Devemos publicar tudo quanto dizem os Espíritos?

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“Os sofrimentos do jovem Werther” trata-se de um romance epistolar de Goethe, de 1774, onde o seu protagonista, um rapaz da alta aristocracia alemã, troca correspondências com um amigo chamado Guilherme, contando sobre suas viagens e experiências cotidianas (vide ao parágrafo introdutório do artigo), até o encontro com a bela Charlotte.

Embora ambos, Werther e Charlotte, vivam, de fato, uma história de amor, o rapaz não pode ser correspondido completamente por sua amada, já que a mesma é casada com outro homem. Werther, por sua vez, não vê outra saída e põe um fim em sua vida, dando um tiro na própria cabeça. O momento de seu suicídio é um dos episódios mais comoventes do livro e, considerado por muitos, da história da literatura.

O tom realístico e perturbador do romance provocou uma verdadeira comoção entre os jovens da época, que atraídos pelo espírito passional e depressivo de seu respectivo protagonista, resolveram seguir o mesmo rumo, pondo fim em suas próprias vidas. Foi grande o número de suicídios relacionado à leitura do pequeno-grande romance de Goethe, tornando-se rapidamente uma obra maldita para a igreja. Na psicanálise criou-se um termo chamado Efeito Werther, em referência ao personagem e caracterizado por sua fenomenologia suicida.

E o que essa história tem a ver com os Espíritos? Ora, tudo! Goethe foi uma personalidade de um Espírito encarnado – Espírito esse que, aliás, posteriormente se mostrou muito arrependido das ideias lançadas às mentes desavisadas, quando, em 1859, evocado por Kardec, responde assim, conforme apresentado na Revista Espírita desse ano:

12. ─ Que pensais do Werther?

─ Agora lhe reprovo o desenlace.

13. ─ Não teria essa obra feito muito mal, exaltando paixões?

─ Fez, e causou desgraças.

14. ─ Foi a causa de muitos suicídios. Sois por isso responsável?

─ Desde que houve uma influência maléfica espalhada por mim, é exatamente por isso que sofro ainda e de que me arrependo.

Somos responsáveis por aquilo que dizemos e, se não podemos nos responsabilizar totalmente pelas ações que os outros tomem em decorrência das nossas próprias – posto que é da autonomia e da vontade do outro a escolha entre agir desta ou daquela forma – somos, ao menos, em grande parte responsáveis por induzir outras mentes nos erros das imperfeições que, muitas vezes, atrapalham a nós mesmos.

Seguimos, portanto, esta breve reflexão, apresentando, integralmente, um artigo de Allan Kardec, na Revista Espírita de novembro de 1859 – “Devemos publicar tudo quanto os Espíritos dizem”?

Esta pergunta nos foi dirigida por um dos nossos correspondentes.

Respondemo-la da maneira seguinte:

Seria bom publicar tudo quanto dizem e pensam os homens?
Quem quer que possua uma noção do Espiritismo, por superficial que seja, sabe que o mundo invisível é composto de todos aqueles que deixaram na Terra o envoltório visível. Despojando-se, porém, do homem carnal, nem todos se revestiram, por isso mesmo, da túnica dos anjos. Há, portanto, Espíritos de todos os graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade. Eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres levianos, desatentos e brincalhões; falsos sábios, vãos e orgulhosos de um saber incompleto; hipócritas, malévolos e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não conhecêssemos a fisiologia deste mundo, há sensuais, vilões e devassos que se arrastam na lama. Ao lado desses, assim como na Terra, há seres bons, humanos, benevolentes, esclarecidos e dotados de sublimes virtudes. Como, entretanto, o nosso mundo não está na primeira nem na última posição, embora mais vizinho da última que da primeira, disso resulta que o mundo dos Espíritos abrange seres mais avançados intelectual e moralmente do que os nossos homens mais esclarecidos, e outros que estão em situação inferior à dos homens mais inferiores.

Desde que esses seres têm um meio patente de comunicar-se com os homens e de exprimir os seus pensamentos por sinais inteligíveis, suas comunicações devem ser efetivamente o reflexo de seus sentimentos, de suas qualidades ou de seus vícios.

De acordo com o caráter e a elevação dos Espíritos, as comunicações poderão ser levianas, triviais, grosseiras e até mesmo obscenas, ou marcadas pela elevação intelectual, pela sabedoria e pela sublimidade. Eles se revelam por sua própria linguagem. Daí a necessidade de não aceitar cegamente tudo quanto vem do mundo oculto, e de tudo submeter a um severo controle. Com as comunicações de certos Espíritos, do mesmo modo que com os discursos de certos homens, poder-se-ia fazer uma coletânea muito pouco edificante. Temos sob os olhos uma pequena obra inglesa, publicada na América, que é prova disto. Dela pode-se dizer que uma senhora não a recomendaria como leitura à filha. Por isto, não a recomendamos aos nossos leitores.

