A verdadeira psicologia
A palavra psicologia significa, literalmente, “estudo da alma” (ψυχή, psyché, “alma” – λογία, logia, “tratado”, “estudo”). Não é, porém, o que vemos refletido nos estudos atuais – e de longa data – sobre o tema, pois, por mais que essa área se aproxime do entendimento da alma como “o princípio inteligente, a racionalidade e o pensamento”, ainda procura na matéria cerebral a origem de todas as características do indivíduo ((
“Nosso cérebro, involuntariamente, procura elementos para se apoiar, reforçar suas convicções ou seus interesses, o que o leve a um estilo de vida individualizado, próprio. Não importa o que você utiliza para fortalecer ou motivar seus desejos, suas esperanças, todas as variadas formas são válidas. Pessoas que não acreditam em nada tendem a ser pessimistas e negativas, pois para elas, nada poderá ocorrer para que haja mudança nas suas vidas. Pois o domínio da razão, prende o homem ao que é terreno. A genética explica a origem da fé.”
SOUZA, Andreia Maria S. “O que é alma: significado em psicologia e psicanálise”. Disponível em https://www.psicanaliseclinica.com/alma-o-que-e/. Acesso em 10/09/2022. Grifos nossos.
Como se vê, mesmo a fé, para a psicologia moderna, ainda é materialista, condicionada, para ela, à genética, e não à alma (necessariamente, portanto, em progresso).
)).
A área de pesquisa do ser humano, de sua “psyché” (psique) está predominantemente caracterizada pelas ideias aristotélicas que definem o ser como um resultado do corpo – ideias essas que, varando pelos séculos, criaram, em contrário à filosofia de Sócrates e Platão, autônoma e espiritualista em essência, uma lamentável doutrina heterônoma e materialista, que, além de retirar do ser os princípios da autonomia e da vontade, fizeram surgir as absurdas ideias de racismo, eugenia e, no campo individual, da heteronomia, que, do indivíduo, contamina seu meio social e, por fim, define as estruturas sociais, filosóficas e políticas.
Pautada e contaminada pela ideia aristotélica, onde o indivíduo atribui, quando puramente materialista, todas as suas características morais à genética do corpo e, quando “espiritualista”, a um ou mais seres atuantes como árbitros (como se Deus, ou “os deuses”, fossem seres vingativos, interferentes) ou impelentes ao mal – o diabo, o(s) demônio(s), etc. – a sociedade se descarateriza como social, tornando-se predominantemente egoísta e insulando o ser em si mesmo, visando o atendimento de suas necessidades materiais, ao invés de levá-lo à compreensão de sua vontade como princípio de tudo, no exercício diário e solidário com o outro.
As religiões, enfim, tiraram, por interesses sectários, a autonomia do indivíduo, para o subordinarem a caprichos e castigos de outros seres, interferentes, belicosos e vingativos, quando não maldosos, ao passo que a ciência, não vendo racionalidade nos princípios dogmáticos das religiões, negando-a em completo, renegou a espiritualidade humana, para, então, cair no mesmo erro, tirando a autonomia do indivíduo ao transformá-lo em “boneco-de-ventríloquo” da química corporal. Não é à toa que a eugenia darwinista se fundamentava em Aristóteles, pois, se por um lado acerta na observação do fato natural da seleção, por outro, estende-o ao ser humano, colocando-o, uma vez mais, como efeito de seu corpo, e não como fator determinante sobre ele. Dizia Darwin: “Lineu e Cuvier foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.”.
Não sabíamos nós, porém, que, por expressiva quantidade de tempo, e na capital do mundo dos séculos XVIII e XIX, nasceu uma corrente filosófica que retomou os conceitos da autonomia do indivíduo como princípio fundamental da existência e da definição do (ou de) ser. Uma filosofia que definiu as ciências morais francesas ((Diz Paulo Henrique de Figueiredo em “Autonomia”: A primeira divisão das ciências, apresentada no Tratado de philosofia, de Paul Janet, conforme a estrutura vigente na Universidade Sorbonne, no século 19, era entre:
a) As ciências exatas ou matemáticas.
b) As ciências naturais, que estudam os objetos do mundo físico (física, química, biologia etc.).
c) As ciências morais, que estudam o mundo moral, o qual compreende as ações e pensamentos do gênero humano.
