do medo, que surge das falsas ideias, é um erro, pois a pessoa que se acredita desgraçada ou mesmo pecadora já está desesperada. Ao invés disso, é necessário buscar auxiliá-la a raciocinar sobre a utilidade de cada segundo da vida encarnada para justamente vencer as imperfeições que lhe impedem de ser verdadeiramente feliz.

É preciso cuidado e estudar bastante. As falsas ideias estão atreladas à nossa educação espírita por mais de um século, mas não são parte original da Doutrina.

Por fim destaco a questão 957, de O Livro dos Espíritos, que vem apontar uma conclusão muito importante:

957. Quais, em geral, com relação ao estado do Espírito, as consequências do suicídio?

Muito diversas são as consequências do suicídio. Não há penas determinadas e, em todos os casos, correspondem sempre às causas que o produziram. Há, porém, uma consequência a que o suicida não pode escapar: o desapontamento. Mas, a sorte não é a mesma para todos; depende das circunstâncias. Alguns expiam a falta imediatamente, outros em nova existência, que será pior do que aquela cujo curso interromperam.”

A observação, realmente, mostra que os efeitos do suicídio não são sempre os mesmos. Alguns há, porém, comuns a todos os casos de morte violenta e que são a consequência da interrupção brusca da vida. Há, primeiro, a persistência mais prolongada e tenaz do laço que une o Espírito ao corpo, por estar quase sempre esse laço na plenitude da sua força no momento em que é partido, ao passo que no caso de morte natural ele se enfraquece gradualmente, e muitas vezes se desfaz antes que a vida se haja extinguido completamente. As consequências desse estado de coisas são o prolongamento da perturbação que se segue à morte e da ilusão em que, durante mais ou menos tempo, o Espírito se conserva de que ainda pertence ao número dos vivos. (155 e 165.)




As adulterações em A Gênese após a morte de Kardec: fato ou questão de ponto de vista?

Por Paulo Degering Rosa Junior

A interpretação de texto é dependente da chave de leitura utilizada pelo leitor“, disse-nos uma correspondente envolvida em estudos, ainda hoje, sobre evidências que sugeririam ou comprovariam que a 5.ª edição de A Gênese não foi uma adulteração.

Com certeza – respondo eu – a interpretação depende do conhecimento do leitor. É possível até mesmo não entender a autonomia – fundamento da moral espírita – e, pelo contrário, depreender os falsos conceitos, como aqueles ligados ao carma. O que eu não vejo como questão de interpretação, porém, é a REMOÇÃO de trechos tão essenciais e importantes da obra, como aquele do item 24 do cap. XVIII (“Dizer que a humanidade está madura para a regeneração não significa que todos os indivíduos estejam no mesmo degrau…”) ou aquele que finaliza, na 4.ª edição, o item 19 do cap. III, a respeito dos instintos – “Todos os homens passam pelas paixões […]”. Além disso, temos a retirada ilógica do final do item 22 do cap. II, que explica o conceito da interação espiritual através do fluido perispiritual, indo em encontro à tese de Mesmer. Isso sem falar na carta manuscrita onde consta que, consultando os Espíritos, foi recomendado a Kardec que NADA fosse suprimido na nova edição.

Interessante, ademais, notar que se prende tanto às questões de A Gênese, fazendo um enorme silêncio sobre O Céu e o Inferno, que foi absurdamente destroçada, chegando a ficar contraditória., na 4.ª edição.

De verdade, eu não entendo como, ainda hoje, gasta-se tanto tempo nessa discussão que em nada agrega ao Espiritismo e à humanidade. Nós já sabemos que o Movimento Espírita foi completamente deturpado por pessoas como Leymarie, que também condenou o futuro da antes reconhecida Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas; já sabemos da influência perniciosa de Roustaing e de seus discípulos; já sabemos das publicações dos discípulos leais de Kardec, que sinalizavam, em berros escritos, os fatos que se passavam então (conforme Beacoup de Lumière, de Berthe Fropo, amiga íntima do casal); sabemos, também, que se chegou ao ponto de queimarem-se manuscritos preciosos de Kardec, também pelas mãos de Leymarie; conhecemos os fatos amplamente apresentados por Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec. Apesar de tantos fatos e evidências, para alguns grupos é inconcebível que as obras citadas não tenham sido adulteradas, e gastam preciosos tempo e recursos em pesquisas que apenas apontam para evidências de que Kardec planejava novas edições – o que é mais que racional.

Enquanto isso, a compreensão do Espiritualismo Racional, do Magnetismo, da Educação e do Espiritismo – tudo muito intrinsecamente ligado – fica esquecida em terceiro plano, ao passo que o Movimento Espírita continua preso às falsas ideias, materialistas, vindas desde Aristóteles até os dias de hoje – as mesmas ideias que destroçaram a filosofia inatacável apresentada pela Doutrina Espírita. Respeito o tempo e a vontade de cada um, afinal, falamos de autonomia e, espero, hoje compreendemo-la. Mas não consigo ver, nisso tudo, senão mais uma forma de atrasar o passo da doutrina, enquanto, vivendo ainda na heteronomia, milhares de pessoas “esperam” um posicionamento oficial de órgãos como a FEB, a respeito não só das adulterações das obras, mas do reconhecimento da distância que tomaram da essência filosófica, científica e moral do Espiritismo.

É isso.


Hoje, 25 de agosto de 2022, é o primeiro aniversário do Grupo de Estudos O Legado de Allan Kardec. Nesse último ano, com a cooperação imprescindível de companheiros valorosos, o Grupo felicita-se de ter aprendido tanto, se desenvolvido tanto e de, a cada dia mais, se tornar mais útil pela compreensão da essência verdadeira – moral, científica e filosófica – do Espiritismo.

O Grupo nasceu justamente após a leitura de O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato, que nos acendeu o alerta sobre os fatos que regularmente vimos destacando e comentando e esperamos que, daqui em diante, tenhamos forças e possibilidades de auxiliar cada vez mais na disseminação do verdadeiro caráter da Doutrina Espírita, afastado das falsas ideias, materialistas e dogmáticas.

