Espiritualismo Racional e Espiritismo – uma nova divisão no meio Espírita?

Parece que alguns Espíritas – aqueles que não entenderam a proposta do Espiritismo – trabalham pela divisão, e não pela construção colaborativa. Encontram em todos os lugares e em todas as pessoas um objeto de suas críticas que, se podem ter algum fundamento, quase sempre perdem-se em razão da notória falta de aprofundamento e de uma real e sólida argumentação, que apresente ponto e contraponto, não dando sentença final sobre nada que não possa ser provado ou suficientemente elaborado pela razão. Interessante, porque, justamente, são (somos) adeptos de uma Doutrina inteiramente fundada na lógica e na razão, onde evidências e hipóteses corroboram teorias, não se dando a posse sobre a verdade. Não agindo assim, Carlos Seth Bastos, do “CSI do Espiritismo”, vem dizer que o tema Espiritualismo Racional e Espiritismo seria uma nova divisão no movimento espírita, sem ter a coragem (ou a vontade) de citar o nome do autor ao qual se refere.

A história se repetiu entre 2016 e 2020 agora no campo da moral, com o lançamento de livros que procuraram trazer pensamentos de Kant, Maine de Biran e Victor Cousin para dentro do Espiritismo, mesmo que para isso precisassem deturpar as ideias de Allan Kardec.

Sua propagação, a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião, nos parece o mesmo discurso de Marius George (Surpreso que a ideia espírita tinha recrutado tão poucos adeptos do exército de republicanos, foi finalmente levado a ver que o obstáculo era inteiramente devido ao disfarce místico sob o qual Allan Kardec o havia apresentado) e Émile Blin (Até que tenhamos trazido à Sociedade parisiense um número suficiente de membros para entrar neste caminho de pesquisa, devemos, para ver nossas fileiras aumentarem, convidar a vir até nós os incrédulos e os descrentes para, pela palavra, deixá-los conhecer nossas intenções, provar-lhes nosso desinteresse e persuadi-los de nossa boa fé e honestidade; então, por experiências tão simples quanto possível, por em suas mãos os meios de adquirir para si a certeza de que tudo o que propomos é real e, de fato, a doutrina imortalista é a única que, sem misticismo e sem orações, dá ao homem a consolação e a coragem no presente, e a esperança e a fé no futuro).

Pelo menos estes discursos não se sustentaram na falácia de uma improvável adulteração das obras de Allan Kardec.

BASTOS, Carlos Seth. Bônus adicional – O final. Espíritos sob investigação. Disponível em: <https://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/L193.pdf>. Acesso em: 15/04/2023.

Divisão no Espiritismo?

Em primeiro lugar, importa destacar que o Espiritismo não se divide. Sendo uma verdade natural, é una. Colocadas à parte as dificuldades encontradas nas comunicações feitas sem controle, o Espiritismo é um só, em todos os tempos. O que, sim, pode se dividir, é o Movimento Espírita – e essa divisão é incontável. Através do tempo, depois de Kardec, dividiu-se com a “roustainguização” e, depois, com incontáveis outras, por diversos motivos que não cabe citar aqui, mas que Simoni Privato, Paulo Henrique de Figueiredo e Wilson Garcia, dentre outros, contam bem em suas obras (refira-se a Obras Recomendadas).

Segundo Carlos Seth, “cabeça” do CSI do Espiritismo, agora a divisão se dá no campo moral, porque Paulo Henrique de Figueiredo – esse o autor das referidas obras, de 2018 e 2020, a quem Seth nem sequer se digna a fazer referência – estaria distorcendo falas de Kardec para implantar, na Doutrina, algo que nada tem a ver com ela. Veremos.

Em segundo lugar, importa abordar a sentença “a pretexto de convencer as pessoas avessas à religião”. Como se fazer esforços legítimos e bem embasados para atrair o interesse de “pessoas avessas à religião” fosse um demérito, já que (1) o Espiritismo não é uma religião, (2) desenvolveu-se a partir de uma ciência, como uma ciência e (3) foi precisamente no meio não religioso que encontrou, em sua origem, a maior aderência – justamente porque grande parte dos cientistas que se tornaram adeptos do Espiritismo estavam bem compenetrados do desenvolvimento do Espiritualismo Racional e de suas constatações científicas.

