31 de Março: Aniversário de morte de Allan Kardec
Dia 31 de março. Data pouco conhecida ou pouco lembrada no meio Espírita, é o dia em que morreu, em 1869, o querido e emérito professor, cientista, filósofo e estudioso dos fenômenos espíritas, Hypolite Leon Denizard Rivail – grafado dessa forma, mesmo, conforme ele próprio corrigiu, em documento de punho próprio, disponibilizado pelo CDOR. Esse foi Allan Kardec, aquele que dedicou seus últimos anos de vida e fez, em pouco mais de uma década, aquilo que poucos fazem em uma vida: obteve, pela observação racional e metodológica dos fenômenos espíritas, naturais e inteligentes, toda uma Doutrina, consoladora em sua essência e que, um dia, será reconhecida como a grande revolução no pensamento humano a respeito da vida, da sociedade, da caridade e da verdade sobre o bem.
O triste dia
Com uma beleza poética, Simoni Privato, em O Legado de Allan Kardec, assim se expressa, sobre a morte de Kardec:
Como sentia que sua encarnação passava de maneira célere e constatava que suas tarefas doutrinárias continuavam aumentando, Allan Kardec evitava perder tempo. […] Ali [na Passagem Sainte-Anne] trabalhava desde a manhã até a noite e, frequentemente, desde a noite até a manhã, sem ao menos poder descansar, uma vez que estava só para ocupar-se de um trabalho cuja dimensão dificilmente se pode imaginar e que aumentava à medida que o espiritismo se difundia.
Como o contrato de aluguel do imóvel na Passagem Sainte-Anne estava para vencer, Allan Kardec pretendia deixá-lo no dia 1º de abril de 1869 e retirar-se para a Villa Ségur, onde tinha a intenção de concentrar-se mais na elaboração de textos doutrinários. Nessa mesma data, o escritório para assinatura e expedição da Revista Espírita, bem como a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas seriam transferidos da Passagem Sainte-Anne para a sede da Livraria Espírita, na rua de Lille, nº 72.
Na quarta-feira, 31 de março, Allan Kardec encontrava-se na Passagem Sainte-Anne organizando seus livros e papéis para a mudança, que já havia começado e que deveria terminar no dia seguinte. Durante a manhã, recebeu um funcionário de uma livraria que desejava adquirir um número da Revista Espírita. Ao lhe entregar o exemplar, subitamente Allan Kardec perdeu os sentidos e tombou no solo sem haver dito sequer uma palavra.
[…]
Até o último instante de sua existência física, Allan Kardec deixou profundos ensinamentos. Morreu como viveu: trabalhando pelo Espiritismo. Suas mãos laboriosas despediram-se deste mundo entregando a Revista Espírita — periódico no qual deixou registrados seus ensinamentos, suas lutas, suas vitórias e, naquele último momento, sua imortalidade.
[…]
No cemitério, os curiosos procuravam posicionar-se nos lugares de onde podiam escutar os discursos. No entanto, quando o ataúde desceu para o fundo da cova, a emoção calou as palavras; fez-se um grande silêncio.
E esse silêncio parece ter se arrastado até os dias atuais, em que a grande parte do movimento espírita, em realidade, não conhece Allan Kardec e, muito menos, seu trabalho na formação da Doutrina Espírita — o Espiritismo.
Allan Kardec esquecido
Com grande tristeza, podemos averiguar que, nos pontos históricos que envolvem esse grande trabalho, o nome de Kardec não existe, nem como Allan Kardec, nem como Rivail: foi apagado pelo tempo, assim como fizeram com todos os cientistas que se dedicaram a estudar o Espiritismo e o Magnetismo. Não há uma placa dedicatória a Kardec. Não há um busto. Não há uma inscrição na parede ou na calçada, quando, por muito menos, personalidades do satirismo ou do horror merecem uma gravação dedicada, sob a luz dos holofotes, nas calçadas da fama que existem, mundo afora. Não. Nas ruas da França, parece que o único lugar em que o querido professor merece uma lembrança é no cemitério, como que por obrigação, e onde, morto e enterrado, não chama a atenção de ninguém com suas ideias “subversivas”.