Há pessoas que acham isto engraçado e divertido. Que se deliciem na intimidade, mas que o guardem para si próprias. O que é ainda menos concebível é que se vangloriem de obter comunicações indecorosas. Isto é sempre indício de simpatias que não podem ser motivo de vaidade, sobretudo quando essas comunicações são espontâneas e persistentes, como acontece a certas pessoas. Isto absolutamente não permite que façamos um julgamento apressado de sua moralidade atual, pois conhecemos pessoas afligidas por esse gênero de obsessão, ao qual de modo algum se presta o seu caráter. Entretanto, como todos os efeitos, este também deve ter uma causa, e se não a encontramos na existência presente, devemos procurá-la numa experiência anterior. Se essa causa não está em nós, está fora de nós. Contudo, há sempre um motivo para estarmos nessa situação, mesmo que esse motivo seja apenas a fraqueza de caráter. Conhecida a causa, de nós depende fazê-la
cessar.

Ao lado dessas comunicações francamente más, e que chocam qualquer ouvido um pouco delicado, outras há que são simplesmente triviais ou ridículas. Haverá algum inconveniente em publicá-las? Se forem divulgadas pelo que valem, haverá apenas um mal menor. Se o forem a título de estudo do gênero, com as devidas precauções e com os comentários e as restrições necessárias, poderão até mesmo ser instrutivas, na medida em que contribuam para se conhecer o mundo espírita em todas as suas nuanças. Com prudência e habilidade, tudo pode ser dito. O mal está em apresentar como sérias, coisas que chocam o bom-senso, a razão ou asconveniências. Neste caso, o perigo é maior do que se pensa.

Para começar, tais publicações têm o inconveniente de induzir em erro as pessoas que não estão em condições de examiná-las e discernir o verdadeiro e do falso, principalmente numa questão tão nova como o Espiritismo. Em segundo lugar, são armas fornecidas aos adversários, que não perdem a oportunidade de tirar desse fato argumentos contra a alta moralidade do ensino espírita, porque, diga-se mais uma vez, o mal está em apresentar seriamente coisas notoriamente absurdas. Alguns poderão até mesmo ver uma profanação no papel ridículo que emprestamos a certas personagens justamente veneradas, às quais atribuímos uma linguagem indigna delas. As pessoas que estudaram a fundo a ciência espírita sabem que atitude convém adotar em semelhantes casos. Sabem que os Espíritos zombeteiros não têm o menor escrúpulo de enfeitar-se com nomes respeitáveis, mas sabem também que esses Espíritos só abusam daqueles que gostam de se deixar abusar e que não sabem ou não querem destruir suas artimanhas pelos meios de controle já conhecidos. O público, que ignora isto, vê apenas uma coisa: um absurdo oferecido à sua admiração como se fosse coisa séria, e em razão disso diz para si mesmo que se todos os espíritas são como esse, não desmerecem o epíteto com que foram agraciados. Sem a menor dúvida, tal julgamento é precipitado. Vós acusais com justa razão os seus autores de leviandade e lhes dizeis: estudai o assunto e não examineis apenas uma face da medalha. Há, porém, tanta gente que julga a priori, sem se dar ao trabalho de erguer uma palha, principalmente quando não existe boa vontade, que é necessário evitar tudo quanto lhes possa dar motivos para censuras, tendo em vista que se a má vontade juntar-se à malevolência, o que é muito comum, ficarão encantadas por encontrarem o que criticar.