As ciências morais, por sua vez, eram divididas em quatro grupos:
- As ciências filosóficas, divididas em duas classes: psicológicas (psicologia, lógica, moral, estética) e metafísicas (teodiceia, psicologia racional, cosmologia racional).
- As ciências históricas (história, arqueologia, epigrafia, numismática, geografia) estudam os acontecimentos e o desenvolvimento humano no tempo.
- As ciências filológicas (filologia, etimologia, paleografia etc.), que têm como objeto a linguagem e a expressão simbólica humana.
- As ciências sociais e políticas (política, jurisprudência, economia política), que estudam a vida social do ser humano (JANET, 1885, p. 15-17).)) e que passou a ser matéria fundamental na Escola Normal, na formação dos professores, e que depois passou a ser adotada nos liceus e nos colégios, mas que foi sorrateiramente apagada da história humana, juntamente a duas outras ciências filosóficas de mesmo fundamento, como veremos a seguir.
Foi no início do século XIX que Maine de Biran e, depois, Victor Cousin, entre outros, retomaram o conceito da vontade como princípio elaborado psicologicamente pela alma, definindo o livre-arbítrio. Para esses pensadores – numa época em que, como vimos, a filosofia era tratada como ciência – a autonomia do indivíduo está fundamentada na vontade como caraterística da alma. Desse princípio fundamental, nasceram os princípios que afastaram o ser da heteronomia, colocando-o como agente autônomo de si mesmo e, por sua ação solidária, da sociedade. O indivíduo não era mais um reflexo de sua genética (ou, como pensavam na época, de suas disposições biliares ((A bile branca definia o bem e a bile negra definia o mal, na química corporal. Partindo desse princípio, muitos médicos aplicavam as sangrias, tantas vezes mortais, buscando eliminar do corpo a bile negra.)), mas o reflexo primário de sua vontade.
Isso revolucionou a psicologia da época e transformou totalmente as ciências morais, pois colocou o indivíduo na condição de único responsável real por suas condições e escolhas morais. Mais: passou a tratar dos temas morais, sob esses princípios, de forma a separar o que era externo ao indivíduo – as emoções (na época chamadas paixões), os prazeres, a dor física, etc – do que era interno ao indivíduo – as escolhas, nascidas da vontade de sua alma (sendo que a alma seria, para eles, o ser que define a vontade e que sobrevive à morte, sem, porém, investigá-la nesse estado) que, por fim, determinariam seu estado de felicidade ou de infelicidade.
Esse conhecimento é fantástico e merece ser recuperado e estudado! Veja: hoje, definimos (ou confundimos) nosso estado de felicidade e infelicidade pelos fatores externos – se não tenho dinheiro para viajar, ou se tenho um corpo debilitado, ou se perdi pessoas queridos, me acho infeliz, sendo que a felicidade, para o pensamento materialista vigente, estaria nas coisas do mundo – as festas, as viagens, o dinheiro, etc. Ao compreender essa moral definida por essa filosofia espiritualista – o espiritualismo racional, como ficou conhecida – passamos a separar as coisas: posso estar infeliz por uma condição ou acontecimento, ou não ter prazeres por conta de não ter dinheiro, ou por ter uma saúde debilitada, ou limitações corporais, mas não é isso que define minha felicidade, pois esta é uma construção da vontade de minha alma no que tange à moral, isto é, no meu esforço pelo desapego de tudo aquilo que nasce das condições exteriores à minha vontade. Por exemplo: como condição exterior à minha vontade, definida pela minha alma, existe o impulso corporal de reagir com violência a determinada situação; ao permitir que esse ímpeto, que nasce do instinto de proteção, domine minha vontade, posso realizar ações que me façam, posteriormente, arrepender-me (quando me conscientizar), pelo que sofrerei. Se me apegar a tal modo de agir, desenvolverei um hábito e, daí, um vício, que me fará sofrer indefinidamente, até que, me arrependendo, resolva, de forma consciente, buscar me desapegar desse erro, num esforço que só pode ser autônomo, e não impositivo.
Talvez quem tenha melhor definido esses conceitos seja Paul Janet, em duas obras principais: “Pequenos Elementos de Moral”, uma obra muito sucinta e simples de ler (recomendamos a leitura!), disponível para download aqui e também disponível no Amazon Kindle, e “Tratado Elementar de Philosophia“, uma obra bastante maior e mais complexa.