Espiritismo não tem “lei do retorno”, “lei de ação e reação”, “carma”, “quitação de dívidas” ou qualquer ideia ligada ao dogma da queda pelo pecado; o Espiritismo demonstra que o Espírito é o autor, o fator determinante da vontade, não estando submetido – embora seja influenciado – pela matéria. Demonstra, acima de tudo, o princípio da autonomia e do livre-arbítrio, afastado dos falsos conceitos de um Deus punitivo ou de um diabo inquisidor.

Estudemos!




Voltando a André Luiz e “Nosso Lar”

Um correspondente nosso destacou a disparidade entre o que conta André Luiz, a respeito de todo o cenário por ele descrito, do mundo espiritual, e o que diz Allan Kardec, no trecho citado, extraído da Revista Espírita de 1859. Repetimos abaixo os trechos citados:

“Mostrou desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar …”

André Luiz – E a vida continua

“O Espirito não experimenta fadiga nem necessidade de repouso ou de nutrição, porque não tem nenhuma perda a reparar. … Os Espíritos inferiores tem todas as paixões e desejos que tinham em vida – e seu castigo é não os poder satisfazer.”

Kardec – Revista Espírita – Abril de 1859

Se faz digno de nota a observação que o livro “E a Vida Continua”, de André Luiz, através da psicografia de Chico Xavier, é o último livro da série que se iniciou com Nosso Lar. Quero dizer: é interessante que as ideias apresentadas por esse Espírito não se alteraram ao londo de todas essas publicações, que supostamente refletem um certo tempo, com várias vivências e aprendizados, conforme relatado por ele mesmo, previamente. Chegado a esse ponto, esse Espírito permanece apresentando ideias que estão em contrário àquilo que formou a Doutrina Espírita – o estudo metodológico da universalidade das comunicações dos Espíritos.

Por que será que isso se deu? Por que será que, durante todo esse tempo, esse Espírito não aprendeu a realidade do mundo Espiritual? Suponho razoável aceitar que Espíritos mais esclarecidos não choquem àqueles que estão ainda nas ilusões dos apegos materiais, fato pelo qual eles poderiam mesmo prover “sopinhas” aos Espíritos que, nesse estado, as solicitassem. Daí, contudo, a ditar toda uma obra psicográfica, tida como “complementar” à Doutrina, sem esclarecer ao leitor a realidade dos fatos, vai uma longa distância.

Dito isso, prossigamos.

Aqui, é interessante cuidar para não tomar a exceção como regra, por um lado, e, por outro, pela regra geral, inadmitir a exceção. O Movimento Espírita toma, atualmente, as comunicações isoladas, repletas de ideias próprias, falsas ideias e ilusões, como regra da lei natural, ao passo que Kardec estudou, nas milhares de comunicações com os Espíritos, os fundamentos desse e de outros aspectos da lei natural.

Quando Kardec afirma que o Espírito não experimenta fadiga nem necessidade de repouso ou de nutrição, quer dizer que, como aspecto da lei natural, realmente, o Espírito não tem NENHUMA das nossas necessidades físicas, nem emoções, que são do corpo, nem dor. Contudo, ele mesmo se comunicou com vários Espíritos que declaravam tais necessidades ou sensações. Na Revista Espírita de dezembro de 1858, o artigo Sensações dos Espíritos fala um pouco sobre isso, iniciando pela citação da comunicação de um Espírito que veio se reunir a eles, ao redor da lareira, reclamando de frio.

Acontece, é claro – e nisto eu insisto em chamar todos ao estudo – que o Espírito, como nós, cria para si próprio as sensações oriundas de seu estado de apego e/ou de sofrimento MORAL – repito: M-O-R-A-L! Assim como nós podemos criar dores e doenças pelo corpo, através do processo psicossomático, o Espírito sofredor ou apegado faz o mesmo com seu corpo espiritual – o perispírito – com a diferença que, para nós, o processo de reversão é mais dificultoso, ao passo que, para o Espírito, tudo depende tão-somente da mudança de seu pensamento.

Por todo o estudo sério e profundo de Allan Kardec, fica evidente que é – repito – o grau de apego às coisas da matéria e às falsas ideias, aliado, quase sempre, a um sofrimento moral, que cria tais ilusões ao Espírito, ilusões essas que são permitidas por Deus, já que Ele não nos faz progredir a golpes, mas garante o tempo e a autonomia a cada um.

Adiciono, por fim, que esse é o grande problema do M.E. atual: incutir nas ideias da massa os APEGOS à matéria, baseados não no estudo sério, mas nas opiniões isoladas, promovendo, assim, ao invés de um despertar do Espírito, um apego continuado às ideias da matéria, que ENTRAVAM o progresso espiritual, já que o Espírito, ao deixar a carne, ao invés de se ver consciente de si mesmo e buscar avaliar seu estado, suas escolhas, etc, pelo contrário, se coloca a pensar se vai para Nosso Lar ou Umbral, se vai ganhar uma casinha para descansar (sic!), se vai ganhar sopinha, se vai se alimentar de caldos ou da carninha que ele gostava… Entende o problema?