Mais tarde, quando o Espiritismo estiver vulgarizado, mais conhecido e compreendido pelas massas, tais publicações não terão mais influência do que hoje teria um livro de heresias científicas. Até lá, nunca seria demasiada a circunspecção, porque há comunicações que podem prejudicar essencialmente a causa que querem defender, em escala muito maior que os grosseiros ataques e as injúrias de certos adversários. Se algumas fossem feitas com tal objetivo, não teriam menor êxito. O erro de certos autores é escrever sobre um assunto antes de tê-lo aprofundado suficientemente, dando lugar, assim, a uma crítica fundamentada. Eles se queixam do julgamento temerário de seus antagonistas, sem atentar para o fato de que muitas vezes são eles mesmos que revelam seu ponto fraco. Aliás, a despeito de todas as precauções, seria presunção suporem-se ao abrigo de toda crítica, a princípio porque é impossível contentar a todo o mundo; depois, porque há os que riem de tudo, mesmo das coisas mais sérias, uns por sua condição, outros por seu caráter. Riem muito da religião. Não é, pois, de admirar que riam dos Espíritos, que não conhecem. Se pelo menos essas brincadeiras fossem espirituosas, haveria compensação. Infelizmente, elas em geral não brilham nem pela finura, nem pelo bom gosto, nem pela urbanidade e muito menos pela lógica. Façamos, pois, o melhor que pudermos, trazendo para nosso lado a razão e a conveniência, e assim traremos para o nosso lado também os trocistas.

Essas considerações serão facilmente compreendidas por todos, mas há uma não menos importante, pois se refere à própria natureza das comunicações espíritas, e por isso não devemos omiti-la. Os Espíritos vão aonde acham simpatia e onde sabem que serão ouvidos. As comunicações grosseiras e inconvenientes, ou simplesmente falsas, absurdas e ridículas, só podem emanar de Espíritos inferiores.

O simples bom-senso o indica. Esses Espíritos fazem o que fazem os homens que se veem complacentemente escutados. Ligam-se àqueles que admiram as suas tolices e muitas vezes se apoderam deles e os dominam a ponto de fasciná-los e subjugá-los.

A importância que, pela publicidade, é dada às suas comunicações, os atrai, excita e encoraja. O único e verdadeiro meio de afastá-los é provar-lhes que não nos deixamos enganar, rejeitando impiedosamente, como apócrifo e suspeito, tudo aquilo que não for racional; tudo aquilo que desmentir a superioridade que se atribui ao Espírito que se manifesta e de cujo nome ele se serve. Então, quando vê que perde o seu tempo, ele se afasta.

Julgamos ter respondido satisfatoriamente à pergunta do nosso correspondente sobre a conveniência e a oportunidade de certas publicações espíritas. Publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte, seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento. Esta é, pelo menos, a nossa opinião pessoal, que submetemos à apreciação daqueles que, desinteressados pela questão, podem julgar com imparcialidade, pondo de lado qualquer consideração individual. Como todo mundo, temos o direito de dizer a nossa maneira de pensar sobre a ciência que é objeto de nossos estudos, e de tratá-la à nossa maneira, não pretendendo impor nossas ideias a quem quer que seja, nem apresentá-las como leis. Os que partilham da nossa maneira de ver é porque creem, como nós, estar com a verdade. O futuro mostrará quem está errado e quem tem razão.

Se temos responsabilidade por nossas ações, não temos menos responsabilidade por propagar falsas ou danosas ideias, resultantes do pensamento alheio, por ostensiva ausência de cuidado e de estudo. Tratamos de Espiritismo, e esse assunto é sério. Não façamos menos, nessa matéria, do que o necessário, que é estudá-lo sem cessar, em todo seu contexto, nunca dando por afirmativas finais aquilo que não tenhamos encontrado concluído nas teses doutrinárias. Lembramos sempre que o próprio Allan Kardec deixou diversos assuntos em aberto, pela impossibilidade de avançar sobre eles, naquela época, mas exortamos para que isso não seja motivo para, levianamente, aceitar qualquer comunicação posterior como complemento desses assuntos, pois, sem o conhecimento e a metodologia necessária, cairíamos no erro de não observar tudo aquilo que Kardec apontou no texto acima, resumo de anos de estudo frente ao Espiritismo.

Também é de nossa opinião que “publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte, seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento”! Goethe tomou a decisão de publicar algo que foi fruto de sua mente – e, muito provavelmente, de outras mentes espirituais, que o induziram a tais ideias. E se essas mesmas mentes, ou o próprio Espírito de Goethe, nos comunicasse um romance de tal teor, por vias mediúnicas? Deveríamos simplesmente publicá-lo?

Note que, de forma alguma, este Grupo se coloca em tom de crítica quanto ao médium. Afinal, ele é a ferramenta de intercâmbio das ideias. O problema que aqui se destaca é no que tange à análise dessas comunicações e o uso que se faz delas e, por aí, pode o leitor imaginar o quanto lamentamos as diversas publicações de supostas cartas psicografadas ou mesmo livros que, indiscriminadamente, favorecem o espalhamento e a inculcação de falsas ideias ligadas aos dogmas da queda pelo pecado, do castigo divino, do apego às coisas da matéria mesmo no mundo espiritual, etc.

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