Mas não para por aí. Mencionamos a questão da bile negra e da bile branca, que tomou os conceitos médicos da época e que, pelas absurdas ações impostas aos doentes, como a sangria ou os “remédios”, que misturavam até veneno, debilitavam e, por vezes, matavam os doentes. Contrário a essas ideias, ainda no século XVIII, Mesmer, ao observar alguns pacientes, chegou – de forma muito resumida – a elaborar conceitos também autônomos no tratamento da saúde, teorizando que o indivíduo poderia também se curar pela ação de sua vontade. Hahnemann, com a homeopatia, seguiu o mesmo princípio. Para Mesmer, o agente externo, agindo através da vontade do indivíduo doente – o que ficou conhecido por magnetismo – poderia auxiliá-lo a atingir, através de um trabalho persistente, curas que, para muitos, seriam impossíveis e, em alguns casos, quase milagrosas (o que, de fato, não era: trava-se apenas de uma ciência desconhecida). Tal era a exatidão de suas teorias que, já naquela época, e contra as teorias científicas de então, elas se alinhavam aos conceitos ora vigentes e demonstrados pela física moderna, como os da Teoria Quântica de Campos e da existência de uma matéria elementar, “quintessenciada”, que dá origem a toda a matéria (matéria escura). É todo um conhecimento que demandaria um verdadeiro livro para tratá-lo. Como esse livro já existe, recomendamos sua leitura: “Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”, de Paulo Henrique de Figueiredo.
Mencionamos também a questão de o estudo dos espiritualistas racionais estar limitado à compreensão da alma como agente da vontade, exterior ao corpo e dominante sobre ele, sobrevivente à morte (por mera inferência racional dos postulados anteriores), mas de posterior destino desconhecido, posto que inobservável. Acontece, porém, que “algo” vinha acontecendo, ganhando terreno para o estabelecimento de uma nova ciência, nascida, na época, como todas as outras: pela observação racional e metodológica dos fatos da natureza.
Diz Paulo Henrique de Figueiredo, em ”Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal”:
“Os magnetizadores comprovaram muito cedo as relações dos sonâmbulos com seres invisíveis. Deleuze, discípulo de Mesmer, em sua correspondência mantida com o doutor G. P. Billot por mais de quatro anos, de março de 1829 até agosto de 1833, inicialmente foi relutante, mas por fim afirmou: “O magnetismo demonstra a espiritualidade da alma e a sua imortalidade; ele prova a possibilidade da comunicação das inteligências separadas da matéria com as que lhes estão ainda ligadas.” (BILLOT, 1839)”
[…]
Por sua vez, Deleuze afirmou: “Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, ocupam-se daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disto um exemplo.” (Ibidem)
[…]
“Anos depois, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), com coragem e determinação, conversou com os espíritos por meio de seus sonâmbulos em êxtase, principalmente Adèle Maginot, registrando em sua obra mais de cento e cinquenta cartas assinadas por testemunhas que reconheceram a identidade dos espíritos comunicantes. Cahagnet antecipou em mais de dez anos esse instrumento de pesquisa da ciência espírita.”
FIGUEIREDO. Mesmer: a ciência negada do magnetismo animal.
Chegamos, portanto, ao nascimento da ciência espírita, uma ciência, e não, como muitos julgam, uma “religião”. Posto no corrente dos fatos que pululavam pela Europa (e pelo mundo, na verdade) e, afastando, pela investigação, as charlatanices que visavam apenas atrair curiosos e suas bolsas de dinheiro, o professor Rivail ((Hippolyte Leon Denizard Rivail.)) colocou-se, após muita insistência de alguns conhecidos, a um estudo que culminou naquilo que ficou conhecido como Espiritismo, que, ao invés de nascer, como todas as doutrinas religiosas, da opinião isolada de um indivíduo ou de um grupo, nasceu da análise racional de milhares de comunicações, obtidas de todos os “cantos” do mundo, da mesma forma que os magnetizadores que o precederam também obtiveram as suas: através de indivíduos colocados em estado de sonambulismo, induzido pelo magnetismo (de Mesmer). Um fato estava firmado, sustentado pela razão: a alma, antes ininvestigável, poderia, por sua vontade, se comunicar através da alma do indivíduo colocado em estado sonambúlico.