Termina o autor novamente atacando quem, por outras evidências e argumentos lógicos e racionais, conclui pela probabilidade da adulteração ((A teoria da não-adulteração (de O Céu e o Inferno e A Gênese) tem também evidências e argumentos, mas não apresenta prova cabal. Arvora-se numa falácia para atacar outra (segundo defende), esquecendo-se das valiosas sugestões de Kardec: nunca tomar por final senão aquilo que pode ser provado.))

Kardec defendeu o Espiritualismo Racional, mas Seth parece não saber disso

Antes de mais nada, porém, precisaremos evocar Kardec e questionar o porquê de ele ter defendido o tal Espiritualismo Racional – movimento filosófico-científico encabeçado por pessoas como Maine de Biran e Victor Cousin ((Por A + B, se o Espiritualismo Racional estava instituído oficialmente no ensino francês e se era um movimento sólido, fundamentado principalmente pelos autores citados, é fácil concluir, com certeza, que Kardec refere-se ao mesmo movimento, e não a outro qualquer)). Ora, vemos, na Revista Espírita de 1868, que:

A obra do Sr. Chassang é a aplicação dessas ideias à arte em geral, e à arte grega em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica da Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como o dissemos, toda defesa do espiritualismo racional franqueia o caminho do Espiritismo, que é o seu desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo.

O Sr. Chassang é o autor da história de Apolônio de Tiana, à qual nos referimos na Revista de outubro de 1862.

“Esse livro, de um caráter todo especial, não foi feito por ocasião dos recentes debates sobre o materialismo e, sem a menor dúvida, é independentemente da vontade do autor que as circunstâncias lhe vieram dar uma espécie de atualidade. Escrevendo-o, o Sr. Chassang não pretendia fazer obra de metafísico, mas de simples literato. Não obstante, como as grandes questões de metafísica estão atualmente, como sempre, na ordem do dia, e toda obra literária verdadeiramente digna desse nome supõe sempre algum princípio filosófico, esse livro, de uma inspiração espiritualista muito decidida, se acha em correlação com as preocupações do momento.

KARDEC, Allan. Revista Espírita, novembro de 1868

Sendo que a metafísica era um dos campos de estudo das ciências filosóficas, oficialmente instituída na Universidade de Sorbonne:

Imagem extraída do Tratado Elementar de Philosophia, de Paul Janet

E isso não é tudo. Antes disso, em 1863, Kardec diz, no artigo intitulado “Noticias bibliográficas – O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”:

Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita; aliás, em breve será seguido ─ e disto temos certeza ─ por outras adesões mais ressonantes ainda, que levarão os negadores e adversários de todas as escolas a refletir seriamente

KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro de 1863

Que sandice, senhor Kardec! Defendendo ideias que, segundo algumas pessoas, não tem nada a ver com o Espiritismo! Afirmando que o Espiritualismo Racional, ao qual se refere, no texto, apenas como “ideias espiritualistas” (o que nos leva a crer que, em outras referências do tipo – “espiritualismo”, “espiritualistas”, etc – ele se referia ao mesmo Espiritualismo Racional) seria algo obtido da observação científica dos fatos! Ora, onde já se viu ciência e espiritualismo andarem juntos? Só se foi no passado, no tempo do “doido” Kardec.

Maior sandice, na verdade, é a de Paulo Henrique de Figueiredo, que resolveu investigar a fundo e descobriu que a metafísica, ao tempo de Kardec, era uma das áreas de estudo das Ciências Morais oficialmente ensinadas na Universidade de Paris e também na Escola Normal (refira-se a “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, desse autor). Tudo isso contido em obras que, até então, eram desconhecidas ou esquecidas pelo mundo moderno.

A grande dificuldade, porém, será que todos nós, que acompanhamos o trabalho de Paulo Henrique e inclusive ele, teremos que negar a realidade, negar os documentos históricos e as obras existentes, censurar as obras de Paul Janet, negar Kardec, negar suas conclusões e suas afirmações, tudo a fim de não provocarmos uma nova cisão, “agora no campo moral”. Em outras palavras: apaguemos e adulteremos a verdade, para que a moral, da forma que eles entendem, permaneça intocada. Bem, essa sanha de tomar a verdade para si, ignorando fatos, parece um hábito do Carlos Seth Investiga do Espiritismo, como demonstramos no artigo “CSI do Espiritismo: o órgão oficial da Verdade“.