Enfim: é o tempo e a cabeça de cada um. Cito o artigo “Sobre os Espíritos que se creem ainda vivos”, da Revista Espírita de 1864:

“Nem tudo é prova na existência; a vida do Espírito continua, como já vos foi dito, desde seu nascimento até o infinito; para uns, a morte não é senão um simples acidente que não influi em nada sobre o destino daquele que morre. Uma telha caída, um ataque de apoplexia, uma morte violenta, muito frequentemente, não fazem senão separar o Espírito de seu envoltório material; mas o envoltório perispiritual conserva, pelo menos em parte, as propriedades do corpo que acaba de sucumbir. Num dia de batalha, se eu pudesse vos abrir os olhos que possuis, mas dos quais não podeis fazer uso, veríeis muitas lutas continuarem, muitos soldados subir ainda ao assalto, defender e atacar os redutos; vós os ouviríeis mesmo produzir seus hurras! e seus gritos de guerra, no meio do silêncio e sob o véu lúgubre que segue um dia de carnagem; o combate acabou, eles retornam aos seus lares para abraçar seus velhos pais, suas velhas mães que os esperam. Algumas vezes, esse estado dura muito tempo para alguns; é uma continuação da vida terrestre, um estado misto entre a vida corpórea e a vida espiritual. Por que, se foram simples e sábios, sentiriam o frio do túmulo? Por que passariam bruscamente da vida para a morte, da claridade do dia à noite? Deus não é injusto, e deixa aos pobres de Espírito esse gozo, esperando que vejam seu estado pelo desenvolvimento de suas próprias faculdades, e que possam passar com calma da vida material à vida real do Espírito.”




Somos todos Espíritos imperfeitos?

Nem todos somos imperfeitos. Essa é uma falsa ideia, quando entendida sob um determinado ângulo, como vamos demonstrar.

O Espiritismo demonstra, complementando o Espiritualismo Racional, que a imperfeição é algo desenvolvido pela repetição consciente (hábito) do erro. Ao se tornar imperfeição (chama-se “imperfeição adquirida”), pode até se tornar um vício, que demandará o esforço autônomo e também consciente para ser superado, através da escolha de provas e oportunidades em novas encarnações.

É nisso que consiste o mal: afastar-se do bem, que é a moral das leis divinas, através do desenvolvimento de imperfeições. E nem todos fazem isso. O Espírito que não desenvolveu imperfeições, ou aquele que está lutando bravamente para superá-las, está no bem ou caminhando para ele… E isso o fortalece o suficiente para vencer, também, influências exteriores, e até mesmo para repeli-las.

Mas há também o aspecto da imperfeição partindo do ponto de vista que somos todos perfectíveis. Assim, enquanto não nos tornamos Espíritos relativamente perfeitos (porque perfeito, mesmo, somente Deus pode ser), seremos imperfeitos.

Ambos os aspectos do termo são tratados por Kardec na Doutrina Espírita, e podemos provar:

Os que não se interessam apenas pelos fatos e compreendem o aspecto filosófico do Espiritismo, admitindo a moral que dele decorre, mas sem a praticarem. A influência da Doutrina sobre o seu caráter é insignificante ou nula. Não modificam em nada os seus hábitos e não se privariam de nenhum de seus prazeres. O avarento continua insensível, o orgulhoso cheio de amor-próprio, o invejoso e o ciumento sempre agressivos. Para eles, a caridade cristã não passa de uma bela máxima. São os espíritas imperfeitos.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, 23a Edição. Editora LAKE

O trecho consta da parte em que Kardec está classificando os tipos de espíritas. Ora, não haveria porque classificar uma parte deles como “imperfeitos” se somos todos imperfeitos. Isso demonstra que, nesse ponto, Kardec está tratando das imperfeições adquiridas, conforme explicadas acima.

Falamos também sobre isso no artigo recente Reforma íntima e Espiritismo e, no estudo abaixo, o tema foi tratado em grupo.

É fato: estamos longe da perfeição. Na verdade, nunca atingiremos a perfeição absoluta, pois, se atingíssemos, seríamos como Deus. Atingiremos a perfeição relativa… Porém, isso não nos faz imperfeitos, mas apenas relativamente simples e ignorantes, isto é, desenvolvendo ainda a vontade e a consciência.

Em O Céu e o Inferno, na versão original e não adulterada (vide a edição produzida pela editora FEAL), essa filosofia está claramente exposta, em toda a sua racionalidade inatacável; contudo, desde o início da formação da Doutrina, essa informação já era conhecida. Basta verificar a Escala Espírita, em O Livro dos Espíritos, e veremos que, na Terceira Ordem – Espíritos Imperfeitos, estão apenas os Espíritos que desenvolveram imperfeições: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes”. E basta raciocinar: nem todo mundo desenvolve essas imperfeições, porque alguns podem escolher não repetir os erros, como já se encontra expresso em O Livro dos Espíritos:

133. Têm necessidade de encarnação os Espíritos que desde o princípio seguiram o caminho do bem?

“Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito.”

a) — Mas, então, de que serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isso não os isenta dos sofrimentos da vida corporal?

Chegam mais depressa ao fim. Ademais, as aflições da vida são muitas vezes a consequência da imperfeição do Espírito. Quanto menos imperfeições, tanto menos tormentos. Aquele que não é invejoso, nem ciumento, nem avaro, nem ambicioso, não sofrerá as torturas que se originam desses defeitos.”

O Livro dos Espíritos. Grifos nossos.

Mas como pode se dar isso?

Para entender esse fundamento da lei natural, precisamos compreender que o Espírito simples e ignorante é aquele em sua primeira encarnação consciente, no reino humano. Nesse estado, recém-saído do reino animal, guarda ainda todos os resquícios do instinto, que o governaram inconscientemente até então, no bem, porque o bem é estar na lei natural, e o animal que mata o outro para se alimentar está seguindo a lei natural, agindo apenas para suprir suas necessidades instintivas, com inteligência, mas sem consciência. Ao entrar no reino do homem, o Espírito consciente passa a fazer escolhas — não entre bem e mal, mas entre agir desta ou daquela forma. Essas escolhas produzirão resultados, que poderão configurar um acerto — estão dentro da lei divina — ou um erro — estão fora da lei divina, isto é, excedem a necessidade racional. O indivíduo pode, então, escolher não repetir esse erro, mas pode também escolher repeti-lo, pois é algo que, de alguma forma, lhe agrada às emoções ou lhe dá prazer. É nesse momento que desenvolve a imperfeição, se repete o erro constantemente. Mas ele pode também escolher não repetir o erro, pois percebe que lhe causa um mau efeito. Nesse sentido, ele é feliz em suas simplicidade e ignorância, sendo essa felicidade relativa à sua capacidade atual.