Através dessas comunicações, Allan Kardec, nome adotado por Rivail com a finalidade de não confundir seus trabalhos como educador e cientista com seus novos estudos, inaugurou uma nova era no estudo psicológico, pois, agora, plenamente alinhado aos conceitos já elaborados pelo espiritualismo racional, estudava a alma em seu estado, após a morte, de felicidade ou infelicidade, frutos de suas escolhas. Não só: contra as ideias pré-concebidas que tinha, junto a outros estudiosos, a respeito da origem da alma, comunicações de incontáveis Espíritos evidenciaram, pela razão, a lei da reencarnação como elemento necessário ao progresso incessante do Espírito ((Destaca Kardec, em sua Revista:
“Sem dúvida, dizem alguns contraditores, vós estáveis imbuídos de tais ideias e por isso os Espíritos concordaram com vossa maneira de ver. É um erro que prova, mais uma vez, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se, antes de julgar, tais pessoas se tivessem dado ao trabalho de ler o que escrevemos sobre o Espiritismo, ter-se-iam poupado ao trabalho de uma objeção tão leviana. Repetiremos, pois, o que já dissemos a respeito, isto é, que quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe de nosso pensamento, que havíamos construído um sistema completamente diferente sobre os antecedentes da alma, sistema aliás partilhado por muitas pessoas. Sobre este ponto, a doutrina dos Espíritos nos surpreendeu. Diremos mais: ela nos contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias. Como se vê, estava longe de ser um reflexo delas.
Isto não é tudo. Nós não cedemos ao primeiro choque. Combatemos; defendemos a nossa opinião; levantamos objeções e só nos rendemos ante a evidência e quando notamos a insuficiência de nosso sistema para resolver todas as questões relativas a esse problema.
Aos olhos de algumas pessoas, talvez pareça singular o uso do termo evidência, em semelhante assunto, entretanto não será impróprio para quem se habituou a perscrutar os fenômenos espíritas. Para o observador atento há fatos que, embora não sejam de natureza absolutamente material, nem por isso deixam de constituir verdadeira evidência, pelo menos uma evidência moral.
Não é aqui o lugar para explicar esses fatos, só compreensíveis através de um estudo contínuo e perseverante. Nosso objetivo era apenas refutar a ideia de que esta doutrina não passa de uma tradução do nosso pensamento.”
KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1858.
)), em suas escolhas de retorno à matéria, para dar prosseguimento ao seu aprendizado e, em muitos casos, para, após o processo de arrependimento, mediante suas escolhas, e não por uma imposição arbitrária, dar lugar às provas necessárias para a busca pelo desapego de hábitos e vícios que, transformados em imperfeições, os levaram ao sofrimento.
Tais estudos complementaram aquilo que o Espiritualismo Racional não pôde explicar e demonstraram que a autonomia do ser, definida por sua vontade e pelo seu livre-arbítrio, era, sim, fator determinante em seu progresso e, consequentemente, em seu estado de felicidade ou infelicidade, à medida que a felicidade estaria em quanto mais próximo da lei natural estivesse, ao passo que a infelicidade estaria em lutar contra ela, desenvolvendo apegos. Em reconhecendo o estado de infelicidade e seu motivo, o Espírito escolheria novas oportunidades que proporcionassem aprendizado, não sendo, em nenhuma hipótese, o efeito de um castigo imposto pelo erro cometido.
Eis, prezado leitor, os fatos da verdadeira revolução psicológica e filosófica que, por mais de um século, ficou desconhecida pela sociedade, varrida para baixo do tapete por uma forte reação materialista. Outrora reconhecida como ciência, hoje, sob o império de um entendimento materialista – e inexato – do que é ciência, é tratada como pseudociência, descreditada e desacreditada sob essa classificação. Eis os fatos que, atualmente, são inconcebíveis de serem abordados nas salas de aula das turmas de filosofia, medicina, psicologia e afins. Eis os fatos, enfim, que levaram todo o mundo a mergulhar ou se manter sob os temíveis princípios que tiram do ser a autonomia e que transformam o homem numa verdadeira massa de carne, definida por sua química corporal e, por conseguinte, pelo seu DNA. Não se busca, hoje, em geral, investigar a origem da infelicidade, da depressão ou dos distúrbios pela investigação da alma e de sua vontade: busca-se, pelo contrário, investigar qual é gene da psicopatia, não se cogitando que as “anomalias” seriam definidas pela alma, e não o contrário.