Mas a grande questão aqui não é apenas o esquecimento da figura de Allan Kardec, mas do seu papel como cientista espírita e da sua metodologia, da sua honestidade, da sua humildade e da sua seriedade no estudo do Espiritismo. Não cultuamos Kardec, mas reconhecemos seu trabalho e sua dedicação. Em uma paródia muito pertinente, há quem acredite, hoje, que a gravidade é uma grande farsa, por não ter estudado e compreendido o estudo de Isaac Newton, que principiou as ciências físicas, como hoje as conhecemos. Dá-se o mesmo com o Espiritismo.
Uma Doutrina desconhecida
Dizíamos que o Movimento Espírita desconhece Kardec e seu trabalho. Sim, de tal forma que, de fato, em grande parte, desconhecem a própria Doutrina que dizem professar. Poucos sabem do enorme desvio que a Doutrina, ou, antes, o Movimento Espírita, sofreu após a morte de Kardec, pelas mãos de Leymarie e com a influência de Roustaing e seus seguidores; poucos sabem que as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” foram adulteradas, respectivamente nas edições 5.ª e 4.ª; poucos sabem que essa influência se espalhou e se instalou no Movimento Espírita nascente, aqui no Brasil, logo em seus primeiros passos; poucos sabem que o próprio Bezerra de Menezes, por suas inclinações religiosas, preferiu as ideias roustainguistas sobre as espiritistas e que, por isso, as difundiu no Brasil; poucos sabem, ainda, que Kardec planejava dar início, a partir de abril de 1869, a uma nova fase do Espiritismo, sem figuras ou entidades centralizadoras e sem hierarquias, de modo que ninguém pudesse ditar regras — cenário totalmente diferente do que vivemos em nosso país, onde, desde os primórdios do Movimento Espírita, uma Federação se autointitulou centralizadora e regradora — a mesma Federação que chegou a colocar, também, Roustaing acima de Kardec.
No Brasil, país onde o Espiritismo parece ter conquistado o maior número de adeptos, vivemos um movimento espiritista religioso, com rituais e paramentos, onde “o telefone só toca de lá para cá” virou lei e, pior, onde as ideias de pecado e castigo, carma, “lei de causa e efeito” ou “lei de ação e reação”, que nunca fizeram parte dessa Doutrina, passaram a ser tomadas como doutrinárias.
Que me desculpe o querido Chico, mas, na afirmação sobre o telefone, ele errou, ou foi mal entendido. Contudo, erram ainda mais os adeptos, que, por falta de estudo e de forma irrefletida, passaram a tomar opiniões de médiuns e de Espíritos como se fossem a lei ou a expressão inquestionável da verdade e da sabedoria. É por isso que reafirmamos: o Movimento Espírita desconhece o Espiritismo, pois o ponto fundamental da Doutrina é aquele com o qual Kardec inicia sua última obra, A Gênese, apresentando, logo na primeira página:
Generalidade e concordância no ensino, esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.
O Movimento desconhece, muito mais, a formação da Doutrina, apresentada largamente na Revista Espírita (leia este artigo), onde Kardec, número após número, demonstra várias evocações de Espíritos das mais diversas categorias (conforme a escala espírita), afirmando sua utilidade. Kardec evocou assassinos e cientistas, sábios e ignorantes, suicidas há poucos dias de sua morte, reis e rainhas e, de todos, sempre obteve ensinamentos importantes, que, progressivamente, através do método da busca pela concordância universal, sob o julgamento da razão, do bom-senso e da ciência humana, foram constituindo toda uma Doutrina e que, depois, serviram de base para a formação das demais obras e para a complementação de O Livro dos Espíritos.