Isso também está em Kardec, em A Gênese:

“Se estudarmos todas as paixões, e até mesmo todos os vícios, vemos que eles têm seu princípio no instinto de conservação. Esse instinto, em toda sua força nos animais e nos seres primitivos que estão mais próximos da vida animal, ele domina sozinho, porque, entre eles, ainda não há de contrapeso o senso moral. O ser ainda não nasceu para a vida intelectual. O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre-arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente, para ele, começa a responsabilidade de seus atos”.

Na versão original dessa obra, conforme apresentada na edição da editora FEAL, Kardec complementa, dizendo que:

“Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

Então, aquele que desenvolveu uma imperfeição é inferior aos que não as desenvolveram? É um mau Espírito? Deve ser castigado por isso? Não, não e não!

Aquele que desenvolveu uma imperfeição, o fez por não conhecer, em realidade, o bem, caso contrário teria agido adversamente. É apenas um erro — repetido conscientemente — e não passa disso. Não é uma característica do Espírito. Deus não cria ninguém mau, nem cria o mal. O mal não existe! É apenas a ausência do bem. É claro, portanto, que Deus não castigaria um filho seu por errar. Não: ele lhe dá a capacidade de raciocinar e a autonomia, de modo que ele mesmo possa perceber que os resultados de seus erros lhe causam sofrimento e, percebendo isso, se arrependa e demande a correção dessas imperfeições.

É nesse ponto que o espiritualismo moderno e o movimento espírita atual divergem da moral espírita original: para esses, ao entender o erro, o Espírito é obrigado a reparar OS EFEITOS, enquanto, para o último, o Espírito é deixado livre para escolher como e quando tentará reparar A IMPERFEIÇÃO (em si), o que pode ou não envolver a reparação de efeitos danosos que tenha realizado.

Aqui, cabe uma conclusão: a doutrina da “lei do retorno” ou do carma, que nunca fez parte do Espiritismo, afirma que, ao fazer mal para uma pessoa, teremos que reencarnar com ela para reparar esse erro. Contudo, já ficou estabelecido que o mal fazemos apenas para nós mesmos — se, ao cometer um erro com alguém, esse alguém escolhe cultivar um sentimento de cólera, ódio ou vingança, está fazendo o mal a si mesmo. Cabe, portanto, à autonomia de cada um se desapegar de tais sentimentos. Se o algoz fosse obrigado a reencarnar com sua vítima para reparar um erro e, por mais que se esforçasse por ter uma atitude irrepreensível no bem, a vítima escolhesse não desapegar de tais sentimentos, quer dizer que o erro não teria sido pago e demandaria quantas encarnações fossem necessárias para isso, vinculando o progresso do outro, que já voltou ao bem, à escolha do outro? E se, por outro lado, a vítima não se apegou, seguiu em frente, mas o algoz continua em suas imperfeições? Ela terá que reencarnar com ele para que ele, que ainda nem sequer entendeu seu sofrimento, “quite suas dívidas”? Não faz sentido!

Voltando ao nosso ponto, falávamos do retorno do Espírito ao bem. Em O Céu e o Inferno (editora FEAL, baseado na versão original, não adulterada), temos o seguinte:

“8º) A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr fim aos sofrimentos é o arrependimento, a expiação e a reparação – em resumo: um aperfeiçoamento sério, efetivo, assim como um retorno sincero ao bem”.

Sendo o castigo – ou a punição, pois não sabemos ao certo qual foi a intenção da palavra original – uma consequência do erro realizado, será um verdadeiro castigo o sofrimento inerente às imperfeições. Não é uma punição arbitrária divina, mas uma consequência da lei natural. Não há condenação: tudo depende da vontade do indivíduo em arrepender-se e demandar a reparação da imperfeição, retornando, assim, ao bem.

Finalizamos reproduzindo, uma vez mais, a recomendação de Paul Janet ((Em Pequenos Elementos de Moral, disponível aqui para download.)) a repeito dos hábitos:

É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”




Rivail e educação: “O castigo irrita e impõe. Não educa pela razão.”

Allan Kardec, antes desse pseudônimo, já produzia textos sobre a educação. É claro que seus pensamentos se modificaram e se ampliaram após o advento do Espiritismo, mas, como Hypolite Leon Denizard Rivail, muitos deles já apresentavam uma lucidez de raciocínio invejável.


Muito falamos em heteronomia e autonomia, e muito destacamos o quanto as doutrinas religiosas, adulteradas pelos cleros, e também a doutrina materialista, exercem de influência perniciosa na propagação do pensamento heterônomo. Contudo, convenhamos que, em se tratando de doutrinas, são efetivamente mais presentes na fase pós-infantil, quando o indivíduo tem a razão mais desenvolvida.

Há, contudo, um gênero de [má] educação que afeta o indivíduo desde seus primeiros passos e por toda sua infância, habituando-o aos hábitos heterônomos: aquela comumente reproduzida, irrefletidamente, pela família e pela escola, ainda hoje baseada na punição de erros pelo castigo – das mais diversas formas – e na formação de uma cultura de disputa e do “jeitinho”, isto é, de contornar as regras para vencer, posto que este se tornou o único objetivo.

Reproduziremos, muito sucintamente, uma parte do texto de Rivail, apresentado no Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública (clique aqui para baixar), que exprime muito bem algumas considerações a tal respeito.


“Há hábitos de três naturezas diferentes: são eles físicos, intelectuais ou morais. Os primeiros são os que modificam mais particularmente nossa constituição animal; os segundos consistem na posse mais ou menos perfeita de uma ciência. Assim, por exemplo, aquele que está muito familiarizado com uma língua, a fala sem esforço e sem pensar; aquele que possui perfeitamente a matemática, faz seus cálculos sem dificuldades: é isto que se pode chamar ter o hábito de uma ciência; e diga-se de passagem, é a aquisição do hábito, que se negligencia, no método comum; limita-se geralmente a uma teoria muito fugidia, que apenas roça o espírito. Por fim, os hábitos morais são aqueles que nos levam, mau-grado nosso, a fazer qualquer coisa de bom ou de mau.

