A cultura organizacional de um centro espírita
por Marco Milani
Texto publicado na Revista Dirigente Espírita, ed. 188 – mar/abr 2022, p. 9-11
Apesar de diferentes portes e complexidades dos serviços oferecidos, todas as instituições efetivamente espíritas possuem, como característica identitária comum, a estruturação teórica de seus princípios e valores no ensino dos Espíritos organizados e apresentados por Allan Kardec. Muito mais do que a denominação formal ostentada em sua fachada e documentos, é a cultura interna pautada pelo conteúdo das obras kardequianas que torna-se o elemento central que faz com que qualquer centro espírita seja, assim, reconhecido como tal.
Historicamente, pode-se apontar a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), fundada em 01/04/1858, como o primeiro centro espírita do mundo e serviu de referência para a constituição de inúmeros grupos voltados para o estudo e prática do Espiritismo.
Ainda que tenha sido o modelo para formação de outros centros, a cultura organizacional da SPEE era única, pois o conjunto de práticas, rotinas, normas, necessidades, preocupações e expectativas de seus membros é algo que não se reproduz. Igualmente, cada instituição espírita, do passado ou do presente, reflete aspectos particulares de seus fundadores, mantenedores e colaboradores que lhe dá uma característica singular e sujeita a modificações com o tempo, mas sempre distinta de outras organizações.
Pode-se, então, afirmar que o centro espírita possui uma identidade comum em Kardec, compartilhada com outras instituições espíritas, e uma microcultura própria, decorrente da atuação direta de seus participantes, que o diferencia em maior ou menor grau dos demais centros.
A pluralidade microcultural é determinada, também, pela maturidade doutrinária dos dirigentes de cada casa.
Um problema crítico de identidade é gerado quando a microcultura da instituição conflita com a identidade comum que a faria ser reconhecida como espírita. Em outras palavras, quando os princípios e valores espíritas passam a ser reinterpretados e ressignificados devido à imaturidade doutrinária e/ou interesses particulares dos dirigentes, afasta-se a casa do direcionamento kardequiano e a aproxima de um contexto espiritualista, mas não espírita.
O dinamismo doutrinário, a necessidade de agregação de novos conhecimentos e a atualização conceitual costumam ser utilizados indevidamente para justificar a subversão ou abandono do ensino dos Espíritos na obra kardequiana. Opiniões isoladas de autores desencarnados passam a ser assumidas como novas verdades que se autolegitimam por terem sido reveladas por supostas comunicações mediúnicas e por médiuns infalíveis. O método do controle universal adotado por Kardec também é inutilizado ou deturpado pelos novidadeiros, desvalorizando-se os cuidados necessários para se aceitar uma informação como válida.
Não por acaso a relação entre poder e cultura nas organizações é amplamente explorada na literatura científica da área de Ciências Sociais Aplicadas. A influência exercida por líderes, principalmente carismáticos, nas instituições pode mudar e consolidar a cultura organizacional no longo prazo e fazer com que as referências doutrinárias espíritas migrem de sua base kardequiana para novos arcabouços teóricos, geralmente sincréticos e místicos.
Foi, justamente, o sincretismo com a Teosofia, Catolicismo e orientalismo, além de pitadas supersticiosas, alguns dos fatores que impactaram negativamente o desenvolvimento do Movimento Espírita Francês a partir da desencarnação de Allan Kardec. O reflexo do desvirtuamento cultural foi a disseminação do roustainguismo, por exemplo, em alguns grupos nascentes, inclusive brasileiros. Uma vez implantada a microcultura sincrética, é visível o seu impacto nocivo na questão identitária espírita.
Equivocadamente, alguns mais afoitos e distantes da análise criteriosa sob métodos sociológicos, confundem as inúmeras microculturas organizacionais com a própria identidade comum espírita, levando-os a supor que existam “vários espiritismos”. O que existe, de fato, é uma esperada heterogeneidade microcultural que não representa, por si mesma, a Doutrina Espírita, a qual é única. Assim, só há um Espiritismo, mas diferentes graus de maturidade doutrinária de seus adeptos.
Quanto mais coerente com o ensino dos Espíritos apresentados por Allan Kardec, mais próximo da identidade espírita encontra-se o profitente. O próprio codificador reconheceu e classificou os diferentes tipos de espíritas, sinalizando que não há uniformidade estrita nem que os pensamentos e atos isolados daquele que se declara adepto caracterizará, necessariamente, a doutrina.
No livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, em seu capítulo XVII, item 4, explicita-se as características do verdadeiro espírita, porém mesmo nesse item a leitura apressada impede a real compreensão de seu significado mais profundo. Destaca-se o seguinte trecho:
“Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção mais clara do futuro; os princípios da Doutrina lhe fazem vibrar fibras que nos outros se conservam inertes (grifo meu). Em suma: é tocado no coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más.”
Conforme se depreende, trata-se de interpretação limitada a caracterização do verdadeiro espírita apenas pela transformação moral e pelos esforços para domar as más inclinações, uma vez que essas atitudes, ainda que extremamente positivas e necessárias, podem ser feitas por qualquer ser humano, seja qual for a crença ou orientação filosófica que possua, inclusive ateus. Para ser bom, não precisa ser espírita. Por isso que a máxima é fora da caridade (não do Espiritismo) não há salvação. Existem ateus moralmente mais elevados que muitos religiosos.
Por outro lado, para ser espírita, deve-se compreender e vivenciar os princípios doutrinários e, para isso, deve-se estudar e se instruir sobre a natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, segundo o Espiritismo. A Ciência tem, portanto, papel de destaque na produção e avanço no conhecimento sobre a realidade que nos cerca, adentrando, inclusive em propostas espiritualistas, mesmo que desagradando pesquisadores ainda presos no materialismo.
Considerando que não basta ser bom para ser um espírita verdadeiro, uma organização espírita deve, imperiosamente, ser conduzida conforme os princípios e valores doutrinários. Desvios conceituais incorporados na microcultura organizacional sob a alegação de que a única coisa que importa é se esforçar para se transformar moralmente gera espaços para sutis ou claras infiltrações antidoutrinárias.
Em síntese, o movimento espírita, composto por milhares de instituições e profitentes, expressa rica diversidade microcultural e graus de maturidade doutrinária, mas o Espiritismo é único, expressando o ensino dos Espíritos que foram validados pelo método do controle universal e marcha, lado a lado, com os avanços científicos desde que devidamente validados, superando o estágio hipotético. A cultura organizacional do verdadeiro centro espírita tem, portanto, Kardec como lastro, afasta posturas sincréticas, místicas e supersticiosas, e acolhe o convite para o diálogo baseado em fatos e na fé raciocinada para a produção e avanço do conhecimento, os quais não ocorrem por simples opinião mediúnica.