As adulterações desconhecidas
Mas não podemos culpar, de todo, apenas a falta de empenho no estudo, pois muitos estudaram, mas estudaram sem saber que estudavam algo adulterado, como foi o caso de A Gênese e O Céu e o Inferno[1]. Ora, um dos pontos mais controversos de OCI nasceu de uma adulteração, pois a seguinte frase não existia na obra original, escrita por Kardec:
Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.
Texto inserido na versão adulterada de OCI, a partir da 4a edição
Sabemos hoje, por documentos históricos, que não apenas essas obras, mas todo o movimento espírita, sob as mãos de Leymarie, foi adulterado e subvertido, em nome do dinheiro e da vaidade. Um dos piores casos foi aquele conhecido como “O processo dos espíritas“, que manchou a reputação do Espiritismo na sociedade francesa.
O contexto de Allan Kardec
Também não conhecíamos o contexto de Kardec, onde O Espiritualismo Racional e as Ciências Morais davam base à formação educacional francesa, como podemos averiguar largamente em “Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo”, por Paulo Henrique de Figueiredo, obra essa que também apresenta a face puramente autônoma do Espiritismo, completamente afastado de noções como as de carma, largamente presentes no Movimento Espírita atual. Não apenas isso, temos também a questão do Magnetismo, citado constantemente por Kardec como ciência gêmea do Espiritismo, de modo que uma sem a outra ficariam incompletas. Ora, Mesmer, “pai” do Magnetismo, só passou a ser compreendido recentemente, através da recuperação e da tradução de suas obras, culminando no livro Mesmer: A ciência negada do magnetismo animal, desse mesmo autor.
Enfim: nós precisamos recuperar Kardec. Precisamos estudá-lo em suas obras e na Revista Espírita; precisamos compreender o contexto no qual estava inserido; precisamos conhecer o Magnetismo; precisamos compreender o Espiritismo como ciência, que de fato é, e não como religião, que nunca foi, senão sob a compreensão da religião natural, conforme o entendimento do Espiritualismo Racional. E, entendendo o Espiritismo em sua essência, precisamos fazê-lo sair dos círculos fechados dos centros espíritas, para fazê-lo conquistar a sociedade através de suas ideias renovadoras e verdadeiramente consoladoras. Mas, para isso, a mudança precisa começar pelo indivíduo, se espalhando, então, para a família e para a sociedade.
Kardec superado?
Muitos pensam e afirmam o seguinte: “Kardec está superado no passado, então esqueçamo-lo e sigamos com o estudo dessas novas concepções que temos hoje”, o que é um erro profundo.
Espiritismo é ciência, tanto sob o aspecto das ciências morais francesas, no contexto de seu nascimento, quanto do ponto de vista de uma ciência de observação, que deduz, infere, analisa empiricamente, como fica muito claro para todos que estudam-no em suas fontes. Como ciência, tem uma base, sem a qual não se pode avançar. O Físico Nuclear também precisa passar por Newton, para depois chegar a Einstein e, depois, nos atuais cientistas.
No Espiritismo, tem pelo menos duas coisas que não mudaram, com relação ao nosso estado atual: a moral e os Espíritos. A primeira precisa ser estudada desde Jesus, e mesmo antes, sendo essa uma das propostas centrais do Espiritismo. Já os Espíritos continuam pertencendo a toda aquela escala, proposta por Kardec e refinada pelos Espíritos, e continuam se comunicando conosco, nos influenciando e conduzindo pelas mesmas formas que sempre utilizaram. Desde que, nisso, de forma inegável, há uma ciência, é necessário estudá-la e compreendê-la.
É por esquecer Kardec que, hoje, se aceita no movimento espírita conteúdos perniciosos, irracionais e antidoutrinários.