A fonte desses últimos hábitos se acha, dissemos nós, nas impressões longamente ressentidas ou percebidas na infância. Concebe-se, assim, o quanto importa evitar cuidadosamente tudo o que possa fazer a criança experimentar impressões perigosas; mas não encaro apenas como más impressões, o exemplo do vício, os maus conselhos ou as conversações pouco adequadas; ninguém duvida dos funestos efeitos de semelhantes modelos e não há mãe de família que não coloque todos os seus cuidados em evitá-los; mas há um grande número de outras, minúcias em aparência, e que não deixam de exercer uma influência frequentemente mais perniciosa que o feio espetáculo do vício, de que se pode mesmo às vezes tirar partido para se fazer conceber o seu horror; quero sobretudo falar daquelas que a criança recebe diretamente nas suas relações com as pessoas que a cercam, que, sem lhe dar nem maus exemplos, nem maus conselhos, dão, porém, nascimento a vícios muito graves, como os pais, por sua fraqueza ou os mestres por uma rigidez mal entendida ou quando se toma pouco cuidado em apropriar a sua conduta ao caráter da criança quando se cede, por exemplo, às suas importunações, quando se tolera seus defeitos sob vãos pretextos, quando se submete aos seus caprichos, quando se lhe deixa perceber que se é vítima de suas artimanhas, quando não se sabe o móvel que a faz agir, e que assim se toma defeitos ou germes de vícios por qualidades, o que acontece frequentemente aos pais; quando não se leva em consideração as circunstâncias sutis que podem modificar tal ou qual ação da criança, quando sobretudo não se leva em conta as nuanças de caráter, faz-se que ela experimente impressões que são frequentemente a fonte de vícios muito graves. Um sorriso, quando seria preciso ser sério; uma fraqueza quando seria preciso ser firme; a severidade quando seria preciso a doçura; uma palavra sem pensar, um nada, enfim, bastam às vezes para produzir uma impressão indelével e para fazer germinar um vício.
Que se passará então quando essas impressões forem ressentidas desde o berço, e frequentemente durante toda a infância? Nesse aspecto, o sistema de punições é uma das partes mais importantes a serem consideradas na educação; pois elas são comumente a fonte da maior parte de defeitos e vícios. Frequentemente muito severas ou infligidas com parcialidade e num momento de mau-humor, elas irritam as crianças em vez de convencê-las. Quantas artimanhas, quantos meios de desvio, quantas fraudes não empregam elas para as evitar! É assim que se joga nelas as sementes da má-fé e da hipocrisia e este é muitas vezes o único resultado que se obtém. A criança irritada, e não persuadida, se submete somente à força; nada lhe prova que ela agiu mal; ela sabe apenas que não agiu conforme a vontade do mestre; e esta vontade ele a considera, não como justa e razoável, mas como um capricho e uma tirania; ela se acredita sempre submetida ao arbítrio.

Como se faz com que ela sinta comumente mais a superioridade física do que a superioridade moral, ela espera com impaciência ter ela própria bastante força para se subtrair a isso; daí este espírito hostil que reina entre os mestres e os seus alunos. Não há entre eles nenhuma confiança recíproca, nenhum apego; há ao contrário uma troca contínua de ardis; leva a melhor quem é bastante esperto para surpreender o outro e sabe-se já quem ganha o mais frequentemente. São dois partidos que, quando não estão em guerra aberta, estão continuamente desconfiando um do outro. Como é possível fazer uma boa educação em semelhante estado de coisas?

RIVAIL, H.L.D. Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública. Paris, 1828.


Constatamos o quão importante é resgatar essa base educacional, pautada pela moral. Adicionamos a importância de entender a moral trazida por pensadores como Paul Janet (clique aqui para baixar uma de suas obras). Se você gostou deste artigo e vê sua importância, faça mais: compartilhe-o com quem você puder!




O que o Espiritismo diz sobre a pornografia?

O que o Espiritismo tem a dizer sobre a pornografia? Esse é um assunto complicado, porque não é um assunto que tenha sido tratado diretamente pela Doutrina. Para falar sobre isso, precisamos extrapolar conhecimentos e entendimentos que a Doutrina nos dá.

O Espiritismo coloca, acima de tudo, a liberdade de consciência e a autonomia. Fique isso constado, como resultado do estudo da Doutrina Espírita em seu conteúdo moral e filosófico.

À parte desse princípio, vamos verificar no Espiritismo, desenvolvendo o pensamento do Espiritualismo Racional, que o homem pode adquirir maus hábitos pela repetição de um ato relacionado ao prazer. Isso pode se transformar em uma imperfeição, que se torna um vício, do qual muito custará ao Espírito o trabalho de superação, através do esforço reencarnatório CONSCIENTE e AUTÔNOMO.

Paul Janet fala sobre isso em Pequenos Elementos de Moral, o qual recomendo muito a leitura (clique aqui para baixar):

20 Os hábitos. – É verdade que os hábitos se tornam, com o tempo, quase irresistíveis. É um fato observado com frequência; mas, por um lado, se um hábito inveterado é irresistível, o mesmo não ocorre com um hábito que começa; e assim o homem permanece livre para prevenir a invasão dos maus hábitos. É por isso que os moralistas nos aconselham acima de tudo a vigiar a origem de nossos hábitos. “Toma sobretudo cuidado com os inícios.”

O grande problema de entrar nos hábitos materialistas – que são aqueles que sobrepujam as necessidades fisiológicas – é que, desenvolvendo apegos, não só nos será mais difícil e dolorosa a desligação da matéria, no momento da morte, como também atrairemos as “nuvens de testemunhas”, Espíritos também apegados a tais vícios. Normalmente, isso nos levará a viver num contexto espiritual e social conturbado e difícil.