Também precisamos evocar o Espírito do Sr. Love e ter uma séria conversa com ele, a fim de esclarecer sua ousadia em, sendo um espiritualista racional, afirmar que encontrou a mesma moral obtida em suas observações, justamente no Espiritismo “de Kardec”:

A moral, tal qual a compreendo e a deduzi de noções científicas ─ não temo reconhecê-lo ─ tem numerosos pontos de contacto com aquela transmitida pelos médiuns do Sr. Allan Kardec. Também não estou longe de admitir que se nas páginas por eles escritas muitas há que não ultrapassam o alcance ordinário do espírito humano, inclusive o deles, deve havê-las, e as há, de um tal alcance que lhes seria impossível escrever outras idênticas nos seus momentos ordinários.

LOVE, G. H. apud KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro, 1863.

Creio não ser necessário seguir adiante. Deixo ao leitor a liberdade e a tarefa, se assim desejar, de buscar obter informações que o permitam chegar, pelo seu próprio raciocínio, às suas respostas. Apenas gostaria de citar mais uma vez Carlos Seth:

A doutrina espírita é progressiva, mas seu estudo é a chave. Saibamos aguardar novos dados em vez de recusarmos alguns de seus aspectos, como por exemplo a ação dos Espíritos nos fenômenos da natureza. Se ainda assim, determinada característica, como a religiosa, nos incomoda a ponto de não conseguirmos pô-la de lado, deixemos de ser espíritas kardecistas para então seguirmos quaisquer outras seitas oriundas do Espiritismo original. Apesar de recorrente na história,
é isso que hoje presenciamos mais uma vez com laicos, ecléticos e sincréticos.

BASTOS, Carlos Seth. Ibidem. Grifos meus.

Ah, se o sr. Carlos houvesse seguido seu próprio ensinamento e estudado. Se soubesse aguardar, antes de pular precipitadamente às tolas conclusões apressadas… Teria visto Paulo Henrique afirmar, em Revolução Espírita, o quão evidente é que o Espiritismo complementa e desenvolve aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde estudar, resolvendo, aliás, muitos de seus erros, contradições e incertezas. Ah, essa pressa de certos “pesquisadores renomados”…

Por que Kardec não deu mais detalhes sobre o Espiritualismo Racional?

Cabe destacar que, à objeção do porquê Kardec não ter dado mais informações sobre algo para ele tão importante, precisamos responder o seguinte: o mesmo se deu com o Magnetismo, ciência que ele declara ter estudado por mais de 35 anos. Ele simplesmente não se aprofundou sobre algo que estava tão profundamente estabelecido em seu contexto, da mesma forma que, hoje, para falar sobre astronomia, não dedicamos tempo a narrar todo o contexto científico atual, nos limitando a falar, por exemplo, da teoria do Big Bang. Se, porventura, essa teoria fosse colocada no esquecimento, por encontrar-se superada ou pela adoção de outra teoria, não necessariamente correta, um leitor qualquer, no futuro, precisaria buscar resgatar esse conhecimento para bem compreender nossas teorias, suposições e doutrinas.

Devo apenas mencionar que, ao me pronunciar sobre o caso, solicitam-me provas de Kardec teria, como eu disse, defendido amplamente o Espiritualismo Racional. Eis minha resposta:

X, se os autores do artigo (PDF), de bom grado, tivessem se dedicado a estudar a obra desse autor, antes de criticar, teriam entendido muito facilmente todo esse contexto, de modo que eu não tivesse que ficar repetindo aqui toda a informação que já existe.