Acontece, porém, que o ser humano, exatamente pelo progresso espiritual, que não cessa, a cada dia mais busca a autonomia, porque, lenta e progressivamente, se aproxima, pela própria razão, da constatação e do entendimento desses princípios, já que o progresso do Espírito não se dá apenas no estado de encarnação. Começam a ganhar força, tanto na sociedade em geral, como nos meios científicos, as ideias autônomas que, a cada dia mais, voltam a se aproximar dessa verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano, no passado. É por isso que, veementemente, indicamos o estudo das obras citadas para, depois, indicar, àqueles que se sintam compelidos a isso, o estudo da Revista Espírita, elaborada por Kardec, de janeiro de 1858 a abril de 1869, onde fica exposta, com muita clareza, a formação dessa doutrina filosófica e moral que, para ser bem entendida, carece da compreensão do contexto em que nasceu e se formou.
Dissemos da verdade arbitrariamente apagada do conhecimento humano. O Espiritismo, tendo sido a única doutrina científica e filosófica que se aprofundou no estudo da psicologia do Espírito após a morte do corpo – eis a razão de a Revista Espírita receber, como subtítulo, “Jornal de Estudos Psicológicos” – estudou os fatos que lhes foram dados de forma racional e com metodologia científica (que pode ser muito bem entendida através do estudo sério da obra de Allan Kardec, e sobre a qual já falamos algumas vezes, em nossos artigos).
Devidamente contextualizada em sua época, a Doutrina Espírita, era de tal maneira racional e lógica, clara e, de certa forma, simples, que “convertia” ((Claro que o sentido aqui dado a “converter” é o de adotar princípios e ideias de uma doutrina, e não de afiliar-se a um sistema religioso qualquer.)) incontáveis pessoas, até mesmo ateus e materialistas, desde as classes operárias até os ocupantes dos mais altos postos sociais. Hoje, porém, o Movimento Espírita, contaminado, por mais de um século, por adulterações nas duas obras finais de Kardec e por ideias incutidas em seu meio, perdeu justamente essa característica racional e lógica de uma ciência observacional. Atualmente, muitos se afastam do meio espírita justamente por verem seus raciocínios chocados contra falsos conceitos de pagamento de dívidas, carma, castigo divino através da reencarnação e aceitação desarrazoada de qualquer suposta psicografia espírita, sem submetê-la, como recomendava Kardec, ao crivo da razão.
Eis o porquê da necessidade de estudar e conhecer o Espiritismo nas obras [originais ((As obras O Céu e o Inferno e A Gênese foram respectivamente adulteradas em suas 4a e 5a edições, mas a editora FEAL já tem, atualmente, as obras originais, com enorme quantidade de notas contextualizatórias de Paulo Henrique de Figueiredo.))] de Kardec. O Espiritismo nunca foi uma religião, nem nasceu com o intuito de disputar com as religiões um posto que não lhe compete ((Diria Kardec, na Revista Espírita de 1862:
“A propósito da questão dos milagres do Espiritismo que nos foi proposta, e que tratamos no nosso último número, igualmente se propõe esta: ‘Os mártires selaram com o seu sangue a verdade do Cristianismo; onde estão os mártires do Espiritismo?’
Estais, pois, muito instados a ver os Espíritas colocados sobre a fogueira e lançados às feras! O que deve fazer supor que a boa vontade não vos faltaria se isso ocorresse ainda. Quereis, pois, a toda força elevar o Espiritismo à situação de uma religião! Notai bem que jamais ele teve essa pretensão; jamais se colocou como rival do Cristianismo, do qual declara ser o filho; que ele combate os seus mais cruéis inimigos: o ateísmo e o materialismo. Ainda uma vez, é uma filosofia repousando sobre as bases fundamentais de toda religião, e sobre a moral do Cristo; se renegasse o Cristianismo, se desmentiria, se suicidaria. São esses inimigos que o mostram como uma nova seita, que lhe dá sacerdotes e grandes sacerdotes. Gritarão tanto, e tão frequentemente, que é uma religião, que se poderia acabar por nisto crer. É necessário ser uma religião para ter seus mártires? A ciência, as artes, o gênio, o trabalho, em todos os tempos, não tiveram seus mártires, assim como todas as ideias novas?”
Allan Kardec – Revista Espírita de 1862
)). É, antes de tudo, uma ciência moral, como demonstramos, mas também uma ciência nascida da observação dos fatos da natureza. Estudado como tal, afasta preconceitos e ataca o único real inimigo da autonomia humana, o materialismo, demonstrando-o falso e insustentável.