Mas, veja: não existe pecado. Existe erro. Ninguém será castigado por errar, nem por escolher, conscientemente, se apegar a um vício ou mau hábito qualquer; contudo, os resultados de nossas escolhas podem ser danosos para nós, o que podemos chamar de punição, o que, de todo, não é uma imposição deliberada de Deus.

Cumpre destacar que ninguém deveria se martirizar por uma imperfeição ou mau hábito qualquer a ponto de ficar mal. É preciso o trabalho de formiguinha, talvez lento, mas constante, de modo a não fazer como aqueles que prometem não comer doces no novo ano, mas, sendo um compromisso muito pesado, falem após os primeiros dias, dizendo, então: “não sou forte, é impossível. Vou, portanto, comer tudo o que quiser, sempre que quiser”. Essa figura, aliás, representa a exata imagem da não utilização da razão para conter o instinto. Kardec, em A Gênese, complementa:

O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se.

Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.”

Kardec, A Gênese, 4.ª edição — Editora FEAL




A distância entre o Espiritismo e o Movimento Espírita

Uma correspondente questionou a respeito do que seria essa suposta distância, por nós sempre afirmada, entre a Doutrina Espírita e o Movimento Espírita.

A ela, podemos responder desta forma, para exemplificar para todos:

“B…, isso é algo que cada um precisa realmente estudar ou buscar se informar, principalmente sobre as obras citadas ((

  • No sentido das alterações doutrinarias: O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; Nem Céu Nem Inferno, de Paulo Henrique de Figueiredo; Ponto Final, de Wilson Garcia
  • No sentido do conhecimento sobre o contexto doutrinário: Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, de Paulo Henrique de Figueiredo;
  • No entendimento real da Doutrina, na essência proposta por Kardec, através dos estudos: O Céu e o Inferno e A Gênese, ambos da editora FEAL, pois os outros são as versões adulteradas, ainda.)) , porque compreender e, daí, assumir novo posicionamento, precisa ser uma ação autônoma. Contudo, posso ressaltar algumas diferenças capitais entre Doutrina Espírita (DE) e Movimento Espírita atual (ME):

  • Evocações dos espíritos: DE foi formada sobre elas e demonstrou a necessidade de serem realizadas, com método, para continuar seu desenvolvimento; ME recomenda não fazer, provocando uma onda de médiuns que ficam apenas “à disposição”, portanto, sem controle nem objetivo de aprendizado.
  • Generalidade do ensino: DE demonstrou a necessidade de desenvolver o estudo espírita através do método do duplo controle: universalidade e concordância do ensino e julgamento racional; ME, contagiada por Roustaing, que via um perigo nesse método (que desmentiria suas teorias), passou a tomar comunicações isoladas como expressão da verdade, sem raciocinar.
  • Vida do Espírito na erraticidade: DE demonstrou que emoções e sensações físicas somente existem para o Espírito apegado; ME passou a ensinar um mundo espiritual totalmente materializado, criando, assim, ideias de apego nocivas ao Espírito que desencarna.
  • Necessidade da encarnação: DE demonstrou que a encarnação é uma necessidade para o progresso do Espírito, na qual ele, mesmo que involuntariamente, faz seu papel solidário na criação. Afastou os conceitos de castigo e punição como uma ação arbitrária de Deus, demonstrando que tudo é fruto da escolha do Espírito consciente; ME, sob influência roustainguista, inseriu os falsos conceitos de carma, resgate, lei de ação e reação e lei do retorno.
  • Heteronomia x autonomia: DE demonstrou, em toda ela, que o Espírito se desenvolve de forma autônoma, sendo ele o autor primeiro, senão o único, de suas escolhas; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da vida de forma heterônoma – se sofro é porque estou recebendo o retorno; se tenho alegria é porque fui abençoado, etc.
  • Caridade: DE demonstrou que a caridade é uma ação desinteressada, fruto do dever do Espírito que, conscientemente, se move em direção ao bem; ME passou a tratar da caridade como uma ação externa, quase sempre apenas material. Por ausência de estudos da DE, ME deixa de fazer o bem que poderia fazer para auxiliar no desenvolvimento da sociedade pelas ideias espíritas.
  • Moral: DE demonstrou que, todos criados simples e ignorantes, os Espíritos se desenvolvem errando e acertando, através das encarnações, escolhendo entre agir desta ou daquela forma. Não há dualidade entre bem e mal. Alguns escolhem repetir o erro, desenvolvendo imperfeições das quais muito custarão a se desvencilhar, através do trabalho reencarnatório, em uma ação consciente e autônoma; ME, influenciada por Roustaing, passou a tratar da encarnação como um castigo, como se todos os Espíritos que encarnam fossem imperfeitos.
  • Método: DE sempre demonstrou a forma como ela própria se desenvolveria: pelo estudo das ciências humanas, confrontadas, pela razão, com os ensinamentos espíritas, na troca de informações com grupos idôneos espalhados por todo o mundo; já a ME praticamente não estuda os fundamentos da DE, se isolou nos centros em rotinas que compreendem: monólogos, quase sempre recheados de todos os erros apontados anteriormente; passes, sem conhecimento do magnetismo; e sessões mediúnicas que, sem método e sem estudos, perdem o propósito e a utilidade que realmente poderiam ter.

E por aí vai.”

Vemos que as diferenças entre a Doutrina Espírita, em sua origem, e o que hoje professa ou acredita o Movimento Espírita, são profundas e, quase sempre, danosas à propagação da Doutrina. Cabe, portanto, o esforço voluntário de cada um no estudo honesto e desapegado, bem como na divulgação fraterna e cooperativa do conhecimento.

Complementando as obras citadas, não podemos deixar de apontar a necessidade do estudo da Revista Espírita, que demonstra como se deu a formação da Doutrina Espírita.