Já citei uma das vezes em que Kardec citou, com ênfase, e nomeadamente, “Espiritualismo Racional”, afirmando que toda defesa dele seria favorável ao Espiritismo. Em outubro de 1863 (RE) você terá DOIS artigos muito interessantes sobre o assunto. Cito o início do segundo, ao final do número (“O Espiritualismo racional pelo Sr. G. H. Love, engenheiro”):

“Este livro notável e consciencioso é obra de um distinto cientista, que se propôs tirar da própria Ciência e da observação dos fatos a demonstração da realidade das ideias espiritualistas. É mais uma peça em apoio à tese que sustentamos acima. É mais ainda, porque é um primeiro passo, quase oficial, da Ciência, na via espírita”.

Vá até o Google e coloque assim: “site:kardecpedia.com espiritualismo”, e encontrará muita coisa.

Ora, se Kardec falava de fluidos (vital, elétrico, magnético, etc) não nos cabe investigar o que é isso, ao invés de adotar, cegamente, teorias erradas? Vamos então verificar que era um conceito da ciência da época, superada pela ciência atual e, ao que tudo indica, abandonada por Kardec, após convencer-se da veracidade da teoria de Mesmer. Sem fazer isso, caio no erro de dizer que Mesmer e Espiritismo não tem nada a ver, sem saber que Kardec TAMBÉM defendeu o Magnetismo de Mesmer.

Afinal, que linha de pesquisa é essa, para a qual querem dar tantos ares de seriedade e confiança, mas que comete um erro tão grave e absurdo como tal, com o agravante de dar sentenças finais sobre este ou aquele assunto, influenciando o meio espírita para uma nova cisão que não existe senão em suas mentes, apegadas a uma discordância inicial ((Refiro-me à discordância entre ter havido ou não adulterações nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese))?

Terminam por cair no ridículo e no descrédito aqueles que assim agem. Não que não estejamos livres, de nossa parte, de incorrer em erros do gênero ou outros piores, mas o estudo do Espiritismo e do proceder científico de Kardec muito nos tem ajudado nesse sentido.

O monopólio do bom-senso

Termino com uma observação de Kardec, feita sobre o artigo “A bibliotecária de Nova York”, na Revista Espírita de maio de 1860. Não é relacionado ao tema principal, mas, quem sabe, nos sirva de reflexão. Os grifos são meus, como sempre:

Sobre o artigo, faremos uma primeira observação: é a displicência com que os negadores dos Espíritos se atribuem o monopólio do bom-senso. “Os espiritualistas, diz o autor, aí veem um exemplo a mais das manifestações do outro mundo. As pessoas sensatas não vão buscar a explicação tão longe e reconhecem claramente os sintomas de uma alucinação”. Assim, conforme esse autor, só são sensatas as pessoas que pensam como ele; as demais não têm senso comum, mesmo que fossem doutores, e o Espiritismo os conta aos milhares. Estranha modéstia, na verdade, a que tem como máxima: ninguém tem razão, salvo nós e nossos amigos!

KARDEC, Allan. Revista Espírita, maio de 1860

Os documentos que eles encontraram, corroborando uma hipótese de não adulteração, são, segundo eles, comprobatórios, dão sentenças finais – mesmo sendo nada mais que evidências que não explicam muitas coisas. Fora disso, segundo eles, é tudo descartável, falácia ou invenção.

O questionamento é natural, salutar e necessário. Ele nos instiga a pesquisar, a reler, a estudar. Mas seria ainda mais produtivo se a opinião discordante nascesse, sempre, de um profundo embasamento bibliográfico e científico, de modo a não terminar como os Srs. Schiff e Jobert (Revista Espírita, junho, 1859) que, tendo descoberto no estalar de um músculo a confirmação de uma hipótese, terminaram por afirmar categoricamente, com palavra final, contra todos os fenômenos espíritas. Bem, basta ler o artigo para certificar-se do ridículo no qual caíram frente aos fatos apresentados por Kardec.

Isso é ciência. Isso é desapego. Isso é compromisso com a verdade. Por todo esse compromisso, longe de configurar como um ataque, mas como uma defesa, faço o que eles não fizeram, e dou nome e sobrenome àqueles que atacam de maneira leviana o trabalho de outros.

Estranhamente, Seth vê uma divisão ao tratar do movimento que deu base ao surgimento do Espiritismo, mas não vê problema algum em ficar fuçando e trazendo à tona fofocas da época, lançada por médiuns que não quiseram se adequar àquilo que a Doutrina Espírita demandava. Vai entender…