Os sistemas de reforma social e o Espiritismo
por Paulo Degering Rosa Junior
Há tempos venho realizando abordagens ((Veja os artigos “Espiritismo e Política” e “O silêncio do Movimento Espírita ante os temas sociais“)) a respeito da impossibilidade de se atrelar o Espiritismo a qualquer ideologia política e do quanto essa prática é nociva e danosa ao Movimento Espírita. Quando defendo que o Espiritismo não se deve misturar à política, não quero dizer que ele não possa dar a ela sua contribuição, mas, sim, que ele não deve ser misturado às opiniões e às ideias de sistemas que, de modo avesso à moral espírita, querem mudar a sociedade a golpes de força, por imposição, ao passo que o Espiritismo demonstra que a única forma de realizar qualquer mudança na sociedade é auxiliando o indivíduo a abandonar maus hábitos e imperfeições, num gesto racional, consciente e autônomo.
Quem estuda o Espiritismo com alguma dedicação compreende facilmente esse princípio. Contudo, faltava-me encontrar uma verdadeira pérola de Allan Kardec, inserida em meio a um texto que, até hoje, confesso, ainda não havia lido, nem conhecido. A pérola em questão está na publicação “Viagem espírita em 1862”, em “Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux.”, item III:
Acabo de dizer que sem a caridade o homem não constrói senão sobre a areia. Um exemplo nos fará compreender melhor.
Alguns homens bem-intencionados, tocados pelos sofrimentos de uma parte de seus semelhantes, julgaram encontrar o remédio para o mal em certos sistemas de reforma social. Com pequenas diferenças, o princípio é mais ou menos o mesmo em todos eles, seja qual for o nome que se lhes dê. Vida comunitária por ser a menos onerosa; comunidade de bens, para que todos tenham sua parte; participação de todos para a obra comum; nada de grandes riquezas, mas, também, nada de miséria. Isto era muito sedutor para quem, nada tendo, já via a bolsa do rico entrar no fundo social, sem calcular que a totalidade das riquezas, postas em comum, criaria uma miséria geral, em vez de uma miséria parcial; que a igualdade hoje estabelecida seria rompida amanhã pela mobilidade da população e pela diferença entre as aptidões; que a igualdade permanente dos bens supõe a igualdade de capacidades e de trabalho. Mas, não é esta a questão; não entra em minhas cogitações examinar o lado positivo e negativo desses sistemas. Faço abstração das impossibilidades que acabo de citar e me proponho considerá-los de um outro ponto de vista que, parece-me, ainda não preocupou a ninguém e que se relaciona com o nosso assunto.
KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862, Grifos meus.
Kardec, como sempre muito lúcido em seus apontamentos, inicia apontando os problemas muito claros que tais “sistemas de reforma social” acarretariam à sociedade. Contudo, não se aprofunda sobre isso, para atacar, em seguida, a temática moral, esta sim muito importante, e demonstrando, uma vez mais, que seus interesses, alinhados ao Espiritismo, não consistiam em destruir, mas em construir:
Os autores, fundadores ou promotores de todos esses sistemas, sem exceção, não tiveram em mira senão a organização da vida material de uma maneira proveitosa a todos. O objetivo é louvável, sem dúvida. Resta saber se, nesse edifício, não falta a única base que poderia consolidá-lo, admitindo-se que fosse praticável.
A comunidade é a abnegação mais completa da personalidade((Um dos princípios do Espiritismo é a relação dos Espíritos para com todos, em contrário do falso princípio da individualidade (N. do E.) )). Cada um devendo dar de si pessoalmente, ela requer o mais absoluto devotamento((O Dever moral era algo muito bem definido pelo Espiritualismo Racional, do qual o Espiritismo é o desenvolvimento(N. do E.) )). Ora, o móvel da abnegação e do devotamento é a caridade, isto é, o amor ao próximo((Caridade desinteressada (N. do E.) )). Mas reconhecemos que o fundamento da caridade é a crença((A caridade, para ser possível, requer consciência, pautada na razão (N. do E.) )); que a falta de crença conduz ao materialismo e o materialismo leva ao egoísmo. Um sistema que, por sua natureza e para sua estabilidade, requer virtudes morais no mais supremo grau, deve tomar seu ponto de partida no elemento espiritual. Pois bem! já que o lado material é o seu objetivo exclusivo((Porque são sistemas baseados nas filosofias materialistas, com origem principal em Aristóteles e reproduzida com muita força por Comte (N. do E.) )), não só o elemento espiritual não é levado em consideração, como vários sistemas são fundados sobre uma doutrina materialista altamente confessada((Vejamos: a imperfeição pode se desenvolver por uma completa inabilidade em lidar com as questões da vida, por falta de entendimento da moral (carência de educação). Ao buscar, por exemplo, a felicidade nas coisas e nas situações da vida, o ser passa a atribuir uma importância descabida aos recursos necessários para fazê-lo. Se não os têm, sente-se infeliz (triste), mas, julgando que a ele também cabe a felicidade, pode julgar que, para satisfazer a isso, lhe seja lícito obtê-la daqueles que têm esses recursos em abundância. É a forma materialista de abordar o tema, reproduzida pela quase totalidade desses sistemas (N. do E.) )), ou sobre o panteísmo, espécie de materialismo disfarçado, verdadeiro adorno do belo nome de fraternidade. Mas a fraternidade, assim como a caridade, não se impõe nem se decreta; é preciso que esteja no coração e não será um sistema que a fará nascer, se lá ela não estiver; caso contrário o sistema ruirá e dará lugar à anarquia.