Reencarnação Segundo o Espiritismo

Baseado no vídeo de mesmo título do bate-papo semanal do Grupo de Estudos Espiritismo para Todos

Para demonstrar (e não provar) a reencarnação como uma lei natural, Kardec se baseia nos princípios fundamentais do Espiritismo e do Espiritualismo Racional. Dentre eles, estão os atributos essenciais de Deus ((Eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom. Vide O Livro dos Espíritos, Cap. I, item III – Atributos da Divindade)), que são perfeitas em grau infinito, posto que, fosse diferente, não seria esse ser o próprio Deus, sendo necessário, então, que houvesse outro acima, em condição perfeita.

É através da constatação e do entendimento dessas condições essenciais, que deriva o entendimento a respeito da criação divina. Como veremos mais à frente, sua criação também deve ser perfeita e, suas criaturas – os Espíritos – perfectíveis, o que, de contrário, não condiziria com a perfeição divina infinita.

Allan Kardec, de início, não aceitava a reencarnação. Em verdade, ele nem sequer aceitava a possibilidade da nossa interação com os Espíritos, em sua juventude. Era educador emérito, totalmente ligado aos conceitos da moral na pedagogia, além de pesquisador das ciências de então. Dizia ele que, se a educação das crianças fosse bem realizada, elas, quando crescessem, não acreditariam em almas do outro mundo ou em fantasmas ((RIVAIL, H.- L.- D. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios. Paris, 1834)). Foi somente após os primeiros contatos com os fatos espíritas, onde ele compreendeu a existência de uma lei natural, a qual se pôs a estudar, que, vencido pelas evidências e pela razão, aceitou, por ser a conclusão mais racional, os fatos acima mencionados.

Sobre os Espíritos, diz Kardec, na introdução de O Livro dos Espíritos: “Conforme notamos acima, os próprios seres que se comunicam se designam a si mesmos pelo nome de Espíritos ou gênios“.

Já sobre a reencarnação, encontramos um artigo de muito interesse na Revista Espírita de 1858, do mês de novembro, chamado “Pluralidade das Existências“, donde tiramos o seguinte trecho:

[…] quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema, aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.

Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema ((Já falamos sobre o quão importante é esse tipo de atitude frente à pesquisa espírita. Longe de constituir um ato de prepotência ou arrogância, é necessário e instigado pelos próprios Espíritos – quando superiores)) .

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, 2a edição. Grifos nossos.

Kardec, nesse mesmo artigo, cuja leitura recomendamos fortemente, dá algumas noções preliminares sobre a antiguidade da ideia sobre a transmigração das almas. Citaremo-las, para, então, apresentar as dificuldades encontradas nos falsos em que elas muitas vezes se apoiam – ou vieram a se apoiar.

Das diversas doutrinas professadas pelo Espiritismo, a mais controvertida é, inquestionavelmente, a da reencarnação ou da pluralidade das existências corpóreas. Embora seja esta opinião atualmente partilhada por grande número de pessoas e que já tenha sido abordada por nós em várias ocasiões, julgamos um dever aqui examiná-la mais minuciosamente, à vista de sua extraordinária importância e para responder a diversas objeções que foram levantadas.

Antes de entrar a fundo na questão, devemos fazer algumas observações que se nos afiguram indispensáveis.

Para muitas pessoas o dogma da reencarnação não é novo: é ressuscitado de Pitágoras. Nós jamais dissemos que a Doutrina Espírita é uma invenção moderna. Decorrendo de uma lei natural, o Espiritismo deve ter existido desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos por provar que os seus traços são encontrados na mais alta Antiguidade.

Como se sabe, Pitágoras não é o autor do sistema da metempsicose. Ele bebeu-o nos filósofos indianos e entre os egípcios, onde ela existia desde tempos imemoriais. Assim, a ideia da transmigração das almas era uma crença vulgar, admitida pelas mais eminentes personalidades.

Ibidem.

É interessante notar que, embora essa ideia fosse admitida desde a antiguidade, “pelas mais eminentes personalidades”, Kardec não a admitia. Talvez sejam dois os possíveis motivos para isso: ele não pensava nisso, porque não admitia a sobrevivência do Espírito, ou ele não encontrava racionalidade nessas ideias. É sobre esse ponto que entraremos a seguir, para demonstrar que a ausência de razão reside nos falsos princípios, tomados de forma dogmática pelo clero das religiões e ensinado, desde criancinhas, aos seus adeptos.

Falso princípio da degradação da alma

No artigo “Doutrina da reencarnação entre os hindus”, da Revista Espírita de dezembro de 1859, Allan Kardec retoma o assunto da reencarnação em profundidade, apresentando o seguinte:

Conforme os hindus, as almas tinham sido criadas felizes e perfeitas e sua decadência resultou de uma rebelião; sua encarnação no corpo de animais é uma punição. Conforme a Doutrina Espírita, as almas foram e ainda são criadas simples e ignorantes; é pelas encarnações sucessivas que chegam, graças a seus esforços e à misericórdia divina, à perfeição que lhes proporcionará a felicidade eterna. Devendo progredir, a alma pode permanecer estacionária durante um período mais ou menos longo, mas não retrograda. O que adquiriu em conhecimento e em moralidade não se perde. Se não avança, também não recua: eis por que não pode voltar a animar os seres inferiores à Humanidade.

Desse modo, a metempsicose dos hindus está fundada sobre o princípio da degradação das almas. A reencarnação, segundo os Espíritos, está fundada no princípio da progressão contínua.

Segundo os hindus, a alma começou pela perfeição para chegar à abjeção; a perfeição é o começo e a abjeção, o resultado. Conforme os Espíritos, a ignorância é o começo; a perfeição, o objetivo e o resultado. Seria supérfluo procurar demonstrar qual dessas duas doutrinas é mais racional e dá uma ideia mais elevada da justiça e da bondade de Deus.