Se temos muito a aprender? Ora, mas é claro que sim! E os Espíritos nos ensinam aquilo que nós estamos prontos para entender, segundo o progresso da nossa ciência material. Kardec “arranhou” em assuntos científicos tão profundos, mas que ainda não podiam ser entendidos. Imaginem o que ele poderia alcançar se, naquela época, soubéssemos o que conhecemos hoje? Imagine, aliás, o que um pesquisador sério, elevado e honesto como ele poderia obter, segundo a ciência atual, a respeito de tudo aquilo que não pôde ser aprofundado naquela época?
Mas isso, meus caros, somente será feito no momento certo. Por isso, faço minhas as palavras do Paulo Henrique de Figueiredo: estudemos, estudemos, estudemos, até cansar. Entendamos o Espiritismo na Revista Espírita e nos seus complementos. Estudemos as obras de Kardec, as de Bozzano, as que, hoje, estudam o contexto do Espiritismo, inserido no Espiritualismo Racional, e estudemos ainda o magnetismo de Mesmer.
Quando estivermos prontos, como outrora, os próprios Espíritos nos buscarão e, quem sabe, eles precisem voltar a girar mesas e tocar tambores invisíveis de modo a chamar nossa atenção.
Uma motivação a mais para o estudo
E, se te falta ainda uma motivação para se afundar nesses estudos, deixo a seguinte reflexão:
O que nos afasta da felicidade real são nossas imperfeições, nossos vícios morais, nossas paixões desenfreadas. Somente o Espírito que venceu suas imperfeições, através das provas, e que desenvolveu seu raciocínio, através do conhecimento, consegue progredir no caminho da evolução espiritual. Todos nós o faremos, mais cedo ou mais tarde, mas a velocidade depende da vontade de cada um, galgada na razão, pois somente faz a verdadeira mudança o Espírito que realmente entende, racionalmente.
Diz Kardec, em A Gênese: “Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem domar-se”.
Contudo, esse capítulo termina aqui, na 5.ª edição dessa obra (que deu base a todas as traduções e edições futuras), que, hoje sabemos, tem fortes indícios de ter sido adulterada. Tomando a 4.ª edição, temos o seguinte encerramento, importantíssimo, omitido pela adulteração:
Todos os homens passam pelas paixões. Os que as superaram, e não são, por natureza, orgulhosos, ambiciosos, egoístas, rancorosos, vingativos, cruéis, coléricos, sensuais, e fazem o bem sem esforços, sem premeditação e, por assim dizer, involuntariamente, é porque progrediram na sequência de suas existências anteriores, tendo se livrado desse incômodo peso. É injusto dizer que eles têm menos mérito quando fazem o bem, em comparação com os que lutam contra suas tendências. Acontece que eles já alcançaram a vitória, enquanto os outros ainda não. Mas, quando alcançarem, serão como os outros. Farão o bem sem pensar nele, como crianças que leem correntemente sem ter necessidade de soletrar. É como se fossem dois doentes: um curado e cheio de força enquanto o outro está ainda em convalescença e hesita caminhar; ou como dois corredores, um dos quais está mais próximo da chegada que o outro.
Tudo o que vivemos, portanto, como nos mostra a Doutrina, jamais se trata de castigo, mas, sim, de oportunidades para a nossa evolução. O Espiritismo é autônomo em sua essência — “Aos olhos de Deus, o arrependimento é sagrado, porque é o homem que a si mesmo se julga, o que é raro no vosso planeta” [RE — outubro de 1858].
Se isso tudo não te motiva a estudar Kardec, não sabemos o que mais faria.
1. A editora FEAL já tem as traduções dessas obras, segundo o texto original. O contexto das adulterações de A Gênese pode ser entendido através da leitura da obra O Legado de Allan Kardec, de Simoni Privato; já o das adulterações de O Céu e o Inferno pode ser entendido na obra “Nem céu, nem inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo”, por Lucas Sampaio e Paulo Henrique de Figueiredo