Ibidem. Idem.
Kardec lançou a semente: as virtudes morais, de onde nasce a fraternidade, não nascem de um sistema. Não podem ser impostas nem decretadas. É preciso nascer do coração.
A experiência aí está para provar que não se sufocam nem as ambições, nem a cupidez. Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa, como se formam obreiros, antes de lhes confiar um trabalho. Antes de construir, é preciso assegurar-se da solidez dos materiais. Aqui os materiais sólidos são os homens de coração, de devotamento e de abnegação. O egoísmo, o amor e a fraternidade são, como já dissemos, palavras vãs; como, então, sob o império do egoísmo, fundar um sistema que requeira a abnegação num grau tanto maior quanto tem, por princípio essencial, a solidariedade de todos para com cada um e de cada um para com todos?
Ibidem. Idem.
Chega a ser incrível não ver, ainda, Kardec ocupar espaço entre os nomes da mais alta filosofia moral. Mas não é só a moral que está esquecida, mas, também, junto a ela, a espiritualidade racional.
Simples e sem adornos linguísticos que só servem para confundir e envaidecer, diz o professor: “Antes de fazer a coisa para os homens, é preciso formar os homens para a coisa”. Sempre, sempre, atacando o cerne da questão, desde seus tempos de juventude, com pouco mais de 20 anos: a educação. Se se deseja mudar a sociedade, é preciso educar desde a infância. Ora, numa sociedade em que não existe educação, mas apenas instrução, que se quer atingir, senão os resultados que somos obrigados a topar, diariamente, mundo afora? Que se pode esperar de indivíduos que são formados, desde os primeiros passos, nas escolas da disputa, da trapaça, da recompensa e do castigo, numa palavra, da heteronomia? Decerto, não serão indivíduos autônomos e fraternos, muito menos caridosos. E, para Kardec,
Sem a caridade, não há instituição humana estável; e não pode haver caridade nem fraternidade possíveis, na verdadeira acepção da palavra, sem a crença((Novamente, Kardec destaca a importância do conhecimento, que alicerça a razão (N. do E.) )). Aplicai-vos, pois a desenvolver esses sentimentos que, engrandecendo-se, destruirão o egoísmo que vos mata. Quando a caridade tiver penetrado as massas, quando se tiver transformado na fé, na religião da maioria, então vossas instituições se tornarão melhores pela força mesma das coisas; os abusos, oriundos do personalismo, desaparecerão. Ensinai, pois, a caridade e, sobretudo, pregai pelo exemplo: é a âncora de salvação da sociedade. Só ela pode realizar o reino do bem na Terra, que é o reino de Deus; sem ela, o que quer que façais, só criareis utopias, das quais só vos resultarão decepções.
Ibidem. Idem.
Não é preciso ir muito mais longe. O pensamento de Kardec é bastante claro e lúcido, e o tomo não como argumento de autoridade , mas porque está de pleno acordo com aquilo que acredito ser a melhor expressão do conhecimento em moral, filosofia e educação, sobretudo no que tange ao progresso sucessivo e autônomo do ser, princípio demonstrado pelo Espiritismo.
Enquanto continuarmos lutando por transformações sociais impostas pela força, e até mesmo pela violência, criaremos apenas utopias e decepções. Vejamos que os exemplos disso, após Kardec, já são vários, e pululam à nossa volta. De certa forma, ele praticamente fez uma previsão daquilo que boa parte do mundo viria enfrentar, no século seguinte, por força dos sistemas e ideologias materialistas que vingam ainda hoje e que, paradoxalmente, são defendidos por expressiva parte do Movimento Espírita, que, em verdade, ainda não entendeu a verdadeira moral do Espiritismo e quer forçar os outros a se modificarem conforme o que agentes externos definem como ideal, e não pela própria consciência, num movimento autônomo e consciente.
Quando se trata de Movimento Espírita, é um disparate ver ideias materialistas defendidas dentro desse meio. Suponhamos, de forma bastante ingênua, que se crie uma lei que obrigue o rico a partilhar das suas riquezas: isso apenas gerará revolta nos Espíritos que tenham a imperfeição da avareza e, na primeira oportunidade, nesta ou em outras vidas, lutarão para restabelecer o poder antes possuído. Isso para não falar nos indivíduos que, acostumados aos vícios diversos, apenas utilizarão dos recursos partilhados para se refestelarem um tanto mais. Não é assim que se modifica uma sociedade.
Sem a caridade, que nasce da compreensão da moral da lei divina e do movimento autônomo em direção ao bem, o homem não constrói senão sobre a areia.