É, pois, por completa ignorância de seus princípios que algumas pessoas as confundem.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1859.

A crença dos hindus, na queda pelo pecado, é partilhada por muitas outras correntes de pensamento, dentre elas a da Igreja Romana. Segundo essa crença, seria necessário supor que Deus não seria assim tão perfeito, pois, após um erro de um filho seu, criado perfeito, portanto, sem experiência, o submete a um castigo na carne.

No artigo “Do princípio da não-retrogradação dos espíritos”, da RE de junho de 1863, Kardec destaca que:

Segundo um sistema, os Espíritos não teriam sido criados para serem encarnados, reencarnando apenas quando cometem faltas. O bom-senso repele tal pensamento.

A encarnação é uma necessidade para o Espírito que, para cumprir sua missão providencial, trabalha em seu próprio adiantamento pela atividade e a inteligência, que ele deve desenvolver a fim de prover à sua vida e ao seu bem-estar. Mas a encarnação torna-se uma punição quando, não tendo feito o que devia, o Espírito é constrangido ((Esse constrangimento, é claro, dá-se em decorrência da lei natural, divina, e não pela ação direta e arbitrária de Deus)) a recomeçar sua tarefa e multiplica suas existências corpóreas penosas por sua própria culpa.

Um escolar somente se forma após passar por todas as classes. São essas classes uma punição? Não: são uma necessidade, uma condição indispensável para seu adiantamento ((Isso está totalmente de acordo com o pensamento pedagogo de Kardec, alinhado à pedagogia de Pestalozzi, totalmente voltado à autonomia e afastado dos conceitos de punição ou castigo, que, diz Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública” (Paris, 1828), “irritam as crianças em vez de convencê-las”)). Mas se, pela preguiça, for obrigado a repeti-las, aí é uma punição ((Lembrando que a palavra “punição”, para o Espiritismo e para o Espiritualismo Racional, tem o significado de ser o resultado de uma ação, e não de uma imposição divina (veja este artigo). Assim, é possível compreender que repetir de ano, para o estudante, seria uma consequência de suas ações, e não um castigo infligido por elas.)). Ser aprovado em algumas é um mérito.

O que é falso é admitir em princípio a encarnação como um castigo.

KARDEC, Allan. Revista Espírita de 1863. Grifos nossos.

Por incrível que pareça, esse falso princípio dominou o Movimento Espírita, após Kardec. Hoje, sem estudos, fala-se, no meio espírita, em carma, lei do retorno e lei de ação e reação, imputando, à reencarnação, essa característica arbitrariamente punitiva, do “olho-por-olho, dente-por-dente”. É um completo disparate, que só existe, como dissemos, pela ausência do estudo.

Na Revista Espírita de fevereiro de 1864, no artigo “Dissertações Espíritas – Necessidade da Encarnação”, Kardec apresenta a comunicação de um Espírito, assistido por outro, de nome Pascal:

Quis Deus que o Espírito do homem fosse ligado à matéria para sofrer as vicissitudes do corpo ((Afinal, a reencarnação é uma lei. Como diria Kardec no primeiro artigo citado, “Deus não nos pede permissão; não consulta o nosso gosto. Ou é, ou não é.”)), com o qual se identifica a ponto de iludir-se e de o tomar por si mesmo, quando não passa de sua prisão passageira; é como se um prisioneiro se confundisse com as paredes da cela…

Se Deus quis que suas criaturas espirituais fossem momentaneamente unidas à matéria, é, repito, para as fazer sentir e, a bem dizer, para que sofressem as necessidades que a matéria exige de seus corpos, no que respeita ao seu sustento e conservação.

Dessas necessidades nascem as vicissitudes que vos fazem sentir o sofrimento e compreender a comiseração que deveis ter por vossos irmãos na mesma posição. Esse estado transitório é, pois, necessário ao adiantamento do vosso Espírito, que, sem isto, ficaria estagnado.

As necessidades que o corpo vos faz experimentar estimulam os vossos Espíritos e os forçam a buscar os meios de as prover; desse trabalho forçado nasce o desenvolvimento do pensamento. Constrangido a presidir aos movimentos do corpo para os dirigir, visando a sua conservação, o Espírito é conduzido ao trabalho material e daí ao trabalho intelectual, necessários um ao outro, pois a realização das concepções do Espírito exige o trabalho do corpo e este não pode ser feito senão sob a direção e o impulso do Espírito.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864. Grifos nossos.

Ao que Kardec observa:

A estas observações, perfeitamente justas, acrescentaremos que, trabalhando para si mesmo, o Espírito encarnado trabalha para a melhoria do mundo em que habita, assim ajudando a sua transformação e o seu progresso material, que estão nos desígnios de Deus, de quem é o instrumento inteligente. Na sua sabedoria previdente, quis a Providência que tudo se encadeasse na Natureza; que, todos, homens e coisas, fossem solidários ((Esse princípio fundamental da lei natural, demonstrado pelo Espiritismo, vai de contra ao falso princípio do Espírito isolado em si mesmo. Vejamos que, mesmo sem saber ou querer, o Espírito trabalha pelo conjunto, desde sempre. Se houvesse sido criado perfeito (o que também é um contrassenso), não haveria essa necessidade.)).

A reencarnação é necessária enquanto a matéria domina o Espírito. Mas, desde que o Espírito encarnado chegou a dominar a matéria e a anular os efeitos de sua reação sobre o moral, a reencarnação não tem mais nenhuma utilidade nem razão de ser.

Com efeito, o corpo é necessário ao Espírito para o trabalho progressivo até que, tendo chegado a manejar este instrumento à vontade, a lhe imprimir sua vontade, o trabalho esteja realizado.

Ibidem. Idem.

Não creio necessárias maiores explicações. O princípio do progresso sucessivo, através das múltiplas encarnações, está demonstrado como o único capaz de dar razão a todas as questões até hoje levantadas sobre a justiça divina.

Em um próximo artigo continuaremos o assunto.